LIVROS & REDES
Culturas de ofício e práticas de cura na Lisboa moderna
Working cultures and treatment practices in modern Lisbon
Lígia Bellini
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Santos, Georgina Silva dos.
Ofício e sangue: a Irmandade de São Jorge e a Inquisição na Lisboa moderna.
Lisboa: Colibri; Portimão: Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2005. 315p.
Desde as últimas décadas do século passado, um número crescente de historiadores brasileiros tem se dedicado com grande competência a pesquisar temas de história de Portugal. Muitos deles foram movidos pelo objetivo de, por meio do entendimento de aspectos da história da metrópole, melhor compreender a América portuguesa, no que respeita à estrutura administrativa, às formas econômicas e sociais e a atitudes e imaginário. Outros, como é o caso da autora da obra aqui comentada, aparentemente foram motivados por um interesse mais direto por objetos relativos à história daquele país per se. Antes deste trabalho, a autora já havia desenvolvido outra pesquisa sobre história sociocultural portuguesa, sobre o papel da rainha na construção da identidade nacional, nos finais da época medieval e começos da moderna (Santos, 1995).
Ofício e sangue, originalmente tese de doutorado de Georgina Santos, apresentada em 2002 ao Programa de História Social da Universidade de São Paulo, trata aproximadamente do mesmo período e vai além, até o século XVIII, desta vez enfocando a Irmandade de São Jorge, que agregava mesteirais da corporação dos chamados ofícios de ferro e fogo. Estes incluíam desde atividades relativas ao atendimento curativo até a produção de armas brancas e de fogo, agregando barbeiros, armeiros, ferreiros, serralheiros e os que se dedicavam a ofícios afins.
A irmandade foi fundada em Lisboa em 1558 mas, no intuito de compreender a relação devocional dessa associação confraternal com o seu santo padroeiro, também padroeiro de Portugal desde o século XIV, a autora dedica o capítulo inicial do livro à análise das circunstâncias históricas nas quais emergiram diferentes representações de são Jorge e de como estas foram incorporadas ao imaginário político e religioso em Portugal. Inicialmente apropriado pela dinastia de Avis, em fins do século XIV, são Jorge passou à devoção popular na figura de protetor do reino. A adoção de tão 'celebérrimo' padroeiro é apontada como um fator que contribuiu para os privilégios que vieram a ter a bandeira e a irmandade.
Os capítulos seguintes são dedicados ao estudo das formas de associação e aos saberes dos homens da corporação de ferro e fogo, assim como aos regulamentos que incidiam sobre eles (capítulo II); e ao funcionamento interno da Irmandade de São Jorge, sua relação com a bandeira e sua atuação social (capítulo III). Neste último, destaca-se a discussão dos vínculos entre os irmãos de são Jorge e o Santo Ofício português. Entre os membros da irmandade, um grupo de irmãos eleitos pela Mesa participava das procissões e autos-de-fé da Inquisição, o que constitui evidência do seu status social e religioso. Os barbeiros de barbear, uma das profissões que integravam a 'cabeça' da bandeira, atuavam como 'sangradores dos cárceres', atendendo, junto com médicos e cirurgiões, aos encarcerados acometidos de moléstias, o mais das vezes causadas pelas condições insalubres do local ou decorrentes das penas e torturas a que eram submetidos. Além disso, o capítulo evidencia como, ao pautar a seleção de seus novos membros no cumprimento do paradigma de cristão propalado pelo Santo Ofício, principalmente no que dizia respeito à pureza de sangue, e ao ter um número crescente de associados que atuavam como familiares da Inquisição, a Irmandade de São Jorge contribuiu para acentuar a inserção e legitimação do Santo Ofício e de seu ideário no tecido social português.
De especial interesse para a história social da medicina portuguesa é o capítulo IV, intitulado "Mestres na arte de sangrar". Georgina Santos discute as trajetórias pelas quais o domínio da técnica de cura predominante na Idade Média e em boa parte da época moderna a flebotomia , uma atividade que se localizava na fronteira entre as artes mecânicas e as artes liberais, propiciou aos barbeiros, para além do ingresso nos quadros da Inquisição, a possibilidade de atuarem no Hospital Real de Todos os Santos. O hospital foi fundado por dom João II, cujo reino se estendeu de 1481 a 1495, e teve seu primeiro regulamento escrito em 1504. Com base nesse regulamento, em petições de indivíduos que desejavam trabalhar como flebotomistas no Hospital Real e no Santo Ofício, e em tratados sobre a arte de sangrar, a autora explora os tipos de cura oferecidos por barbeiros e cirurgiões, a rivalidade que se desenvolveu entre esses dois ofícios e outros aspectos do contexto médico da Lisboa moderna.
O capítulo apresenta um bem-informado quadro dos fundamentos do discurso médico para a sangria, argumentando com propriedade que, apesar da emergência, no século XVI, de novas abordagens e conhecimentos ligados à observação empírica, os pressupostos da medicina hipocrática e galênica continuaram dominando o pensamento médico até pelo menos o século XVII.
Boa parte do que é dito sobre a prática do tratamento médico funda-se no Regulamento do Hospital Real de Todos os Santos. Aqui emerge o problema de ter-se que usar documentação regimental na tentativa de compreender práticas e relações sociais no passado, ainda mais num contexto caracterizado por uma considerável flexibilidade no que tange ao cumprimento de regulamentos. Isso é ilustrado pelas atividades profissionais e relações do médico espanhol Afonso Rodrigues de Guevara (datas não conhecidas) em Portugal, conquanto se trate de um indivíduo pertencente a um setor social distinto do abordado centralmente por Georgina Santos. Guevara, que havia estudado anatomia em Bolonha, era um conhecido professor de anatomia da Universidade de Valladolid quando o rei dom João III (1521-1557) o convidou para ministrar essa disciplina em Coimbra, como parte da reforma da universidade, empreendida pelo monarca. Guevara teve um encontro com o rei e a rainha em 1550. Segundo o que relata em seu livro (Guevara, 1559, dedicatória), ele dissecou o coração de um animal na presença do casal real, bem de acordo com o caráter espetacular que a prática da anatomia havia adquirido na época (ver Wilson, 1987). Guevara começou a ensinar em Coimbra em 1556, pouco antes da morte de dom João III. Sua amizade com a rainha Catarina lhe valeu muitos favores. Em 1557, uma cadeira de cirurgia foi criada na Universidade, para que ele a lecionasse junto com a de anatomia. Apesar de ter duas disciplinas a seu encargo, atas do conselho da Universidade indicam que ele se ausentava freqüentemente, para viajar para a corte em Lisboa e para a Espanha. Entre as dissecções anatômicas mencionadas em seu livro, incluindo anatomias em corpos humanos, Guevara apenas uma vez faz referência a dissecções praticadas em Coimbra durante o tempo em que ali esteve ensinando, e estas foram feitas em corpos de animais (Guevara, 1559, p.269).
Em 1561 Guevara mudou-se para Lisboa, sendo nomeado médico da rainha e do Hospital de Todos os Santos, no qual lhe foi confiada a tarefa de organizar o ensino de anatomia e de cirurgia. Apesar de conhecermos uma determinação obrigando-o a praticar anatomia no hospital, não há indicação, nas fontes, quanto ao cumprimento dessa ordem. Em resumo, tudo leva a crer que, apesar de ter sido um anatomista competente, potencialmente capaz de exercer uma importante influência no que concerne à anatomia e à observação empírica, Guevara pouco fez na universidade e no hospital. Sua participação nas atividades da corte e nos feitos militares parece ter sido mais intensa que sua performance como educador. Isso é sugerido pelo fato de que ele se encontrava entre os soldados e nobres aprisionados em Alcácer-Kebir (1578), onde a nata da nobreza portuguesa, incluindo o rei dom Sebastião (que reinou de 1568 a 1578), foi vencida e morta na tentativa frustrada de invadir o Marrocos (Lemos, 1899, v.1, p.221-223; Costa Santos, 1925, p.23ss.; Rocha Brito, 1937, p.56-62).
Ao trabalhar com fontes que permitem uma visão das falas, estratégias de inserção institucional e expectativas de barbeiros e cirurgiões, Georgina Santos preenche uma lacuna na história da medicina portuguesa, que enfatizou recorrentemente a dificuldade de se discutir os agentes associados à cura que não aqueles formados nas universidades, atribuindo essa dificuldade à estreita relação dos primeiros com um universo no qual predominava a oralidade. Porém, é relevante chamar atenção para o fato de que essas mesmas fontes registros de solicitações de indivíduos que pleiteavam sua incorporação aos quadros da Irmandade de São Jorge, do Hospital de Todos os Santos e do Santo Ofício , pela natureza dos critérios de ingresso nas instituições em questão, excluíam os que tinham qualquer ligação com sangue mouro, negro ou judeu. Se era prescrito por regulamento que a licença para o atendimento nas tendas, nos cárceres da Inquisição e no Hospital Real estava restrita apenas aos homens de sangue 'limpo', isso não significa necessariamente a ausência de praticantes médicos pertencentes às chamadas 'raças infectas', em especial judeus e mouros. Estudos e documentos indicam a importância destes no contexto médico português (ver Bellini, 1992, cap. 3; 2001, p.65-68). É bem verdade que focalizam o grupo letrado, mas neste também, por lei, devia haver restrições a mouros e judeus. A complexidade das interseções entre a medicina e os conflitos étnico-religiosos em Portugal é bem ilustrada numa passagem da alegoria sobre filosofia moral intitulada Ropicapnefma (1532), de João de Barros (1983), na qual a Vontade, um dos personagens do diálogo, que argumenta a favor dos valores seculares, pergunta ironicamente: "Qual foi o médico judeu ou mouro que não fosse a sua vista mais saudável a um cristão infermo que a dum triste e carregado confessor?" (Barros, 1983, v.II, p.28).
A presença de judeus no exercício da medicina em Portugal parece estar ligada à relação histórica mais geral desse grupo, tanto com a medicina letrada quanto com a prática médica junto à população como um todo. A grande incidência de médicos judeus em terras portuguesas, no século XVI, deve-se parcialmente à expulsão destes da Espanha, em 1492 (Jorge, 1914, p.19-20; Pina, 1952, p.398-399). No entanto, bem antes dessa data os reis lusitanos os empregavam, e no reino havia muitos deles, assim como cirurgiões judeus (Ferreira de Mira, 1947, p.50-52; Friedenwald, 1967, v.2, p.613-700, esp. p.691-694).
No domínio do saber letrado, no período que precedeu a atividade máxima da Inquisição, intelectuais judeus, oficialmente considerados cristãos-novos, mas que em certos casos preservavam secretamente seus costumes ancestrais, ocuparam posições de destaque na corte e na universidade. Por exemplo, os médicos Antonio Luiz (1565) e Thomaz Rodrigues da Veiga (1513-1579) ensinaram na universidade, apesar de serem descendentes de famílias judias. Se a família de Veiga tinha muito tempo antes rompido com a fé hebraica, este não parece ter sido o caso da família de Antonio Luiz, cuja ascendência era conhecida na época (Silva Dias, 1969, v.1, p.229). Os médicos judeus Rodrigo de Castro (1546-1627) e Garcia Lopes (datas não conhecidas) eram objeto de grande estima por parte das elites políticas portuguesas (Lemos, 1899, v.1, p.257-259, 307). Dessa forma, pode-se dizer que a distinção usual entre doutores cristãos e judeus, com os últimos excluídos da universidade (ver Siraisi, 1990, p.58-59), não se aplica sem ressalvas a Portugal.
Mas tais questionamentos não implicam que Ofício e sangue perde valor como contribuição para a história da medicina, assim como para a história social, política e cultural portuguesa. É livro inteligente, que faz uso de documentação vasta, variada e original, que muito enriquece a bibliografia sobre essas diferentes áreas de estudo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Costa Santos, 1925 O início da Escola de Cirurgia do Hospital Real de Todos os Santos, 1504-1565. Sebastião Lisboa: s.n.
Ferreira de Mira, Matias 1947 História da medicina portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade.
Friedenwald, Harry 1967 The jews and medicine. Essays. New York: Ktav Publishing House; Baltimore: Johns Hopkins University Press.
Guevara, Afonso 1559 In pluribus ex ijs quibus Galenus impugnatur ab Andrea Vesalio Bruxelési in Rodrigues de cõstructione & usu partium corporis humani, defensio. Coimbra: João de Barreira.
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Lemos, Maximiano 1899 História da medicina em Portugal: doutrinas e instituições. Lisboa: Manoel Gomes.
Pina, Luis de 1952 Alguns aspectos históricos das relações médicas luso-espanholas. Revista de Las Ciencias, Madrid, ano XVIII, n.2, p.397-411.
Rocha Brito, Alberto da 1937 A Faculdade de Medicina no século XVI. Coimbra: s.n.
Santos, Georgina 1995 A Senhora do Paço: o papel da rainha na construção da identidade nacional Silva dos portuguesa (1282-1557). Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ).
Silva Dias, José Sebastião da 1969 A política cultural da época de D. João III. Coimbra: s.n.
Siraisi, Nancy G. 1990 Medieval and early renaissance medicine. Chicago: s.n.
Wilson, Luke 1987 William Harvey's prelectiones: the performance of the body in the renaissance Theater of Anatomy. Representations, Berkeley, v.17, p.62-95.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Jul 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2007