Resumos
Tem como finalidade divulgar a tradução para o português da aula inaugural do geógrafo francês Paul Vidal de la Blache, na Faculdade de Nancy, proferida e publicada em 1873. Essa lição de abertura já revela os princípios gerais propostos pelo mestre incontestável da escola francesa de geografia, que nortearam a geografia francesa por longas décadas. Espera-se, ademais, esboçar o contexto político e institucional que envolve a institucionalização da geografia moderna em finais do século XIX, bem como a tessitura das alianças e trocas com os historiadores, configurando uma herança que Vidal de la Blache não se furtaria a incorporar e transformar.
história da geografia; institucionalização; Paul Vidal de la Blache (1845-1918); Europa e Mediterrâneo
The aim of this presentation is to divulge the translation into Portuguese of the inaugural lesson given by French geographer Paul Vidal de la Blache at the Faculty of Nancy, given and published in 1873. This inaugural lesson already reveals the general principles proposed by the undisputed master of the French school of geography, which oriented French geography for many decades. A description is also given of the political and institutional context involving the institutionalization of modern geography in the last nineteenth century and the web of alliances and exchanges with historians, configuring an inheritance that Vidal de la Blache readily incorporated and transformed.
history of geography; institutionalization; Paul Vidal de la Blache (1845-1918); Europe and Mediterranean
Apresenta-se aqui um texto do francês Paul Vidal de la Blache (1845-1918), de grande importância, tanto por seu valor documental quanto pela precoce e profunda reflexão teórica em que mergulha. Fruto da aula inaugural do autor na Faculdade de Nancy, proferida em 1873 – quase trinta anos antes do célebre Tableau de la géographie de la France – o artigo diz muito sobre a trajetória pessoal do historiador recém-tornado geógrafo. Por extensão, elucida fatores relevantes que participaram da transição por que passava a geografia em finais do século XIX, que a levava não só a uma consolidação institucional como a compor seu espectro teórico dominante. A aliança com uma ciência vizinha, a história – esta já bem posicionada nos quadros universitários – ajudou a tecer as redes político-institucionais em jogo, como também a tradição teórica que fora necessário incorporar e em seguida transformar. A íntima relação entre os jogos institucionais e a epistemologia verifica-se no caso em questão como nos ensina a história social da ciência.
Depois de se tornar doutor e após rápida passagem pela École superieur des lettres et sciences d’Angers, Vidal apresenta ao ministro da instrução pública Jules Simon sua candidatura à cadeira de geografia e história de Nancy, recentemente criada. Sua opção de lecionar em Nancy estava relacionada a questões estratégicas e mobilizou esforços de personalidades como Armand Dumesnil e Adolphe [?] Mourier (os nomes mais importantes da direção do ensino superior na França de então) a fim de convencer o ministro de suas qualidades para ocupar o cargo. O interesse de Vidal não é fortuito. Condições excepcionais rodeavam Nancy. Desde 4 de julho de 1870, a cidade se situava quase na fronteira com a Alemanha 1 , recebendo exilados das antigas Alsácia e Lorena, sob dominação prussiana. O próprio reitor estava empenhado em transformar a universidade em trincheira dos interesses nacionais franceses (Sanguin, 1993, p.106).
Nessa empreitada, a geografia ocupa papel de destaque: ‘usada para fazer a guerra’ pelos prussianos, cujos soldados apresentavam elevada consciência nacional; cabia, então, à ciência geográfica francesa desenvolver característica semelhante, construindo a unidade das paisagens regionais, num verdadeiro instrumento de educação cívica, além de preparar combatentes com espírito nacional e conhecimento do terreno. O esforço do jovem professor e dos aliados foi o de convencer o ministro de que o historiador poderia ser também um geógrafo à altura das exigências de uma ciência moderna. A transformação de uma geografia histórica clássica em uma disciplina ligada aos interesses nacionais foi demonstrada por Andrews (1986, p.178) como parte da consciência de políticos e reformadores da época, atravessando as discussões da Commission de l’enseignement de la géographie (Comissão de ensino da geografia), ligada ao governo francês.
Estudos em história da ciência demonstram como se constituíam círculos de afinidades, grupos de intelectuais candidatos a postos acadêmicos na institucionalização da geografia (Berdoulay, 2008, p.141-181). Antes da emergência dos vidalianos, o mais prestigioso, e o único que ocupava as poucas cadeiras universitárias, era certamente o círculo dos historiadores, que produzia geografia histórica num estilo erudito, preocupado em reconstituir os lugares e paisagens dos textos antigos. Vidal de la Blache, ainda que tocado pelas ideias de Alexander von Humboldt e Carl Ritter 2 , pelas viagens de campo que lhe despertaram o gosto pelo terreno (Roma, Oriente Médio, Egito, Argélia e Tunísia), era um historiador de formação − e a necessidade de demonstrar competência nesse antigo estilo fazia parte da tarefa prática que lhe era colocada pelo respeitado círculo dos historiadores-geógrafos.
No texto ora divulgado, entretanto, evidenciou-se que a herança dos historiadores, sem ser rejeitada, já se demonstra profundamente transformada. Se as mediações políticas podem servir como filtros às possibilidades epistemológicas, as novas injunções teóricas podem ser profundamente ricas. Para Vidal, já não se tratava de esboçar a geografia da Europa clássica e suas toponímias.
Nessa aula inaugural, fica evidente a íntima relação que a geografia mantém e deve manter com a história. Seu objetivo é demonstrar como as causas geográficas contribuem para definir e dar sentido à história. Vidal busca arrolar os fatores geográficos que concorreram para a construção da superioridade europeia. Essa afirmação de superioridade não estaria relacionada com o fenômeno da colonização? Um problema profundamente atual para sua época, portanto.
O geógrafo está francamente preocupado com a formação da Europa moderna numa construção de longa duração, com a qual a cronologia histórica de seu tempo não está habituada. Na formulação de uma nova geografia, transformou-se a escrita histórica, comprovada na recuperação posterior da obra de Vidal de la Blache pela escola dos Annales (Dosse, 2004, p.116).
Nesse encadeamento sui generis entre as condições físicas e a história, entram em causa a extensão dos litorais europeus, a abundância de ilhas, as correntes marítimas que permitiram amenidades ao clima e a intensidade das comunicações em um mundo relativamente fechado que é o Mediterrâneo. Além disso, o geógrafo se esforça por comprovar a centralidade do mar entre terras desde os tempos dos gregos, passando pela ‘regressão temporária’ do Islã, culminando na colonização da África.
E, no despertar do século XIX, novamente é o Mediterrâneo que deve reconquistar o centro. Essa concepção da centralidade do mundo, no fim da vida de Vidal, transforma-se junto com sua visão eurocêntrica, devido a sua sensibilidade à emergência dos EUA 3 no cenário internacional. Esse foi o motivo pelo qual alguns autores qualificaram seu pensamento como o germe da visão sistêmica (Berdoulay, 1983), que ganhou vida com a ideia de “economia mundo”, de Fernand Braudel (Arrault, 2008, p.76), ainda que este último tenha atribuído tal originalidade aos alemães.
As relações institucionais com políticos e historiadores, a transformação teórica por que passa a geografia e a concepção já prefigurada de um mundo global são os aspectos que por ora queríamos destacar. Deixemos esse precioso documento àqueles que desejam adentrar o pensamento do jovem geógrafo. É necessário não esquecer, porém, que a obra de Vidal de La Blache, apesar de difusa, possui a coerência sólida, bem como as transformações turbulentas, próprias a um grande pensador. Que esse texto seja uma porta de entrada ao pensamento do distinto geógrafo de personalidade sóbria.
REFERÊNCIAS
- ANDREWS , Howard F . The early life of Paul Vidal de la Blache and the makings of modern geography . Transactions of the Institute of British Geographers , London , v. 11 , n. 2 , p. 174 - 182 . 1986 .
- ARRAULT , Jean-Baptiste . Une géographie inattendue: le système mondial vu par Paul Vidal de la Blache . Espace géographique , Paris , t. 37 , n. 1 , p. 75 - 88 . 2008 .
- BERDOULAY , Vincent . La formation de l’école française de géographie (1870-1914) . Paris : Comité des Travaux Historiques et Scientifiques . 2008 .
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BERDOULAY
,
Vincent
.
Pespectivas actuales del possibilismo: de Vidal de La Blache a la ciencia contemporanea
.
Cuadernos Criticos de Geografía Humana
,
Barcelona
, ano
8
, n.
47
. Disponível em:
http://www.ub.edu/geocrit/geo47.htm
. Acesso em:
4
nov
.
2012
.
1983
.
» http://www.ub.edu/geocrit/geo47.htm - CAPEL , Horacio . Filosofia y ciencia en la geografia contemporanea . Barcelona : Barcanova . 1983 .
- DOSSE , François . História e ciências sociais . Bauru : Edusc . 2004 .
- MORAES , Antonio Carlos Robert de . A gênese da geografia moderna . São Paulo : Hucitec ; Annablume . 2002 .
- SANGUIN , André-Louis . Vidal de la Blache : un génie de la géographie . Paris : Belin . 1993 .
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1
Após a Guerra Franco-prussiana (1870-1871), a Alemanha saiu vitoriosa, conquistando as regiões de Alsácia e Lorena da França e fazendo recuarem as fronteiras francesas (Sanguin, 1993, p.106).
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2
Alexander von Humboldt e Carl Ritter, ambos geógrafos alemães, foram os principais nomes da primeira metade do século XX, reconhecidos internacionalmente. Humboldt era naturalista, e Ritter tinha formação original de historiador. Para mais informações, ver Capel (1983) e Moraes (2002).
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3
Vidal realizou uma viagem aos EUA em 1904 para participar do Congresso Internacional de Geografia.
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1 N.T.: Trata-se do curso de história e geografia.
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2 Ver John Lubock, Homme avant l’histoire, cap. VII (“Archéologie de l’Amérique du Nord”).
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3 A respeito da geografia submarina e da vida orgânica nas profundezas dos mares, ver os recentes trabalhos do doutor Carpenter (explorações do [navio] Porcupine em 1869 e 1870), do capitão Osborn etc. (em inglês) e de Pourtales e Minddendorf etc. (em alemão). Cf. Vivien de Saint-Martin, Année géographique, 1872, p.443 e seguintes; e Behm, Geographisches Jahrbuch, v.4, 1872, p.59 e seguintes.
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4 N.T.: Fleuve noir, no original. Essa corrente marítima também recebe o nome de Kuro Shivo, Kuroshio ou corrente do Japão.
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5 A quantidade de água que cai a cada ano, medida pelo pluviômetro, atinge dois metros nos Grandes Alpes. Ver Berghaus’ Physikalischer Atlas (Meteorologie), carta número 10.
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6 Daniel, Handbuch der Geographie, t.3, cap.1, §3, p.29.
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7 N.T.: Nome antigo do mar Egeu.
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8 Exploração do Porcupine no verão de 1870. Ver Geographisches Jahrbuch, t.4, p.68.
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9 N.T.: No momento em que escreve Vidal de la Blache, está nascendo uma diferença de terminologia entre ‘bacia mediterrânica’ e ‘região mediterrânica’. Enquanto a primeira denominação refere-se à bacia cujo mar esta ‘entre terras’, a segunda refere-se à nova região e ao conjunto dos mares cuja unidade natural, cultural e civilizacional começa a ser ressaltada no século XIX. Ver Bourguet, Marie-Noëlle; Lepetit, Bernard; Nordman, Daniel; Sinarellis, Maroula (Dir.), L’invention scientifique de la Méditerranée: Égypte, Morée, Algérie, Paris, Ed. de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1998; Deprest, Florence, L’invention géographique de la Méditerranée: éléments de réflexion, In: L’Espace géographique, v.1, n.31, p.73-92, 2002; Fabre, Thierry, La France et la Méditerranée: généalogies et représentations, In: Izzo, Jean-Claude; Fabre, Thierry, La Mediterranée française, Paris, Maisonneuve et Larose, 2000.
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10 N.T.: Desde as Cruzadas, língua atribuída aos europeus dos portos do Mediterrâneo oriental.
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11 N.T.: Denominação que, a partir da Idade Média e, sobretudo, na Idade Moderna, teria como equivalente a palavra feitoria.
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12 N.T.: Vidal de la Blache refere-se indiretamente à polêmica sobre a nomeação do canal de Suez. A companhia que o construiu entre 1859 e 1869 chamava-se Suez, de propriedade de Fernand de Lesseps. Ora, essa polêmica revela a mentalidade europeia quanto à fragilidade do Estado islâmico. O khédive do Egito, Ismail, chegado ao trono em 1863, deu seu nome ao porto do canal de Suez, que inaugurou em 1869. Porém, as negociações da dívida do Egito em relação aos Estados europeus o obrigam a aceitar outro nome. Ele deixou o trono em 1879, vítima de sua posição contrária à colonização. Ver Liazu, Claude, L’Europe et l’Afrique méditerranéenne: de Suez (1869) à nos jours, Bruxelles, Éditions Complexe, p.20, 1994.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Nov 2013