Open-access A disciplina militar na escola e seu limite formativo

The military discipline at school and its furtherance limits

RESUMO

No presente artigo discute-se, com amparo em pesquisa bibliográfica, a questão da disciplina militar transposta para as instituições educacionais, por meio do projeto de escolas cívico-militares. O objetivo é demonstrar a distinção que há entre a concepção de disciplina militar e a concepção de disciplina resultante da recepção da tradição filosófico-pedagógica. Esta última, com caráter educativo, está entrelaçada com a formação humana e é concebida como um certo tipo de atividade ética interior, enquanto a primeira possui caráter coercitivo exterior, consistindo na conformação obediente a determinantes extrínsecos. Para tanto, são revisitados Kant e Platão, que sustentam uma ideia de disciplina relacionada à formação de um ser humano livre, lançando luz sobre a distância entre as duas concepções de disciplina abordadas.

Palavras-chave:  Disciplina; Militarização da Educação; Formação Humana; Platão; Kant

ABSTRACT

This article discusses, based on bibliographical research, the issue of military discipline transposed to educational institutions, through the project of civic-military schools. The objective is to demonstrate the distinction between the conception of military discipline and the conception of discipline resulting from the reception of the philosophical-pedagogical tradition. The latter, with an educational character, is intertwined with human formation and is conceived as a certain type of inner ethical activity, while the former has an external coercive character, consisting of obedient conformation to extrinsic determinants. To this end, Kant and Plato are revisited, which support an idea of discipline related to the formation of a free human being, shedding light on the distance between the two conceptions of discipline addressed.

Keywords:  Discipline; Military Education; Human Furtherance; Plato; Kant

Introdução

O presente artigo, situa-se na área de filosofia da educação e pretende lançar luz sobre um tema atual da educação brasileira: a transposição da disciplina militar para as escolas públicas, especialmente, através da implantação das chamadas escolas cívico-militares1. A abordagem não é empírica, e não se propõe a fortalecer conclusões sobre dados específicos das experiências de militarização2 em implantação nas escolas. O objetivo é tematizar, teoricamente, uma questão de fundo: a compreensão do conceito de disciplina encontrado na tradição filosófico-pedagógica e, afinal, a forma como tal conceito se distingue e se mostra incompatível com outra noção, a de disciplina tal como definida no ambiente militar. O argumento central marca tal distinção ao constatar que a disciplina militar é pautada por um determinante extrínseco e logicamente, derivado da estrutura hierárquica da cultura militar, que pressupõe cadeias de comando e obediência dos subalternos aos superiores, enquanto que na tradição literário-filosófica sobre a educação o conceito de disciplina se reveste, desde seu início, e principalmente, como atividade interior, caracterizada por um autodomínio que é maior e bem considerado quanto mais distante de um comando exterior e heterônomo. Em síntese, a disciplina fundada na coerção externa conduz à obediência passiva e, no limite, à privação da liberdade individual. Assim, a disciplina na qual resta resguardada a liberdade ocorre, e só pode se manifestar, por ação livre do sujeito que, por trabalho intenso sobre si mesmo, sente-se “livremente obrigado” a obedecer aos princípios que a razão dá a si mesma.

Nesta referida tradição literário-filosófica, a educação é entendida como processo de formação humana. (Zatti; Pagotto-Euzebio, 2021). Isso significa identificá-la com o processo de humanização do ser humano: ao nascimento se é marcado pela inconclusão, uma vez que se é constituído progressivamente em uma ação de natureza inconcludente como humanos pelo processo educativo. Assim, a educação é o processo de devir humano “mediante o qual o indivíduo natural devém um ser cultural, uma pessoa” (Severino, 2006, p. 621). Dada a condição humana de inconclusão, os seres humanos precisam cuidar de si mesmos para constituírem-se enquanto tais. Entendida desse modo, a educação não está relacionada ao atendimento de finalidades extrínsecas fixadas previamente, de cima para baixo, mas com a realização de sua finalidade intrínseca. E, nessa tradição educativa, a disciplina é pensada como componente deste processo. Ela aparece como forma de cuidado de si mesmo, como exercício de si, que possibilita ao sujeito alçar-se ao modo de ser propriamente humano, ou seja, a disciplina é entendida como uma atividade interior, fundamentalmente do sujeito sobre si mesmo, visando realizar a finalidade intrínseca da educação, a formação humana.

Se, na tradição filosófico-pedagógica, a disciplina como atividade fundamentalmente interior possui caráter educativo, por outro lado, a disciplina como obediência passiva às determinações extrínsecas se apresenta como algo completamente distinto. Esta, conforma o sujeito a algo exterior e estranho a ele, tolhendo-lhe o que é próprio de si mesmo, sua liberdade, entendida como capacidade de iniciar por si mesmo um novo estado. Exemplo acabado de sentido coercitivo externo, que se defende, é o da disciplina militar transposta para a escola. É o que defendem também Pinheiro, Pereira e Sabino (2019, p. 681) ao afirmarem que no modelo de escola militarizada “os estudantes não são sujeitos, mas objetos de intervenção e alvos de mecanismos disciplinares de conformação e normalização”.

O documento Manual de Campanha Ordem Unida3 (Brasil, 2019a), do Exército Brasileiro, em sua Introdução, item 1.5, define a disciplina militar do seguinte modo: “A disciplina, no sentido militar, é o predomínio da ordem e da obediência, resultante de uma educação apropriada. A disciplina militar é, pois, a obediência pronta, inteligente, espontânea e entusiástica às ordens do superior” (Brasil, 2019a). Dessa maneira, a disciplina militar se refere, primordialmente, à ordem ditada pela obediência a um comando hierárquico, firme, decidido e imposto de fora, sem diálogo e sem possibilidade de que a ordem dada seja conquistada pela força do melhor argumento, é a conformação à ordem exterior, desde que hierarquicamente superior. Nota-se, na citação, acima, do Manual, que o emprego da palavra educação indica claramente a conotação de conformação e/ou treinamento, algo regido por uma racionalidade estratégico-instrumental4, pois, da “educação apropriada” resultariam a ordem e a obediência. Transparece, assim, a intencionalidade de uma lógica estratégica como veículo de educação. A própria narrativa de justificação5 da militarização das escolas revela esse elemento estratégico se sobrepondo ao educativo: de modo recorrente, a disciplina hierarquizada é apresentada como solução para o problema da insegurança nas escolas e, por extensão, da sociedade. Desse modo, um problema apenas lateralmente conexo à educação, o da segurança pública, é tomado como justificativa para a transposição de uma concepção disciplinar hierarquizada para a escola. A narrativa se vale do medo, da insegurança, muito presentes entre as pessoas, para estabelecer um expediente de controle da violência (Alves; Ferreira, 2020, p. 4) que, supostamente, seria dada pela transposição às escolas de uma compreensão de disciplina na qual o elemento estratégico se sobrepõe ao educativo.

Dada as finalidades das instituições militares, essa compreensão de disciplina parece coerente como mecanismo estratégico de ordenamento e reprodução institucional. Como parte de um sistema6 (Habermas, 2012), o acionamento de tal racionalidade estratégica, de modo a se ajustar os meios para se chegar aos fins pretendidos é legítimo, desde que restrito ao âmbito que lhe é próprio. Assim sendo, não se coloca, aqui, em questão a legitimidade da disciplina militar nas instituições militares. Mendonça (2019, p. 632) argumenta que a disciplina militar como definida no documento Manual de Campanha Ordem Unida é típica da formação de soldados, porém pouco ou nada tem a ver com a formação de civis. Então, cabe perguntar se é legítimo transpor essa compreensão de disciplina militar para as escolas e instituições educacionais.

A escola não é apenas parte de um sistema comprometido com a reprodução institucional e material da sociedade, ela é fundamentalmente espaço-tempo de educação entendida como formação humana (Zatti; Pagotto-Euzebio, 2022). Na qualidade de instituição educacional que toma parte da formação humana, a escola é principalmente entendida como mundo vital, e não pode ser pautada por uma racionalidade estratégico-instrumental. Assim, a transposição da disciplina militar para as escolas é ilegítima, pois transfere uma racionalidade estratégica, típica do sistema, para o mundo vital da escola7. A escola enquanto espaço-tempo da educação busca realizar uma finalidade intrínseca, a formação humana, que é compatível com um entendimento de disciplina como atividade do sujeito sobre si mesmo, porém incompatível com a ideia de disciplina militar. Dessa forma, a legitimidade da disciplina militar está circunscrita às instituições militares. Na ocasião que transposta para a escola, a disciplina militar assume um caráter deformativo (Unbildung), na medida em que está fundada em uma hierarquização extrínseca, promovendo assim, a conformação em vez da formação.

A disciplina, obviamente, aparece como elemento importante na educação. Ainda assim, ela é atividade interior, um cuidado de si mesmo, relacionado à finalidade intrínseca da educação, a formação humana, não à conformação. Para a análise dessa tradição, elegeu-se dois filósofos paradigmáticos, respectivamente, da modernidade e da antiguidade clássica: Immanuel Kant (1724-1804) e Platão (428-347 a.C.). Inicia-se com Kant, pois na modernidade a ideia disciplinar está plena e conscientemente definida, possuindo papel relevante no pensamento pedagógico do filósofo de Königsberg. Segue-se com Platão, pois é ele quem primeiro relaciona o autodomínio com a liberdade, conferindo ao cuidado de si mesmo o papel de formação da humanidade no homem. Entende-se que o autodomínio, como atividade interior de cuidado, está na origem da compreensão de disciplina desenvolvida na modernidade. O esforço argumentativo é o de demonstrar que, tanto na modernidade quanto na antiguidade clássica, a disciplina, ou certa noção dela, aparece relacionada à formação de um ser humano livre. Ao demonstrar tal caráter educativo, pretende-se lançar luz sobre as diferenças que levam a definir o caráter deformativo da disciplina militar. Passe-se, então, à análise dos dois autores.

A disciplina em Immanuel Kant

Na pedagogia moderna, momento de construção da instituição escolar como é conhecida, a disciplina possui papel destacado. Não poucas vezes, Kant é tomado como autor paradigmático para demonstrar o caráter disciplinar de tal proposta educacional. A citação da obra Sobre a Pedagogia - “as crianças são enviadas à escola, de início, não com o propósito de aprenderem lá alguma coisa, mas para que se consigam habituar a estar sentadas em silêncio e observarem pontualmente o que lhes é prescrito” (Kant, 2018, p. 10) - é comumente evocada como um estandarte de uma pedagogia que prima pela disciplina. Veiga-Neto (2000), por exemplo, vale-se da passagem para sublinhar que Kant talvez tenha sido o primeiro a caracterizar a escola moderna como a grande instituição envolvida com o disciplinamento dos corpos infantis. Os autores deste artigo, no entanto, sem discordar de tal consideração, apontam que embora a disciplina tenha um lugar destacado, ela não é o fim da proposta educacional kantiana (Philonenko, 1966, p. 37). Seu fim está na moralização, tarefa relacionada com um caminho de liberdade e autonomia. Prossegue-se, então, com a análise da questão da disciplina no quadro do pensamento educacional de Immanuel Kant, bem como, o que a distingue da ideia de disciplina enquanto obediência a um ordenamento exterior hierarquizado.

A educação e, por consequência, a disciplina em Kant precisa ser compreendida a partir da distinção, realizada pelo filósofo, entre mundo sensível e mundo inteligível8 e da concepção antropológica dela decorrente: o ser humano enquanto participa do mundo fenomênico está sujeito à necessidade natural, ao passo que ao participar do mundo noumênico é livre. (Zatti, 2007, p. 30). Considerado esse dualismo antropológico kantiano, o homem é ao mesmo tempo animal e racional: “a disciplina transforma a animalidade em humanidade” (Kant, 2018, p. 9) à medida em que coage os impulsos animais, abrindo espaço para o ser humano dispor da própria razão. A disciplina em Kant é entendida como uma etapa negativa9 da educação cuja tarefa é impedir que a selvageria, a animalidade, relacionados ao pertencimento ao mundo sensível, prejudique o caráter propriamente humano, relacionado ao pertencimento ao mundo inteligível. Nas palavras de Kant (2018, p. 19): “Disciplinar significa procurar impedir que a animalidade prejudique a humanidade, tanto no homem individual como no social. A disciplina é, pois, a mera doma da condição selvagem”. Assim, a disciplina não pode ser confundida com a educação, é apenas uma etapa dela, a etapa meramente negativa pela qual o elemento selvagem é contido ou removido do ser humano. O que é esse elemento selvagem? Kant (2018, p. 10) o define como a independência das leis. Desse modo, a função da disciplina é acostumar o ser humano a se submeter à coação das leis. Essa coação às leis não é obediência às leis exteriores, de outros, mas às leis da humanidade, as quais o sujeito pode reconhecer racionalmente também como suas. Desse modo, enquanto etapa negativa da educação, a disciplina tem a tarefa de conter o elemento selvagem (relacionado ao pertencimento ao mundo sensível). Ao fazer isso, apresenta um elemento positivo derivado do negativo, possibilitar ao ser humano dispor de sua própria razão (elemento, tipicamente, humano, relacionado ao pertencimento ao mundo inteligível) e assim ser capaz de obedecer às leis que dá a si mesmo.

De maneira geral, em Kant a primeira educação deve ser negativa, conter a selvageria, as pulsões animais, para que haja espaço para a natureza racional humana se desenvolver. Com o propósito que tal disciplina não contradiga as finalidades do processo educativo, relacionados à formação moral pela qual se aprende a fazer o uso da própria razão, o filósofo estabelece delimitações ou distinções que orientam sua compreensão. Primeiro, a disciplina não pode ser tomada como uma forma de adestramento. O próprio Kant (2018, p. 20) relaciona o adestramento à domesticação de animais. O adestramento do animal possui o pressuposto de que este não é dotado de liberdade e vontade, por isso consiste em conformar seu comportamento reflexo à vontade humana que está dada como um comando exterior. A transposição dessa domesticação para as relações pedagógicas é desconsiderar o que existe de mais profundamente humano no homem, sua racionalidade e liberdade. Ao mesmo tempo em que demarca a educação como algo distinto do adestramento, Kant (2018, p. 20) exorta para a importância do aprender a pensar: “o importante é principalmente que as crianças aprendam a pensar”. A disciplina não pode ser tomada como adestramento, pois nesse caso seria um obstáculo para que se aprenda a pensar, esta, uma condição para a formação moral, o fim do processo educativo para o filósofo. Parece que a disciplina militar na escola assume, em parte, um modo de operar análogo ao adestramento, pois está fundada em um comando exterior, agora, não mais da vontade humana sobre o animal sem liberdade e vontade, mas da vontade de um superior sobre um subordinado cuja liberdade e vontade são postas em segundo plano.

Em um segundo aspecto, disciplinar não significa tornar a criança servil. Se a disciplina quebrar a vontade da criança, isso a tornará servil, dependente de uma vontade externa a ela. Para Kant (2018, p. 47). “A educação tem de se conformar à coação, mas nem por isso lhe é permitido ser servil”. Kant (2018, p. 24) não nega a coação (Zwang), diz inclusive que certa coação é necessária. Apesar disso, o filósofo está preocupado em conciliar a coação com a liberdade, de modo que a coação possa conduzir, não para a servilidade e, sim, para a autonomia do sujeito livre.10 Assim, se Kant concebe a disciplina como uma parte da formação, a razão disso é para o sujeito poder aprender a conter os ímpetos da natureza animal, abrindo, por conseguinte, espaço para o desenvolvimento de sua natureza11 propriamente humana. É o desenvolvimento de tal natureza racional que dá ao sujeito a possibilidade de dispor da própria razão para determinar a vontade, permitindo o uso do entendimento sem estar dependente da tutela de outro. Quando a disciplina se distancia desse horizonte da formação da liberdade, o que parece ser o caso da disciplina militar transposta para a escola, sua tendência é tornar-se a conformação para a servilidade.

Há, neste ponto, algo decisivo, que faz a disciplina militar ficar aquém da exigência central posta pela Aufklärung kantiana para se chegar à maioridade, a saber, de que se pode e talvez até se deva obedecer, desde que se raciocine. O que importa é obedecer como decisão própria e livre, ou seja, como atitude de pensamento. Para a disciplina militar, contudo, indispensável é que se obedeça, de preferência, de maneira passiva, sem necessidade de pensar. Obedecer sem raciocinar é o mote da disciplina hierárquica, autoritária, que não prevê, obviamente, que todos possam pensar por conta própria, pois isso certamente colocaria em risco a própria hierarquização.

Em um terceiro aspecto, a disciplina e a coação possuem uma importância transitória no processo educativo. Para elucidar tal ponto, inicia-se com a questão da obediência. Para Kant (2018, p. 58), a obediência possui caráter duplo: obediência à vontade absoluta e obediência à vontade reconhecida como racional e boa. A primeira deriva da coação, a segunda, e mais importante, é a obediência voluntária, no sentido ético, é aquele tipo de obediência que o sujeito autoimpõe, livremente, a si mesmo. A criança, à qual ainda falta reflexão, deve estar mais sujeita à coação12. Particularmente, na infância é preciso disciplinar uma vontade que não conhece regras, que tudo quer e age de acordo com caprichos e inclinações (Dalbosco, 2004, p. 1345). Apesar disso, mesmo nesses casos em que a obediência absoluta se faz necessária, é preciso que essas leis possuam caráter geral, pois constituem um primeiro passo para que se aprenda a obedecer à lei geral em si mesmo (a lei da própria razão). O caráter transitório da disciplina e da coação fica claro quando Kant, após falar sobre a obediência na criança, fala sobre a obediência do adolescente: “Consiste na sujeição às regras do dever. Fazer algo por dever significa: obedecer à razão” (Kant, 2018, p. 60). Assim, no adolescente a obediência à vontade absoluta é substituída pela obediência voluntária às regras do dever, o que caracteriza a disciplina como algo transitório de um processo mais amplo, cuja finalidade é possibilitar ao ser humano fazer o uso livre da razão. Desse modo, a disciplina como submissão passiva da criança, aos poucos se torna disciplina interior, obediência voluntária às leis gerais que estabelece a si mesmo pela razão. Em tal estágio, trata-se de uma obediência voluntária, em outros termos, racionalmente livre, em que o sujeito descobre sua autonomia na capacidade de fundar para si as próprias leis (Zatti, 2007, p. 32). A transitoriedade é mais uma característica que distingue a disciplina apresentada por Kant e da presente na disciplina militar, pois na última a permanência da obediência absoluta é o elemento do qual depende a cadeia de comando. Ela não pode ser interrompida sob pena de que a hierarquia se quebre e a distinção rígida entre superior e inferior deixe de ter sentido.

Assim sendo considerado o duplo caráter da obediência, Kant concebe o processo educativo em duas etapas: a primeira é de sujeição passiva à uma disciplina coativa, a segunda é de sujeição ativa às leis que o sujeito estabelece para si mesmo. A pressão mecânica exercida pela disciplina coativa, necessária para conter a selvageria, deve ser gradativamente superada pela pressão moral. Nesse sentido, a formação moral é precedida pela formação disciplinar. A pressão moral supõe a reflexão, implica o uso da razão por um sujeito dotado de vontade livre e com capacidade de pensar por conta própria (Dalbosco, 2004, p. 1343), enquanto a disciplina coativa depende de uma vontade exterior que exerça a sujeição. Com a moralização a disciplina é interiorizada, e se torna autodisciplina como expressão de autonomia: obediência à lei que a vontade livre estabelece para si mesma. Assim, a disciplina coativa, que desempenhou uma função preparatória ao acostumar à obediência à lei, é superada pelo desenvolvimento de uma disposição interior, a qual torna possível ao sujeito orientar sua vontade pelas leis que estabelece para si. Ainda assim, Kant tem clareza disso, estas leis que o sujeito estabelece para si não são, de modo algum, um ato solitário e solipsista, mas o resultado do uso público da razão, que começa a ser exercitado no ambiente familiar e entre os pares da mesma idade e se estende progressivamente para os ambientes sociais e institucionais mais amplos, dos quais a escola, depois da família, é o primeiro grande espaço socializador.

Isto posto, o disciplinamento não é o fim da educação em Kant, tal fim é a moralização. “A disciplina não se justifica por si mesma, ela é necessária na medida em que prepara a inserção no universo da razão” (Zatti, 2007, p. 34). Como exposto anteriormente, a formação disciplinar deve preceder a formação moral, pois ela limita a selvageria caracterizada pela ausência de leis, abrindo espaço para a ação orientada por máximas (leis dadas pela razão). As máximas são leis que nascem no próprio entendimento da pessoa (Kant, 2018, p. 57) e formam o modo de pensar (Kant, 2018, p. 56), razão pela qual Kant funda a cultura moral em máximas e não na disciplina. O primeiro esforço da educação moral é formar o caráter, que consiste na prontidão de agir segundo máximas (Kant, 2018, p. 57). Além de definir o caráter como prontidão para agir segundo máximas, o filósofo o define do seguinte modo: “Este [o caráter] consiste na firme intenção de querer fazer algo e também no seu exercício real” (Kant, 2018, p. 67). O caráter está relacionado à constância, à capacidade de escolher agir de acordo com máximas e no compromisso de persistir na decisão ao longo do tempo, independentemente das adversidades que se imponham. Então, para Kant (2018, p. 66), moralidade diz respeito ao caráter e, para formar o bom caráter, é preciso eliminar as paixões. Ele cita o lema estoico “sustine et abstine” (aguenta e abstém), como referência de preparação para uma sábia moderação. Com a moralização essa sábia moderação e a constância, não dependem mais de uma disciplina coativa, mas da capacidade de pensar por si mesmo, dito de outro modo, da disposição interior para orientar a vontade por máximas reconhecidas racionalmente como verdadeiras e boas.

Em Kant, a moralização está ligada à liberdade de pensar, e representa o estágio em que não é mais necessária a obediência a um disciplinamento exterior, pois se alcançou a maioridade na qual é possível fazer uso do próprio entendimento sem a direção de outro (Kant, 2015a, p. 63), ou seja, o sujeito racional é capaz de se submeter, voluntariamente, à lei universal dada pela própria razão. Quando se diz que o fim da educação é a moralização isso significa dizer, por consequência, que seu fim supõe possibilitar ao educando pensar por si mesmo. As relações entre disciplinamento e moralização, coação e pensar por si mesmo, revelam que há uma tensão inerente ao processo educacional: a conciliação entre coação e liberdade. Nas palavras de Kant (2018, p. 23-24): “Um dos maiores problemas da educação é saber como se pode unir a sujeição sob a coação das leis com a capacidade de se servir da sua liberdade”. A chave da resposta para essa questão é a autonomia: a capacidade do sujeito racional se submeter às leis que estabelece para si mesmo. Em vez da obediência a um comando extrínseco, Kant propõe o pensar por si mesmo como forma de se chegar a leis dadas pela própria razão, às quais, sim, cabe obediência. Desse modo, o cerne da educação moral é desenvolver a liberdade de pensar. A liberdade é uma questão tão central em Kant (2015a, p. 65) que no artigo Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? afirma que para o esclarecimento nada mais se exige do que a liberdade.

No artigo Que significa orientar-se no pensamento? (Kant, 2015b, p. 59), a liberdade de pensar é apresentada como oposta à: coação civil, coação à consciência moral, submissão a qualquer lei que não seja a que a razão dá a si própria. A coação civil, ao roubar a liberdade de comunicar os pensamentos, rouba também a liberdade de pensar, submete ao assujeitamento silenciado em que leis externas precisam ser acatadas forçadamente. A coação à consciência moral ocorre quando o exame da razão e da argumentação são banidos em favor de fórmulas de fé impostas extrinsecamente. A submissão a qualquer lei que não seja a que a razão dá a si mesma, representa a heteronomia, a dependência em relação a uma lei extrínseca, que vem de outro. Esses três aspectos revelam um elemento comum: a liberdade de pensamento implica em autonomia, a submissão apenas à lei que a razão dá a si própria.

Por consequência, embora a disciplina seja central em Kant, ela não se justifica por si mesma, seu sentido formativo está em atuar preparatoriamente para que se aprenda a pensar por si mesmo. O pensar por si mesmo está relacionado com o processo de moralização, tarefa ética pela qual se desenvolve a disposição interior para orientar a vontade pela lei dada por si mesmo enquanto racional. Em Kant a disciplina não é pensada como forma de legitimar a obediência a qualquer coação extrínseca, mas como uma etapa do processo educativo cuja finalidade é a formação de um sujeito autônomo e livre. Em síntese, sem disciplina não há autonomia porque ela consiste na propedêutica inicial que possibilita ao ser humano em sua fase infantil a habituar-se a viver mediante regras mínimas indispensáveis ao pensar por si mesmo, que vai ganhando forma, sobretudo, a partir da fase adolescente. O regramento inicial mínimo, que ainda está sob a tutela da heteronomia, amplia-se e sobre a liberdade de pensamento, torna-se cada vez mais autônomo.

O cuidado de si mesmo no pensamento socrático-platônico

A ideia de disciplina, não como obediência mecânica a um ordenamento extrínseco, mas como atividade interior de cuidado de si mesmo, está enraizada nos primórdios da tradição educativa. Ainda que a ideia de disciplinar, tão cara para a modernidade, não esteja conceitualmente desenvolvida na antiguidade, os alicerces de seu sentido pedagógico foram estabelecidos lá. Tal alicerce remonta a Platão e à relação que estabelece entre liberdade e autodomínio: ser livre implica ser capaz de se orientar a ação pela razão, a qual a vontade deve não somente acompanhar, mas também favorecê-la. Ademais, tal conformação supõe uma reiterada atividade de autoconhecimento ou cuidado de si.

A questão do cuidado de si aparece, principalmente, nas obras platônicas Primeiro Alcibíades, Apologia de Sócrates e Cármides (Platão, 2015a; 2015b; 2015c), referências para a presente análise. No diálogo platônico Primeiro Alcibíades (127e), Sócrates apresenta o cuidado de si como processo fundamental da formação do jovem. Aos cinquenta anos, afirma Sócrates no diálogo, é tarde demais para aperceber-se e tomar medidas para remediar o próprio estado de ignorância. É preciso aprender a ocupar-se consigo quando se está na idade em que se sai da mão do pedagogo e ainda não se deu início à atividade política. (Foucault, 2006, p. 49). No mesmo diálogo, Sócrates conduz Alcibíades, tentativa após tentativa, no caminho da resposta sobre o significado da expressão cuidar de si mesmo. Os interlocutores concluem que o cuidado de si não representa cuidar dos negócios ou de algo que lhe pertença (128d), pois não se trata da arte pela qual se deixa melhor as coisas que lhe pertencem, mas que deixa melhor a si mesmos (128e). Apela-se a uma noção de interioridade que, considerada, hoje, um dado evidente, constitui-se neste momento nos diálogos platônicos. Em outras palavras, o apelo socrático ao cuidado de si e ao autoconhecimento, dirigido a Alcibíades, surge como novidade ao público da obra, pois se refere a um “si mesmo” (seautón) no caminho de se estabelecer na literatura, com toda sua conhecida fortuna. Atualmente, este si mesmo ou self, caracterizado como o irredutível do ser humano, não se confunde com qualquer exterioridade, ainda que exista em relação a ela, mas é concebido como sede de um eu imaterial e por isso liberto, não do mundo, pois está nele, mas das exigências feitas pelo mundo que não se referem a uma vida racionalmente ordenada. Essa psyché, que é o homem, nesses primeiros diálogos de Platão é, também, a razão, que opera na exterioridade do mundo empírico sem se identificar com ele. Conhecer, portanto, essa “razão raciocinante” deveria ser a primeira tarefa de todo aquele que pretendesse agir corretamente.

Assim compreendia Sócrates a máxima délfica, em que o conhece-te a ti mesmo (gnôthi seautón) identificava-se com o cuidado de si (epiméleia heautoû). Este ser que conhece, conhece a si mesmo, portanto, em um exercício de cuidado, de studium (uma das traduções latinas de epiméleia). O studium ao qual se dedica a pessoa, apela ao que, nela, é sua parte mais excelente (béltistos), a parte da alma (psyché) em que reside a específica virtude (areté) do humano, a sabedoria (sophía) (133a-b). O cuidado-de-si, portanto, fundamenta-se em um conhecer a si mesmo (gignóskein autón) (133c), em que este mesmo, ou self, é a psyché. Não obstante, note-se, ainda há que se destacar na alma sua parte mais nobre, do mesmo modo que o olho, cuja virtude é a visão, tem sua parte mais nobre na menina (koré) (133a) do olho, em sua pupila. A parte mais nobre na alma, que define o homem, é também sua parte mais divina (theióteron), aquela relacionada com o conhecimento e com a reflexão (perí ho eidénai te kaí phroneîn estin) (133c). O homem, sendo sua alma, é quase mais que humano em seu aspecto mais nobre: um ser que pensa e reflete, compreende e julga por si mesmo, seguindo a razão.

Por esse motivo a questão da “alma bem formada” que se lê em Cármides, (154e), expressa o núcleo do problema educativo em Platão. No início do diálogo, tendo Sócrates retornado da batalha de Potideia, travada no começo da guerra do Peloponeso, juntou-se à palestra de Táureas, na qual ocorria uma grande reunião. Após Sócrates relatar aos presentes o ocorrido na campanha, Crítias o apresenta a Cármides, como sendo o mais belo jovem entre todos (154a). Sócrates reconhece a admirável beleza física do jovem, todavia, coloca como questão saber se também sua alma é bela e boa. Propõe, então, que se dispa sua alma, o que é realizado por meio do diálogo (154e). A centralidade da alma no cuidado de si mesmo também aparece na Apologia de Sócrates (30b), quando Sócrates se defende da acusação de corrupção da juventude. Afirma, ao contrário, que sua ação consistiu em indicar (endeíknumi)13 aos jovens e aos velhos a não zelar pelo corpo e pelas riquezas mais que pela perfeição da psyché, ou seja, de si mesmo. Por essa razão, em Platão a educação é fundamentalmente uma tarefa moral, e a suprema missão do homem é o cuidado da alma (Reale, 1990, p. 155).

Após se definir o si mesmo como a alma, e nesta a capacidade intelectiva de conhecimento e reflexão como seu núcleo, é preciso perguntar, pois, o que é o cuidar? Busca-se a resposta de Foucault (2006, p. 85): “Pois bem, muito simplesmente, em conhecer-se a si mesmo”. O cuidado de si deve consistir na busca pelo que prescreve a inscrição délfica “conhece-te a ti mesmo” (Primeiro Alcibíades, 124b), pois conhecendo-se estar-se-á em condições de cuidar de si próprio (Primeiro Alcibíades, 129a). Como se cuida da alma? “As almas, meu caro - continuou -, são tratadas com certas fórmulas de magia; essas fórmulas são os belos argumentos. Tais argumentos geram na alma a sophrosyne, ou temperança, [...]” (Cármides, 157a). O diálogo, a palavra argumentada, na forma da dialética, é o modo de cuidar da alma para que se conheça a si mesmo e assim, gere-se a temperança. A sophrosyne, possibilitada pelo conhecimento de si mesmo, é conceito dificilmente traduzível por um único termo; ela representa a prudência, a moderação, a abstinência, o autodomínio, a reflexão (Nunes, 2015, p. 30), a habilidade de julgar com bom senso e sabedoria. É o exercício dialético, como exercício de investigação, o modo como a educação pode gerar na alma a sophrosyne, sabedoria temperante e justa medida do julgamento, equivalente, na pessoa, ao conhece-te a ti mesmo, como se lê em Cármides (165a): “As fórmulas ‘Conhece-te a ti mesmo’ e ‘Sê temperante’ são equivalentes, conforme diz a inscrição e eu o confirmo”. A sabedoria na qual consiste à sophrosyne é a virtude da alma que possui, como dimensão moral a ação com medida. “Aquele que conhece a si mesmo coloca os bens da alma acima dos bens do corpo. Aquele que possui esse conhecimento é temperante, pois é mestre de seus desejos e de suas paixões” (Pagotto-Euzebio; Afonso, 2017, p. 95). Desse modo, em última instância, o cuidado de si mesmo possibilita a temperança, a medida, uma vida em que a reflexão faz da alma o guia da ação humana. É a sabedoria relacionada à obediência a uma alma racional, a sua capacidade de conhecimento e reflexão, como Platão apresenta na Apologia de Sócrates (46b): “[...] de não obedecer a nada mais em mim senão ao discurso que, pelo meu raciocínio, se mostrar para mim o melhor”. Isto é, deve-se obediência a algo em si mesmo, e não a algo exterior a si próprio. E esse algo a que se deve obediência é a alma e sua capacidade de reconhecer as melhores razões nos argumentos apresentados. Além de não ser obediência a algo exterior, também não é obediência aos desejos e paixões. Diante disso, obedecer àquilo que pelo raciocínio se mostra o melhor, supõe o autodomínio pelo qual a vontade orientada pelas melhores razões prevalece sobre os desejos e paixões; em outras palavras, supõe a atividade interior de reflexão como guia moral. Esse autodomínio é uma forma interior de cuidado da alma e representa uma forma de autodisciplina que consiste em agir com temperança, com moderação.

Assim, o “Conhece-te a ti mesmo” resulta em uma cultura ética de cuidado interior e autodomínio. “Foi graças a Sócrates que o conceito de autodomínio se converteu numa ideia central da nossa cultura ética. Esta ideia concebe a conduta moral como algo que brota do interior do próprio indivíduo e não como a mera submissão exterior à lei, [...] (Jaeger, 2001, p. 548). O autodomínio ou domínio interior do homem sobre si mesmo, é o princípio basilar de um novo conceito de liberdade, fundante para a moral ocidental. O autodomínio emancipa “a razão da tirania da natureza animal do homem” (Jaeger, 2001, p. 548) e torna possível a vida humana como atividade espiritual, resultado de escolhas fundadas na capacidade de reflexão e conhecimento da alma racional.

Não à toa, Jaeger (2001, p. 572) diz que a partir de Sócrates a paideia é concebida como forma interior de vida, como a existência espiritual do homem. No pensamento socrático-platônico a educação é posta como um processo de aperfeiçoamento que realiza, fundamentalmente, um movimento de se voltar para si mesmo, ou seja, movimento de interioridade, em outras palavras, tende para sua capacidade de reflexão, pensamento e inteligência (Zatti; Pagotto-Euzebio, 2022, p. 35). É esse movimento de interioridade fundado por Sócrates que a tradição filosófica legitima como o princípio a partir do qual, em educação, pode-se falar em disciplina. Melhor dizendo, a tão necessária disciplina para a tarefa educativa está relacionada, primeira e fundamentalmente, com o cultivo da interioridade e com o cuidado da alma; desse modo, é uma forma de autodisciplina. Distingue-se da obediência pura e simples a ordenamentos e leis exteriores, bem como se distingue da obediência às paixões animais do homem. Assim definida, a disciplina na educação está relacionada a um problema de formação moral, o que denota sua completa distinção em relação à disciplina militar.

Considerações finais

Nesse artigo não se questiona a importância da disciplina; ao contrário, é reafirmado a disciplina como um elemento indissociável da formação humana. Apesar disso, a disciplina que possui caráter formativo é a que está concebida na tradição filosófico-pedagógica: é atividade interior, uma espécie de cuidado de si mesmo pelo qual é possível se alçar como sujeito livre, capaz de pensar por si mesmo. Ela é completamente distinta da disciplina militar transposta para as escolas públicas através do projeto de escolas cívico-militares, pois na última, a compreensão de disciplina supõe a obediência a um ordenamento extrínseco. Para explicitar a compreensão de disciplina na tradição filosófico-pedagógica, tornando visível a distinção mencionada, revisam-se dois momentos paradigmáticos para o entendimento da questão, um na modernidade, com Kant, e outro, na antiguidade, com Platão.

Em Kant, a escola é vista como uma instituição envolvida com o disciplinamento e, na disciplina, uma etapa crucial para a educação. Ainda assim, a disciplina é a etapa negativa da educação, cuja função é impedir que a animalidade prejudique a humanidade, abrindo espaço para que o educando se acostume a obedecer às leis. Sendo assim, possui caráter transitório e não compõe a finalidade da educação, esta, por sua vez, está relacionada com a moralização: desenvolver a capacidade de obedecer às leis que o sujeito dá a si mesmo. Mesmo que haja certa coação exterior de caráter transitório, a disciplina está relacionada principalmente com uma disposição interior pela qual se aprende a pensar por si mesmo, dar a si a própria lei. A disciplina em Kant não tem um fim em si mesmo, mas participa dos fins da educação ligados à autonomia e à liberdade. O decisivo é, para Kant, que a disciplina possibilita ao educando, com o auxílio formativo do educador, aquele cultivo interior mínimo, que o prepara para conhecer seus próprios limites ao mesmo tempo em que vai desenvolvendo sua capacidade de pensar por si mesmo.

Em Platão, embora não haja a ideia disciplinar desenvolvida como na modernidade, encontra-se no conceito de cuidado de si mesmo os alicerces para a ideia de disciplina, como entendida na tradição educativa, enquanto atividade interior. Cuidar de si mesmo é cuidar da alma, da capacidade intelectiva de conhecimento e reflexão, como forma de chegar à sophrosyne, à temperança possibilitada pela alma racional. A obediência aos preceitos da alma racional constitui uma forma de autodomínio, necessário para a virtude e liberdade. Não obstante, a sophrosyne implica um tipo especial de sabedoria prática, que não é apenas e tão somente intelectiva, uma vez que exige do educando a ação, mas também, uma ação movida pela práxis dialógica, a qual, pela pergunta, exige do próprio educando o voltar-se permanentemente sobre si mesmo. Assim, Kant e Platão são exemplos maiúsculos, na tradição literária da filosofia da educação, em que se concebe a disciplina como atividade interior, dialógico-reflexiva, que implica o exercício meditativo consigo mesmo e com os outros. A disciplina torna-se, então, do ponto de vista formativo, o recurso pedagógico inicial indispensável que vai preparando o educando para a difícil arte, singularmente, humana do pensar por si mesmo.

À vista disto, na tradição educativa a disciplina está relacionada com a formação para a liberdade: ao ser concebida como um cuidado de si mesmo, como obediência a si mesmo, como forma de autodomínio e temperança, está imbricada com os fins da educação em seu âmbito moral. Nisso consiste seu caráter educativo: tomar parte na formação humana, abrindo caminho para formas cada vez mais cultivadas e refinadas de formação, como aprimoramento de si mesmo. De antemão a compreensão militar de disciplina é completamente distinta, pois consiste na obediência a um ordenamento hierarquizado, extrínseco e superior, nos moldes da cadeia de comando. Nas instituições militares, a obediência a um ordenamento extrínseco se justifica pela necessidade de operacionalização de um plano estratégico-instrumental. O que se torna ilegítimo é sua transposição para as escolas, pois essas, mesmo possuindo um elemento estratégico por comporem o sistema, são fundamentalmente espaços educativos, de formação humana. Dado sua característica de obediência a um comando extrínseco, a disciplina militar quando transposta para a escola possui caráter deformativo, pois implanta uma agenda estratégica promotora da conformação em vez de formação humana. Por querer preservar a qualquer custo a distinção entre superior e inferior e por impedir que a obediência venha se tornar racionalmente livre, a disciplina militar é incapaz de promover formação (Bildung), mantendo a maioria de seus membros na simples e destrutiva obediência passiva e servil, ou seja, mantendo-os na condição de sujeito deformados (Unbildung).

Assim, qualquer tentativa de revalorização do papel da disciplina na educação, precisa fazê-lo a partir da própria tradição educativa, pois nela a disciplina consiste em certo tipo de atividade interior que visa favorecer a reflexão, a busca pelo conhecimento, a construção da liberdade. A transposição de compreensões instrumentalizadas de disciplina de outras esferas como a militar, para a escola, apenas esvazia seu caráter educativo ao implantar formas de conformação por meio da obediência a agendas e ordenamentos extrínsecos. Neste sentido, o reposicionamento da questão da democracia na escola implica dar um passo além na superação da instrumentalização autoritária da disciplina, recuperando sua dimensão formativa que encontramos na tradição pedagógica clássica, da qual Platão (Sócrates) e Kant são referências importantes.

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  • APOIO/FINANCIAMENTO
    Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), através do projeto “A educação como processo de formação humana” aprovado no Edital IFRS N° 12/2022 - Fomento Interno para Projetos de Pesquisa Inovação 2022/2023.
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  • COMO CITAR ESTE ARTIGO
    ZATTI, Vicente; PAGOTTO-EUZEBIO, Marcos Sidnei; DALBOSCO, Claudio Almir. A disciplina militar na escola e seu limite formativo. Educar em Revista, Curitiba, v. 40, e87966, 2024. https://doi.org/10.1590/1984-0411.87966
  • 1
    Para saber mais sobre a diferença entre escolas militares e escolas cívico-militares, ver Mendonça (2019, p. 623). As escolas cívico-militares são apresentadas como política nacional pelo Ministério da Educação a partir do Decreto Nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019 (Alves; Toschi, 2019, p. 635) e do Decreto Nº 10.004, de 5 de setembro de 2019 (Brasil, 2019c), este que instituiu o Programa Nacional de escolas Cívico-Militares. Tal projeto de militarização das escolas públicas foi encabeçado, em nível federal, pela gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, entre 2019 e 2022. Apesar disso, a militarização das escolas ocorria antes destes dispositivos legais em alguns estados, segundo Dias; Ribeiro (2021), especialmente desde 2013. O Programa Nacional de escolas Cívico-Militares foi revogado pelo Decreto Nº 11.611, de 19 de julho de 2023 (Brasil, 2023). Nota-se, porém, que o projeto de militarização das escolas públicas permanece vivo em estados cujos governos possuem filiação ideológica de extrema-direita. Sobre isso, cabe destacar que a proposta de militarização das escolas se caracteriza pelo conservadorismo (Dias; Ribeiro, 2021) e pela exclusão da atividade política democrática (Cunha; Lopes, 2022), daí o vínculo ideológico com a extrema-direita.
  • 2
    Alves e Toschi (2019) definem a militarização das escolas como a transferência da gestão das escolas públicas para corporações militares. Estas implantam na escola um modelo semelhante aos quartéis: disciplina rígida, uso de uniforme/farda, adoção de ritos militares, ensino de civismo. Mesmo que existam, desde 1998, experiências isoladas de militarização das escolas, enquanto transferência da gestão para militares (Alves; Toschi, 2019, p. 635), é com o Decreto Nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019 (Brasil, 2019b), que as escolas cívico-militares são apresentadas como política a ser adotada em todo o país.
  • 3
    A menção à compreensão de disciplina desse documento é importante, pois segundo Mendonça (2019, p. 632) a Ordem Unida passou a fazer parte da vivência das escolas militarizadas.
  • 4
    Vale-se, aqui, de conceitos que remetem à Teoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas (2012). Nela, a racionalidade é apresentada como uma dupla capacidade humana: a racionalidade instrumental, relacionada à articulação de meios de modo eficiente para alcançar fins; a racionalidade comunicativa, relacionada aos processos de entendimento. A reprodução material e institucional da sociedade está relacionada à racionalidade instrumental. A reprodução simbólica da sociedade está relacionada à racionalidade comunicativa. À vista disto, não havendo distorções, a educação como formação humana está relacionada à racionalidade comunicativa. Para saber mais, ver Zatti (2016).
  • 5
    Alves e Ferreira (2020, p. 3) identificam o medo como justificativa para expansão da militarização nas escolas, concomitante, à narrativa do problema da violência, as escolas militarizadas são apresentadas como a solução para uma escola segura, que prima pela disciplina e pelo bom rendimento dos alunos em provas.
  • 6
    Jürgen Habermas (2012) desenvolve uma teoria social na qual entende a sociedade através dos conceitos complementares de sistema e mundo da vida. O sistema, regido pela racionalidade estratégico-instrumental, está relacionado à reprodução material e institucional da sociedade, através dos mecanismos do dinheiro e do poder. O mundo da vida, regido pela racionalidade comunicativa, é o pano de fundo no qual se situam desde sempre aqueles que agem comunicativamente, em outras palavras, pano de fundo intersubjetivo a partir do qual se é constituído como ser que fala e age.
  • 7
    Sobre isso, Lima, Brzezinski e Menezes Junior (2020, p. 5) argumentam que a militarização do processo educacional não permite a busca do consenso e dificulta o desenvolvimento da articulação linguística e do diálogo. Desse modo, obstrui o agir comunicativo no mundo vital da escola, comprometendo o processo formativo.
  • 8
    A teoria kantiana alinha o mundo sensível e o inteligível, respectivamente, com a natureza e liberdade. Deste modo, o mundo sensível é o mundo fenomênico. O mundo inteligível é o mundo noumênico (coisa em si). Este último é o mundo dos seres racionais, em que é possível a liberdade (Caygill, 2000, p. 236).
  • 9
    Com a expressão “negativa” Kant (2018, p. 32) quer dizer que não é necessário acrescentar nada de novo.
  • 10
    Percebe-se, sobre esta tensão entre coação e liberdade, que é o aspecto nuclear não só do pensamento pedagógico kantiano, mas também da ampla teoria educacional moderna, voltada para a autonomia do educador e do educando, o interessante ensaio de Ruhloff (1975, p. 2-18).
  • 11
    Nesse aspecto, Kant possui um traço típico dos pensadores modernos, um pensamento essencialista que supõe uma razão natural universal como condição essencial e fundante do ser humano.
  • 12
    Na infância a criança é compreendida como um ser que ainda não tem condições racionais de agir por conta própria. É a partir desse conceito de infância que Kant atribui um papel central à disciplina: cabe a ela conter a selvageria, disciplinar uma vontade que ainda não conhece regras racionais (Dalbosco, 2004, p. 1345).
  • 13
    Importante notar que Sócrates não diz que ensina, mas que, somente, aponta ou indica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2022
  • Aceito
    29 Jun 2024
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