Open-access As fronteiras da ‘anormalidade’: psiquiatria e controle social

The frontiers of ‘abnormality’: psychiatry and social control

Resumos

O artigo trata de alguns dos principais aspectos que nortearam a inserção política e social da psiquiatria na sociedade brasileira de fins do século XIX e início do século XX, através da análise de certas temáticas - civilização, raça, trabalho, fanatismo, contestação política, sexualidade - privilegiadas pelos especialistas na construção da noção de ‘doença mental’, conferindo-lhe limites extremamente amplos e difusos. A partir da análise de textos produzidos por psiquiatras e legistas - tais como teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, relatórios do Serviço de Assistência a Alienados, obras e artigos de especialistas -, busca-se estabelecer e discutir a relação entre a definição psiquiátrica das fronteiras da ‘anormalidade’ e as tentativas de implementação de novas estratégias de controle social.

psiquiatria; doença mental; controle social


The article examines some of the main aspects governing psychiatry’s role in the Brazilian political and social context at the close of the nineteenth century and beginning of the twentieth. It analyzes certain themes -civilization, race, labor, fanaticisim, political dissent, sexuality - that were emphasized by specialists in their construction of a very broad notion of ‘mental illness’. Through the analysis of texts produced by psychiatrists and legal experts (including dissertations written at the Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, reports from the Serviço de Assistência a Alienados, and works and articles by specialists), the relation between the psychiatric definition of the frontiers of ‘abnormality’ and efforts to implement new strategies of social control is discussed.

psychiatry; mental illness; social contro


As fronteiras da ‘anormalidade’: psiquiatria e controle social

The frontiers of ‘abnormality’: psychiatry and social control

Magali Gouveia Engel

Professora adjunta do Departamento de História

da Universidade Federal Fluminense (UFF)

Campus do Gragoatá, Bloco O, 5o andar

24210-350 Niterói — RJ Brasil

Fax: (021) 620-8360

ENGEL, M. G.: ‘As fronteiras da anormalidade: psiquiatria e controle social’.História, Ciências, Saúde — Manguinhos, V(3): 547-63, nov. 1998-fev. 1999.

O artigo trata de alguns dos principais aspectos que nortearam a inserção política e social da psiquiatria na sociedade brasileira de fins do século XIX e início do século XX, através da análise de certas temáticas — civilização, raça, trabalho, fanatismo, contestação política, sexualidade — privilegiadas pelos especialistas na construção da noção de ‘doença mental’, conferindo-lhe limites extremamente amplos e difusos. A partir da análise de textos produzidos por psiquiatras e legistas — tais como teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, relatórios do Serviço de Assistência a Alienados, obras e artigos de especialistas —, busca-se estabelecer e discutir a relação entre a definição psiquiátrica das fronteiras da ‘anormalidade’ e as tentativas de implementação de novas estratégias de controle social.

PALAVRAS-CHAVE: psiquiatria, doença mental, controle social.

ENGEL, M. G.: ‘The frontiers of ‘abnormality’: psychiatry and social control’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, V(1): 547-63, Nov. 1998-Feb. 1999.

The article examines some of the main aspects governing psychiatry’s role in the Brazilian political and social context at the close of the nineteenth century and beginning of the twentieth. It analyzes certain themes —civilization, race, labor, fanaticisim, political dissent, sexuality — that were emphasized by specialists in their construction of a very broad notion of ‘mental illness’. Through the analysis of texts produced by psychiatrists and legal experts (including dissertations written at the Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, reports from the Serviço de Assistência a Alienados, and works and articles by specialists), the relation between the psychiatric definition of the frontiers of ‘abnormality’ and efforts to implement new strategies of social control is discussed.

KEYWORDS: psychiatry, mental illness, social contro

1 Os Archivos de Psiquiatría, Criminología y Ciencias Afines foram criados pelo psiquiatra argentino José Ingenieros em Buenos Aires no início do século XX, constituindo-se num espaço significativo de publicação dos trabalhos produzidos por alienistas brasileiros (Cunha, 1986, pp. 47-8).

Em meio às profundas transformações que marcaram a sociedade brasileira das últimas décadas do século passado, a psiquiatria consolida-se e institucionaliza-se como um campo de conhecimento especializado. Fruto de um longo e contraditório processo — que, no Brasil, desencadeou-se a partir da década de 1830, com as reivindicações médicas defendendo a necessidade premente da criação de um hospício na cidade do Rio de Janeiro —, tal consolidação caracterizou-se, entre outros aspectos, pela incorporação de uma ampla variedade de temas na fixação das fronteiras que separariam a ‘doença’ da ‘saúde’, o ‘normal’ do ‘patológico’ no âmbito dos distúrbios mentais.
Entre os temas privilegiados pelos alienistas e psiquiatras brasileiros na construção de atos, atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores ‘desviantes’, figuravam, por exemplo, a civilização, a raça, a sexualidade, o trabalho, o alcoolismo, a delinqüência/criminalidade, o fanatismo religioso e a contestação política. Estes temas são fundamentais para conferir limites extremamente abrangentes à noção de ‘anormalidade’, conforme pode-se depreender, por exemplo, da definição da categoria dos ‘anormais’ — que incluía, "...el homicida, el génio, el mentiroso, el pederasta, el filántropo, el avaro, el alienado, el ladrón, el apóstol, el sectário, el enamorado, el vagabundo, la prostituta" —; expressa no programa dos Archivos de Psiquiatría, Criminología y Ciencias Afines de Buenos Aires. Loucura e civilização

A percepção da loucura como subversão/inversão das normas e regras socialmente estabelecidas encontra-se presente nas primeiras classificações nosográficas da medicina mental. Para Fodéré (apud Castel, 1978, p. 111), eminente alienista francês da década de 1820, o alienado seria aquele que "não tem habitualmente consideraçãopor nenhuma regra, nenhuma lei, nenhum costume, ou melhor, desconhece-os todos; cujos discursos, postura (sic) e ações estão sempre em oposição, não somente com os hábitos do país em que habita, mas ainda com o que existe de humano e de racional".

Desse modo, concebida de maneira puramente negativa, a loucura é vista como o avesso da ordem. Sinônimo de agitação, exagero, arrebatamento, imoderação, desregramento, impulsividade, imprevisibilidade e periculosidade e circunscrita aos limites de "uma segunda natureza", ela é definida como "um excesso que é falta" (idem, ibidem).

Quase um século mais tarde, o dr. Franco da Rocha diretor do Hospício do Juquery (SP), define alienação mental como a desarmonia, transitória ou permanente, nas relações do indivíduo com o seu meio social. Assim, não havendo incompatibilidade entre as idéias e ações do indivíduo e as compartilhadas pelo grupo ao qual pertence, não poderia existir loucura. O meio no qual o indivíduo se desenvolve torna-se, portanto, um aspecto fundamental para a avaliação da presença ou ausência da doença: "...se um homem de espírito cultivado atribuir qualquer insucesso de sua vida à feitiçaria e procurar conjurá-la por meio de rezas, chamará sobre si suspeitas de loucura; se o fato se der com indivíduo rústico, ignorante, essa suspeita será fútil, porque no raciocínio de tal indivíduo essas idéias nada têm de extraordinário".

Não se trata, contudo, de uma sensibilidade em relação à diferença, pois, identificadas com o fetichismo — estágio mais atrasado da evolução mental da humanidade, segundo Augusto Comte —, as idéias e crenças compartilhadas por indivíduos pertencentes a raças e classes rústicas e ignorantes seriam concebidas como inferiores, atrasadas etc. Além disso, referindo-se à existência de uma relação entre o fetichismo e o teologismo e as "regressões" reveladoras da "fraqueza cerebral", o psiquiatra acabaria por estabelecer uma proximidade entre os estágios inferiores da evolução mental da humanidade e algumas formas da doença mental. Franco da Rocha (op. cit.) assume, pois, uma postura ambígua: se o meio sócio-cultural é situado explicitamente como um dado de relativização nas diagnoses da alienação mental, indiretamente abre-se a possibilidade de considerá-lo como um elemento propício ao surgimento e à proliferação da loucura.

Esta última concepção era, aliás, bastante corrente entre os primeiros alienistas, que costumavam arrolar, entre as causas da alienação mental, os climas, as estações, a educação, os hábitos e costumes, a miséria etc. Mesmo depois que os fatores hereditários passaram a ser, predominantemente, apontados como uma das causas fundamentais das doenças mentais, sendo mesmo considerados, por muitos alienistas, como a mais importante, os aspectos referentes ao meio social continuariam a ocupar um lugar de certo destaque naetiologia destas doenças. De um modo geral, com a disseminação e consolidação dos enfoques organicistas a partir de meados do século XIX, as degenerescências e os desvios passaram a ser vistos não apenas como produto da hereditariedade, mas também como resultado da desordem social, mantendo-se, assim, muitas das idéias características da primeira fase da medicina mental que estabeleciam:

uma profunda homologia entre as manifestações da loucura (seus sintomas) e esse terreno abalado pelos acontecimentos políticos e pelos conflitos sociais. Sobre essa base geral se enxertam inúmeras análises sobre o papel da má educação, do relaxamento dos costumes, da má conduta das mulheres, da miséria etc., na gênese dos distúrbios psíquicos (Castel, 1978, p. 112).

Próximo a uma tradição expressa nos trabalhos de Esquirol, o próprio Morel reafirmaria o vínculo entre os efeitos do progresso/urbanização/industrialização e a disseminação crescente das degenerescências — e, portanto, das moléstias mentais — nos grandes centros urbanos europeus. Até mesmo Lombroso, abandonando o radicalismo das suas posições iniciais, acabaria por revelar-se sensível às críticas da escola sociológica francesa, dedicando a primeira parte de sua última obra (O crime, causas e remédios, 1906) ao estudo da etiologia social da delinqüência, e procurando estabelecer uma relação entre as condições sociais e ambientais e a criminalidade (Darmon, 1991).

Se entre os psiquiatras brasileiros de fins do século XIX e início do século XX havia alguns que, como o dr. Álvaro Fernandes (1898, pp. 299-300), afirmavam que a loucura não poderia ser vista como fruto de "um acidente social", mas sim de "desequilíbrios da organização individual", existiam também aqueles que conferiam ao meio social o papel prioritário na etiologia das degenerescências. Segundo o dr. Jeferson Sensburg de Lemos (1902, p. 29), por exemplo, para se chegar ao conhecimento dos "verdadeiros fatores da degeneração humana", dever-se-ia partir da sociedade para chegar ao indivíduo e não o inverso.

Entretanto, a atitude mais comum parece ter sido a de priorizar os elementos hereditários e/ou os aspectos individuais e orgânicos, sem deixar de conferir um papel de certo relevo aos fatores sociais. De um modo geral, a natureza da doença mental permanecia circunscrita aos limites orgânicos do corpo. Um bom exemplo neste sentido são as considerações feitas pelo dr. Plínio Olinto, chefe do serviço de profilaxia das doenças mentais e nervosas da Colônia de Alienadas do Engenho de Dentro (RJ):

...os excitantes do meio atuam até sobre a nossa vontade que é influenciada pelas nossas tendências, essas por sua vez derivam dos nossos apetites e pendores oriundos do equilíbrio entre os órgãos da vida vegetativa; donde se conclui que até as inclinações sociais, filhas das tendências individuais e familiares, têm sua origem no funcionamento da vida orgânica (Relatório do diretor da Assistência a Alienados enviado ao ministro da Justiça em 31.3.1922, p. 115).

2 Ver também as considerações próximas a estas feitas pelo acadêmico Nabuco de Araújo (1883, p. 17). Para uma avaliação da associação entre loucura e civilização, ver Machado et al. (1978, pp. 413-22).

3 Sobre as abordagens formuladas e difundidas por intelectuais e cientistas brasileiros de fins do século XIX e início do século XX em torno da questão racial, ver, por exemplo, o estudo de Schwarcz (1993) e a coletânea de artigos organizada por Maio e Santos (1996).

A apreciação dos fatores sociais na gênese das doenças mentais conduziria, entre outras coisas, à freqüente associação entre loucura e civilização. Presente, conforme salientou Castel (1978, p. 112), nas reflexões produzidas por quase todos os alienistas da primeira metade do século XIX, tal associação haveria de ser incorporada pelos médicos brasileiros desde os textos produzidos na década de 1830. Para o dr. Silva Peixoto (1837, pp. 2-9), por exemplo, a loucura é "mais comum onde a civilização é maior", ou seja, nas grandes cidades. Assim, o referido médico associa as origens e a proliferação da loucura às anomalias morais, econômicas e políticas produzidas no universo social, sobretudo, pelos ritmos estonteantes do progresso dos novos tempos. Até pelo menos o final da década de 1920, muitos psiquiatras brasileiros continuaram acreditando que os ‘males’ decorrentes da civilização e do progresso — entre os quais incluíam-se, por exemplo, a revolução social, a liquidação dos costumes, o aniquilamento da raça, o gosto pelo luxo, o incremento da luta pela vida, o aumento da miséria etc. — estavam entre os principais fatores responsáveis pela crescente degeneração e pela proliferação das doenças mentais nas sociedades modernas. Vale registrar, contudo, que alguns especialistas contestavam a referida associação, pois isto seria negar a necessidade e a positividade da evolução da humanidade. Coerente com a postura segundo a qual a degenerescência tinha origem no indivíduo e não na sociedade, o dr. Sensburg de Lemos (1902, p. 4), defendia que os males das sociedades modernas — o deboche, a depravação de costumes, as libações demasiadas etc. — não eram causas da degeneração, mas efeitos dela e, por isso, não poderiam ser atribuídos à civilização. Esta última "implica a idéia de uma evolução progressiva da sociedade, onde há verdadeira civilização, há exuberância de vida, não pode haver degeneração".

O vínculo entre raça e doença mental indica outra pista importante para se avaliar as dimensões políticas e sociais assumidas pelo saber e pela prática alienista na sociedade brasileira das últimas décadas do século passado. Sempre ciosos de resguardar a vastidão e a imprecisão dos limites definidores da doença mental, os psiquiatras partiam do princípio de que a loucura não escolhia raça, o que não os impediu de construir, sub-repticiamente, relações bastante próximasentre a doença mental e as raças consideradas inferiores. Para tanto lançaram mão, por exemplo, da idéia de que os negros e sobretudo os mestiços predispunham-se à loucura por serem povos degenerados por definição. Entretanto, mesmo quando não eram classificados a princípio como degenerados, os indivíduos pertencentes a tais raças eram vistos como intelectualmente inferiores e, por isto, menos capazes de enfrentar e/ou adaptar-se às contingências do meio social, sendo assim ‘mais propensos’ à degeneração.

Um bom exemplo neste sentido são as considerações feitas pelo dr. Henrique Roxo (1904, pp. 172, 181-2, 191-2) acerca das perturbações mentais dos negros no Brasil numa comunicação apresentada no 2º Congresso Médico Latino-Americano e publicada no Brazil Médico. Segundo o citado psiquiatra, o negro e o pardo não deveriam ser considerados degenerados, mas sim "tipos" que "não evoluíram": "Gastam menos o cérebro que os brancos." Desse modo, o ‘racismo científico’ expresso por Henrique Roxo encontra-se pautado numa complicada e contraditória mistura entre o determinismo biológico e a ação do meio sócio-cultural:

E, assim, comungando com alguns dos princípios do evolucionismo de Herbert Spencer, conclui:

É fato comprovado: a raça negra é inferior. Na evolução natural é retardatária. Tenderá a progredir, pois a isso será compelida pelo amor à vida. Os fortes dominam os fracos e nos tempos atuais prepondera o cérebro. ... No entanto, será sempre uma utopia o nivelamento das raças. Cada qual tem uma grilheta que lhe algema os pés: é a tara hereditária. E esta é nos negros pesadíssima.

4 Ver também as conclusões de Sampaio (1922). Mesmo admitindo que existia uma grande margem de erro nas avaliações em torno da "influência da raça como fator etiológico da loucura", o dr. (1904, pp. 51-2) Franco da Rocha não deixaria de afirmar que na raça negra predominavam "as formas degenerativas — epilepsia, idiotia, imbecilidade etc.".

5 Sobre a construção de uma representação da pobreza através da associação classes perigosas/raças inferiores no discurso difundido por políticos e burocratas brasileiros de fins do século XIX, ver as reflexões de Chalhoub (1996, 1988).

Os mesmos referenciais teóricos levariam Henrique Roxo a acreditar que a gênese das doenças mentais deve ser buscada na associação entre agentes biológicos e fatores sociais. Assim, as principais causas da alienação mental entre as populações negras existentes no Brasil seriam, de um lado, o baixo nível intelectual característico da raça negra e, de outro, os efeitos ‘perniciosos’ da abolição ‘repentina’ da escravidão: "Entre nós foi ... a transição bruscada escravatura para a liberdade uma das causas de se mostrarem os negros mais acessíveis aos agentes degenerativos que os brancos. Não havia a capacidade orgânica suficiente. Witmer verificou que a alienação mental era excepcional nos negros da América antes da emancipação e que depois adquiriu grande freqüência."

Tratar-se-ia de um anacrônico manifesto, ‘cientificamente fundamentado’, em favor da escravidão negra? Mais de 15 anos depois da abolição, a associação entre a liberdade do negro e a proliferação das degenerações e das doenças mentais certamente de nada serviria como propaganda antiabolicionista. Entretanto, veiculada na eminente comunidade científica do Rio de Janeiro, tal associação poderia ser utilizada como um instrumento importante para justificar e legitimar a implantação de mecanismos mais sutis de controle social.

Mas vejamos alguns dos dados que serviram como prova científica e, portanto, irrefutável para as conclusões do dr. Henrique Roxo (idem, ibidem, p. 170) em seu estudo sobre as perturbações mentais dos negros no Brasil.

QUADRO ESTATÍSTICO DOS DOENTES INTERNADOS NO PAVILHÃO DE OBSERVAÇÃO DO HNA (1894-1903)

Ano

População total

Brancos

Pardos

Pretos

1894 418 217 91 110 1895 606 349 130 127 1896 623 389 128 106 1897 704 381 151 172 1898 707 396 179 152 1899 697 379 168 150 1900 615 356 132 127 1901 608 333 153 122 1902 614 328 159 127 1903 657 321 203 133
Apesar de "os negros se mostrarem mais acessíveis aos agentes degenerativos que os brancos", os dados apresentados revelam que o número de pacientes brancos é significativamente superior ao de pretos e ao de pardos. Diante deste fato, Henrique Roxo (idem, p. 171) vê-se forçado a demonstrar que a taxa de negros internados era considerável e, neste sentido, argumenta que os brancos incluíam os estrangeiros e que os pretos eram quantitativamente inferiores aos brancos na cidade do Rio de Janeiro. É preciso ressaltar, contudo, que, para o psiquiatra, mais do que afirmar uma maior ou menorpredisposição das diferentes raças à loucura, tratava-se, antes, de apontar as moléstias mentais mais comuns entre os indivíduos de cor negra, de cor parda e de cor branca,

6 Carrilho, ‘Institutos de Antropologia Penitenciária', AMJ, ano II, nos 1 e 2, p. 19, apud Fry (1985, p. 131). Sobre a questão, ver também as considerações de Cunha (1986, pp. 49 e ss.).

7 Ficha de observação de Antonio Rodrigues Pinheiro, Livro de Observações dos Pacientes Internados no MJRJ, no 3, 1922.

8 Ficha de observação de Euclydes Moreira do Nascimento, Livro de Observações dos Pacientes Internados no MJRJ, no 1, 1918. Segundo Heitor Carrilho, Euclydes teria tido várias entradas no HNA em 1913, 1915, 1918 e 1919. Não há referência às datas de entrada e de saída do paciente no Manicômio Judiciário.

9 Trata-se de uma concepção defendida por Lombroso (Darmon, 1991; Harris, 1993) bastante difundida entre os psiquiatras e legistas brasileiros das primeiras décadas do século XX. Ver, por exemplo, a tese de mestrado de Soares (1909).

A recusa ao trabalho

A articulação, explícita ou implícita, das reflexões produzidas no âmbito da medicina mental com a política e as aflições sociais do tempo pode ser apreendida, por exemplo, na construção de uma relação entre perturbações mentais e recusa ao trabalho. Segundo o dr. Brasil (1910, p. 55), entre os degenerados portadores de "estigmas físicos particulares" figuravam os vagabundos que ofendiam "a sociedade com suas anomalias sexuais e vícios". Parte significativa dos indivíduos conduzidos ao hospício pelas mãos da polícia era constituída por aqueles que, vagando ou vivendo nas ruas da cidade sem possuir uma ocupação regular, eram enquadrados na categoria incerta de vadios. Nesse sentido, vale registrar a descrição dada por Costa (1957, p. 192) da fumerie do Afonso. Funcionando em princípios deste século no Beco dos Ferreiros, situado nas proximidades da rua da Misericórdia, "servia de refúgio a vagabundos e toda a espécie de degenerados, que os psiquiatras da Praia Vermelha só então é que começam, seriamente, a estudar".

Comumente diagnosticados como epiléticos, alcoólatras ou, simplesmente, degenerados, a presença de indivíduos processados por vadiagem no Manicômio Judiciário do Rio de Janeiro durante a década de 1920 era expressiva, o que pode ser observado através dos dados apresentados pelo diretor da instituição, dr. Heitor Carrilho, em alguns de seus relatórios ao diretor do Serviço de Assistência a Alienados, dr. Juliano Moreira. Assim, por exemplo, entre maio e dezembro de 1921, dos 12 exames de sanidade solicitados por magistrados do Distrito Federal ao referido estabelecimento, sete foram realizados em indivíduos acusados por contravenção de vadiagem, dos quais cinco — três homens e duas mulheres — foram considerados alienados com os seguintes diagnósticos: toxicomania, epilepsia, alcoolismo, debilidade mental, parafrenia (formas de delírio crônico). Dos 37 indivíduos recolhidos ao Manicômio Judiciário em 1923, 11 eram acusados de contravenção de vadiagem e receberam os seguintes diagnósticos: alcoolismo (três), debilidade mental (três), epilepsia (dois), parafrenia (um), psicose maníaco-depressiva (um), imbecilidade (um). Dos 17 indivíduos internados na instituição em 1924, três eram acusados de contravenção de vadiagem, dois dos quais foram diagnosticados como débeis mentais e o outro como portador de sífilis cerebral (Relatórios do diretor do Serviço de Assistência a Alienados enviados ao ministro da Justiça, 1922, p. 92; 1924, p. 135; 1925, p. 130).

A associação profundamente estreita entre recusa do trabalho e distúrbios mentais é também observada por Fry (1985, pp. 130-1) ao analisar as discussões de Heitor Carrilho sobre a vadiagem e a defesa do trabalho como instrumento terapêutico. Referindo-se aos indivíduos processados por vadiagem e submetidosao exame mental no Manicômio Judiciário, afirma Carrilho: "A ociosidade em que vivem tais contraventores, sendo como é, muitas vezes, a expressão de anomalias mentais corrigíveis, deixaria, sem dúvida, de existir, se a orientação e adaptação profissionais, cientificamente realizadas, sobre eles fizessem convergir os seus benefícios..."

10 Para uma avaliação de como o tema das coletividades anormais seria tratado por legistas e psiquiatras brasileiros, ver, por exemplo, os artigos de Rodrigues (1939) sobre o assunto publicados em fins do século XIX. Ver, ainda, Rocha (1904, pp. 32-3); Ferreira (1911); Pacífico (1915); Foscolo (1918).

11 O alvo do médico não eram apenas as crenças e práticas da religiosidade popular, mas também as disseminadas pelo chamado "espiritismo racional e científico (cristão)" entre as "classes médias e abastadas". Vale notar que o espiritismo kardecista encontraria alguns adeptos e defensores no seio da própria comunidade médica. Ver, por exemplo, as concepções defendidas pelo dr. Bezerra de Menezes (1920, p. 151), segundo as quais "o que determina não a perturbação mental, porque a alma não enlouquece, mas a perturbação na transmissão do pensamento, é a interposição dos fluidos do espírito obsessor, entre o agente e o instrumento, de modo que fica interrompida a comunicação regular dos dois". A associação entre espiritismo e doença mental e suas implicações foram objeto de estudo, entre outros, de Maggie (1992) e de Giumbelli (1997).

12 Idéias muito próximas foram defendidas por Lemos (1902, pp. 86 e ss.)

Fanatismo religioso e contestação política
A manifestação de obsessões e delírios religiosos era considerada pelos especialistas como prova incontestável de perturbações mentais, levando, de fato, muitos indivíduos a engrossarem o contingente das populações internadas nos hospícios. A partir daabsorção e reformulação da noção de coletividades anormais, os alienistas brasileiros consolidaram a incorporação não apenas do fanatismo religioso, mas também do fanatismo político, como objeto de suas reflexões científicas, conferindo-lhes um lugar de relevo entre as causas e os efeitos da doença mental. Visto como uma liderança em potencial, o fanático poderia contagiar com suas idéias, delirantes e doentias, comunidades inteiras, constituídas por indivíduos pertencentes a raças inferiores e/ou portadores de um baixo nível intelectual, biológica ou socialmente determinado. Desse modo, os fundamentos teóricos disseminados no âmbito da medicina mental tornavam mais consistentes as imagens do ‘perigo’ representado pelas manifestações coletivas de crenças religiosas que escapavam ao controle da religião oficial e pelos movimentos políticos de contestação social que questionavam, de uma forma ou de outra, a ordem estabelecida.

Ano

Entradas no HNA

Causas ocasionais

1889

1890

77

498

Revolução e queda do Império

1891

302

—

1892

610

Jogo na Bolsa

1893

1894

1895

526

726

732

Revolta e Revolução Federalista

1896

665

—

1897

1898

699

788

Agitação partidária

Canudos

Raciocínio similar nortearia as considerações do diretor do Juquery, Franco da Rocha (1904, pp. 342-3), ao formular a associação entre loucura moral e radicalismo revolucionário: "Nas agitações políticas há sempre um número mais ou menos grande de indivíduos indispensáveis como instrumentos. Esses indivíduos, em geral violentos e atirados, praticam atos necessários às revoluções, atos em que os equilibrados se vexariam de tomar parte."
Portadores de desvios mentais imperceptíveis aos olhos leigos, estes líderes revolucionários constituiriam uma verdadeira ameaça ao ocuparem altos cargos administrativos e desfrutarem de prestigiosas posições sociais em troca dos "serviços prestados": "Esses revolucionários são os companheiros dos paranóicos, com os quais se confundem muitas vezes, com a diferença de que os paranóicos revelam perturbações intelectuais que os excluem mais depressa da comunhão social, por darem mais na vista de todos."

O instinto genital perturbado

Para se avaliar a relevância e a dimensão que os aspectos relacionados, direta ou indiretamente, à sexualidade teriam na definição das causas, dos sintomas e das conseqüências das doenças mentais, basta lembrar das primeiras experiências de esterilização de indivíduos diagnosticados como degenerados realizadas no cantão de Saint Gall na Suíça. Segundo o dr. Renato Kehl (1921, p. 152), entre os quatro indivíduos submetidos à operação, "com assentimento próprio, da família, e das autoridades", havia uma mulher de 25 anos "epiléptica e ninfomaníaca", uma outra de 36 anos, "pobre de espírito e sujeita a crise de agitação e excitação sexual", e um homem de 32 anos, "homossexual, recidivista e extramoral".

Mas quais seriam os significados específicos que teriam marcado a associação entre sexualidade e doença mental nos escritos dos médicos e alienistas brasileiros? Em primeiro lugar, é preciso considerar que os mecanismos de controle social passam, entre outras coisas, pelas estratégias de disciplina dos corpos e das mentes, concebidas e implantadas — ainda que jamais de forma absoluta e completa — a partir da disseminação de certos valores morais referentes, por exemplo, à sexualidade (Foucault, 1980, 1972). Desde os primeiros textos médicos sobre a alienação mental ou temas afins produzidos no Brasil a partir da década de 1830, os comportamentos sexuais considerados anormais são identificados como doença. Essa identificação ocupa um lugar cada vez mais preeminente na etiologia e na sintomatologia das doenças mentais, ganhando maior abrangência e profundidade no pensamento e na prática psiquiátricos de fins do século XIX, momento que é marcado, de um lado, pelo surgimento e consolidação da psiquiatria propriamente dita e, por outro, pela difusão dos princípios norteadores da degenerescência e do organicismo.

Registre-se a insistência dos médicos e psiquiatras em buscar, no comportamento sexual dos pacientes observados, a presença de desvios que eram imediatamente relacionados às causas, aos efeitos e/ou aos sintomas da doença que queriam diagnosticar. Em um artigo sobre a sintomatologia da loucura, publicado em 1888, o dr. Teixeira Brandão, então diretor do serviço clínico do Hospício de Pedro II — que a partir de 1890 passa a denominar-se Hospício Nacional de Alienados —, afirmava uma profunda proximidade entre a loucura e as anomalias do instinto sexual, definidas como a diminuição ou ausência, o exagero (veemência ou insaciabilidade) e a perversão (ou aberração) do apetite sexual. O excesso, a falta e/ou a perversão constituíam, portanto, os elementos básicos que definiam os limites extensos e incertos das anomalias sexuais. Note-se, entretanto, que os alienistas trataram de definir também, e talvez de um modo até mais claro e inequívoco, os limites da normalidade das práticas sexuais, circunscritas, concomitantemente, ao prazer moderado e à finalidade reprodutora.

Qualitativas ou quantitativas, as anomalias e/ou perversões da sexualidade ajudariam, portanto, a construir e consolidar a noção psiquiátrica de doença mental, conferindo-lhe limites extremamente amplos e difusos. Conforme sublinhou Franco da Rocha (1904, p. 91):

O instinto genital perturbado tem fornecido assunto aos psiquiatras, alguns dos quais têm escrito volumes inteiros sobre tal matéria. Nesta espécie os degenerados concorrem com quase todo o material de observação. Desde a simples impotência, por um motivo fútil ou pela masturbação, até os mais hediondos desvios, como, por exemplo, o de só sentir prazer genital bebendo urina, ainda quente, de mulheres, vai uma série infinita de tipos mórbidos....

13 A imagem é idêntica à utilizada pelos primeiros médicos que tomaram a prostituição como objeto de análise (Engel, 1989). A relação entre sexualidade feminina e alienação mental foi aprofundada em artigo posterior (Engel, 1997). Atributo quase exclusivo dos degenerados, as perversões sexuais tanto podiam ser incluídas no mundo do crime, quanto, tangenciando-o, permanecerem na esfera do pecado, mas eram sempre definidas, antes de tudo e, principalmente, como doença, o que as tornava legítimos objetos do saber e da prática médica e, sobretudo, psiquiátrica. Mesmo causando ‘repulsa’, não era possível que os médicos deixassem de estudá-las: "O pus também causa repugnância, mas nem por isso os médicos deixam de examiná-lo" (idem, ibidem, p. 92).

Com o surgimento da psiquiatria propriamente dita, de um lado e, de outro, com as implicações decorrentes das transformações que marcaram profundamente a sociedade brasileira no decorrer das três últimas décadas do século passado, os temas da sexualidade, do trabalho, do alcoolismo, da delinqüência/criminalidade, do fanatismo, entre outros, assumiram contornos mais definidos. Evidenciando o comprometimento da psiquiatria com os projetos de normatização das mais variadas condutas sociais e individuais a partir de novos padrões disciplinares, o universo temático privilegiado por médicos e alienistas brasileiros na construção da loucura como doença mental traduz as principais dimensões de intervenção de tais estratégias normatizadoras no universo social: os comportamentos sexuais, as relações de trabalho, a segurança pública, as condutas individuais e as manifestações coletivas de caráter religioso, social e político.

Recebido para publicação em março de 1998.

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    Desse modo, os ‘focos de ameaça’ à integridade da ordem estabelecida, considerada nas suas mais variadas dimensões — morais, sociais, econômicas, políticas, culturais etc. — seriam identificados e/ou associados à doença mental. Colocando "sob suspeita indivíduos e setores sociais incômodos", o saber psiquiátrico fundamentava a elaboração de uma estratégia que se pretendia eficaz no sentido de enquadrar os "comportamentos pessoais e sociais que se afastavam das normas da moral ou da disciplina" (Cunha, 1986, p. 47).
    Este artigo tem como objetivo central esboçar algumas destas temáticas, buscando apontar indícios da inserção política e social da psiquiatria na sociedade brasileira de fins do século XIX e início do século XX, através da análise de textos médicos, tais como teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, relatórios do Serviço de Assistência a Alienados, obras e artigos produzidos por especialistas consagrados.
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    Raça e doença mental
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    Não é a constituição física do preto, a sua cor escura que lhe marcam o ferrete da inferioridade. É a evolução que se não deu. Ficaram retardatários. Ao passo que os brancos iam transmitindo pela herança um cérebro em que as dobras de passagem mais se aprimoravam, em que os neurônios tinham sua atividade mais apurada, os negros que indolentemente se furtaram à emigração, em que a concorrência psíquica era nula, legavam a seus descendentes um cérebro pouco afeito ao trabalho, um órgão que de grandes esforços não era capaz.
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    determinando as características particulares de cada uma delas no que se referisse às manifestações e às classificações da doença mental.
    Como vimos, segundo Henrique Roxo (idem, pp. 180, 181), a ‘inferioridade intelectual’ era o principal elemento responsável pela especificidade das manifestações das moléstias mentais entre os negros. Assim, examinando o quadro estatístico dos diagnósticos dos doentes pretos que ingressaram entre 1894 e 1903 no Pavilhão de Observação do Hospício Nacional de Alienados (HNA), ele afirma, por exemplo, que a mania é mais rara nos negros do que a
    lypemania (melancolia delirante), argumentando ser a primeira "uma manifestação dos cérebros de evolução normal" e, portanto, mais rara nos "tipos da raça inferior", enquanto em relação à segunda "temos observado ser própria dos cérebros menos inteligentes". Afirma ainda que a imbecilidade não seria muito freqüente nos pacientes negros, mas apressa-se a esclarecer estar se referindo às manifestações mórbidas, uma vez que: "As raias da imbecilidade atingem, em geral, todos os pretos."
    Estes referenciais perpassam toda a argumentação do autor, com o fim de demonstrar a tese central do seu estudo. Assim, os altos índices de dementes e de idiotas entre os pacientes de cor preta internados no Pavilhão de Observação no período anteriormente mencionado comprovariam o grau de "inferioridade psíquica" da raça negra, na medida em que, na demência, haveria uma "involução mental", enquanto a idiotia seria um "tributo da raça que não evoluiu" (idem, ibidem, pp. 181, 190 e 191). Os dados apresentados pelo famoso psiquiatra revelaram, ainda, que a epilepsia seria mais comum entre os negros do que a histeria, o que suscita o seguinte comentário: "O fato de não ser a histeria comum nos negros é digno de nota. Parece comprovar ser esta mais própria dos intelectuais que a epilepsia."
    Concepções como as que foram apresentadas até aqui são veiculadas num ambiente científico, intelectual e político profundamente marcado pelas diversas leituras e releituras das teorias evolucionistas (Schwarcz, 1993), no qual proliferavam noções que fundamentavam a construção de uma estreita e ameaçadora associação entre classes perigosas e raças inferiores.
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    Diante das tensões desencadeadas em torno do questionamento e do aniquilamento do sistema escravista, aguçadas nas décadas de 1870 e 1880, tal estratégia, entre outras, fundamentaria a fabricação de novos mecanismos de disciplinamento das relações de trabalho e de controle social.
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    Vejamos, a título de ilustração, dois destes casos. Antonio Rodrigues Pinheiro, branco, brasileiro, do comércio, solteiro, internado durante alguns dias na seção Pinel do HNA em janeiro de 1922 com o diagnóstico de alcoolismo,
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    pouco depois de receber alta foi processado por contravenção do artigo 399 do Código Penal de 1890. Submetido a um novo exame de sanidade mental, foi diagnosticado como epiléptico e absolvido. Na opinião dos peritos, mesmo não sendo um vadio, mas sim um "incapaz", um "credor da proteção social e não de sua proscrição", a liberdade de Antonio "constitui uma grande ameaça para a sociedade, convindo portanto que seja internado em estabelecimento onde tenha tratamento adequado". Assim, em vez de cumprir a pena de prisão celular por 15 ou trinta dias, prevista pelo artigo 399 do Código Penal, Antonio foi enviado ao Manicômio Judiciário, onde permaneceu recluso durante mais de um ano, de 19 de abril de 1922 até receber alta em 13 de junho de 1923.
    Processado várias vezes por furto, vadiagem, ferimentos leves e ofensas físicas, Euclydes Moreira do Nascimento, branco, brasileiro, sem profissão, solteiro, contava inúmeras passagens pelo HNA.
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    Acusado de ferir um policial e quebrar bancos, lâmpadas e campainhas de um bonde, foi condenado a alguns meses de reclusão na Casa de Detenção, onde cometeu "atos impulsivos e violentos", sendo, por isso, transferido para o Manicômio Judiciário. De acordo com a avaliação do diretor do estabelecimento, o dr. Heitor Carrilho, Euclydes revelava claros "estigmas psíquicos de degeneração", expressos não apenas no seu caráter instável — "errava de profissão em profissão e não persistia em nada" — e impulsivo, mas também "na assimetria crânio-facial", no "aumento do ângulo do maxilar inferior", não lhe faltando, nem mesmo, as tatuagens, "estigma físico que também define os degenerados e os criminosos".
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    Vale registrar que a idéia de mobilidade e instabilidade classicamente definidora da qualificação jurídica e policial do vadio serve como ingrediente-chave na definição psiquiátrica do vagabundo/doente mental.
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    Vale lembrar que a construção da imagem do perigo trazido pela proliferação de crenças e seitas religiosas que extrapolassem os limites da religião oficial, implicaria, entre outras coisas, considerá-las como uma ameaça social
    , como ocorre no caso exemplar de Canudos.
    Aceitando ou refutando a teoria da determinação biológica da inferioridade étnica ou racial, os psiquiatras brasileiros, de um modo geral, acabavam por estabelecer um vínculo profundo entre os valores, as crenças e as práticas religiosas das populações negras e mestiças — quase sempre genericamente identificadas aos segmentos pobres que integravam a sociedade — e certos tipos de doença mental. Em seu estudo sobre as perturbações mentais nos negros do Brasil anteriormente analisado, o dr. Henrique Roxo (1904, p. 181), por exemplo, verifica que os delírios persecutórios e religiosos predominavam entre os negros: "Crentes em duendes e bruxarias, julgam os pretos que o mal de que padecem seja efeito da guerra que lhes votam estes frutos de imaginação pueril." Vejamos outros exemplos.
    Em setembro de 1923, o
    Brazil Médico (13:36, p. 206) publicou o editorial ‘Um caso de loucura coletiva’, sobre o assassinato de Lydia da Veiga e Silva, que teria ocorrido numa sessão de "candomblé", comandada pelo "mandingueiro" Tenório, em Campina Grande (PB), "a fim de atrair para ele a atenção dos nossos psiquiatras e médicos-legistas", já que é possível perceber "a má orientação que vai tomando o inquérito policial". Aqui é possível perceber o interesse no sentido não apenas de difundir e consolidar, para além dos muros das academias e dos hospícios, a associação entre distúrbios mentais e crenças e práticas religiosas negras e/ou populares, como também de assegurar a legitimidade da intervenção a especialistas ‘competentes’, esboçando-se, assim, os contornos das disputas entre médicos, juristas e policiais.
    Alarmado com a crescente disseminação na sociedade brasileira da década de 1920 das "práticas do espiritismo", ‘ameaçando’ a"dignidade da profissão médica", o dr. Leonídio Ribeiro (1927, p. 521) sublinhava que tal crença religiosa, predominante, "no seio das classes populares, onde abundam os indivíduos tarados e predispostos, facilmente impressionáveis por esses fenômenos ... que atuam como verdadeiros mordentes para desencadear as doenças mentais ..., começa a tornar-se um grande perigo social entre nós e deve preocupar atualmente os médicos e os poderes públicos encarregados de velar pela saúde pública".
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    Considerando as manifestações mediúnicas como "irritações anormais dos centros da palavra" (Rocha, 1904, p. 68) ou qualificando o espiritismo como "uma verdadeira fábrica de loucos", a medicina oficial lutava pelo controle absoluto sobre a doença e a saúde do corpo e da mente, objetivando "destruir ideológica e institucionalmente os outros saberes de curas" (Maggie, 1992, p. 207).
    Vale lembrar, contudo, que a associação entre manifestações religiosas negras e/ou populares e loucura não se restringia ao âmbito da medicina, encontrando-se amplamente difundida na comunidade intelectual e literária coeva. Basta mencionar dois exemplos: as concepções expressas por João do Rio (1976) nas reportagens publicadas na
    Gazeta de Notícias em 1900 e por Coelho Netto (1958) em seu romance
    Turbilhão, no qual a loucura da negra Felícia é atribuída às suas crenças espíritas.
    Segundo alguns alienistas, a manifestação de idéias e posições políticas consideradas radicais ou revolucionárias deveria ser vista como traço característico de um certo tipo de doente mental, ou seja, o louco moral definido como um indivíduo sem lugar: "Intolerável na sociedade, todos acham que o lugar dele é no hospício. Intoleráveis no hospício, intoleráveis nas cadeias, eles se tornam uns desclassificados" (Rocha, 1904, p. 338).
    Em sua tese sobre a loucura moral, defendida na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1898, Álvaro Fernandes (1898, p. 200) faz questão de frisar que este tipo de doença mental possuía uma sintomatologia bastante clara: "O tipo de louco moral no momento presente é o anarquista, que corresponde a um estado definitivo da loucura, nascendo da luta social, da desarmonia entre o capital e o trabalho."
    A concepção segundo a qual os períodos de agitação político-social propiciariam a propagação vertiginosa dos casos de alienação mental — expressa, entre outros, pelo primeiro diretor do Serviço de Assistência a Alienados, dr. Teixeira Brandão, para justificar os números astronômicos registrados nas estatísticas das admissões no HNA durante a década de 1890 — foi primorosamente defendida pelo dr. Domiciano Maia (1899, p. 42). Procurando comprovar que a política representava um "poderoso mecanismo" desencadeador da loucura, o psiquiatra organiza o seguinte quadro demonstrativo:
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    Resta observar que num universo impregnado pelas concepções materialistas do organicismo, as idéias desenvolvidas por Freud tiveram grande dificuldade de penetração e aceitação. Ciosos de resguardarem as verdades organicistas contra todo e qualquer tipo de questionamento, os psiquiatras brasileiros mantiveram-se, de um modo geral, extremamente reticentes em relação às teorias freudianas. Contudo, alguns deles vieram a tornar-se tímidos e cautelosos adeptos dos métodos e técnicas desenvolvidos pela psicanálise. Entre estes figurava, por exemplo, o dr. Henrique Roxo (1919, p. 338), que, em um estudo sobre sexualidade e demência precoce, apresentado no II Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal, em 1919, reconhece que, nos recônditos da "consciência do doente", abrigava-se quase sempre "uma idéia de natureza sexual", recusando-se, contudo, a aceitar "o exagero de Freud que diz ser impossível haver uma neurose com uma vida sexual normal".
    Conclusão
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Fev 1999

    Histórico

    • Recebido
      Mar 1998
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