RESUMEN
Introdução: Por meio da análise das Mensagens ao Congresso Nacional proferidas pelos presidentes eleitos, investigamos, através do conceito de agenda simbólica, as prioridades em políticas públicas na formação da agenda governamental.
Materiais e Métodos: Foram analisadas todas as Mensagens ao Congresso Nacional entre 1991 e 2020. Esse tipo de documento representa uma obrigação constitucional na qual o Presidente encaminha, na abertura da sessão legislativa de cada ano, um relatório expondo a situação do país e as prioridades de ação propostas para aquele ano. Os documentos foram submetidos à análise de conteúdo. Os textos foram transformados em indicadores de atenção de acordo com o tipo da política setorial retratada nos documentos originais.
Resultados: Os dados refletem a atenção governamental sobre as mais diferentes políticas públicas em perspectiva longitudinal, destacando as mudanças e as permanências nas prioridades dos presidentes eleitos no Brasil democrático. Determinadas políticas setoriais, como aquelas vinculadas à administração pública, governo interno e à macroeconomia, sempre foram prioridade das falas presidenciais. De forma distinta, também é possível identificar mudanças de prioridades e de distribuição no aparecimento de políticas setoriais a depender do partido político, do presidente eleito e do ambiente externo, como são os casos dos picos de atenção sobre políticas sociais e política externa nos governos do PT, ou as prioridades em reformas da administração pública e comércio exterior que marcaram os governos do ex-presidente FHC em detrimento de outros setores.
Discussão: O resultado obtido a partir de um inovador método que organiza quantitativamente os temas selecionados como sendo as prioridades dos presidentes eleitos é analisado a partir da literatura de agenda simbólica, uma recente abordagem dentro dos estudos de agenda-setting e de mudança em políticas públicas. O artigo discute processo de escolha e de priorização de temas que ganharão a atenção das agendas simbólicas em documentos direcionados ao poder legislativo e que possuem grande importância para a definição da agenda presidencial no início de cada ano. Também apresenta análises sobre a relação entre a capacidade e a diversidade da agenda com o contexto político, demonstrando que há conexões positivas entre o crescimento da agenda e de sua diversidade em momentos de reeleição ou de manutenção do mesmo partido (baixa fricção institucional), assim como mostra uma retração da agenda com maior concentração temática em momentos de tensão institucional (impeachment) e de mudança na chefia do executivo (turnover).
Palavras-chave políticas públicas; agenda governamental; mensagens presidenciais; Congresso Nacional; agenda simbólica
ABSTRACT
Introduction: Through the analysis of the Messages to the National Congress delivered by the elected presidents, we investigate the priorities in public policies in the formation of the governmental agenda, using the concept of symbolic agenda.
Methods: All the “Messages to the National Congress” between 1991 and 2020 were analyzed. This type of document represents a constitutional obligation in which the President sends, at the opening of each year’s legislative session, a report outlining the country’s situation and the priorities of actions proposed for that year. The content of the texts was transformed into indicators of attention according to the type of sectoral policy portrayed in the original documents.
Results: The data reflect government attention to the most different public policies in a longitudinal perspective, highlighting changes and permanence in the priorities of the presidents elected in Brazil under democratic rule. Certain sectoral policies, such as those linked to public administration and internal government and macroeconomics, have always been priorities in presidential speeches. In a different way, it is also possible to identify changes in priorities and distribution in the appearance of sectorial policies depending on the political party, the elected president and the external environment, as is the case of the peaks of attention on social policies and foreign policy in the governments of the PT, or the priorities in public administration reforms and foreign trade that marked the governments of former president Fernando Henrique Cardoso to the detriment of other sectors.
Discussion: The results obtained from an innovative method that quantitatively organizes the themes selected as the priorities of elected presidents are analyzed based on the symbolic agenda literature, a recent approach within agenda-setting and public policy change studies. The article, then, discusses the process of choosing and prioritizing the issues that will gain the attention of the symbolic agendas in a document directed to the legislative branch, of great importance in defining the presidential agenda at the beginning of each year. It also presents analyzes on the relationship between the capacity and diversity of the agenda with the political context, demonstrating positive relationships between the growth of the agenda and its diversity in moments of reelection or maintenance of the same party (low institutional friction), as well as showing a retraction of the agenda with greater thematic concentration in moments of institutional tension (impeachment) and change in the leadership of the executive (turnover).
Keywords public policies; government agenda; presidential messages; National Congress; symbolic agenda
I. Introducción1
A importância das ações e inações dos governantes já é assunto pacificado na literatura de políticas públicas. Esse é, de fato, o cerne do surgimento das policy siences, desde os estudos de Harold Lasswell, Herbert Simon, Thomas Dye e demais fundadores desse campo do conhecimento. No entanto, com os recentes desdobramentos dos estudos sobre agenda-setting, as definições de “ação governamental” acabaram por ampliar e ressignificar o conceito de “fazer ou não fazer”. Afinal, o que entendemos por ação governamental? Qual o sentido do verbo “fazer” quando nos referimos a ação dos governos? A ação, antes vista como um conjunto de medidas e decisões concretas, como a proposição de medidas legais, administrativas e orçamentárias, passa por um processo de expansão e de reconhecimento do papel simbólico das falas e dos discursos no complexo e competitivo processo de políticas públicas. A retórica, assim como a ação concreta, define, orienta e direciona as prioridades e a ação dos tomadores de decisão. Baseado nessa ideia, o estudo mapeia e analisa as prioridades dos presidentes eleitos do Brasil de 1991 a 2020 observados a partir do documento Mensagens ao Congresso Nacional.
Para além dessa introdução, o artigo é composto por outras quatro partes: Na primeira, revisitamos o histórico dos estudos de agenda-setting, retomando as contribuições de Cobb & Elder (1971), Kingdon (2003) e Baumgartner & Jones (1993), chegando aos mais recentes desdobramentos teóricos acerca da ideia de agenda simbólica. A segunda seção, diretamente relacionada à primeira, aprofunda a forma como a literatura especializada atual, nacional e internacional, identificam e trabalham com diversos indicadores de atenção para entender e analisar a agenda simbólica. Destaque é dado para o complexo sistema de construção de dados e de análises comparadas elaborados pelos pesquisadores do Comparative Agendas Project (CAP). Na sequência, aprofundamos as questões metodológicas esclarecendo quais dados, variáveis analíticas, categorias e procedimentos são adotados nesta pesquisa. Para isso, recuperamos os princípios teóricos e operacionais da análise de conteúdo, da dupla checagem de dados e da comparabilidade temporal entre as informações levantadas e codificadas em categorias previamente definidas. Os resultados são apresentados na seção seguinte, na qual aplicamos o ferramental metodológico mencionado nos documentos Mensagens ao Congresso Nacional, em um horizonte temporal de 29 anos, de 1991 a 2020. Por fim, nas Considerações finais debatemos nossos achados apontando, quantitativamente e qualitativamente, e à luz das teorias de formação da agenda governamental, as prioridades em políticas públicas no Brasil democrático. Desatacamos as diferenças entre governos, as mudanças em políticas setoriais, abrindo um leque de novas análises e agendas possíveis para os pesquisadores do campo.
II. Agenda e agenda simbólica
O conceito de agenda no campo das políticas públicas foi inicialmente definido no artigo publicado por Cobb e Elder em 1971, no qual agenda corresponderia a “a general set of political controversies that will be viewed as falling whithin the range of legitimate concerns meriting the attention of the polity” (Cobb & Elder, 1971, p. 905). No livro publicado no ano seguinte, os autores aprofundam o conceito, estabelecendo uma diferenciação entre dois tipos de agenda: sistêmica e governamental (Cobb & Elder, 1972). A agenda sistêmica consiste no conjunto de questões que recebem atenção da sociedade e são entendidas como assuntos de competência das autoridades governamentais. As questões se manifestam na agenda sistêmica quando despertam a atenção da opinião pública ou quando parte considerável da sociedade demanda algum tipo de ação concreta do Estado com relação a uma preocupação. Nem todas as questões que fazem parte das preocupações presentes na sociedade atrairão também a atenção de membros do governo. Ou seja, nem todas as questões presentes na agenda sistêmica concentrarão a atenção governamental e terão espaço no segundo tipo de agenda identificado pelos autores como agenda governamental (também chamada de agenda institucional ou formal). A agenda governamental é composta pelas questões consideradas relevantes pelos tomadores de decisão, seja no plano local, estadual ou federal:
The institutional, governmental, or formal agenda may be defined as that set of items explicitly up for the active and serious consideration of authoritative decision-makers. Therefore, any set of items up before any governmental body at the local, state, or national level will constitute an institutional agenda (Cobb & Elder, 1972, p. 85).
O objetivo desses autores foi investigar as conexões entre a participação pública e a tomada de decisão política e, para isso, buscaram compreender as relações entre a agenda sistêmica (ou a agenda pública, da sociedade ou ainda, agenda informal), a agenda da mídia (as preocupações presentes na mídia) e a agenda governamental (agenda institucional, ou agenda formal). Segundo eles, as questões transitavam entre essas três agendas, e seus estudos analisaram as diferentes formas de “construção da agenda” (agenda building), ou seja, os mecanismos de influência entre as agendas e seu impacto no processo decisório.
Um importante avanço foi realizado por John Kingdon (2003), que deixou de lado os mecanismos de conexão e influência entre diferentes agendas para dedicar-se à compreensão mais aprofundada da agenda governamental. Para esse autor, a agenda governamental é definida como o conjunto de assuntos sobre os quais o governo, e pessoas ligadas ele, concentram sua atenção num determinado momento. Observando de forma mais detida a agenda governamental, Kingdon percebeu que dentro dela havia um importante subconjunto, a qual ele chamou de agenda decisória: “We should also distinguish between the governmental agenda, the list of subjects that are getting attention, and the decision agenda, the list of subjects within governmental agenda that are up for an active decision” (Kingdon, 2003, p. 4). Assim, a agenda governamental é composta por questões que despertam a atenção e o interesse dos formuladores de políticas, da mesma forma como já havia sido estabelecido por Cobb & Elder (1972). Porém, dada a complexidade e o volume de questões que se apresentam a esses formuladores, apenas algumas serão seriamente consideradas dentro da agenda governamental num momento determinado. Estas questões compõem a agenda decisória: um subconjunto da agenda governamental que contempla questões que estão prontas para a tomada de decisão pelos formuladores de políticas, ou seja, prestes a se tornar políticas públicas.
Ao redirecionar o foco dos estudos para o interior da agenda governamental, Kingdon percebe que nem todas as questões ali presentes têm a mesma relevância, pois algumas ainda serão submetidas a outro processo de seleção. O conceito de agenda decisória, como vimos, refere-se a esse subconjunto composto por questões que estão prontas para a tomada de decisão pelos formuladores de políticas. Cobb et al. (1976), por exemplo, já haviam percebido que nem todas as questões presentes na agenda governamental recebiam a mesma atenção por parte dos tomadores de decisão, sendo algumas delas puramente simbólicas. Essas questões, que não serão seriamente consideradas, integram o que os autores denominaram como “pseudo-agenda”.
Mais recentemente, Charqués-Bonafont et al. (2015) estabeleceram mais uma diferenciação conceitual a respeito da agenda governamental, propondo que esta seria composta por dois subconjuntos: a agenda decisória (como indicado por Kingdon) e uma agenda que denominaram “simbólica”. Do ponto de vista empírico, a agenda decisória envolveria problemas em um estágio mais estruturado do processo decisório. São questões que já foram de alguma forma amadurecidas e que envolvem custos de decisão por parte dos atores envolvidos. Um projeto de lei ordinária de autoria do Poder Executivo, por exemplo, será debatido em comissões específicas, o que envolve custos na articulação entre Executivo e Legislativo, principalmente no caso brasileiro, que conta com um “Legislativo reativo” (Santos & Almeida, 2011)2. Uma das características mais marcantes do presidencialismo de coalizão é a delegação, pelo Legislativo, da iniciativa de proposição de normas importantes para o Executivo: “a definição de agenda, assim como as prioridades no que tange à ordem de apresentação dos projetos, é transferida para o governo e negociada, posteriormente, com os parlamentares que lideram o partido ou coalizão legislativa majoritária” (Santos & Almeida, 2011, p. 20). Assim, a aprovação de políticas públicas envolve esforço político e custos tanto para o Executivo quanto para o Legislativo.
A agenda simbólica, por outro lado, envolveria questões em estágios mais iniciais da definição da agenda. São propostas que não enfrentam o debate em comissões e não demandam barganha entre os Poderes. Charqués-Bonafont et al. (2015) exemplificam a agenda simbólica por meio da análise de discursos presidenciais, mais especificamente os discursos de posse e os discursos anuais (“Estado da Nação”). Trata-se de um conjunto de questões inseridas em uma agenda mais ampla, caracterizada por: a) ausência de restrições em relação a seu conteúdo (a rigor, pode-se tratar de qualquer tema); b) ausência de custos de decisão; c) baixa fricção institucional. De forma geral, a agenda simbólica está relacionada aos momentos iniciais do processo de produção de políticas, nos quais os custos institucionais são mais baixos em comparação a outros estágios do mesmo processo (Jones & Baumgartner, 2005, p. 175). Isso significa que os tomadores de decisão podem testar argumentos, sentir a reação e o apoio ou rejeição de ideias; chamar a atenção e até mesmo construir problemas que não necessariamente estão nas prioridades da sociedade ou de atores relevantes naquele dado momento.
Essa distinção aproxima-se de outra categorização, proposta por Jeffrey Cohen (2012). O autor, que investigou a agenda presidencial nos Estados Unidos, especifica três tipos de agenda: agenda retórica, executiva (ou administrativa) e legislativa. A agenda retórica envolve discursos públicos do Presidente, anúncios oficiais, briefings de porta-vozes do Executivo, envolvendo tanto as relações com jornalistas quanto as demais formais de divulgação para a divulgação de programas de governo. Essa agenda tem diversos objetivos, entre os quais influenciar a agenda pública, procurando aproximá-la das prioridades presidenciais; construir suporte público a propostas e ideias específicas; demonstrar responsividade do governo em relação à sociedade; informar as ações desenvolvidas pelo governo em determinadas áreas de política; reforçar o papel de liderança do Presidente junto ao eleitorado. Já as agendas executiva e legislativa baseiam-se nos poderes formais do Executivo e que permitem sua atuação direta na tomada de decisão. São questões que envolvem as ferramentas do Poder Executivo (as policy tools à disposição desse Poder), como a possibilidade de emitir Decretos, ou seja, atos administrativos que complementam dispositivos legais, ou de produzir leis (no caso brasileiro, conforme o disposto no artigo 61 da Constituição Federal, que fixa as leis de iniciativa privativa do Presidente). Cohen esclarece que essas agendas muitas vezes se sobrepõem: a agenda retórica pode ser relevante para construir suporte a uma questão presente na agenda legislativa, numa estratégia tornar um problema público, por exemplo.
A agenda simbólica (Charqués-Bonafont et al., 2015) compreende elementos da agenda retórica (Cohen, 2012). Porém entendemos que a agenda simbólica está vinculada ao processo de produção de políticas, sendo diretamente relacionada a suas fases iniciais. A agenda retórica compreende uma lista de propostas presidenciais mais genéricas, diferenciando-se do que o próprio Cohen denominou como “programa presidencial”, o conjunto de preocupações do Presidente, muitas vezes distinto das prioridades de órgãos burocráticos como Ministérios. O programa presidencial, para Cohen (2012, pp. 26-27), é mais formalizado e rotinizado, o que aproxima mais do conceito de agenda simbólica proposto por Charqués-Bonafont et al. (2015) do que do conceito de agenda retórica. Outra diferença importante é que a agenda simbólica não é exclusiva do Poder Executivo: o Legislativo também tem agendas simbólicas, ligadas a grupos parlamentares. A agenda simbólica - seja para o Executivo, ou Legislativo, serve como um catalizador de atenção para questões específicas. No estudo conduzido por Charqués-Bonafont et al. (2015) sobre a Espanha, a agenda simbólica do Legislativo foi investigada empiricamente por meio da observação da apresentação das oral questions3 no Parlamento, forma utilizada por grupos políticos para chamar atenção do Parlamento para algumas questões, ou para atender a preferências partidárias ou demandas do eleitorado. Já a agenda simbólica do Executivo foi avaliada por meio dos discursos do Primeiro Ministro espanhol, tomando como base dois discursos específicos: os discursos de posse (“discurso de investidura”, quando o candidato a Primeiro Ministro do governo espanhol apresenta seu programa em busca de apoio do Parlamento), e o e o discurso anual sobre o Estado da Nação (Debate sobre Política General em torno al Estado de la Nación, quando o primeiro Ministro informa ao Parlamento sobre prioridades futuras do governo e presta contas sobre a implementação e evolução das políticas públicas).
Essa distinção entre agenda simbólica e decisória poderia levar ao argumento de que os discursos pouco importam, afinal governos realizam pronunciamentos de forma sistemática, rotinizada, proforma. No entanto, a literatura especializada vem chamando atenção para o fato de que “políticas públicas são feitas de linguagem” (Majone, 1989), no contexto da chamada “guinada argumentativa” (Fischer & Forester, 1993). Nesse aspecto, os discursos que integram a agenda simbólica são relevantes e ajudam a definir os termos do debate, estruturando a argumentação, elementos tão relevantes no processo de produção de políticas quanto poder, influência, interesses e barganha (Majone, 1989).
Discursos são eventos importantes no processo de agenda-setting (Charqués et al., 2008, p. 9). No caso dos discursos presidenciais isso se torna ainda mais claro porque o presidente é um ator central ao processo de definição da agenda (Kingdon, 2003; Baumgartner & Jones, 1993). Apesar das variações e especificidades dos sistemas políticos, as pesquisas sobre agenda têm considerado os discursos como um dos indicadores mais importantes para investigar as prioridades governamentais (Baumgartner et al., 2011). Em estudo comparado entre a agenda da Espanha e dos Estados Unidos, considerando um escopo temporal de 25 anos, Charqués-Bonafont et al. (2008), mostraram que a análise dos discursos presidenciais não apenas é capaz de revelar as prioridades governamentais, como também exercem uma função catalisadora. Os discursos são eventos de alta visibilidade, sendo repercutidos pela mídia e debatidos por atores do sistema político e pelo público tendo, portanto, efeitos sobre a atenção em diferentes esferas. Além disso, apesar da diferença entre as características dos sistemas políticos espanhol e estadunidense, a análise realizada pelos autores mostrou que os discursos exibiram padrões semelhantes a outros indicadores de agenda, mesmo entre aqueles relacionados ao momento mais próximo à tomada de decisão (agenda decisória), porque observou-se uma relação entre os temas que os Presidentes abordam nos discursos e as questões que são efetivamente levadas à diante do processo de produção de políticas. Mais recentemente, Breunig et al. (2019) mostraram, a partir da análise de oito países diferentes considerando pouco mais de duas décadas, que a inserção de uma questão em discursos governamentais “impactou substancialmente” na quantidade de temas aprovados relacionados a essas questões. Ou seja, os autores concluíram que os discursos consistem no elemento que conecta promessas do governo e sua capacidade legislativa. Em termos da América Latina, trabalhos recentes dedicaram-se ao estudo da agenda com base na observação de discursos presidenciais, como o estudo de Aguirre (2020) sobre o Equador, e o de Silva & Castro (2020) sobre a Colômbia.
Assim, podemos afirmar que a agenda simbólica é um elemento importante para a compreensão da agenda governamental, não consistindo em mero artifício de retórica ou “cortinas de fumaça”. Como um dos instrumentos disponíveis ao Presidente, ator central no processo de definição da agenda, os discursos exercem influência no espaço de discussão, no espaço de ação e no espaço de persuasão política: “o governo da palavra não é tudo na política, mas a política não pode agir sem a palavra” (Charaudeau, 2006, p. 21).
III. Analisando a agenda simbólica
Um dos maiores pesquisadores sobre a agenda presidencial, Light (1999, p. 4), lembra que “technically, every legislative or administrative proposal originating in the executive branch belogs to the President. The number of items involved is staggering”. Como, então, diferenciar entre questões relevantes para outros integrantes do Poder Executivo e a agenda do Presidente, ou seja, o conjunto de questões que recebem seu apoio direto? O autor aponta o caminho:
The President’s agenda is perhaps best understood as a signal. It indicates what the President believes to be the most important issues facing his administration. It identifies what the President finds to be the most appropriate alternatives for solving the problems. It identifies what the President deems to be the highest priorities. Thus, every agenda item (1) addresses an issue; (2) involves a specific alternative; and (3) has some priority in the domestic queue (Light, 1999, pp. 2-3 - grifo no original).
A agenda presidencial, portanto, contém algumas questões consideradas mais importantes e as alternativas para enfrentá-las, prioridades entre problemas e soluções. E como identificar agenda presidencial? O autor também oferece um mecanismo promissor para a investigação da agenda: a investigação do “Estado da União”:
Most of the staff members interviewed suggested that we turn to the State of the Union address for the agenda items. Through the message often includes a `laundry list’ of presidential requests, it is viewed by the Washington community as the vehicle for the President’s agenda. According to the staffs, the President’s top priorities will always appear in the message at some point during the term (Light, 1999, p. 6).
A investigação da agenda simbólica, em termos metodológicos, varia em função dos instrumentos empregados para os discursos formais nos mais diferentes contextos polítco-administrativos. John Kingdon empregou, entre outras fontes de dados, os discursos presidenciais, porém de acordo com o autor as entrevistas e os estudos de caso foram mais úteis para os estudos de caso que ele conduziu (Kingdon, 2003, p. 231). Já Baumgartner & Jones (1993) tomam como indicador de atenção presidencial os discursos sobre “o Estado da Nação” (Presidential State of the Union Speeches), discursos anuais proferidos pelo Presidente ao Congresso dos Estados Unidos, também utilizado por Light (1999), como vimos anteriormente.
No contexto do Comparative Agendas Project4, e considerando as distintas características dos sistemas políticos, os pesquisadores de vêm utilizando o discurso da Rainha nas pesquisas que observam a agenda no Reino Unido (The Speech from the Throne ou Queen’s Speech); os discursos de abertura e de encerramento das atividades no parlamento na Dinamarca; discursos anuais do Executivo na Holanda (Dutch Queen’s Speech), o discurso de posse e discurso sobre “o Estado da Nação” na Espanha (Discurso de Investidura e Discurso de política general en torno al Estado de la Nación); discursos presidenciais na França; discurso sobre “o Estado da Nação” na Bélgica; discursos que acompanham o orçamento anual na Turquia (Annual Budget Speech of the Prime Minister); discursos do Executivo na Alemanha (Regierungserklaerungen); discursos de posse de Primeiro-Ministro na Itália (Investiture Speeches).
Para a investigação da agenda simbólica no Brasil, considerando a agenda presidencial, as pesquisas têm privilegiado o documento Mensagem ao Congresso Nacional, ainda que outros documentos, como discursos de posse, também sejam considerados (Capella et al., 2015; Brasil & Capella, 2019). As Mensagens5 consistem em documentos escritos que têm como finalidade apresentar as propostas do Poder Executivo para o ano que se inicia e prestar contas sobre as ações desenvolvidas no ano anterior. Trata-se de uma exigência constitucional que determina que o presidente da República encaminhe, na abertura da sessão legislativa do Congresso Nacional, documento contendo mensagem e plano de governo “expondo a situação do País e solicitando as providências que julgar necessárias” (CF88, artigo 84, XI). Em sua íntegra, o documento é composto por duas partes: uma apresentação e um conjunto de capítulos nos quais são relatadas ações relacionadas aos grandes temas de interesse nacional. A apresentação é a parte introdutória, geralmente lida por ocasião da abertura dos trabalhos do Congresso Nacional, e contém menções a políticas públicas específicas e reflexões sobre o País, sintetizando o conjunto do documento e destacando os desafios e prioridades para o ano.
A Mensagem ao Congresso tem sido entendida como documento que corresponde ao discurso presidencial anual (State of the Union) praticado em diversos países. Em estudo que buscou avaliar o compromisso de presidentes com políticas (policy compromise) ao longo do tempo, Arnold et al. (2017) selecionaram as Mensagens ao Congresso para compreender o posicionamento de presidentes brasileiros. A pesquisa analisou 13 países latino-americanos, incluindo 68 presidentes entre 1980 e 2014, procurando identificar suas posições estratégicas manifestadas nos discursos anuais6. Como uma de suas principais conclusões, os autores destacam a pertinência da análise desses documentos para a pesquisa na Ciência Política:
Using annual state of the union addresses, we generate the first cross-national time-series data on revealed positions, and relative movement, of 68 Latin American presidents between 1980 and 2014.This not only adds to the literature that attempts to measure the policy positions of political actors across Latin America (), but more importantly it demonstrates the utility of speech data as a means of deriving ex-post positions of Latin American political actors (Arnold et al., 2017, p. 402).
As Mensagens consistem em elementos para análise da agenda simbólica do Presidente, uma vez que se configuram como documentos formais, apresentados de forma altamente institucionalizada, decorrente de imposição constitucional. Diferentemente do contexto dos Estados Unidos, em que a apresentação é amplamente noticiada e concentra alta atenção da mídia e do público, as Mensagens recebem menor destaque no Brasil, sendo mais voltadas ao Legislativo. São discursos, portanto, voltados à busca de apoio do Legislativo para políticas consideradas importantes pelo Executivo (Arnold et al., 2017). Do ponto de vista metodológico, as Mensagens permitem capturar as questões consideradas prioritárias pelo Presidente, revelando sua agenda e, sendo eventos realizados anualmente, possibilitam mapear as alterações nas prioridades ao longo do tempo. Observando o conjunto de elementos que poderiam indicar níveis de atenção presidencial no Brasil, as Mensagens permitem a) observar a atenção presidencial em relação às diferentes políticas públicas ao longo do tempo; b) mapear alterações nas prioridades, permitindo comparações entre diferentes governos.
IV. Mapeando a Agenda simbólica: da análise de conteúdo aos indicadores de frequência, capacidade de diversidade
Vimos que a agenda simbólica pode ser compreendida a partir da análise de discursos políticos oficiais do Presidente, em ocasiões formais, como no caso das Mensagens ao Congresso Nacional, no Brasil. Para mapear e analisar a agenda simbólica, algumas técnicas e ferramentas analíticas podem ser utilizadas para garantir confiabilidade, replicabilidade e comparabilidade, questões essenciais para análises qualitativas e quantitativas. A questão que se coloca agora, é: como analisar as Mensagens ao Congresso Nacional? Como mapear as prioridades estabelecidas nesses documentos tão importantes para a análise da agenda simbólica?
Uma alternativa encontrada pela literatura especializada se apoia nas ferramentas de análise de conteúdo e de codificação de informações como forma de sistematizar e organizar os dados que importam e que serão alvo de análise. Documentos escritos, falas, discursos e pronunciamentos podem apresentar variações entre si, quer seja no tamanho, no conteúdo ou mesmo na forma. Para que as análises sejam consistentes e comparáveis, ao longo do tempo, evidenciando as continuidades e mudanças nas prioridades, uma complexa estrutura metodológica foi proposta por Baumgartner e Jones, em meados dos anos 1990, para analisar a formação da agenda e apontar as mudanças nas prioridades em políticas públicas nos Estados Unidos (Baumgartner & Jones, 1993). O projeto conhecido como U.S Policy Agendas Project, tinha como principal objetivo mapear e analisar sobre quais políticas públicas recaia a atenção dos tomadores de decisão ao longo de centenas de anos. Os autores elaboraram, então, uma lista de categorias que indicava distintos setores de políticas públicas (ver Tabela 1), e passaram a aplicar a análise de conteúdo em diversos tipos de documentos oficiais do governo estadunidense e agendas correlatas. Entre os dados analisados estão as propostas legislativas, audiências no Congresso, decretos executivos, os discursos de posse dos presidentes eleitos, além da atenção da mídia local e dados da opinião pública. Todos os dados selecionados passavam por um mesmo processo de análise que extrai e classifica o conteúdo desses documentos apontado a frequência no aparecimento de diversos “tipos de políticas públicas”.
O sucesso dos estudos de Baumgartner e Jones despertou a atenção da comunidade internacional que via, naquela estrutura metodológica e analítica, grande potencial de aplicação para além do contexto dos Estados Unidos (Baumgartner et al., 2019). Da difusão da proposta para países europeus, inicialmente, para a produção de análises de políticas públicas em perspectiva comparada entre sistemas políticos distintos, surgiu o Comparative Agendas Project (CAP). Apesar das diferenças entre os países-membros, os pesquisadores vinculados ao CAP dividem o mesmo referencial metodológico e seguem um complexo processo de construção de banco de dados no qual a atenção sobre políticas públicas é o foco substantivo de cada item analisado, gerando um enorme e comparável banco de dados sobre a atenção governamental sobre políticas públicas (Bevan & Jennings, 2014; Bevan & Palau, 2020).
O coração dessa estrutura metodológica proposta e empregada pelo CAP é um livro de códigos - o master codebook (Bevan, 2019), que define as categorias analíticas por tipos de políticas públicas. É a partir desses códigos, conforme Tabela 1, que todos os documentos são analisados e um banco de dados é construído para sistematizar as informações relevantes para a análise: a frequência no aparecimento de diferentes tipos de políticas públicas nos mais variados documentos analisados pelos pesquisadores.
O processo de construção de banco de dados é baseado nas etapas da análise de conteúdo (Bardin, 2011) e tem como principal objetivo extrair dos documentos analisados a frequência (quantidade de vezes) com a qual cada tipo de política pública (categoria) aparece no corpus documental em questão. No caso das Mensagens ao Congresso Nacional, documento que pode revelar as prioridades da agenda simbólica do Presidente da República, os textos são inicialmente integralmente baixados do repositório online da biblioteca da Presidência da República. Os documentos são obtidos em formato de texto corrido e, para que a análise de conteúdo seja feita deve-se extrair a quantidade de vezes em que cada categoria aparece. Assim, o texto é fragmentado em pequenas sentenças, de acordo com o aparecimento de cada nova categoria (Capella et al., 2015; Brasil & Capella, 2019).
Em termos práticos, o processo é feito a partir da leitura geral do documento completo, seguido de uma divisão de sentenças. Toda vez que o texto mudar de assunto, alterando o tema da política pública, uma nova sentença é criada. Assim, um único documento textual se transforma em um banco de dados com diversas sentenças, cada uma versando sobre uma política setorial diferente de acordo com as categorias acima. Na sequência, cada uma das sentenças criadas recebe um único código em referência ao tipo de política pública a que ela se refere. Ou seja, se uma determinada frase do documento Mensagem ao Congresso Nacional estiver falando sobre as Universidades Federais no Brasil, essa sentença recebe o código 6, pois trata do tema educação. Essa fragmentação textual seguida de codificação é feita em todo o texto, nos 29 documentos anuais selecionados, de forma padronizada e com critérios de validação. O processo é feito por dois pesquisadores diferentes usando a técnica duplo-cego, o que garante critérios mínimos de confiança para as atribuições feitas. O processo é aplicado a diversos documentos e organizado por data (ano), governo, presidente e partido político. O resultado dessa etapa se dá com a formação de um banco de dados organizado que indica a frequência, ou seja, a quantidade numérica em que cada categoria aparece e pelo seu respectivo percentual em cada documento analisado (ver Tabela 2).
Mas, por que medir a frequência importa? Por que a quantidades de vezes que um tema (ou tipo de política) aparece nas Mensagens ao Congresso Nacional é relevante para a compreensão e análise da agenda simbólica? A resposta para essa questão reside na ideia principal de que a frequência com que as questões ocorrem em documentos políticos oficiais pode ser usada como uma medida de atenção política. Essa afirmação encontra um amplo e importante respaldo na literatura de formação de agenda (agenda-setting), sobretudo naquela que entende que os recursos são escassos e, dentre esses recursos, destaca-se a atenção dos tomadores de decisão, essencial para o processo de políticas públicas. Jones e Baumgartner, em The Politics of Attention (2005), exploram a importância da atenção no reconhecimento de problemas públicos pelos governos. Ao investigarem o processo de produção de políticas públicas nos Estados Unidos, os autores destacam a importância de duas questões: o processamento de informação e a quantidade de atenção dada à um problema. Ao analisar diversas políticas ao longo do tempo, eles apontam que variações na atenção, para menos e para mais, dos policymakers em relação a uma política e a forma como a informação é processada são elementos fundamentais para explicar como algumas questões são priorizadas em detrimento de tantas outras que ficam apenas na agenda simbólica, sem força e sem prioridade. A desproporcionalidade - de informação e de atenção - está na base tanto da explicação sobre as mudanças incrementais quanto nas pontuações que ocorrem nas políticas públicas (Jones & Baumgartner, 2005; Baumgartner & Jones, 2015).
Assim, a aplicação de métodos de categorização de conteúdo com o objetivo de medir a frequência da ocorrência de distintas políticas públicas em documentos oficiais permite aos pesquisadores a elaboração de analises e comparações rigorosas ao longo do tempo, dentro de um mesmo governo, entre diferentes paises e sistemas politicos, evidenciando variações na atencão sobre problemas setoriais e, consequentemente, nas prioridades e no processo de produção das políticas públicas. Além disso, estudos desenvolvidos por pesquisadores do Comparative Agendas Project têm apontado para a criação e análise de outros indicadores que resultam do mapeamento da frequência da atenção. A capacidade e a diversidade são dois exemplos desses indicadores.
Mensurar a capacidade de agenda significa, em termos metodológicos, medir a quantidade total de assuntos (categorias) que são tratados em um mesmo documento. Esse indicador é relevante para os estudos de agenda uma vez que ele traz a informação sobre a quantidade de temas e problemas que um governo reconhece e está disposto a lidar. É essencial retomar ideias provenientes da racionalidade limitada e da teoria das organizações para justificar que, em qualquer instituição, inclusive nos governos, a capacidade de identificação, reconhecimento e atuação sobre problemas não é ilimitada. É justamente a necessidade de priorizar alguns problemas em detrimento de outros que move os estudos sobre definição de agenda. Quando tratamos especificamente da agenda simbólica, a capacidade de agenda, mensurada por meio do total de informações captadas num documento específico, pode ser entendida como a quantidade de assuntos e problemas sobre os quais o governo reconhece a importância e a necessidade de atuação. Não significa, no entanto, que o governo necessariamente atuará formulando e implementando políticas públicas concretas. Por outro lado, a diversidade de agenda é um indicador estatístico que demonstra quão concentrada ou ampla são as prioridades extraídas de um documento. A diversidade não se refere à quantidade absoluta de temas que a agenda consegue abarcar, como o indicador de capacidade, e sim a distribuição e o distanciamento entre as categorias possíveis. Uma das formas de mensurar a diversidade da agenda é a aplicação do método de entropia H-Shannon (Shannon & Weaver, 1949; Boydstun et al., 2014; Chaques-Bonafont et al., 2015; Brasil, 2017). O indicador resulta em um índice probabilístico que demonstra quão diversos foram os assuntos tratados nos documentos. Por meio de sua aplicação, é possível determinar se nas Mensagens ao Congresso a atenção governamental em cada documento se concentrou em poucas questões ou se diluiu entre as diversas categorias analíticas propostas.
O estudo de Charqués-Bonafont et al. (2015) sobre a agenda simbólica da Espanha mostrou que tanto sua capacidade (a quantidade de questões presentes na agenda) quanto sua diversidade (refere-se a amplitude de questões tratadas) são maiores do que as encontradas na agenda decisória (composta por projetos e leis aprovadas). Uma possível explicação para essa relação entre as agendas simbólica e decisória está na diferença significativa nas fricções institucionais que recaem sobre cada um dos momentos do processo de políticas públicas. Em documentos que refletem a agenda simbólica, como as Mensagens ao Congresso Nacional, o tomador de decisão tem mais espaço e maior capacidade de lidar com os temas que ele mesmo define como prioritários. Esses espaços de manifestação e tipos de documentos não sofrem grandes constrangimentos institucionais, nem requerem convencimento prévio, apoio ou custos operacionais como ocorre na agenda decisória. Isso não implica em dizer que a agenda simbólica é ilimitada. No entanto, indica que no campo simbólico há maior abertura para que o Presidente (ou outro ator) amplie a capacidade de abordar temas, tornando a agenda mais ampla e mais diversa. É, portanto, baseado na literatura sobre agenda simbólica e no arcabouço metodológico do Comparative Agendas Project (CAP) que a próxima seção apresenta um estudo de caso cujo foco reside na análise das prioridades em políticas públicas extraídas das Mensagens ao Congresso Nacional de 1991 a 2020.
V. Mensagens ao Congresso Nacional no Brasil democrático: aplicação de métodos e teoria
Este estudo de caso apresenta o mapeamento da atenção dos presidentes sobre diferentes tipos de políticas públicas. O objeto da análise são as Mensagens ao Congresso Nacional encaminhadas anualmente pelo Presidente da República. Os documentos oficiais foram obtidos do site oficial da Presidência, conforme descrito anteriormente, e metodologicamente tratados de acordo com as normas previstas pelo (CAP). Os textos completamente foram fragmentados em sentenças conforme uma nova variável era retratada no documento analisado (ver Tabela 1). Os 29 documentos analisados foram codificados por dois pesquisadores diferentes, o que resultou em um banco de dados com 4.511 sentenças que mencionam, individualmente, uma nova política pública na estruturação da Mensagem. Os dados são organizados por ano (29), por mandato (8) e por presidente (10), considerando que entre 1991 e 2020 dois presidentes sofreram processo de impeachment e seus vices assumiram o mandato (Itamar Franco e Michel Temer)
Uma vez mapeada a quantidade de vezes que cada categoria é mencionada nos 29 documentos analisados, os dados são transformados em percentuais em que a soma de todas as categorias reflete 100% da atenção sobre cada documento anual. Essa é uma etapa importante para que se possa identificar e comparar o percentual de atenção dado a cada tipo de política pública prevista nas categorias analíticas, o que permitirá apontar aumento ou redução da atenção proporcional ao longo do tempo. Além da frequência proporcional, a Tabela 2 também aponta outros dois importantes indicadores: o de capacidade - total bruto de informações extraídas em cada documento anual; e de diversidade da agenda - calculada a partir do indicador de Entropia H de Shannon:
no qual (xi) refere-se a dimensão (código), p(xi) representa a proporção de atenção recebida por (xi), ln(p(xi)) significa o logaritmo natural da proporção de atenção dada, por fim, n é o total de códigos sendo analisados. Os indicadores são apresentados por ano (por documento), por mandato e por presidente, conforme demonstrado na Tabela 2.
Diversas são as possibilidades de análise do mapeamento da agenda simbólica extraída das Mensagens ao Congresso Nacional emitidas ao longo dos últimos 29 anos de democracia brasileira. Essa é uma das questões levantadas por Baumgartner et al. (2020) quando avaliam a estruturação do CAP. Segundo os autores, o ponto de conexão dessa rede internacional de análises da atividade governamental se dá em torno de uma estrutura metodológica e da formação de conjuntos de bancos de dados, não pela adoção de um único referencial teórico. Ao reunir grandes quantidades de dados durante longos períodos e em diferentes contextos, os pesquisadores poderão observar de forma transversal a composição e distribuição das prioridades em cada ano, governo, ou partido, agrupando e desmembrando os dados de acordo com cada linha teórica e necessidade de pesquisa. Também é possível analisar as informações de forma longitudinal, selecionando políticas específicas previstas nas categorias de análise, como saúde ou imigração, regulamentações comerciais e financeiros, política energética ou estratégias de defesa, comparando e confrontando as informações e os níveis de atenção de um governo, entre governos, ou entre todos os seus temas de interesse ao longo do tempo.
Dentre essas possibilidades, optamos por selecionar seis tópicos considerados os mais relevantes no cenário democrático brasileiro porque foram as seis políticas setoriais mais frequentemente citadas nas Mensagens ao Congresso Nacional. Com variações ao longo dos anos e dos mandados, mas sempre figurando no top 6, estão as políticas macroeconômicas, políticas vinculadas ao Governo e Administração Públicas, Políticas Sociais, Relações Internacionais e Comercio exterior e Políticas de Trabalho, Emprego e Previdência. A partir dos dados mapeados, é possível afirmar que, das vinte e uma políticas setoriais citadas, seis concentraram mais de 60% de toda a atenção das Mensagens ao Congresso Nacional encaminhadas pelo Presidente ao Congresso.
O Gráfico 1 demonstra a dinâmica das prioridades em políticas públicas dos seis tópicos que apareceram com maior frequência nas Mensagens ao Congresso. Os valores percentuais representam a fração em que cada tópico apareceu nos documentos anuais analisados. Macroeconomia e Governo e Administração Pública são os tópicos prioritários no período democrático selecionado, independente do partido, governo ou presidente. Com exceção aos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, do Partidos dos Trabalhadores (PT), em que as Políticas Sociais ocuparam a segunda posição em frequência em quase todos os anos de seu mandato, os demais presidentes e governos mantiveram, pela média, prioridades em tópicos relacionados às questões macroeconômicas e de administração interna. Alguns pontos chamam a atenção quando desagregamos a análise por ano, e não por média de governo ou de presidente. São os casos da atenção dada aos Transportes pela então Presidente Dilma Rousseff em 2013, período de obras do PAC e de preparação para eventos como a Copa do Mundo e Jogos Olímpicos, ou a priorização da Educação entre 2006 e 2008, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, com as mudanças relativas ao PROUNI, ENEM e a expansão do ensino superior público brasileiro.
Outra análise possível leva em consideração a capacidade de agendamento dos governos ao longo do tempo. O Gráfico 2 mostra um cenário curioso em que não há uma tendência clara e constante. Os números totais extraídos dos documentos analisados apresentam grande discrepância entre si, não nos permitindo tirar conclusões mais gerais sobre o período. É possível perceber, no entanto, que momentos de ruptura podem ocasionar a retração da capacidade da agenda quando comparado a momentos de estabilidade e de continuidade no campo ideológico-partidário. No período que vai de Fernando Collor de Mello a Fernando Henrique Cardoso, mesmo com o processo de impeachment e a posse de Itamar Franco no final 1992, percebemos um movimento discreto no crescimento da capacidade de inclusão de temas nas pioridades retratadas nas Mensagens ao Congresso. No entanto, quer na passagem do mandato de FHC para Lula, em 2003, quer no processo de ruptura ocorrido com o Impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o que se nota é uma grande retração na capacidade de agendamento.
Tal retração pode ser mais bem percebida quando desagregamos os dados por presidente, separando as Mensagens ao Congresso Nacional elaboradas por Dilma Rousseff, entre 2011 e 2016, daquelas elaboradas por Michel Temer, em 2017 e 2018. O movimento de crescimento da capacidade simbólica percebida nos quatro mandatos consecutivos do PT é profundamente impactado com a diminuta capacidade de agenda de seu sucessor, Michel Temer. Fenômeno parecido ocorreu anos antes, na passagem que encerrava dois governos do PSDB, de Fernando Henrique Cardoso, e iniciava os governos petistas, de Lula e Dilma.
A diversidade de agenda, diferente do que vimos na capacidade de agenda, apresenta um padrão mais estável e com menos pontuação ou desvios no sentido. Apesar de não haver uma relação direta entre os dois indicadores, fatores que afetam a capacidade podem afetar também a diversidade. Isso acontece porque, ao reduzir a capacidade de agenda, ou seja, o número total de assuntos que são tratados num documento, há uma possibilidade de que a redução também traga concentração temática. Ou seja, que não apenas o conteúdo seja menor, mas que a diversidade de temas abordados seja também reduzida. É o que notamos em 2003, com a eleição de Lula, e em 2016, com a posse de Michel Temer. No Gráfico 2 pontuamos a drástica redução da capacidade de agendamento. Já no Gráfico 3, a redução da capacidade é acompanhada pela concentração de temas abordados, fazendo com que a agenda, além de pequena, seja focalizada em poucos tópicos. Em ambos os casos, quer em 2003 quer em 2016, a concentração se dá nos tópicos de Macroeconomia, Governo e Administração Pública. Em 2003, a primeira Mensagem ao Congresso Nacional apresentada por Lula destaca a necessidade de estabelecer boas relações entre os poderes Executivo e Legislativo. A ruptura partidária PSDB-PT que se deu em 2003 demandou um movimento de estabilidade e de aproximação para acalmar os ânimos de um até então incerto governo de Lula. Em 2016, com a posse de Michel Temer, questões centrais ao impeachment de Dilma, como a Macroeconomia, a Estrutura do Estado e da Administração Pública concentraram as prioridades de um já reduzido documento encaminhado pelo então presidente ao Congresso Nacional.
Com menor impacto, notamos novamente um movimento de crescimento da diversidade de agenda em situações de estabilidade política e democrática. Com um cenário composto pelos mesmos grupos e partidos, que se mantém no poder por meio de reeleições, as inflexões e grandes mudanças são menores, ainda que ainda existam em alguns casos. Essas pequenas oscilações podem ser notadas em situações de ruptura ou de mudanças de governantes e de partidos, como também em momentos de instabilidade institucional que colocam em xeque a própria democracia e o funcionamento de suas instituições.
VI. Considerações Finais
Este artigo buscou apresentar e destacar o conceito de agenda simbólica inserido no debate sobre formação da agenda governamental e no processo de políticas públicas. Resgatando da literatura internacional as principais contribuições e inovações sobre o tema, diversos são os estudos que têm demonstrado a importância da agenda simbólica e a relação dessa com o processo de atenção governamental e definição de prioridades (Charqués-Bonafont et al., 2015; Charqués et al., 2008; Baumgartner et al., 2011; Breunig et al., 2019).
É a partir desse campo teórico e do ferramental metodológico e analítico proposto pelo Comparative Agendas Project (CAP) que elaboramos um estudo de caso da agenda simbólica brasileira contida nas Mensagens ao Congresso Nacional, a qual foi tomada como indicador de atenção governamental. As análises foram realizadas de forma a evidenciar os temas com maior frequência de aparecimento ao longo de todo o período analisado, entre os quais destacamos Macroeconomia, Governo e Administração Pública, Políticas Sociais, Relações Internacionais, Trabalho e Emprego e Comércio Exterior. Ainda sobre a análise da frequência, pontuamos as diversas possibilidades de estudos que agregam os dados por mandato ou por presidente, destacando mudanças maiores ou mais discretas entre cada mandato ou cada presidente.
Outras análises mostraram a diversidade e a capacidade da agenda simbólica no período democrático brasileiro por governo e por presidente. A partir dos resultados, destacamos uma clara vinculação entre períodos de estabilidade e manutenção democrática, partidária e ideológica e o crescimento da capacidade e da diversidade da agenda. Notamos também uma forte queda nesses indicadores em momentos de maior fricção e incertezas, em que os discursos são menores e mais concentrados em pontos definidos como estratégicos, como nos casos da eleição de Lula, em 2003, e na posse de Michel Temer, em 2016.
A escolha analítica deste trabalho destaca as tendências e padrões mais amplos sobre a agenda simbólica do período de 29 anos de democracia brasileira. O esforço aqui empregado aproxima os estudos nacionais sobre agenda daqueles recentemente produzidos no cenário internacional. Os padrões que encontramos poderão ser comparados com os resultados de outras pesquisas sobre agenda simbólica em países como Espanha, Estados Unidos, Colômbia e Equador, por exemplo. No campo doméstico, os dados aqui mapeados permitem uma série de novos estudos, com lentes e referenciais mais focalizados, com períodos menores, governos e presidentes específicos, ou mesmo categor ias analíticas (políticas setoriais) sobre as quais os pesquisadores podem desenvolver análises longitudinais e transversais. Também são possíveis agendas futuras de inclusão de elementos de análise de conjuntura que sejam capazes de explicar ampliações e retrações na capacidade, na diversidade ou na frequência com a qual determinados temas ascendem ou decrescem na lista de prioridades governamentais ao longo do tempo e dos governos.
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Agradecemos aos comentários e sugestões dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política e aos financiamentos da FAPESP (processos 2018/16289-3; 2020/07485-3; 2021/0276-0) e do CNPQ - Universal (processo: 424398/2018-4).
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O conceito de “Legislativo reativo” é oposto a ideia de “Legislativo carimbador”, que supões quase uma fusão entre os Poderes executivo e Legislativo. Nesse caso, o papel do Legislativo é apenas marginal, mais reservado aos aspectos técnicos, um Legislativo que “funciona inteiramente a reboque do governo” (Santos & Almeida, 2011, p. 20).
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Trata-se de um dispositivo que permite ao Parlamento questionar o governo sobre assuntos de sua competência.
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O Comparative Agendas Project (CAP) é uma rede internacional de pesquisa que reúne estudiosos de diferentes países e que permite a análise comparativa de mudanças na agenda em diferentes sistemas políticos.
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As Mensagens são herança do Brasil Império, com discursos nas sessões de abertura e encerramento do ano legislativo.
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“Across Latin American countries, these types of speeches are named differently. Given that they serve an identical purpose across all countries, for the sake of simplicity, we will use the term `state of the union address’ throughout this paper.” (Arnold et al., 2017, p. 384).
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Outras fontes
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
19 Jan 2021 -
Aceito
21 Out 2021 -
Revisado
20 Fev 2022