Resumos
O artigo trata de alguns dos principais aspectos que nortearam a inserção política e social da psiquiatria na sociedade brasileira de fins do século XIX e início do século XX, através da análise de certas temáticas - civilização, raça, trabalho, fanatismo, contestação política, sexualidade - privilegiadas pelos especialistas na construção da noção de ‘doença mental’, conferindo-lhe limites extremamente amplos e difusos. A partir da análise de textos produzidos por psiquiatras e legistas - tais como teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, relatórios do Serviço de Assistência a Alienados, obras e artigos de especialistas -, busca-se estabelecer e discutir a relação entre a definição psiquiátrica das fronteiras da ‘anormalidade’ e as tentativas de implementação de novas estratégias de controle social.
psiquiatria; doença mental; controle social
The article examines some of the main aspects governing psychiatry’s role in the Brazilian political and social context at the close of the nineteenth century and beginning of the twentieth. It analyzes certain themes -civilization, race, labor, fanaticisim, political dissent, sexuality - that were emphasized by specialists in their construction of a very broad notion of ‘mental illness’. Through the analysis of texts produced by psychiatrists and legal experts (including dissertations written at the Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, reports from the Serviço de Assistência a Alienados, and works and articles by specialists), the relation between the psychiatric definition of the frontiers of ‘abnormality’ and efforts to implement new strategies of social control is discussed.
psychiatry; mental illness; social contro
As fronteiras da anormalidade: psiquiatria e controle social
The frontiers of abnormality: psychiatry and social control
Magali Gouveia Engel
Professora adjunta do Departamento de História
da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Campus do Gragoatá, Bloco O, 5o andar
24210-350 Niterói RJ Brasil
Fax: (021) 620-8360
ENGEL, M. G.: As fronteiras da anormalidade: psiquiatria e controle social.História, Ciências, Saúde Manguinhos, V(3): 547-63, nov. 1998-fev. 1999.
O artigo trata de alguns dos principais aspectos que nortearam a inserção política e social da psiquiatria na sociedade brasileira de fins do século XIX e início do século XX, através da análise de certas temáticas civilização, raça, trabalho, fanatismo, contestação política, sexualidade privilegiadas pelos especialistas na construção da noção de doença mental, conferindo-lhe limites extremamente amplos e difusos. A partir da análise de textos produzidos por psiquiatras e legistas tais como teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, relatórios do Serviço de Assistência a Alienados, obras e artigos de especialistas , busca-se estabelecer e discutir a relação entre a definição psiquiátrica das fronteiras da anormalidade e as tentativas de implementação de novas estratégias de controle social.
PALAVRAS-CHAVE: psiquiatria, doença mental, controle social.
ENGEL, M. G.: The frontiers of abnormality: psychiatry and social control. História, Ciências, Saúde Manguinhos, V(1): 547-63, Nov. 1998-Feb. 1999.
The article examines some of the main aspects governing psychiatrys role in the Brazilian political and social context at the close of the nineteenth century and beginning of the twentieth. It analyzes certain themes civilization, race, labor, fanaticisim, political dissent, sexuality that were emphasized by specialists in their construction of a very broad notion of mental illness. Through the analysis of texts produced by psychiatrists and legal experts (including dissertations written at the Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, reports from the Serviço de Assistência a Alienados, and works and articles by specialists), the relation between the psychiatric definition of the frontiers of abnormality and efforts to implement new strategies of social control is discussed.
KEYWORDS: psychiatry, mental illness, social contro
1 Os Archivos de Psiquiatría, Criminología y Ciencias Afines foram criados pelo psiquiatra argentino José Ingenieros em Buenos Aires no início do século XX, constituindo-se num espaço significativo de publicação dos trabalhos produzidos por alienistas brasileiros (Cunha, 1986, pp. 47-8).
Entre os temas privilegiados pelos alienistas e psiquiatras brasileiros na construção de atos, atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores desviantes, figuravam, por exemplo, a civilização, a raça, a sexualidade, o trabalho, o alcoolismo, a delinqüência/criminalidade, o fanatismo religioso e a contestação política. Estes temas são fundamentais para conferir limites extremamente abrangentes à noção de anormalidade, conforme pode-se depreender, por exemplo, da definição da categoria dos anormais que incluía, "...el homicida, el génio, el mentiroso, el pederasta, el filántropo, el avaro, el alienado, el ladrón, el apóstol, el sectário, el enamorado, el vagabundo, la prostituta" ; expressa no programa dos Archivos de Psiquiatría, Criminología y Ciencias Afines de Buenos Aires.
A percepção da loucura como subversão/inversão das normas e regras socialmente estabelecidas encontra-se presente nas primeiras classificações nosográficas da medicina mental. Para Fodéré (apud Castel, 1978, p. 111), eminente alienista francês da década de 1820, o alienado seria aquele que "não tem habitualmente consideraçãopor nenhuma regra, nenhuma lei, nenhum costume, ou melhor, desconhece-os todos; cujos discursos, postura (sic) e ações estão sempre em oposição, não somente com os hábitos do país em que habita, mas ainda com o que existe de humano e de racional".
Desse modo, concebida de maneira puramente negativa, a loucura é vista como o avesso da ordem. Sinônimo de agitação, exagero, arrebatamento, imoderação, desregramento, impulsividade, imprevisibilidade e periculosidade e circunscrita aos limites de "uma segunda natureza", ela é definida como "um excesso que é falta" (idem, ibidem).
Quase um século mais tarde, o dr. Franco da Rocha diretor do Hospício do Juquery (SP), define alienação mental como a desarmonia, transitória ou permanente, nas relações do indivíduo com o seu meio social. Assim, não havendo incompatibilidade entre as idéias e ações do indivíduo e as compartilhadas pelo grupo ao qual pertence, não poderia existir loucura. O meio no qual o indivíduo se desenvolve torna-se, portanto, um aspecto fundamental para a avaliação da presença ou ausência da doença: "...se um homem de espírito cultivado atribuir qualquer insucesso de sua vida à feitiçaria e procurar conjurá-la por meio de rezas, chamará sobre si suspeitas de loucura; se o fato se der com indivíduo rústico, ignorante, essa suspeita será fútil, porque no raciocínio de tal indivíduo essas idéias nada têm de extraordinário".
Não se trata, contudo, de uma sensibilidade em relação à diferença, pois, identificadas com o fetichismo estágio mais atrasado da evolução mental da humanidade, segundo Augusto Comte , as idéias e crenças compartilhadas por indivíduos pertencentes a raças e classes rústicas e ignorantes seriam concebidas como inferiores, atrasadas etc. Além disso, referindo-se à existência de uma relação entre o fetichismo e o teologismo e as "regressões" reveladoras da "fraqueza cerebral", o psiquiatra acabaria por estabelecer uma proximidade entre os estágios inferiores da evolução mental da humanidade e algumas formas da doença mental. Franco da Rocha (op. cit.) assume, pois, uma postura ambígua: se o meio sócio-cultural é situado explicitamente como um dado de relativização nas diagnoses da alienação mental, indiretamente abre-se a possibilidade de considerá-lo como um elemento propício ao surgimento e à proliferação da loucura.
Esta última concepção era, aliás, bastante corrente entre os primeiros alienistas, que costumavam arrolar, entre as causas da alienação mental, os climas, as estações, a educação, os hábitos e costumes, a miséria etc. Mesmo depois que os fatores hereditários passaram a ser, predominantemente, apontados como uma das causas fundamentais das doenças mentais, sendo mesmo considerados, por muitos alienistas, como a mais importante, os aspectos referentes ao meio social continuariam a ocupar um lugar de certo destaque naetiologia destas doenças. De um modo geral, com a disseminação e consolidação dos enfoques organicistas a partir de meados do século XIX, as degenerescências e os desvios passaram a ser vistos não apenas como produto da hereditariedade, mas também como resultado da desordem social, mantendo-se, assim, muitas das idéias características da primeira fase da medicina mental que estabeleciam:
uma profunda homologia entre as manifestações da loucura (seus sintomas) e esse terreno abalado pelos acontecimentos políticos e pelos conflitos sociais. Sobre essa base geral se enxertam inúmeras análises sobre o papel da má educação, do relaxamento dos costumes, da má conduta das mulheres, da miséria etc., na gênese dos distúrbios psíquicos (Castel, 1978, p. 112).
Próximo a uma tradição expressa nos trabalhos de Esquirol, o próprio Morel reafirmaria o vínculo entre os efeitos do progresso/urbanização/industrialização e a disseminação crescente das degenerescências e, portanto, das moléstias mentais nos grandes centros urbanos europeus. Até mesmo Lombroso, abandonando o radicalismo das suas posições iniciais, acabaria por revelar-se sensível às críticas da escola sociológica francesa, dedicando a primeira parte de sua última obra (O crime, causas e remédios, 1906) ao estudo da etiologia social da delinqüência, e procurando estabelecer uma relação entre as condições sociais e ambientais e a criminalidade (Darmon, 1991).
Se entre os psiquiatras brasileiros de fins do século XIX e início do século XX havia alguns que, como o dr. Álvaro Fernandes (1898, pp. 299-300), afirmavam que a loucura não poderia ser vista como fruto de "um acidente social", mas sim de "desequilíbrios da organização individual", existiam também aqueles que conferiam ao meio social o papel prioritário na etiologia das degenerescências. Segundo o dr. Jeferson Sensburg de Lemos (1902, p. 29), por exemplo, para se chegar ao conhecimento dos "verdadeiros fatores da degeneração humana", dever-se-ia partir da sociedade para chegar ao indivíduo e não o inverso.
Entretanto, a atitude mais comum parece ter sido a de priorizar os elementos hereditários e/ou os aspectos individuais e orgânicos, sem deixar de conferir um papel de certo relevo aos fatores sociais. De um modo geral, a natureza da doença mental permanecia circunscrita aos limites orgânicos do corpo. Um bom exemplo neste sentido são as considerações feitas pelo dr. Plínio Olinto, chefe do serviço de profilaxia das doenças mentais e nervosas da Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro (RJ):
...os excitantes do meio atuam até sobre a nossa vontade que é influenciada pelas nossas tendências, essas por sua vez derivam dos nossos apetites e pendores oriundos do equilíbrio entre os órgãos da vida vegetativa; donde se conclui que até as inclinações sociais, filhas das tendências individuais e familiares, têm sua origem no funcionamento da vida orgânica (Relatório do diretor da Assistência a Alienados enviado ao ministro da Justiça em 31.3.1922, p. 115).
2 Ver também as considerações próximas a estas feitas pelo acadêmico Nabuco de Araújo (1883, p. 17). Para uma avaliação da associação entre loucura e civilização, ver Machado et al. (1978, pp. 413-22).
3 Sobre as abordagens formuladas e difundidas por intelectuais e cientistas brasileiros de fins do século XIX e início do século XX em torno da questão racial, ver, por exemplo, o estudo de Schwarcz (1993) e a coletânea de artigos organizada por Maio e Santos (1996).
O vínculo entre raça e doença mental indica outra pista importante para se avaliar as dimensões políticas e sociais assumidas pelo saber e pela prática alienista na sociedade brasileira das últimas décadas do século passado. Sempre ciosos de resguardar a vastidão e a imprecisão dos limites definidores da doença mental, os psiquiatras partiam do princípio de que a loucura não escolhia raça, o que não os impediu de construir, sub-repticiamente, relações bastante próximasentre a doença mental e as raças consideradas inferiores. Para tanto lançaram mão, por exemplo, da idéia de que os negros e sobretudo os mestiços predispunham-se à loucura por serem povos degenerados por definição. Entretanto, mesmo quando não eram classificados a princípio como degenerados, os indivíduos pertencentes a tais raças eram vistos como intelectualmente inferiores e, por isto, menos capazes de enfrentar e/ou adaptar-se às contingências do meio social, sendo assim mais propensos à degeneração.
E, assim, comungando com alguns dos princípios do evolucionismo de Herbert Spencer, conclui:
É fato comprovado: a raça negra é inferior. Na evolução natural é retardatária. Tenderá a progredir, pois a isso será compelida pelo amor à vida. Os fortes dominam os fracos e nos tempos atuais prepondera o cérebro. ... No entanto, será sempre uma utopia o nivelamento das raças. Cada qual tem uma grilheta que lhe algema os pés: é a tara hereditária. E esta é nos negros pesadíssima.
4 Ver também as conclusões de Sampaio (1922). Mesmo admitindo que existia uma grande margem de erro nas avaliações em torno da "influência da raça como fator etiológico da loucura", o dr. (1904, pp. 51-2) Franco da Rocha não deixaria de afirmar que na raça negra predominavam "as formas degenerativas epilepsia, idiotia, imbecilidade etc.".
5 Sobre a construção de uma representação da pobreza através da associação classes perigosas/raças inferiores no discurso difundido por políticos e burocratas brasileiros de fins do século XIX, ver as reflexões de Chalhoub (1996, 1988).
Os mesmos referenciais teóricos levariam Henrique Roxo a acreditar que a gênese das doenças mentais deve ser buscada na associação entre agentes biológicos e fatores sociais. Assim, as principais causas da alienação mental entre as populações negras existentes no Brasil seriam, de um lado, o baixo nível intelectual característico da raça negra e, de outro, os efeitos perniciosos da abolição repentina da escravidão: "Entre nós foi ... a transição bruscada escravatura para a liberdade uma das causas de se mostrarem os negros mais acessíveis aos agentes degenerativos que os brancos. Não havia a capacidade orgânica suficiente. Witmer verificou que a alienação mental era excepcional nos negros da América antes da emancipação e que depois adquiriu grande freqüência."
Tratar-se-ia de um anacrônico manifesto, cientificamente fundamentado, em favor da escravidão negra? Mais de 15 anos depois da abolição, a associação entre a liberdade do negro e a proliferação das degenerações e das doenças mentais certamente de nada serviria como propaganda antiabolicionista. Entretanto, veiculada na eminente comunidade científica do Rio de Janeiro, tal associação poderia ser utilizada como um instrumento importante para justificar e legitimar a implantação de mecanismos mais sutis de controle social.
Mas vejamos alguns dos dados que serviram como prova científica e, portanto, irrefutável para as conclusões do dr. Henrique Roxo (idem, ibidem, p. 170) em seu estudo sobre as perturbações mentais dos negros no Brasil.
QUADRO ESTATÍSTICO DOS DOENTES INTERNADOS NO PAVILHÃO DE OBSERVAÇÃO DO HNA (1894-1903)
Ano
População total
Brancos
Pardos
Pretos
6 Carrilho, Institutos de Antropologia Penitenciária', AMJ, ano II, nos 1 e 2, p. 19, apud Fry (1985, p. 131). Sobre a questão, ver também as considerações de Cunha (1986, pp. 49 e ss.).
7 Ficha de observação de Antonio Rodrigues Pinheiro, Livro de Observações dos Pacientes Internados no MJRJ, no 3, 1922.
8 Ficha de observação de Euclydes Moreira do Nascimento, Livro de Observações dos Pacientes Internados no MJRJ, no 1, 1918. Segundo Heitor Carrilho, Euclydes teria tido várias entradas no HNA em 1913, 1915, 1918 e 1919. Não há referência às datas de entrada e de saída do paciente no Manicômio Judiciário.
9 Trata-se de uma concepção defendida por Lombroso (Darmon, 1991; Harris, 1993) bastante difundida entre os psiquiatras e legistas brasileiros das primeiras décadas do século XX. Ver, por exemplo, a tese de mestrado de Soares (1909).
A articulação, explícita ou implícita, das reflexões produzidas no âmbito da medicina mental com a política e as aflições sociais do tempo pode ser apreendida, por exemplo, na construção de uma relação entre perturbações mentais e recusa ao trabalho. Segundo o dr. Brasil (1910, p. 55), entre os degenerados portadores de "estigmas físicos particulares" figuravam os vagabundos que ofendiam "a sociedade com suas anomalias sexuais e vícios". Parte significativa dos indivíduos conduzidos ao hospício pelas mãos da polícia era constituída por aqueles que, vagando ou vivendo nas ruas da cidade sem possuir uma ocupação regular, eram enquadrados na categoria incerta de vadios. Nesse sentido, vale registrar a descrição dada por Costa (1957, p. 192) da fumerie do Afonso. Funcionando em princípios deste século no Beco dos Ferreiros, situado nas proximidades da rua da Misericórdia, "servia de refúgio a vagabundos e toda a espécie de degenerados, que os psiquiatras da Praia Vermelha só então é que começam, seriamente, a estudar".
Comumente diagnosticados como epiléticos, alcoólatras ou, simplesmente, degenerados, a presença de indivíduos processados por vadiagem no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro durante a década de 1920 era expressiva, o que pode ser observado através dos dados apresentados pelo diretor da instituição, dr. Heitor Carrilho, em alguns de seus relatórios ao diretor do Serviço de Assistência a Alienados, dr. Juliano Moreira. Assim, por exemplo, entre maio e dezembro de 1921, dos 12 exames de sanidade solicitados por magistrados do Distrito Federal ao referido estabelecimento, sete foram realizados em indivíduos acusados por contravenção de vadiagem, dos quais cinco três homens e duas mulheres foram considerados alienados com os seguintes diagnósticos: toxicomania, epilepsia, alcoolismo, debilidade mental, parafrenia (formas de delírio crônico). Dos 37 indivíduos recolhidos ao Manicômio Judiciário em 1923, 11 eram acusados de contravenção de vadiagem e receberam os seguintes diagnósticos: alcoolismo (três), debilidade mental (três), epilepsia (dois), parafrenia (um), psicose maníaco-depressiva (um), imbecilidade (um). Dos 17 indivíduos internados na instituição em 1924, três eram acusados de contravenção de vadiagem, dois dos quais foram diagnosticados como débeis mentais e o outro como portador de sífilis cerebral (Relatórios do diretor do Serviço de Assistência a Alienados enviados ao ministro da Justiça, 1922, p. 92; 1924, p. 135; 1925, p. 130).
10 Para uma avaliação de como o tema das coletividades anormais seria tratado por legistas e psiquiatras brasileiros, ver, por exemplo, os artigos de Rodrigues (1939) sobre o assunto publicados em fins do século XIX. Ver, ainda, Rocha (1904, pp. 32-3); Ferreira (1911); Pacífico (1915); Foscolo (1918).
11 O alvo do médico não eram apenas as crenças e práticas da religiosidade popular, mas também as disseminadas pelo chamado "espiritismo racional e científico (cristão)" entre as "classes médias e abastadas". Vale notar que o espiritismo kardecista encontraria alguns adeptos e defensores no seio da própria comunidade médica. Ver, por exemplo, as concepções defendidas pelo dr. Bezerra de Menezes (1920, p. 151), segundo as quais "o que determina não a perturbação mental, porque a alma não enlouquece, mas a perturbação na transmissão do pensamento, é a interposição dos fluidos do espírito obsessor, entre o agente e o instrumento, de modo que fica interrompida a comunicação regular dos dois". A associação entre espiritismo e doença mental e suas implicações foram objeto de estudo, entre outros, de Maggie (1992) e de Giumbelli (1997).
12 Idéias muito próximas foram defendidas por Lemos (1902, pp. 86 e ss.)
Ano
Entradas no HNA
Causas ocasionais
1889
1890
77
498
Revolução e queda do Império
1891
302
1892
610
Jogo na Bolsa
1893
1894
1895
526
726
732
Revolta e Revolução Federalista
1896
665
1897
1898
699
788
Agitação partidária
Canudos
Portadores de desvios mentais imperceptíveis aos olhos leigos, estes líderes revolucionários constituiriam uma verdadeira ameaça ao ocuparem altos cargos administrativos e desfrutarem de prestigiosas posições sociais em troca dos "serviços prestados": "Esses revolucionários são os companheiros dos paranóicos, com os quais se confundem muitas vezes, com a diferença de que os paranóicos revelam perturbações intelectuais que os excluem mais depressa da comunhão social, por darem mais na vista de todos."
O instinto genital perturbado
Para se avaliar a relevância e a dimensão que os aspectos relacionados, direta ou indiretamente, à sexualidade teriam na definição das causas, dos sintomas e das conseqüências das doenças mentais, basta lembrar das primeiras experiências de esterilização de indivíduos diagnosticados como degenerados realizadas no cantão de Saint Gall na Suíça. Segundo o dr. Renato Kehl (1921, p. 152), entre os quatro indivíduos submetidos à operação, "com assentimento próprio, da família, e das autoridades", havia uma mulher de 25 anos "epiléptica e ninfomaníaca", uma outra de 36 anos, "pobre de espírito e sujeita a crise de agitação e excitação sexual", e um homem de 32 anos, "homossexual, recidivista e extramoral".
Mas quais seriam os significados específicos que teriam marcado a associação entre sexualidade e doença mental nos escritos dos médicos e alienistas brasileiros? Em primeiro lugar, é preciso considerar que os mecanismos de controle social passam, entre outras coisas, pelas estratégias de disciplina dos corpos e das mentes, concebidas e implantadas ainda que jamais de forma absoluta e completa a partir da disseminação de certos valores morais referentes, por exemplo, à sexualidade (Foucault, 1980, 1972). Desde os primeiros textos médicos sobre a alienação mental ou temas afins produzidos no Brasil a partir da década de 1830, os comportamentos sexuais considerados anormais são identificados como doença. Essa identificação ocupa um lugar cada vez mais preeminente na etiologia e na sintomatologia das doenças mentais, ganhando maior abrangência e profundidade no pensamento e na prática psiquiátricos de fins do século XIX, momento que é marcado, de um lado, pelo surgimento e consolidação da psiquiatria propriamente dita e, por outro, pela difusão dos princípios norteadores da degenerescência e do organicismo.
Registre-se a insistência dos médicos e psiquiatras em buscar, no comportamento sexual dos pacientes observados, a presença de desvios que eram imediatamente relacionados às causas, aos efeitos e/ou aos sintomas da doença que queriam diagnosticar. Em um artigo sobre a sintomatologia da loucura, publicado em 1888, o dr. Teixeira Brandão, então diretor do serviço clínico do Hospício de Pedro II que a partir de 1890 passa a denominar-se Hospício Nacional de Alienados , afirmava uma profunda proximidade entre a loucura e as anomalias do instinto sexual, definidas como a diminuição ou ausência, o exagero (veemência ou insaciabilidade) e a perversão (ou aberração) do apetite sexual. O excesso, a falta e/ou a perversão constituíam, portanto, os elementos básicos que definiam os limites extensos e incertos das anomalias sexuais. Note-se, entretanto, que os alienistas trataram de definir também, e talvez de um modo até mais claro e inequívoco, os limites da normalidade das práticas sexuais, circunscritas, concomitantemente, ao prazer moderado e à finalidade reprodutora.
Qualitativas ou quantitativas, as anomalias e/ou perversões da sexualidade ajudariam, portanto, a construir e consolidar a noção psiquiátrica de doença mental, conferindo-lhe limites extremamente amplos e difusos. Conforme sublinhou Franco da Rocha (1904, p. 91):
O instinto genital perturbado tem fornecido assunto aos psiquiatras, alguns dos quais têm escrito volumes inteiros sobre tal matéria. Nesta espécie os degenerados concorrem com quase todo o material de observação. Desde a simples impotência, por um motivo fútil ou pela masturbação, até os mais hediondos desvios, como, por exemplo, o de só sentir prazer genital bebendo urina, ainda quente, de mulheres, vai uma série infinita de tipos mórbidos....
Com o surgimento da psiquiatria propriamente dita, de um lado e, de outro, com as implicações decorrentes das transformações que marcaram profundamente a sociedade brasileira no decorrer das três últimas décadas do século passado, os temas da sexualidade, do trabalho, do alcoolismo, da delinqüência/criminalidade, do fanatismo, entre outros, assumiram contornos mais definidos. Evidenciando o comprometimento da psiquiatria com os projetos de normatização das mais variadas condutas sociais e individuais a partir de novos padrões disciplinares, o universo temático privilegiado por médicos e alienistas brasileiros na construção da loucura como doença mental traduz as principais dimensões de intervenção de tais estratégias normatizadoras no universo social: os comportamentos sexuais, as relações de trabalho, a segurança pública, as condutas individuais e as manifestações coletivas de caráter religioso, social e político.
Recebido para publicação em março de 1998.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Jan 2004 -
Data do Fascículo
Fev 1999
Histórico
-
Recebido
Mar 1998