Resumos
OBJETIVOS: Estudar a presença, forma de apresentação e as conseqüências da hipotermia em nosso meio. MÉTODOS: Estudo prospectivo em hipotérmicos atendidos no Serviço de Emergência de Clínica Médica da Santa Casa de São Paulo, com 212 pacientes com hipotermia leve, moderada e grave, entre 1987 a 2001, a maioria constituída por alcoólatras crônicos e moradores de rua. Foram analisados os resultados quanto ao sexo, faixa etária, temperatura central, eletrocardiograma, comorbidades e mortalidade. RESULTADOS: A hipotermia predominou no sexo masculino em 75,9%. Quanto à faixa etária prevaleceu a idade entre 30 e 59 anos. Em 70,3% dos pacientes a temperatura central foi inferior a 32ºC, sendo que em 26,4% destes, a temperatura foi menor que 28ºC. A associação com quadros infecciosos ocorreu em 76,8% dos casos. Os pacientes com hipotermia leve responderam melhor à terapêutica (96,8%) quando comparados com os hipotérmicos moderados (72,1%) e graves (87,5%). A onda de Osborn esteve presente em 42,6% dos pacientes. A mortalidade geral foi de 38,2%. CONCLUSÕES: A hipotermia acidental em serviços de emergência de país tropical é fato inegável. O socorrista deve estar atento e treinado para o reconhecimento desta doença de alta morbidade e mortalidade. A mortalidade aumenta com a presença de doenças associadas, particularmente processos infecciosos, desnutrição e alcoolismo crônico.
Hipotermia acidental; Alcoolismo crônico; Desnutridos; Infecções; Osborn
OBJECTIVE: This paper has by objective to study the hypothermia's presence, presentation form and consequences in our environment. METHODS: A prospective study in hypothermic patients assisted in the Medical Clinic Emergency Service of Santa Casa of São Paulo, with 212 patients with mild, moderate and serious hypothermia from 1987 to 2001, the most part of them constituted by chronic alcoholics and homeless. The results were analyzed in reference to sex, age group, central temperature, electrocardiogram, co-morbidity and mortality. RESULTS: The hypothermia prevailed in the male sex with 75.9%. As age group prevailed the age between 30 and 59 years. In 70.3% of the patients the central temperature went lower than 32°C, and in 26.4% of these, the temperature was lower than 28°C. The association with infectious processes happened in 76.8% of the cases. The patients with mild hypothermia answered better at therapeutics (96.8%) when compared with the moderate hypothermic (72.1%) and serious (87.5%) patients. The Osborn's wave was present in 42.6% of the patients. The general mortality was 38.2%. CONCLUSIONS: The accidental hypothermia in Emergency Services from Tropical Country is an undeniable fact. The paramedic and medics should be alert and trained to recognize this disease of high morbidity and mortality. The mortality increases with the presence of associated diseases, particularly infectious processes, malnutrition and chronic alcoholism.
Accidental Hypothermia; Chronic alcoholism; Malnutrition; Infections; Osborn
ARTIGO ORIGINAL
Hipotermia acidental em um país tropical
Accidental hypothermia cases in a tropical country
Valdir Golin; Sandra Regina Schwarzwälder Sprovieri; Rubens Bedrikow; Afonso Celso Pereira; Vânia Elizabeth Ramos Melhado; Mauro José Costa Salles; Paulo Roberto Cavallaro Azevedo
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Valdir Golin Rua Apiacás, 351 apto. 141 05017-020 São Paulo SP E-mail: vgolin@superig.com.br
RESUMO
OBJETIVOS: Estudar a presença, forma de apresentação e as conseqüências da hipotermia em nosso meio.
MÉTODOS: Estudo prospectivo em hipotérmicos atendidos no Serviço de Emergência de Clínica Médica da Santa Casa de São Paulo, com 212 pacientes com hipotermia leve, moderada e grave, entre 1987 a 2001, a maioria constituída por alcoólatras crônicos e moradores de rua. Foram analisados os resultados quanto ao sexo, faixa etária, temperatura central, eletrocardiograma, comorbidades e mortalidade.
RESULTADOS: A hipotermia predominou no sexo masculino em 75,9%. Quanto à faixa etária prevaleceu a idade entre 30 e 59 anos. Em 70,3% dos pacientes a temperatura central foi inferior a 32ºC, sendo que em 26,4% destes, a temperatura foi menor que 28ºC. A associação com quadros infecciosos ocorreu em 76,8% dos casos. Os pacientes com hipotermia leve responderam melhor à terapêutica (96,8%) quando comparados com os hipotérmicos moderados (72,1%) e graves (87,5%). A onda de Osborn esteve presente em 42,6% dos pacientes. A mortalidade geral foi de 38,2%.
CONCLUSÕES: A hipotermia acidental em serviços de emergência de país tropical é fato inegável. O socorrista deve estar atento e treinado para o reconhecimento desta doença de alta morbidade e mortalidade. A mortalidade aumenta com a presença de doenças associadas, particularmente processos infecciosos, desnutrição e alcoolismo crônico.
Unitermos: Hipotermia acidental. Alcoolismo crônico. Desnutridos. Infecções. Osborn.
SUMMARY
OBJECTIVE: This paper has by objective to study the hypothermia's presence, presentation form and consequences in our environment.
METHODS: A prospective study in hypothermic patients assisted in the Medical Clinic Emergency Service of Santa Casa of São Paulo, with 212 patients with mild, moderate and serious hypothermia from 1987 to 2001, the most part of them constituted by chronic alcoholics and homeless. The results were analyzed in reference to sex, age group, central temperature, electrocardiogram, co-morbidity and mortality.
RESULTS: The hypothermia prevailed in the male sex with 75.9%. As age group prevailed the age between 30 and 59 years. In 70.3% of the patients the central temperature went lower than 32°C, and in 26.4% of these, the temperature was lower than 28°C. The association with infectious processes happened in 76.8% of the cases. The patients with mild hypothermia answered better at therapeutics (96.8%) when compared with the moderate hypothermic (72.1%) and serious (87.5%) patients. The Osborn's wave was present in 42.6% of the patients. The general mortality was 38.2%.
CONCLUSIONS: The accidental hypothermia in Emergency Services from Tropical Country is an undeniable fact. The paramedic and medics should be alert and trained to recognize this disease of high morbidity and mortality. The mortality increases with the presence of associated diseases, particularly infectious processes, malnutrition and chronic alcoholism.
Key words: Accidental Hypothermia. Chronic alcoholism. Malnutrition. Infections. Osborn.
INTRODUÇÃO
A hipotermia ocorre no homem quando a temperatura central do organismo cai abaixo de 35 ºC, de modo não intencional1. Temperatura central corresponde à temperatura do coração, pulmão, encéfalo e órgãos esplâncnicos. A periférica é a temperatura da pele e músculos.
Quando a soma entre a retenção e a produção de calor for menor que os fatores que predispõem ao frio, o ser humano se torna hipotérmico. Pode ser classificada em acidental (primária) e secundária2.
A hipotermia acidental ou primária é definida como decorrente da redução espontânea da temperatura central. Pode estar associada com disfunções orgânicas agudas ou doenças crônicas agudizadas. As causas mais freqüentes são a exposição ao frio, ao vento, infusão excessiva de líquidos parenterais frios, em especial transfusões sanguíneas, imersão em ambientes gelados, umidade excessiva, entre outros3.
A hipotermia secundária se caracteriza por disfunções ou lesões do centro termo regulador, causadas por doenças orgânicas ou uso de substâncias com ação no sistema nervoso central2,4. Os principais fatores de risco para a termoestabilidade são:
1- Diminuição da produção de calor
1.1- Endócrinas:
Hipotireodismo, hipopituitarismo e hipoadrenalismo.
1.2- Aporte calórico:
Hipoglicemia e desnutrição.
1.3- Atividade neuromuscular:
Idade avançada, redução dos tremores, inatividade e perda de adaptação.
2- Redução da termo regulação
Insuficiência vascular periférica, neuropatias, secção de medula e diabetes.
3- Distúrbios do sistema nervoso central
Causas farmacológicas, metabólicas, toxinas, acidente vascular cerebral, trauma, neoplasias e doenças degenerativas.
4- Aumento da perda de calor
Indutores de vasodilatação, toxinas, dermatites graves, queimaduras, iatrogenias, exposição ao frio, infusão excessiva de líquidos frios, causas ambientais como a imersão, politraumas, choque, doença cardiopulmonar, acidose sistêmica, infecções (bacteriana, viral, fúngica ou parasitária), carcinomatose, pancreatite, uremia e hipotermia recorrente ou episódica.
O ser humano é homeotérmico e, por isso, está adaptado a uma faixa orgânica de temperatura estável, necessária para que as reações enzimáticas do organismo ocorram adequadamente. A temperatura central ideal do ser humano varia entre 36,4 a 37,5ºC, sendo mantida com uso de vestes adequadas, ajuste da sudorese, tônus vasomotor, exercício, tremor muscular e pela termogênese basal controlada pelos núcleos supraóticos do hipotálamo2.
A liberação de calor pelo organismo pode ocorrer por convecção, quando for conduzido pela movimentação do ar. A condução libera calor através do contato entre objetos transferindo energia calórica entre eles. A água transfere calor com velocidade 25 vezes maior do que o ar. O calor perdido por irradiação se dá quando houver gradiente de temperatura, em geral, depende da superfície exposta e da diferença entre a temperatura corporal e do ambiente. A evaporação provoca perda de calor pela transformação da água em vapor (perspiração, sudorese, respiração)2.
A vasoconstrição dos capilares nas extremidades pode reduzir o fluxo sangüíneo em até 99%, determinando um gradiente térmico isolante entre a periferia e o centro do organismo. Assim, as extremidades são sacrificadas para manter a temperatura central do organismo, objetivando manter o paciente vivo2.
A hipotermia é um problema clínico importante, principalmente porque é pouco lembrada e conseqüentemente não diagnosticada e tratada. Os motivos variam desde a falta de reconhecimento dos dados clínicos, falta de percepção da gravidade desta doença e ausência de termômetros, na maioria dos serviços de emergência, que façam aferição de temperaturas menores que 35ºC5.
Em função do grande número de pacientes alcoólatras crônicos e moradores de rua, que são atendidos no Serviço de Emergência da Santa Casa de São Paulo, muitos deles com quadros sugestivos de hipotermia, optou-se por estudá-los prospectivamente quanto a faixa etária, temperatura na admissão, possíveis doenças associadas e fatores predisponentes, eficácia do tratamento proposto, taxa de mortalidade e principais complicações.
MÉTODOS
Este estudo avaliou prospectivamente 212 pacientes com hipotermia, atendidos no Serviço de Emergência Clínica da Santa Casa de São Paulo no período de l987 a 2001, onde são atendidos em média 100.000 pacientes por ano. A maioria dos pacientes hipotérmicos era constituída por moradores de rua, desnutridos e alcoólatras crônicos.
Os pacientes foram classificados de acordo com à gravidade da hipotermia, seguindo-se os critérios descritos por Danzl & Pozos4. Estes autores separaram os grupos de pacientes quanto à gravidade, de acordo com a temperatura central e consideraram como:
Hipotermia leve, temperatura central entre 35oC e 32oC.
Hipotermia moderada, temperatura central entre 31,9oC e 28oC.
Hipotermia grave, temperatura central menor que 28oC.
Para medir a temperatura central, usou-se termômetro digital (marca Braile e ou Dixtal), que permite medir variações de temperaturas entre 0oC e 50oC. A aferição da temperatura em todos os pacientes foi intraesofágica, na junção do terço distal com o terço médio, medida esta considerada central pela maioria dos patofisiologistas2,4.
O método utilizado para a recuperação dos níveis térmicos destes pacientes foi o preconizado pela maioria dos autores pesquisados4,6,7,8. A velocidade de aquecimento foi de um grau Celsius por hora, não excedendo a cinco graus4,6,7,8.
Considerando os principais fundamentos do tratamento da hipotermia, que são aquecer o paciente, conservar o calor interno e repor nutrientes, adotou-se a seqüência:
1- Redução da perda de calor substituindo imediatamente as vestes umedecidas e remoção da exposição ao frio.
2- Quando conscientes e na ausência de náuseas e vômitos, foram alimentados e hidratados por via oral, com alimentos e líquidos aquecidos.
3- A adição de calor ao organismo foi efetuada com reposição de volume à base de soro fisiológico ou ringer lactato, aquecidos a 42ºC e infundidos em veia proximal de grande calibre, com a maior velocidade permitida pelas condições hemodinâmicas do paciente. Nebulização com O2 aquecido a 40ºC, através de máscara bem adaptada, foi utilizada concomitantemente por constituir-se em um importante método para adicionar calor ao organismo, através de trocas de calor com os capilares alveolares.
4- Colocou-se sobre o tórax do paciente, até próximo dos grandes vasos da base do pescoço, uma bolsa térmica elétrica regulada a 42 ºC. Esta conduta prática foi eficaz e muito útil, especialmente em ocasiões em que o banho aquecido em cavidades, como a peritoneal e pleural, não estava disponível. Graças a fina espessura da parede do tórax da maioria destes pacientes, esse método permite colocar em contato muito próximo a fonte de calor com uma grande rede de capilares e vasos sangüíneos de grosso calibre, facilitando a troca do calor com o meio interno.
5- Os pacientes foram monitorizados continuamente, em especial quanto à temperatura central, batimentos cardíacos e dados hemodinâmicos. Nos pacientes com temperatura central menor que 32 graus Celsius, procurou-se não realizar nenhuma manobra invasiva.
6- Nos pacientes com hipotermia grave quando não havia nenhuma resposta ao tratamento proposto nas primeiras quatro horas, indicava-se aquecimento através de banhos peritoneais com solução de diálise aquecida a 42ºC.
Para a análise comparativa das variáveis categóricas, foi usado o teste do qui-quadrado. Os dados foram armazenados em banco de dados e a análise estatística realizada através do programa Epiinfo, versão 06 (USA, 1997, CDC, WHO, Geneve, Switzerland). O nível de significância adotado foi de 5% (p<0,05).
RESULTADOS
Dentre os 212 pacientes estudados, 161 (75,9 %) eram do sexo masculino e 51 (20,1%) do sexo feminino. Em seis casos (2,7%) constatou-se a presença de hipotermia secundária, sendo dois pacientes com tumor cerebral em estágio avançado, dois com acidente vascular cerebral hemorrágico e hipertensão endocraniana grave, um com intoxicação grave por barbitúrico e outro com intoxicação por neuroléptico. Os demais pacientes apresentaram hipotermia acidental primária com ou sem doenças associadas.
Em relação à faixa etária houve predomínio dos pacientes entre 30 e 59 anos, 62,8% dos casos (Tabela 1).
A temperatura central na admissão em 70,3% (149/212) dos pacientes foi inferior a 32ºC e, em 26,4% (56/212) foi menor que 28ºC (Tabela 2).
Houve associação com quadros infecciosos de maior ou menor gravidade, em 76,8% (163/212) dos pacientes estudados. A Tabela 3 mostra a localização das infecções, em que constatamos um predomínio de infecções pulmonares, sepse e cutânea.
A mortalidade geral entre os pacientes estudados foi de 38,2% (81/212). A infecção desempenhou papel importante na evolução para o óbito (Tabela 4). Observa-se que ocorreu em 42,3% (69/163) dos pacientes com infecção e em 24,5% (12/49) dos não infectados (p<0,05).
Em relação à resposta terapêutica, constatou-se que houve evolução favorável para o restabelecimento da temperatura normal na maioria dos pacientes. A resposta dos diferentes grupos, de acordo com a temperatura de admissão, pode ser verificada na Tabela 5. Os pacientes com hipotermia leve responderam melhor à terapêutica (96,8%), quando comparados com hipotérmicos moderados (72,1%) e graves (87,5%).
Ocorreu maior número de óbitos nos pacientes com hipotermia moderada (43,2%) e grave (35,9%) do que naqueles com hipotermia leve (20,7%) e este dado foi significante (Tabela 6). A diferença entre o total de pacientes (212) estudados e os analisados nesta tabela se deve ao fato de 29 pacientes terem sido encaminhados para outros serviços e hospitais porque eram portadores de doenças de base, que necessitavam tempo prolongado de internação.
O eletrocardiograma mostrou a presença da onda de Osborn (Figura 1) em 42,6% dos pacientes, com tendência de maior freqüência nos pacientes hipotérmicos moderados e graves (p<0,06; IC=95%). Observou-se também aumento do espaço PR, aumento da duração do intervalo QT e arritmias, como a bradicardia sinusal e fibrilação atrial.
Em 15 pacientes, que não responderam ao tratamento clínico inicial, realizou-se diálise peritoneal. A análise dos óbitos desses casos em relação àqueles tratados como o proposto, não mostrou diferença (p=0,98; IC=95%).
DISCUSSÃO
Nos países onde o inverno é rigoroso, o grupo etário mais freqüentemente acometido na hipotermia acidental varia entre 65 e 90 anos9, ao passo que nesse estudo constatamos que a maioria dos pacientes com hipotermia encontrava-se na faixa etária entre 30 a 59 anos. É provável que essa diferença se deva ao fato dos moradores de rua que nos procuram, para os mais diversos atendimentos, pertencerem predominantemente a este grupo etário.
Muitos dos pacientes hipotérmicos apresentavam quadros infecciosos associados, principalmente do pulmão.
No presente estudo 70,3% dos pacientes apresentaram hipotermia moderada e grave. Este dado é importante, pois não temos invernos prolongados e rigorosos. Chama atenção o fato de que 26,4% dos pacientes que foram admitidos no serviço de emergência apresentavam temperaturas menores que 28ºC, caracterizando quadros clínicos extremamente graves. Entre os 212 pacientes estudados, seis apresentaram hipotermia secundária por lesão do sistema nervoso central, como conseqüência de disfunção do centro termorregulador dos núcleos supraóticos do hipotálamo.
A resposta terapêutica foi melhor nos hipotérmicos leves (96,8%) e, como era de se esperar, houve mais óbitos nos hipotérmicos moderados e graves, 43,2% e 35,9% respectivamente. Esta mortalidade aparentemente maior no grupo de hipotérmicos moderados, quando comparada com os hipotérmicos graves, não foi estatisticamente significativa, porém ocorreu porque além do alcoolismo houve maior presença de outras doenças associadas no primeiro grupo, como o diabetes melito, desnutrição grave, broncopneumonia, acidente vascular cerebral, hepatopatias alcoólicas graves, carcinomatose, tuberculose, Aids e hipertensão arterial sistêmica, o que nos leva à conclusão de que para os pacientes com doenças associadas há também necessidade de uma maior atenção do socorrista.
Foi maior a freqüência de óbitos nos pacientes com infecção (42,3 %), constituindo-se em fator relevante e que deve ser sempre investigado para início precoce da terapêutica antimicrobiana. Dados do CDC (Centers for Disease Control)10 mostram taxa de mortalidade de 65-90% em pacientes com hipotermia acidental associada a subnutrição, idade avançada, hipotireoidismo, infecções e principalmente alcoolismo. Naqueles apenas com hipotermia acidental e sem doença de base, a mortalidade não excedeu 10%10.
Não encontramos estudos realizados em serviços de emergência, localizados em cidades com clima semelhante ao de São Paulo, onde a média da temperatura mínima no inverno do período estudado (1987-1995) não foi inferior a 7ºC (segundo comunicação pessoal do Prof. Fábio Teixeira Gonçalves Estação Meteorológica da Fontes do Ipiranga-PEFI- São Paulo), o que nos impediu de compararmos os resultados. Por outro lado, quase a totalidade dos trabalhos pesquisados na literatura se refere a hipotermia primária de países onde no inverno a temperatura cai abaixo de zero graus Celsius. A maioria dos pacientes atendidos no serviço de emergência ocorreu em dias cuja temperatura média mínima não foi inferior a 10 ou 15 graus Celsius. O principal fator observado foi que os moradores de rua eram alcoólatras graves (ingestão maior que 500 ml de aguardente por dia) e desnutridos. Muitos deles se apresentavam com as vestes umedecidas pela água da chuva, orvalho ou mesmo urina e haviam dormido ao relento em contato com o solo.
Com o decorrer dos anos e, com o treinamento constante da equipe clínica em relação ao reconhecimento precoce desta doença, houve maior rapidez no início do tratamento, o que reforça a necessidade de se tornar mais conhecido e difundido este problema médico em nosso meio. Os socorristas, não habituados com o manuseio do paciente hipotérmico, sentem enorme desejo de inibir os fortes tremores com medicamentos. Esta conduta não deve ser tomada, porque esses tremores são importantes na geração de calor para manter o metabolismo basal de células vitais, chegando a produzir dois graus Celsius de temperatura por hora e gerar até 500% de calor a mais para o organismo2. Em geral, para estes pacientes hipotérmicos, o aquecimento deve ser iniciado de modo efetivo e imediato, porque a permanência de tremores levará à exaustão do glicogênio armazenado e poderá evoluir para acidose lática e fadiga muscular completa1,2.
O paciente hipotérmico não deve ser levado ao banho quente antes de se corrigir a hipotermia. Quando isto acontece pode ocorrer dilatação dos vasos periféricos, agravando a hipotermia central ao estagnar o sangue na periferia do organismo, diminuindo o metabolismo dos órgãos vitais, favorecendo arritmias, parada cardíaca e óbito. Portanto, o reaquecimento deve ser central4.
A suspeita clínica de hipotermia deve ser feita sempre que, ao se medir a temperatura do paciente com termômetro clínico, esta não atingir a marca de 35ºC ou ficar muito próxima deste valor. É possível que muitos pacientes hipotérmicos não sejam diagnosticados em vida se o médico não estiver atento. Infelizmente, não é habitual a aferição da temperatura central nestes pacientes porque a maioria dos serviços de emergência não possui termômetro eletrônico.
O quadro clínico observado foi variável. As manifestações variaram desde apatia, dificuldade de julgamento, queda sem justificativa aparente, pele fria e cianótica, até mudanças do comportamento, fala empastada, incompreensível e lentificada.
Nos pacientes graves, observou-se sinais de diminuição do fluxo sanguíneo cerebral, com depressão progressiva dos níveis de consciência, amnésia, alucinações e coma. As manifestações cardíacas variaram da taquicardia nas fases iniciais às arritmias graves e irreversíveis.
A onda de Osborn é patognomônica de hipotermia e está presente quando a temperatura central for menor que 32ºC. Neste estudo foi detectada em 42,6%, em vários pacientes houve dificuldade na identificação da sua presença, devido a má qualidade do eletrocardiograma, em função de muita interferência, motivada pela agitação do paciente e a presença de fortes tremores. Póvoa et al. observaram a presença da onda de Osborn em 28 dos 29 pacientes incluídos no estudo11. A onda de Osborn foi inicialmente interpretada por seu descobridor, em 1953, como corrente de lesão e, posteriormente por outros, como despolarização tardia ou decorrente de repolarização precoce12. A bradicardia sinusal e a fibrilação atrial também estiveram presentes em vários pacientes e reverteram espontaneamente apenas com o aquecimento. Nesta situação não se deve reverter o ritmo cardíaco com medicamentos antes de se aquecer o paciente13. O limiar de predisposição às arritmias é muito baixo nos hipotérmicos graves e qualquer manobra, desde movimentos bruscos do paciente, passagem de cateteres que possam atingir o átrio ou o ventrículo, uso de drogas inotrópicas, instalação precipitada de marca passo cardíaco ou até o uso de drogas hipertônicas, pode desencadear arritmias ventriculares irreversíveis e óbito14.
A parada cardiorrespiratória no paciente hipotérmico deve ser considerada de modo diferente do habitual. Nos hipotérmicos graves pode-se encontrar sinais clínicos que podem confundir com o óbito. Quando reanimados, em geral, não apresentam qualquer seqüela. Logo, o paciente hipotérmico nunca poderá ser considerado morto se estiver frio15. A reanimação cardíaca somente deverá ser iniciada após completa e cuidadosa avaliação da função e freqüência cardíaca. Pacientes com bradicardias graves e com períodos de apnéia prolongada, se estiverem com temperaturas muito baixas (menor que 28 ºC), podem manter fluxo sangüíneo suficiente para o cérebro e coração, preservando-os de qualquer dano. O uso de medicamentos que tenham ação sobre o miocárdio e até mesmo a massagem cardíaca ou a colocação de marca passo poderão desencadear arritmias fatais. Antes de se iniciar manobras de reanimação cardiorrespiratória, há que se ter certeza de que não há pulso ou batimento cardíaco. A demanda necessária de O2 para manter as células e tecidos vivos, nesta situação, é muito reduzida.
Concluindo, podemos afirmar que a hipotermia acidental em país tropical é um fato inegável. Se não diagnosticada, poderá ocorrer agravamento das condições clínicas do paciente, em conseqüência do retardo ou erro na condução do caso. A mortalidade é elevada e se acentua na presença de doenças associadas, em especial infecções, desnutrição e alcoolismo crônico. A morbidade e mortalidade são maiores quando apresentam doenças de base, se comparadas com aqueles que se expõem ao frio excessivo. Há que se ter cuidado com o paciente idoso nos locais onde esta população se concentra, como instituições asilares. Em hospitais gerais a atenção deve ser dirigida às condições clínicas discutidas nesse estudo. Finalmente, acreditamos que novos estudos, em locais de clima semelhante ao de São Paulo e nas mais diferentes regiões de nosso País, nos levará a um conhecimento maior sobre esta doença.
Artigo recebido: 03/06/02
Aceito para publicação: 04/04/03
Trabalho realizado no Serviço de Emergência da Santa Casa de São Paulo, Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, SP.
Referências bibliográficas
- 1. Yoder E. Disorders due to heat and cold. In: Bennet JC, Plum F. Cecil textbook of medicine. 20a ed. Philadelphia: WB Saunders; 1996. p.501-3.
- 2. Douglas CR, Douglas NA. Adaptação térmica. In: Patofisiologia geral. Mecanismo de doença. São Paulo: Robe/CR Douglas; 2000. p.202-24.
- 3. Wilson RF. Complications of massive transfusions. Surg Rounds 1981; 8:47-54.
- 4. Danzl DF, Pozos RS. Accidental hypothermia. N Engl J Med 1994; 331(26):1756-60.
- 5. Center Diseases of Control (CDC). Current trends hypothermia-United States. MMWR 1983; 32(3):46-8.
- 6. Antretter H, Dapunt OE, Bonatti J. Management of profound hypothermia. Br J Hosp Med 1995; 54(5):215-20.
- 7. Goodlock JL. Methods of rewarming the hypothermic patient in the accident an emergency department. Accid Emerg Nurs 1995; 3(3):114-7.
- 8. Moss JF, Haklin M, Southwick HW, Roseman DL. A model for the treatment of accidental severe hypothermia. J Trauma 1986; 26(1):68-74.
- 9. Center Diseases of Control (CDC). Hypothermia-related deaths-Georgia, January 1996-December 1997, and United States, 1979-1995. MMWR 1998; 47(48):1037-40.
- 10. Center Diseases of Control (CDC). Hypothermia-related deaths. Suffolk County, New York, January 1999-March 2000, and United States, 1979-1998. MMWR 2001; 50(4):53-7.
- 11. Póvoa R, Arroyo JB, Ferreira C, et al. Alterações eletrocardiográficas na hipotermia acidental. Arq Bras Cardiol 1992; 58(1):11-4.
- 12. Smslie-Smith D, Sladden GE, Stirling GR. The significance of changes in the eletrocardiogram in hypothermia. Br Heart J 1959; 21:343-6.
- 13. Maclean D. Emergency management of accidental hypothermia: a review. J R Soc Med 1986; 79(9):528-31.
- 14. Reuler JB. Hypothermia: pathophysiology, clinical settings and management. Ann Intern Med 1978; 89(4):519-27.
- 15. Steinman AM. Cardiopulmonary resuscitation and hypothermia. Circulation 1986; 74(6pt2):IV29-IV32.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Nov 2003 -
Data do Fascículo
Set 2003
Histórico
-
Aceito
04 Abr 2003 -
Recebido
03 Jun 2002