DOSSIÊ - EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS: POLÍTICAS E PRÁTICAS
Apresentação
O dossiê temático Educação Bilíngue para Surdos: políticas e práticas representa o acúmulo das conquistas empreendidas pela comunidade surda mundial nas últimas décadas, em favor do reconhecimento de sua língua, de sua produção cultural, de sua história.
Sua publicação, posteriormente aos eventos de comemoração dos 100 anos da Universidade Federal do Paraná (1912-2012), tem um simbolismo especial para a comunidade surda paranaense. Em um século de existência da UFPR, não houve sequer um único caso de estudante surdo, usuário da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como língua materna, formado em seus cursos de graduação e pós-graduação.
Certamente, esse inusitado fato não pode ser atribuído à incapacidade de pessoas surdas ingressarem em uma universidade pública. Esse dado revela a inegável restrição de acesso de sujeitos surdos que falam uma língua minoritária, de pouco prestígio, se comparada à língua majoritária - o português. A exclusão explicita a ausência de políticas inclusivas no ensino superior (e na UFPR) que levassem em consideração a diferença linguística dos estudantes surdos, no último século.
Mas este não foi um fato isolado. Também por um século, a Libras foi uma língua fortemente oprimida, proibida nas escolas e na sociedade, e seus falantes nativos - os surdos - perseguidos e castigados fisicamente, chegando a terem as mãos amarradas, quando insistiam em se comunicar por sinais. Cem anos de opressão é um tempo precioso para o florescimento cultural de uma língua, sobretudo porque o desenvolvimento de um sistema linguístico reflete e refrata as relações sociais vivenciadas pelo grupo de seus falantes. Se calada for a "voz" dos surdos, também sua língua estará emudecida.
Por isso, esta publicação tem um simbolismo institucional importante para demarcar o hiato histórico entre tempos de preconceito e exclusão e tempos de demarcação de espaços de luta, resistência e conquistas significativas para a cidadania surda bilíngue e bicultural.
Com a oficialização da Língua Brasileira de Sinais (Libras), pela Lei Federal 10.4366/2002, os surdos passam a ser reconhecidos politicamente em território nacional como grupo cultural e linguístico minoritário, a exemplo dos povos indígenas e comunidades de imigrantes brasileiros. A principal pauta política dos surdos, respaldada por recomendações de organismos internacionais, é o direito a se comunicar, interagir e ser educado em Língua de Sinais como língua materna, complementado pelo aprendizado da modalidade escrita da língua portuguesa. Essa situação caracteriza o que denominamos educação bilíngue para surdos.
Inúmeros foram os desdobramentos das políticas de educação bilíngue para surdos no cenário educacional brasileiro, a partir da década de 1990, decorrentes das demandas sinalizadas pelos movimentos surdos mundiais, das contribuições de pesquisas acadêmicas e da incorporação dessa produção científica às agendas governamentais.
O espaço discursivo acadêmico que incorporou esse movimento, ambientado na perspectiva dos Estudos Culturais em Educação, passou a ser denominado "Estudos Surdos" (Deaf Studies) e tem sido caracterizado pelo protagonismo de pesquisadores surdos e não surdos que buscam constituir um campo de investigação para problematizar os discursos hegemônicos sobre os surdos e a surdez, promovendo a ruptura dessa temática como debate prioritariamente vinculado ao território da educação especial. Os discursos e práticas que versam sobre a "epistemologia da surdez", expressão cunhada pelo ativista britânico Owen Wrigley, definem o campo de pesquisas que remete às conexões entre conhecimento e poder, problematizando os saberes que operaram historicamente para estigmatizar e subjugar os surdos com representações estereotipadas que justapõem a identidade surda à deficiência da audição e da linguagem. Rompendo com essa tradição, os Estudos Surdos buscam dar visibilidade à diferença linguística, simbolizada pelo uso de uma língua visual sinalizada, na qual a visão socioantropológica da comunidade surda como minoria linguística é debatida em termos do contestatório cenário de disputa política envolvendo a relação social de bilinguismo de línguas minoritárias.
Embora o campo dos Estudos Surdos seja o principal fio ideológico que opere na tessitura dos textos que compõem esta publicação, não se trata de obra monológica, reafirmando a esfera do discurso acadêmico como um campo em disputa, tensionado pelas diferentes "vozes sociais" (no dizer emprestado de Bakhtin) que emergem das diferentes afiliações teóricas dos autores.
Nessa perspectiva, esta obra promove a leitura da educação bilíngue para surdos sob diferentes prismas temáticos, buscando sistematizar as principais contribuições históricas, conceituais e metodológicas de reconhecidos pesquisadores, em diferentes áreas de investigação, delimitando o campo epistemológico dos Estudos Surdos e seus desdobramentos na organização das políticas e práticas educacionais.
Destacamos a autoria surda em vários artigos que compõem o dossiê Educação Bilíngue para Surdos: políticas e práticas de modo a praticar o princípio da responsabilidade social que a universidade deve assumir, ao incorporar práticas coerentes com a constatação de que não estão superadas as condições de exclusão presente nas relações sociais que cerceiam a inserção e a participação efetiva de grupos historicamente marginalizados, como é o caso da comunidade surda, em esferas valorizadas na produção e socialização do conhecimento, como é o meio acadêmico.
Nesse sentido, o texto de abertura do dossiê é produzido pelas mãos das pesquisadoras-ativistas surdas Gladis Perlin e Karin Strobel, ambas professoras da Universidade Federal de Santa Catarina e reconhecidas lideranças surdas em defesa da preservação da memória, cultura e identidade do povo surdo. Seu artigo "História cultural dos surdos: desafio contemporâneo" situa-se epistemologicamente no campo dos Estudos Surdos, mais propriamente dos Estudos Culturais, e dedica-se a explanar o significado da história cultural como estratégia de desconstrução dos temas e interpretações ouvintes acerca das identidades surdas. Suas lentes possibilitam a leitura de um real atravessado por múltiplas contradições em que se confrontam os saberes e memórias das experiências do "Ser Surdo" com a permanente ameaça do colonialismo materializada em políticas institucionais de apagamento de sua diferença.
A reconhecida pesquisadora Kristina Svartholm, professora da Stockholm University, assina o artigo intitulado "35 anos de educação bilíngue de surdos - e então?" (35 years of bilingual deaf education - and then?), em que apresenta importantes reflexões sobre os avanços e desafios de um processo educacional bilíngue para surdos, no contexto europeu. A partir da pioneira experiência sueca, desde a década de 1980, Svartholm percorre a trajetória trilhada na institucionalização do bilinguismo dos surdos suecos, pontuando os aspectos centrais da ruptura com a educação especial, no passado, e os desafios na educação de uma geração atual de surdos, na quase totalidade, implantados com aparatos auditivos tecnológicos, desde tenra idade. Explicita categorias básicas para a compreensão do leitor iniciante, que serviram de fundamento à constituição de um campo conceitual voltado às especificidades do bilinguismo envolvendo as línguas visuais-espaciais dos surdos.
Na esteira do debate internacional, Sueli Fernandes e Laura Ceretta Moreira apresentam um panorama das políticas de educação de surdos, problematizando os desafios do bilinguismo nacional, em seu artigo "Políticas de educação bilíngue para surdos: o contexto brasileiro". As autoras elegem a política linguística como uma variável determinante no debate da conjuntura nacional da educação de surdos brasileiros, apontando o direito à língua de sinais brasileira (Libras) como língua materna na infância, como principal reivindicação dos movimentos surdos para avaliar a qualidade do processo educacional inclusivo. Analisam que, ao longo do percurso histórico da educação de surdos, a política linguística foi secundarizada, em nome da localização dos surdos no campo da educação especial junto a outras pessoas com deficiência. A crítica dos avanços e dificuldades no processo de escolarização bilíngue de surdos no contexto da educação inclusiva se faz a partir desse "desvio de foco" e da "concepção de sujeito surdo" adotada na política oficial de educação inclusiva.
Ana Regina Campello e Patrícia Luiza Ferreira Rezende, professoras doutoras em educação e lideranças surdas que protagonizaram o maior movimento de luta e resistência da história dos surdos brasileiros, à frente da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), apresentam o artigo intitulado "Em defesa da escola bilíngue para surdos: a história de lutas do movimento surdo brasileiro". A epígrafe de abertura do texto: "Nada sobre nós, surdos, sem nós, surdos!" focaliza a tônica que sua narrativa-memória assume no texto: "[...] A partir desse lugar que falamos, contamos a história das lutas do Movimento Surdo Brasileiro em defesa das nossas Escolas Bilíngues" (CAMPELLO; REZENDE, neste volume). Ainda que seu relato faça um recorte temporal específico entre a realização da Conferência Nacional da Educação (CONAE), em 2010, e a aprovação do Plano Nacional de Educação, em junho de 2014, ele recobre lutas históricas e seculares das comunidades surdas mundiais para reafirmar a legitimidade de sua língua e sua cultura nas relações sociais. Registram cada etapa da ampla mobilização para assegurar o direito à escola bilíngue, nos recorrentes confrontos com o MEC, por ocasião das ações de negação da cultura surda e da ameaça de fechamento do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). As imagens-memória selecionadas pelas autoras para construir a narrativa são acompanhadas de fotos e ilustrações, principal artefato da cultura surda - a experiência visual - para escrever essa história.
O filólogo Antonio Houaiss, eminente estudioso da política linguística e seus impactos para o desenvolvimento das línguas, aponta, como condição imprescindível para que uma língua alcance um estágio histórico cultural superior, o desenvolvimento de instrumentos de letramento que promovam sua socialização e expansão na comunidade. A literatura é, sem sombra de dúvida, a principal ferramenta de transformação e expansão lexical da língua. Nesse sentido, contribuem dois dos artigos que integram esse dossiê, que apresentam estudos de produções literárias das comunidades surdas: a poesia em LS (Linguagem de Sinais) e o humor surdo em piadas. O texto "Humor na literatura surda", assinado por Lodenir Becker Karnopp e sua orientanda surda Carolina Hessel Silveira, realiza um recorte introdutório de estudo do humor em Libras, a partir da análise de piadas que circulam nas comunidades surdas. As autoras refletem a importância do humor (e as diferentes versões de piada), por meio da literatura surda em que se destaca a linguagem da "diferença linguística e cultural, a inversão dos olhares, através de cenas que apresentam as vantagens de ser surdo, a comunicação com ouvintes, bem como a língua de sinais como conhecimento determinante para o desfecho da história" (KARNOPP; HESSEL, neste volume). O segundo trabalho que debate a importância da literatura sinalizada é o artigo da pesquisadora britânica Rachel Sutton-Spence: "Por que precisamos de poesia sinalizada em educação bilíngue?" (Why we need signed poetry in bilingual education?). Sutton-Spence ocupou-se, por décadas, do estudo e sistematização dos elementos que constituem a poesia em British Sign Language (BSL), na University of Bristol, e outras línguas de sinais. Aponta, com convicção, que a verdadeira educação bilíngue e bicultural para crianças surdas não pode prescindir de que elas aprendam a poesia em língua de sinais como forma de arte surda. Valendo-se de depoimentos e reflexões de professores-poetas surdos com quem trabalhou no Reino Unido aponta os inúmeros ganhos linguísticos, culturais, identitários e afetivo-emocionais para as crianças surdas, para além das competências linguísticas relativas à atividade literária.
A proposta de educação bilíngue impõe, no mínimo, dois desafios iniciais a sua efetivação: o primeiro é a garantia de que a língua materna dos estudantes seja utilizada na base do processo educacional, como língua principal na comunicação, interação e ensino às crianças surdas; o segundo desafio é oportunizar, pela mediação da Libras, o aprendizado significativo, funcional e efetivo da língua oficial e majoritária do país - o português - na modalidade escrita, pelo favorecimento de sua apropriação visual pelos surdos. Especificamente quanto à aprendizagem do português como segunda língua, dois artigos, neste volume, se ocupam desse processo, seja sob o ponto de vista da trajetória trilhada pelas crianças surdas e suas hipóteses de apropriação, seja do ponto de vista metodológico, dos elementos que fundamentam esse percurso de ensino. "Atribuição de significado à escrita, por crianças surdas usuárias de língua de sinais", pesquisa fruto da tese de doutoramento de Tânia dos Santos Alvarez da Silva, sob orientação de Maria Augusta Bolsanello, busca investigar os fundamentos do processo de apropriação da escrita da língua portuguesa por crianças surdas como um sistema ideográfico ao qual se atribui significado pela mediação de signos visuais. O texto apresenta um riquíssimo debate do papel da escrita dos sinais como ferramenta eficiente para maximizar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos aprendizes surdos, fornecendo meios de aproximação com o sistema de escrita alfabética. "O ensino de português como segunda língua para surdos: princípios teóricos e metodológicos" tematiza o artigo da professora Maria Cristina da Cunha Pereira. Fundamentada na concepção discursivo-interacionista de linguagem, critica a perspectiva tradicional de língua como código que subsidia grande parte dos encaminhamentos em que o ensino da língua portuguesa tem sido ministrado para alunos surdos. Com base na análise de textos de alunos surdos do ensino fundamental, o trabalho propõe as bases teórico-metodológicas na qual a Libras deve ser considerada primeira língua dos alunos surdos, alicerce do conhecimento de mundo e de língua, que será a base para o aprendizado da Língua Portuguesa pelos alunos surdos.
A escola bilíngue é a materialização dos fundamentos da educação emancipadora reivindicada e pautada pela comunidade surda na última década. Nesse sentido, contribui o último artigo que compõe o dossiê: "Movimentos surdos e os fundamentos e metas da escola bilíngue de surdos: contribuições ao debate institucional". Sandra Patrícia de Faria do Nascimento e o professor-pesquisador surdo Messias Ramos Costa têm como referência principal para a autoria desse texto não apenas sua trajetória acadêmica. Ambos protagonizaram, desde 2011, o embate político entre o governo federal e os movimentos surdos acerca da definição da escola inclusiva e a defesa de escolas bilíngues, respectivamente, como espaço prioritário para educação de surdos. Seu texto apresenta os elementos principais desse debate e a trajetória percorrida pela comunidade surda de Brasília para a implantação da Primeira Escola Pública Integral Bilíngue Libras e Português-Escrito do Distrito Federal, com suas metas, princípios e diretrizes, destacando que "os próprios surdos são os atores das manifestações que clamam por uma educação bilíngue preparada para surdos", pois "[...] nenhum outro ator desse contexto sabe dizer melhor como devem aprender os surdos do que aqueles que têm a Libras como primeira língua" (NASCIMENTO; COSTA, neste volume).
Na seção de resenhas, Cayley Guimarães nos apresenta a obra ainda não traduzida para o português "OPEN your eyes: deaf studies talking", organizada pelo Prof. Dr. Bauman, diretor do centro de Estudos Surdos da Gallaudet University, primeira e única universidade para surdos, referência mundial em Estudos Surdos. No livro, os autores, em sua maioria surdos, analisam as complexas interseções da identidade surda com gênero, sexualidade, família e raça, introduzindo conceitos básicos e debates na área.
Nosso agradecimento especial a todos os autores que colaboraram com esse debate, contribuindo com a diversidade de pontos de vista que caracterizam a dialogia do texto e à Pró-Reitoria de Graduação e Educação Profissional pelo apoio financeiro que viabilizou esta publicação.
Convidamos os leitores e leitoras a realizar essa incursão nos principais temas que constituem os desafios de uma política pública de educação bilíngue para surdos que dê visibilidade a essa comunidade e sua língua, historicamente excluída do debate das ações do poder público levadas a cabo em seu nome. Nossa intenção, por se tratar de publicação inédita no gênero, é que este dossiê temático materialize mais um instrumento de referência para a difusão e reconhecimento da relevante questão social da educação bilíngue para surdos no debate científico acadêmico nacional.
Curitiba, Inverno de 2014.
Sueli Fernandes
Organizadora
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
24 Set 2014 -
Data do Fascículo
2014