RESUMO
Este artigo discute condições que proporcionaram a implementação do ciclo de alfabetização (denominado Bloco Único) pela Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo na década de 1990, assim como suas bases conceituais, enfatizando o conceito de alfabetização. Toma como referência teórica a perspectiva bakhtiniana de linguagem para fundamentar a pesquisa documental, pois compreende os documentos analisados como textos/enunciados produzidos por sujeitos. Conclui, a partir dos documentos/textos analisados, sobre as condições que proporcionaram a adoção do Bloco Único: a produção de pesquisas no campo da alfabetização e, consequentemente, as discussões em torno do conceito de alfabetização. No que se refere às bases conceituais, partem da crítica à escola e da busca de pontos de contato entre as teorias construtivista e a histórico-cultural, no campo da Psicologia, e as teorizações de Paulo Freire, para assumir concepções de crianças, professores/as e conceitos de alfabetização que não se detém apenas nos processos linguísticos e funcionais, mas abrangem também a dimensão política desse processo.
Palavras-chave: Ciclo de alfabetização; Construtivismo; Perspectiva histórico-cultural; História
ABSTRACT
This paper discusses conditions that contributed to the implementation of the literacy cycle (namedBloco Único) by the Department of Education in the state of Espírito Santo in the 1990s, as well as its conceptual bases, highlighting the concept of literacy. It uses the Bakhtinian approach of language as a theoretical reference to substantiate documentary research, as it identifies the documents analyzed as texts/statements produced by individuals. It concludes, from the documents/texts analyzed, about the conditions that enabled the adoption of the Bloco Único: the production of research in the field of literacy and, consequently, the discussions encompassing the concept of literacy. Regarding conceptual bases, they start from the criticism to the school and the demand for points of contact between both constructivist and cultural-historical theories, in the field of Psychology and also Paulo Freire’s theorizations to accept the conceptions of children, teachers and literacy concepts that are not restricted to linguistic and functional processes only, but also involve the political dimension of this process.
Keywords: Literacy cycle; Constructivism; Cultural-historical approach; History
Considerações iniciais
No final da década de 1990 e no início de 2000, intensificaram-se os estudos sobre a história da alfabetização, entre os quais podemos citar Mortatti (2000), por entendermos que inaugura as pesquisas com esse enfoque. De modo geral, os estudos têm contribuído para que possamos aprofundar o conhecimento sobre a alfabetização no Brasil, evidenciando a importância de investimentos ainda mais intensos nesse campo de investigação, pois há muitos aspectos que ainda precisam ser aprofundados. Dentre esses, podemos mencionar os processos de implementação, nos estados, dos ciclos de alfabetização. Conforme assinalam Barretto e Sousa (2005, p. 664), a
denominação ciclo, para alternativas de organização escolar não seriada, é recente; ela aparece apenas em meados dos anos de 1980. Desde então, os ciclos passaram a receber diferentes qualificativos: básico, de alfabetização, de aprendizagem, de progressão continuada, de formação, conforme a especificidade de cada proposta.
No Espírito Santo, a organização escolar não seriada, nominada Bloco Único, estabeleceu um continuum que abrangeu as antigas primeira e segunda séries do ensino fundamental, aumentando, desse modo, para dois anos o período destinado à aprendizagem inicial da leitura e da escrita. A despeito de uma vertente que o compreendia essa forma de organização apenas como alternativa para solucionar o problema do fracasso escolar na primeira série, esta visou, sobretudo, na década de 1990, em muitos estados brasileiros, a proporcionar a democratização da escola, criando mais tempo para a aprendizagem da linguagem escrita.
No que diz respeito à metodologia, escolhemos a pesquisa documental e utilizamos como referência teórica para fundamentar a escolha desse tipo de pesquisa a concepção bakhtiniana de linguagem, particularmente a sua noção de texto, porque entendemos os documentos analisados como textos/enunciados. Segundo Bakhtin (1992, p. 329), o texto escrito ou oral é um dado primário de análise de todas as disciplinas e, portanto, “[...] de qualquer pensamento filosófico humanista”. Assim, para esse autor, o texto “[...] representa uma realidade imediata (do pensamento e da emoção), a única capaz de gerar essas disciplinas e esse pensamento. Onde não há texto, também não há objeto de estudo e de pensamento” (BAKHTIN, 1992, p. 329).
Sendo assim, o corpus da pesquisa foi constituído de textos impressos produzidos pelos sujeitos que participaram da implementação do Bloco Único no Espírito Santo. Analisamos textos oficiais, ou seja, produzidos pela Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo (dirigidos aos professores e às professoras), e textos científicos veiculados em revistas que auxiliaram no entendimento das condições que contribuíram para a implementação do sistema de ciclos na década de 1990 no Espírito Santo.
Desse modo, este artigo tem por finalidade discutir condições que proporcionaram a implementação, na década de 1990, pela Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo do Bloco Único, assim como as bases conceituais que ancoraram a proposta, enfatizando os conceitos de alfabetização que subsidiaram a sua implementação.
Condições que proporcionaram a implementação do ciclo de alfabetização
Buscamos, nesta parte, discutir duas condições que proporcionaram a implementação do Bloco Único no Espírito Santo na década de 1990: a produção de pesquisas no campo da alfabetização e as discussões ocorridas em torno do conceito de alfabetização. Certamente, condições mais amplas, de caráter nacional e internacionais, contribuíram para esse processo não somente no Espírito Santo, mas neste artigo, conforme nosso objetivo, nos ateremos ao movimento constituído no Espírito Santo. Assim, dada a singularidade dos processos de implementação dos ciclos, é necessário destacar, no Espírito Santo, um movimento surgido na academia que passou a questionar a educação e a alfabetização nas escolas públicas, ao mesmo tempo em que apontou possibilidades de construção de novas práticas originadas de pesquisas desenvolvidas em escolas públicas.
Para entender esse ambiente acadêmico, tomamos, primeiramente, um texto escrito pela professora Euzi Rodrigues Moraes, intitulado A questão da alfabetização: uma década de estudos e pesquisas, publicado no ano de 1992, na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, porque ele fornece um panorama da produção do conhecimento no campo da alfabetização no Espírito Santo, assim como dos movimentos em busca de mudanças conceituais e metodológicas nesse campo. Segundo Moraes (1992a), as discussões sobre alfabetização, até aquele momento, giravam em torno dos métodos ou da melhor maneira de ensinar a ler e a escrever. Dessa forma, a pergunta central em torno da questão era:
[...] o professor deve alfabetizar a partir do ensino formal das partes da palavra, ou deve ensinar letras e sílabas através da leitura de textos que têm significado? Em ambos os casos, a alfabetização é vista como um ato de ensinar a codificar sons em letras e decodificar letras em sons (MORAES, 1992a, p. 469).
Conforme escrito na citação, a autora apontou para a polêmica entre os/as defensores/as do método analítico, pois, no primeiro caso, a palavra seria o ponto de partida do ensino e, no segundo, o texto. Em ambos, o ponto de chegada seriam as unidades da língua carentes de sentido. Conforme salientou a autora, foi nesse momento, em que o como ensinar era o aspecto mais importante das discussões, que as mudanças foram iniciadas, buscando nas pesquisas respostas para o ensino-aprendizagem da linguagem escrita.
As pesquisas sobre alfabetização no Espírito Santo tiveram como foco central as questões linguísticas e das diferenças. Partiam do suposto de que as diferenças linguísticas poderiam ocasionar dificuldades para as crianças que não dominavam a norma culta nem o dialeto padrão com o qual se confrontavam na escola. Dessa forma, como assinalado por Moraes (1992a, p. 470), as pesquisas naquele momento anunciavam
[...] o encontro da pedagogia com a linguística, da educação com os estudos de linguagem. Da psicolinguística era extraído o instrumental de análise para a produção escrita da criança pré-escolar. Da sociolinguística vinham os subsídios para a compreensão da importância do reconhecimento da diversidade dialetal no processo de aquisição da escrita padrão. O enfoque sociolinguístico interessava mais ao exame da escrita do alfabetizando ou do recém-alfabetizado.
Nesse cenário de encontro de diferentes ramos da linguística para pensar a alfabetização, a defesa da diferença assumida pela professora Euzi Rodrigues Moraes encontrou respaldo nas discussões de Emília Ferreiro. Segundo relatado, em palestra ministrada por essa última pesquisadora, no mês de agosto de 1992, na cidade de Vitória, ES, esse aspecto foi discutido a partir do tema Alfabetização e diversidade. Nessa palestra, como assinala Moraes (1992a, p. 474), Emília Ferreiro “[...] contrapõe, de maneira contundente, o papel homogeneizador da escola tradicional ao novo papel social que a ela cabe nesta virada de milênio, quando diferenças étnicas e culturais são veementemente proclamadas”.
Conforme o artigo de Moraes (1992a), podemos inferir que havia um ambiente propício que acenava para a necessidade de mudanças nos modos de ensinar e de aprender, advindas dos resultados das pesquisas realizadas nas escolas e que encontrava respaldo em pesquisas realizadas em nível nacional e internacional. Esses resultados provocavam, segundo a autora, uma preocupação mais forte com relação aos “[...] mais diferentes, isto é, com aqueles alunos que não preenchiam a expectativa da escola, não avançavam na direção do padrão escolar e eram reprovados - uma, duas, três, muitas vezes” (MORAES, 1992a, p. 477).
Por meio de pesquisas denominadas naturalísticas, pesquisadores/as do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo passaram a buscar uma aproximação com a escola e com os/as professores/as, com a finalidade de elaborar conhecimentos que pudessem, de certo modo, contribuir ou servir para repensar as práticas educativas. Nessa direção, Moraes (1992a), ao comentar a pesquisa denominada O dialeto da alfabetização e o dialeto do alfabetizando (MORAES, 1985), apontou que esta evidenciou como a escola buscava a homogeneidade em detrimento da diversidade. Os resultados dessa pesquisa proporcionaram a realização de dois projetos denominados Relação criança-escola: investigando problemas e buscando soluções (MORAES, 1992c) e Currículo para todos (MORAES, 1992b). Expôs a autora que o relatório da primeira pesquisa registra
a constatação de que era preciso diversificar o ensino para atender às diferentes histórias pedagógicas, sociais e pessoais das crianças. Mas está também formulada a conclusão de que não sabemos fazer o ensino diversificado, não sabemos lidar com a diversidade (MORAES, 1992a, p. 475).
Na segunda, foi adotada uma concepção de currículo que compreende as experiências de professores/as, crianças e comunidade escolar. Com base na palestra de Emília Ferreiro, Moraes apontou também a distinção entre ensino diversificado e ensino individualizado. Conforme salientado por essa autora, a diversificação não poderia ser entendida como individualização do ensino. Nessa direção, assinalou que o projeto desenvolvido em uma escola mostrava que o identificado como ensino diversificado, na primeira fase de realização da pesquisa, se limitou
[...] a ‘diversificar’ tarefas (ou atividades) e a dividir a classe em dois grupos: de um lado, as crianças do projeto, do outro lado, os demais alunos, que eram tratados como destinatários principais do trabalho pedagógico. Dentro dessa perspectiva, tarefas mais fáceis eram distribuídas ao primeiro grupo, enquanto ao segundo grupo eram aplicadas as mais difíceis (MORAES, 1992a, p. 475).
A autora sublinhou, conforme resultados das pesquisas, que, naquele momento, as atividades não eram diversificadas, e sim facilitadas de acordo com o grupo de crianças, e apontou que a diversificação precisaria ocorrer a partir dos seus “[...] interesses e curiosidades, e que seja capaz de realizar um projeto integrado no qual todas as crianças possam participar comunicando-se umas com as outras e organizando suas diferentes contribuições na busca de objetivos comuns” (MORAES, 1992a, p. 475). Dessa forma, o atendimento às diferenças nas salas de aula era uma necessidade, mas, no início da década de 1990, era também um desafio e, na opinião da autora, somente a prática pedagógica poderia ajudar a encontrar formas e meios para a sua realização.
Como salientou Moraes (1992a), as pesquisas realizadas numa relação entre teoria e prática ajudaram a criar condições para uma alfabetização a favor das crianças mais pobres e também permitiram conhecer as suas escritas e compreender os erros cometidos por elas, a partir de uma reflexão linguística. O acúmulo de experiências resultantes de dez anos de pesquisa, segundo Moraes (1992a, p. 480), culminou “[...] com o projeto ‘Incentivo à formação em serviço do professor alfabetizador’, mala direta do grupo para os professores em vários pontos do estado”, iniciado em 1990. A leitura era o principal foco do projeto.
Nesse projeto, formadores/as e professores/as, em seu local de trabalho, liam, estudavam e produziam textos (relatórios) sobre temas de suas preferências. Os relatórios eram lidos pelos membros do grupo coordenado pela professora e devolvidos aos/às docentes participantes do projeto. Os envolvidos (professores e professoras) recebiam uma bolsa de estudo financiada pelo governo do Estado. Porém, segundo relatado por Moraes (1992a), com a mudança de governo, a bolsa deixou de existir, o que criou obstáculos para a continuidade do projeto. Esse programa, no entanto, produziu consequências importantes, em diferentes momentos do processo:
[...] 1) na implantação do chamado Bloco Único na rede pública estadual e nas redes municipais de Vitória e Cariacica; 2) na institucionalização do grupo de estudo como parte da rotina escolar; 3) na inserção, no Plano Estadual de Educação, de um curso de leitura e escrita para professores; 4) na produção de material de leitura para os professores, em lugar de cartilhas e guias [...]; 5) nas estratégias de formação do professor, que passaram a incluir relatos de experiências em fóruns de debates que se realizaram em pontos diferentes do estado, inspirados no I Fórum de Debates sobre a Pesquisa em Alfabetização na UFES, promovido pelo grupo (MORAES, 1992a, p. 481, grifos nossos).
Em relação à alfabetização das crianças, o Plano Estadual de Educação 1992-1995 (ESPÍRITO SANTO, 1992, p. 10) efetivamente incluiu, em suas metas, a implantação do Bloco Único nas escolas da rede pública estadual, o qual deveria abranger, inicialmente, a 1.a e a 2.a série e a “[...] capacitação do professor alfabetizador, propiciando-lhe o tempo, o espaço, o material de leitura e a assistência pedagógica necessária ao seu melhor desempenho”.
A autora acrescentou, como consequência positiva dos estudos realizados, as mudanças de atitude dos professores e das professoras, que se expressavam na busca de formas diferenciadas, plurais de trabalho, abrindo caminhos para as modificações que se faziam necessárias na alfabetização. Destacamos, ainda, a formação “[...] da Rede Espírito Santo de Alfabetização, interlocutora permanente de movimentos similares em níveis nacional e internacional, como a Rede Brasil de Alfabetização e a Rede Latino-Americana de Alfabetização, coordenada por Emilia Ferreiro” (MORAES, 1992a, p. 482). A Rede Espírito Santo permitiu a formação de outras redes no norte do Estado (cidades de Colatina, Nova Venécia e Linhares). Desse modo, é possível constatar que as s mudanças educacionais no campo da alfabetização, na década de 1990, no Espírito Santo, com a implantação do Bloco Único e com a percepção da necessidade de aprofundamento de estudos criada nos professores e professoras que atuavam em classes de alfabetização são legados da história da alfabetização no Espírito Santo, cuja base foi construída por meio de pesquisas que buscavam o diálogo teoria e prática.
Uma coletânea de textos que veiculou nas escolas, a partir de 1985, que tratava de aspectos conceituais e metodológicos, como parte do projeto de garantia de material específico de leitura e estudo para os/as professores/as alfabetizadores/as, algo bastante inovador para a época, evidencia discussões em torno do conceito de alfabetização ocorridos na década de 1980, criando, como mencionado, também condições para a implementação do Bloco Único.
Essa coletânea circulou nas escolas do Estado e serviu de apoio ao trabalho de formação continuada dos/as professores/as alfabetizadores/as. As professoras Euzi Rodrigues de Moraes, Marly Imperial Lopes e Vanir de Almeida Horácio e Silva, docentes da Universidade Federal do Espírito Santo, organizaram e selecionaram os textos que compõem a coletânea. Na segunda página da coletânea, a informação “Estudos que facilitarão operacionalizar a proposta de didática da comunicação e expressão”. Segundo relatado na primeira apresentação pela Equipe de 2.o Grau da Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo, reforçando o que já havia sido registrado, foi assinalado que a coletânea pretendeu “[...] subsidiar as ações dos professores nas atividades curriculares, no que se refere à Alfabetização” (ESPÍRITO SANTO, 1985, p. 7), e surgiu da
[...] necessidade percebida junto a professores e alunos de nossas Escolas, de buscar novos fundamentos teórico-práticos que ajudassem na operacionalização da Proposta Didática da Comunicação e Expressão, de forma mais eficiente, capaz de refletir no processo educacional um resultado mais significativo (ESPÍRITO SANTO, 1985, p. 7).
Desse modo, o texto da apresentação da coletânea indica dois aspectos importantes: a) havia uma nova proposta didática para a disciplina Comunicação e Expressão; b) essa proposta poderia refletir-se no processo educativo, produzindo resultados educacionais mais significativos, principalmente no que diz respeito aos índices preocupantes de repetência. Na segunda apresentação, escrita pelas organizadoras da coletânea, foi salientado que os textos foram selecionados
[...] em atendimento ao princípio de que, na alfabetização, assim como na educação em geral, os fundamentos mais do que o método ou até mesmo o conteúdo educativo, devem estar bem definidos e assimilados para que os objetivos educacionais sejam estabelecidos com clareza e consciência (ESPÍRITO SANTO, 1985, p. 9).
A coletânea foi dividida, conforme o sumário, em seis partes. Analisamos os textos que compõem a segunda parte, porque esta remete à pergunta: ALFABETIZAR: um novo conceito? Para responder a esse questionamento, as organizadoras trouxeram dois textos: O conceito de alfabetização: aspecto histórico, de autoria de Carmem Perrota, apresentado no XVI Seminário Brasileiro de Tecnologia Educacional, realizado em Porto Alegre, no período de 4 a 9 de novembro de 1984, e O conceito de alfabetização, de Magda Becker Soares, também contido no Documento I do referido Seminário. Este último texto foi revisado e publicado, no ano de 1985, na revista Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas, com o título As muitas facetas da alfabetização, tornando-se um marco nas discussões sobre o conceito de alfabetização até a atualidade.
Para introduzir o primeiro texto, as organizadoras da coletânea escreveram: “A preocupação política pressupõe uma competência política do alfabetizador, que deve articular-se, necessariamente, com sua competência técnica” (ESPÍRITO SANTO, 1985, p. 43). Diante dessa assertiva, segundo as organizadoras, o primeiro problema que precisava ser colocado dizia respeito ao conceito de alfabetização. Nessa direção, Perrota (1985, p. 47), em seu texto sobre a história dos conceitos adotados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), apontou que, em 1980, esse Organismo “[...] esforça-se por introduzir a ideia de que a aprendizagem da leitura e da escrita deve vincular-se ao máximo possível a realidades concretas sejam de ordem cotidiana, técnicas, econômicas, políticas, culturais dos alfabetizandos”. A autora também mencionou que o conceito adotado pela Unesco, em 1962, assinalava para uma abertura da alfabetização como processo educativo, que não se limitava à transmissão de conteúdos mínimos, pois [...] passava a ser pensada em seu aspecto funcional, “[...] inscrita no curso de uma educação permanente” (PERROTA, 1985, p. 47).
Ainda de acordo com a autora, na década de 1970, o conceito de alfabetização funcional foi ampliado, incorporando uma nova dimensão: de instrumento de libertação e pleno desenvolvimento do ser humano. Dessa maneira, a denominação alfabetização funcional abrigou definições que variavam conforme a estrutura social, o sistema de educação, as diferentes necessidades da vida urbana ou do campo, acenando para um processo mais contextualizado, mas também crítico, com finalidades emancipatórias. Nesse sentido, Perrota mencionou os trabalhos de Paulo Freire, por considerar que antecedem o conceito de alfabetização funcional e o acompanham no tempo. Para Paulo Freire, de acordo com a autora,
[...] pensar a leitura não é apenas pensar um ato de codificação da palavra escrita, pois a leitura do mundo precede a leitura da palavra. A alfabetização é vista como um processo em que o analfabeto toma consciência de uma capacidade criadora, vindo a considerar o símbolo escrito como mais um meio de se exprimir e libertar (PERROTA, 1985, p. 49).
Assim, a autora chamou a atenção para a dimensão emancipatória presente nos trabalhos de Paulo Freire e sua importância para dar um novo sentido à alfabetização e, consequentemente, à escola. Nessa direção, é necessário destacar que, diferentemente do conceito de alfabetização funcional organizado pela Unesco, que visa à adaptação dos humanos à sociedade, Paulo Freire pensava que a alfabetização poderia proporcionar a emancipação dos seres humanos das amarras impostas por um sistema econômico opressor.
É interessante notar dois questionamentos escritos por Perrota (1985, p. 51), a partir do que considerou um processo de evolução do conceito de alfabetização: “Que repercussão/influência tem essa trajetória do conceito no sistema educacional como um todo? Como tem sido definida/orientada a alfabetização?”. Mesmo apontando algumas experiências que poderiam ser consideradas evoluídas, concluiu: “Enfim... evoluem os conceitos, mas os resultados da alfabetização não têm revelado grandes mudanças no quadro educacional do país. Que falta para reverter a situação dos dados já tão conhecidos por nós?” (PERROTA, 1985, p. 53). Até a atualidade, essas questões são cruciais para a alfabetização. Do campo de visão da autora, os conceitos da Unesco evoluíram para uma perspectiva de alfabetização mais contextualizada e funcional; ao mesmo tempo, os trabalhos de Paulo Freire permitiram acrescentar outra dimensão essencial voltada à emancipação, às questões políticas.
Perrota (1985) demonstra a centralidade dos trabalhos desse pensador nas discussões sobre o conceito de alfabetização em meados da década de 1980, no Espírito Santo e no Brasil, e as possibilidades de a alfabetização vir a se tornar um espaçotempo de vivência da crítica, por meio da produção oral e escrita de textos. Infelizmente, até o momento da escrita deste texto, as contribuições de Paulo Freire para o campo da alfabetização não foram bem aproveitadas para pensar as políticas nesse campo, mas certamente sempre nos permitem pensar os limites dos rumos das políticas nacionais e locais, principalmente no que diz respeito às mudanças conceituais e metodológicos que estão ocorrendo na atualidade. Algumas experiências tenderam a citá-lo, mas não incorporaram de fato suas ideias, provavelmente porque são revolucionárias demais para nossa frágil democracia.
O segundo texto da coletânea, de autoria de Magda Becker Soares, foi introduzido pelas organizadoras, apontando que abordava diferentes dimensões da alfabetização. Assim, Soares (1985b, p. 55-56) salientou, no final da primeira parte do texto, que
[...] uma teoria abrangente da alfabetização deverá basear-se num conceito desse processo suficientemente abrangente para incluir a abordagem ‘mecânica’ do ler/escrever, o enfoque da língua escrita como meio de expressão/compreensão, com especificidade e autonomia em relação à língua oral, e, ainda os determinantes sociais das funções e fins da língua escrita.
Com base na citação, é possível inferir que Soares (1985b) buscou elaborar fundamentos para a construção de um conceito de alfabetização, apontando, particularmente, as dimensões linguística e funcional do processo, esta última destacada por Perrota, ao analisar os conceitos adotados pela Unesco. Soares (1985b), ainda, assim como Perrota (1985), não deixou de salientar a dimensão política da alfabetização, quando argumentou que a aprendizagem da leitura e da escrita não é neutra, mas uma “[...] forma de pensamento, processo de construção do saber e meio de conquista de poder político” (SOARES, (1985b, p. 60). Nesse sentido, acreditava que posturas pretensamente neutras e explicitamente políticas afetavam de formas diferentes o significado da alfabetização. Situou Paulo Freire na segunda postura, “[...] para quem a alfabetização é um processo de conscientização e uma forma de ação política” (SOARES, 1985b, p. 61). Porém, essa posição não foi levada em conta ao sistematizar as facetas que embasam a construção de uma teoria abrangente de alfabetização e, portanto, o conceito de alfabetização.
Ao discutir a natureza psicológica do processo de alfabetização, elemento que distingue os textos das autoras em tela, Soares (1985b, p. 57) apontou que o foco da análise psicológica, naquele momento, se voltou “[...] para abordagens cognitivas, sobretudo no quadro da Psicologia Genética de Piaget [...]”. Nesse sentido, salientou que Emilia Ferreiro vinha “[...] realizando investigações sobre os estágios da conceptualização da escrita e o desenvolvimento da ‘lecto-escrita’ na criança” (SOARES, 1985b, p. 57). Essa abordagem ou o modelo cognitivista, no que diz respeito à alfabetização infantil, prevaleceu, em diálogo com outras teorias, na década de 1990, nas orientações nacionais e local, sobretudo nos PCNs de língua portuguesa e nos programas de formação de professores/as alfabetizadores/as, assim como na proposta do Bloco Único no Espírito Santo.
Bloco Único: bases teóricas
A implementação do Bloco Único na rede estadual de ensino, no ano de 1991, ocorreu, por um lado, com desconfiança e, por outro, com entusiasmo. Professores, professoras, profissionais da educação e sociedade viam no projeto oportunidades de vencer o grande desafio da alfabetização, ou seja, a repetência e a “evasão”, mas havia aqueles/as que percebiam a mudança como uma forma de adiar esses problemas, pois não incidia sobre as raízes do fracasso escolar, oriundas da divisão da sociedade em classes sociais. O Bloco Único foi visto, pelos/as idealizadores/as, como uma proposta que objetivava “[...] adequar as ações educativas ao ritmo e à progressão dos alunos rompendo, gradativamente, com o sistema de seriação e com a noção de ‘programa anual’ ao mesmo tempo que [carregava] no seu interior a necessidade de reorganizar a escola pedagógica e administrativamente” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 19).
Para garantir a ampla divulgação do projeto e de suas bases conceituais, a Secretaria de Estado da Educação e Cultura, em 1993, elaborou e encaminhou para as escolas um Caderno contendo a fundamentação teórico-metodológica do Bloco Único. Conforme escrito nesse Caderno, a organização e difusão desse material estavam previstas no Plano de Implantação do Bloco Único. A carta dirigida aos/às professores/as dizia que este visava a “[...] levar informações teórico-metodológicas a você, que vem questionando sua prática e, o que é mais importante, vem buscando transformações para a mesma” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 3). Ao mesmo tempo, alertava para a necessidade de uma postura crítica, mesmo diante do que se apresentava como novidade, pois os subsídios teórico-práticos indicados não poderiam ser vistos como verdades absolutas, e sim marcados pela provisoriedade, característica de todo conhecimento.
O Caderno foi elaborado pela Equipe de Alfabetização da Secretaria de Estado da Educação e Cultura, integrada por Dorli Luíza das Chagas Curto, Elida Maria Fiorot Costalonga, Irany Lopes Rodrigues, Isabel Eulália Saturnino Reis, Jacinéia de Jesus Mattos Mota, Kátia Brasil Reis e Sheila Aparecida Aguiar Carlini, com a assessoria do professor Carlos Eduardo Ferraço. Na introdução, há menção à intensificação dos debates sobre alfabetização, na década de 1980, principalmente devido ao fracasso escolar e à incapacidade da escola de formar leitores/as e produtores/as de textos.
Para os/as redatores/as, esses problemas expressavam a crise da sociedade brasileira, pois a escola era usada como “[...] meio para incutir a ideologia [dominante] e garantir os interesses defendidos pelos governantes” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 12). Desse modo, a escola capixaba, considerando-se o passado político do Estado, estava sendo assumida como “[...] um meio de realização da cimentação da ideologia burguesa, garantindo a hegemonia dessa classe social e produzindo a consciência e o treinamento dos trabalhadores ajustados ao modo de produção capitalista” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 12).
Como pode ser notado, princípios das teorias crítico-reprodutivistas ajudaram a construir um diagnóstico do que a escola se tornou (reprodutora das relações sociais de dominação e local de treinamento). Nessa linha, o documento também salientou que a nova ordem social e política (pós-ditadura militar) proporcionou a geração, no campo da alfabetização, de “[...] inúmeros estudos e pesquisas numa permanente tentativa de compreender o universo cultural da criança de forma a relacioná-la ao seu mundo particular e ao seu processo educacional” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 12) que poderiam contribuir para mudanças nas práticas educativas.
Conforme o Caderno, nas áreas de alfabetização, aprendizagem e desenvolvimento da criança, apesar de ainda permanecer a exigência de realização de novas pesquisas, era possível valer-se das contribuições de Lev Vigotski Seminovich, Alexander Romanovich Luria, Jean Piaget, Emília Ferreiro, Sônia Kramer e Paulo Freire. Nesse sentido, o texto salienta a importância da leitura das produções desses/as autores/as por aqueles/as que desejavam aprimorar suas práticas de alfabetização e entender a criança como ser social e historicamente situado. A partir dos conhecimentos elaborados por Vigotski sobre a relação desenvolvimento e aprendizagem, na introdução do Caderno, é mencionado que o/a professor/a não precisava esperar a criança desenvolver/amadurecer para iniciar a alfabetização, pois aprendizagem e desenvolvimento são processos inter-relacionados.
Como apontado, teorias críticas foram tomadas como referências para elaborar a avaliação da escola existente e propor uma outra escola, fundada em novas concepções de crianças, de professores/as, de alfabetização e de conhecimento. Os principais aspectos aventados diziam respeito à necessidade de ter como ponto de partida a realidade dos/as educandos/as (proposta de Paulo Freire) e romper com a ideia de que a maturação é requisito para a alfabetização.
No que diz respeito a este último aspecto, tomou como referência estudos de Lev Vigotski Seminovich, Jean Piaget e Emilia Ferreiro sobre a relação desenvolvimento e aprendizagem, demonstrando, em que pesem as diferenças entre as matrizes teórico-filosóficas que sustentam as ideias do primeiro das dos dois últimos, possibilidades de contato entre as teorizações desses investigadores no que diz respeito à questão da maturação.
Jean Piaget, no Apêndice da obra de Vigotski, intitulada Pensiero e linguaggui (1966, edição italiana), posteriormente publicado na Revista Em Aberto, no ano de 1990, assinala, no que se refere à relação desenvolvimento e aprendizagem, que acredita que o pensamento de Vigotski se diferencia do seu apenas parcialmente. Não aprofundaremos essa discussão, mas devemos admitir que, no campo da alfabetização, tanto os estudos na perspectiva histórico-cultural como os de base piagetiana contrariam os métodos tradicionais de ensino da leitura e da escrita, sobretudo, aqueles cujos defensores propunham um período preparatório baseado na aprendizagem de aspectos motores (coordenação motora) e perceptivos (discriminações visual e auditiva) considerados requisitos para as aprendizagens desses conhecimentos.
Com base nos fundamentos apontados, os princípios norteadores da proposta político-pedagógica do Bloco Único, assumida como uma política revolucionária, foram assim resumidos: a) a relação entre teoria e prática; b) a percepção da criança como ser histórico e social; c) o direito ao diálogo e à dúvida; d) a competência técnica e o compromisso político do/a professor/a; e) a dimensão política da escola; f) o planejamento da escola como ato político-pedagógico; g) a avaliação como referencial para tomar decisões (ESPÍRITO SANTO, 1993).
No bojo do entusiasmo em relação à nova medida, configurada como político-administrativa e também político-pedagógica, o texto anunciou as concepções que embasavam o Bloco Único, salientando a de criança “[...] como um sujeito capaz de aprender, pensar, decidir, optar, dizer, criar, participar etc.” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 17). Além disso, apontou que, ao entrar na escola, as crianças possuíam conhecimentos, o que tornava a sala de aula espaço em que coexistiam diferentes histórias, saberes, percursos de desenvolvimento, resultado de suas interações com o mundo fora do ambiente escolar. O/a professor/a também era visto/a como construtor/a de conhecimentos, “[...] um curioso pesquisador, que se coloca num processo contínuo de conquista da autonomia, que aprende enquanto ensina e que ensina enquanto aprende” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 17-18). Desse modo, o/a professor/a seria o/a mediador/a entre a criança e o conhecimento, capaz de construir processos educativos diversificados para responder às demandas diversas da sala no que tange aos conhecimentos, desenvolvimento e saberes infantis. Nesse sentido, a questão da diversidade, preocupação de Moraes (1992a), foi enfatizada na fundamentação teórica do Bloco Único, porque ajudaria a solucionar problemas de aprendizagem.
Com esse propósito, foi colocada no Caderno, para os/as professores/as, muito enfaticamente, como uma questão central. Segundo escrito, havia aqueles/as que esperavam encontrar nas salas de aula uma criança ideal, que não coincidia com as crianças reais que frequentavam as escolas públicas. Esse ideal de criança levava, então, à rotulação das que não se enquadravam nesse ideal como problema, fracas, agitadas, apáticas, indisciplinadas etc. Assim,
[...] pelo total despreparo da maioria dos professores para lidar com a diversidade, essas crianças são literalmente discriminadas e passam a fazer parte do contingente de alunos que a escola, sobretudo a pública, consegue expulsar a cada ano. Além de serem alijadas do processo educacional, essas crianças carregam consigo, durante a vida, o sentimento do medo, da descrença em sua capacidade para aprender e a culpa pelo próprio fracasso (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 25, grifos nossos).
Apesar do seu caráter revolucionário, ao fazer a crítica da escola existente e apontar teorias que rompiam, no campo da alfabetização, com antigas práticas de ensino fundadas apenas no ensino-aprendizagem do código escrito, os enunciados acima denotam que os idealizadores da proposta ainda acenavam que a discriminação na escola era gerada pelo despreparo dos docentes para lidar com a diversidade nas salas de aula, esquecendo-se que essa questão era nova para docentes acostumados/as a seguir um método ou cartilha previamente elaborado para atender a todas as crianças.
No que se refere aos conceitos de alfabetização, esta era vista, conforme escrito no Caderno:
[...] como um processo, ao mesmo tempo, ilimitado e limitado, amplo e específico. É ilimitado, porque a formação de bons leitores e bons escritores dura toda a vida e nunca está pronto ou acabado. No entanto, é limitado porque a apropriação de noções básicas de ler, escrever e operar não pode levar uma existência inteira (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 18).
Para conferir mais clareza à explicação do conceito, foi acrescentado que a alfabetização é um processo amplo e específico, porque abrange a “[...] leitura sócio-política, histórica e cultural da realidade [e, ao mesmo tempo,] [...] precisa garantir a aquisição da leitura, da escrita e do cálculo” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 18). Em outra parte do Caderno, o conceito de alfabetização foi, novamente, abordado. Desta vez, a partir da crítica a uma visão limitada de alfabetização, que a reduzia “[...] apenas ao domínio de determinado método, cujo objetivo era o desenvolvimento das habilidades básicas de codificação e decodificação de símbolos e sons” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 24). A despeito do fato de apontarem pesquisas e estudos realizados por Jean Piaget, Vigotski, Ferreiro e Teberosky como bases que deram novo sentido à alfabetização, podemos perceber uma certa tensão entre o que era considerado amplo e específico na alfabetização. Essa tensão é oriunda, por um lado, da crítica ao conceito que esteve na base dos métodos (processo de aquisição do código escrito) e, por outro, da necessidade de levar em conta a especificidade da alfabetização.
Soares (1985b, p. 53), no texto O conceito de alfabetização, assinala que o debate em torno dessa questão, na década de 1980, que se estende até os anos de 1990, conforme pode ser inferido no parágrafo anterior, realizava-se em torno de dois pontos de vistas que defendiam: a) alfabetização como “um processo de representação de fonemas em grafemas (escrever) e grafemas e fonemas (ler) e; b) alfabetização como “compreensão e expressão de significados”. Segundo Soares (1985b, p. 54), os métodos de alfabetização poderiam “ser classificados num ou noutro desses pontos de vista: por exemplo, ao método fônico está subjacente, fundamentalmente, o primeiro ponto de vista; o método global tem como pressuposto básico o segundo ponto de vista”. A autora conclui, com relação ao debate, que:
os dois pontos de vista sobre o conceito de alfabetização não implicam veracidade ou falsidade de um ou outro conceito. Sem dúvida, a alfabetização é um processo de representação de fonemas em grafemas, e vice-versa, mas também um processo de compreensão/expressão de significados através do código escrito (SOARES, 1985b, p. 54).
Apesar de a autora ampliar sua discussão absorvendo os aspectos funcionais do aprender a ler e a escrever, a questão central explicitada na fundamentação teórica e metodológica do Bloco Único revela um posicionamento com relação aos debates em torno do conceito de alfabetização na época, afirmando-o como processo amplo e específico, entendendo como processo amplo aquele que se refere à dimensão sociopolítica, histórica e cultural. Se a nossa leitura estiver correta, o que se buscava era incluir no conceito a dimensão política a partir da produção de Paulo Freire. No entanto, a discussão ganhou contornos diferenciados, e essa dimensão, principalmente no que se refere à alfabetização de crianças, foi sendo, gradativamente, suprimida do conceito, privilegiando a codificação/decodificação e compreensão/expressão de significados. Por conta disso, a questão formulada por Espósito (1992, p. 26), como desafio para a década de 1990, parece permanecer até os dias atuais:
[...] na área de alfabetização, o desafio básico parece ser o seguinte: será possível, na década de 90, chegar a uma teoria coerente que articule e integre as várias facetas desse processo, e que se construa uma forma contextualizada social e culturalmente, tendo como norte uma postura política que resgate seu verdadeiro significado?
A opção por levar em conta a especificidade da alfabetização e, também, a sua dimensão política, conduziu a um entendimento do conhecimento, visto no Caderno, como uma produção científica e cultural. Essa concepção pressupunha “[...] o diálogo, o conflito, a reflexão, a crítica permanente na práxis individual-coletiva” (ESPÍRITO SANTO, 1993, p. 18) dos conhecimentos científicos e, também, daqueles produzidos no cotidiano dos sujeitos. Essa visão de conhecimento, portanto, dialogava com a visão que assumia a alfabetização como ação política e cultural.
Resumindo, podemos concluir que as bases conceituais que ancoraram a proposta de implementação do Bloco Único partem da crítica à escola e da busca de pontos de contato entre as teorias construtivista e a histórico-cultural, no campo da Psicologia, e as teorizações de Paulo Freire, para assumir concepções de crianças, professores/as e conceitos de alfabetização que não se detém apenas nos processos linguísticos e funcionais, mas abrangem também a dimensão política desse processo. A noção de diversidade era fundamental, pois contrariava modelos homogêneos de ensino e de aprendizagem a partir do reconhecimento da diversidade cultural e social e dos percursos de aprendizagem das crianças que frequentavam as escolas públicas. Nesse sentido, o/a professor/a deveria compreender os modos de aprendizagem para propor intervenções adequadas à realidade e às necessidades das crianças.
Algumas considerações
Os apontamentos, ao longo deste artigo, mostraram que a repetência e a evasão e, portanto, o fracasso na alfabetização de crianças influenciou pesquisadores e a Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo a discutir e propor alternativas para solucionar esses problemas. As bases conceituais do ciclo de alfabetização - Bloco Único - contemplaram a crítica à sociedade e à escola a partir de supostos da teoria crítica. Com base em ideias de autores/as no campo da Psicologia, orientou para a necessidade de redimensionamento das concepções de crianças e professor/a, assim como dos conceitos de alfabetização. A noção de diversidade, entendida como valorização das diversas experiências, linguagens, conhecimentos trazidos pelas crianças para a escola, foi fundamental, porque visava a contrariar modelos homogêneos de ensino e de aprendizagem.
Apesar de a diversidade e a escola como espaço plural serem elementos fundamentais para a construção de uma escola democrática e includente, em que todas as crianças pudessem aprender a ler e a produzir textos, os/as idealizadores/as do Bloco Único não conseguiram perceber (nem poderiam) que o construtivismo, no campo da alfabetização, ao propor processos de evolução da leitura e da escrita universais, contrariava as noções de diversidade e pluralidade defendidas, portanto, o conceito de alfabetização como leitura sociopolítica, histórica e cultural da realidade.
Apesar das contradições que constituem a história da alfabetização, observamos, na atualidade, que vários avanços produzidos ao longo da nossa história estão sendo perdidos. O retorno ao método fônico e, portanto, a impossibilidades de tensionar as diferentes abordagens, no campo da alfabetização, são substituídas por uma resposta única, resposta, aliás, que já comprovou sua incapacidade, em termos teóricos e práticos, de solucionar os problemas da alfabetização no Estado do Espírito Santo e no Brasil. Consequentemente, podemos imaginar que voltaremos aos índices de analfabetismo e analfabetismo funcional existentes nos meados dos anos de 1980. Por isso, terminamos este artigo com uma pergunta e resposta formuladas por Galtung (1975, p. 93), citado por Graff (1994), que, talvez, ajude a explicar os acontecimentos.
Que aconteceria se o mundo inteiro se tornasse alfabetizado? Resposta: não muita coisa, pois o mundo é, em grande medida, estruturado de uma forma tal que é capaz de absorver esse impacto. Mas se o mundo consistisse de pessoas alfabetizadas, autônomas, críticas, construtivas, capazes de traduzir as ideias em ação, individual e coletivamente - então o mundo mudaria.
Infelizmente, a nossa sociedade, ainda conservadora e elitista, não está suficientemente preparada para conviver com pessoas críticas, construtivas e capazes de ter posições e, por isso, fica silenciosa e aceita os limites impostos pelas políticas de governo para o desenvolvimento das crianças nas escolas.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
04 Jun 2021 -
Aceito
08 Fev 2022