Resumo
Brasilianista e especialista nas relações entre eugenia, raça e educação, o historiador e diretor do Lemann Institute, Jerry Dávila, compartilha nesta entrevista algumas de suas experiências como estudioso desses temas. Seu livro Diploma de brancura, que teve grande repercussão e circulação entre os pesquisadores brasileiros, examina as relações raciais e eugênicas na educação brasileira entre 1917 e 1945. O entrevistado destaca os desafios em torno das pesquisas sobre eugenia na atualidade, suas impressões ao participar do seminário “História da eugenia: ampliando perspectivas”, realizado pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz em 2015, e seus recentes interesses de pesquisa.
eugenia; questão racial; educação; Diploma de brancura (livro); Jerry Dávila (1970- )
Abstract
A Brazilianist, historian, and specialist in the relationships between eugenics, race, and education, the director of the Lemann Institute, Jerry Dávila, shares in this interview some of his experiences as a scholar of these subjects. In Diploma of whiteness, a book that had major repercussions and circulated widely amongst Brazilian researchers, he examined how race and eugenics influenced Brazilian education between 1917 and 1945. Dávila highlights the challenges facing eugenics research at the present time, his impressions of the seminar “History of eugenics: broadening perspectives” held by Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz in 2015, in which he took part, and his latest research interests.
eugenics; question of race; education; Diploma of whiteness (book); Jerry Dávila (1970- )
Doutor pela Brown University, Jerry Dávila é atualmente professor da Universidade de Ilinois, EUA, e diretor do Lemman Institute for Brazilian Studies, fundado em 2009 com a finalidade de coordenar o ensino e a pesquisa sobre o Brasil desenvolvidos por alunos e professores norte-americanos em intercâmbio com pesquisadores brasileiros. Especialista na temática da questão racial, Dávila publicou obras expressivas sobre história do pensamento racial, política e educação no Brasil, nas quais articula os contextos brasileiro e internacional. Dentre esses trabalhos, destacamos Hotel trópico: o Brasil e o desafio da descolonização africana, 1950-1980, publicado no Brasil pela editora Paz e Terra em 2011, e Diploma de brancura: política social e racial no Brasil, 1917-1945, publicado em 2006 pela Editora Unesp.
Em especial, o livro Diploma de brancura tornou-se um referencial para os estudos que envolvem educação e raça no Brasil das primeiras décadas do século XX, sobretudo no que tange às discussões sobre eugenia, biotipologia e nação. O livro origina-se de sua tese de doutorado, na qual foi orientado por Thomas Skidmore, outro brasilianista com produção consistente sobre o Brasil e que ganhou notoriedade pela publicação, entre outras obras, do trabalho Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro, 1870-1930, publicado no Brasil em 1976 e desde então um clássico para os interessados no debate sobre a questão racial. Em estreito diálogo com Skidmore, Dávila avança nas discussões sobre as diferentes interpretações dos intelectuais brasileiros sobre raça, em especial aquelas que envolvem educação e eugenia.
Partindo da recepção da historiografia brasileira em relação à obra Diploma de brancura, conversamos com o professor Jerry Dávila sobre suas pesquisas no Brasil, em especial a que resultou no livro, e sobre seu posicionamento como brasilianista a respeito da questão racial no país. Interessa-nos saber como a eugenia tomou parte no debate sobre a educação em um período em que ela frequentou as arenas políticas e no qual diversos setores da sociedade dedicaram-se a pensar um “tipo brasileiro”.
Dávila também compartilhou conosco sua experiência como professor da Universidade de Ilinois na abordagem da temática racial e da eugenia no Brasil com seus alunos, em tempos em que o preconceito de cor reaparece como ferramenta de opressão contra os “não brancos”.
Finalmente, o professor registra suas impressões sobre o minicurso “História da eugenia: ampliando perspectivas”, realizado na Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz, RJ entre 3 e 5 de agosto de 2015 e organizado pelo pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz Robert Wegner e pela professora da Universidade de Michigan Alexandra Minna Stern. Ele sublinha a contribuição do evento para as discussões na historiografia sobre eugenia. Gostaríamos de tornar públicos nossos agradecimentos ao professor Jerry Dávila pela disposição em nos conceder esta entrevista.
Leonardo Dallacqua de Carvalho
Igor Nazareno da Conceição Corrêa
Inicialmente, gostaríamos de ouvi-lo sobre o percurso que o levou à publicação de Diploma de brancura.
Originalmente, o tema de minha tese de doutorado era o nacionalismo na escola durante a Era Vargas. Mas, nas pesquisas em arquivo, encontrava cada vez mais fontes sobre temas como o ensino de puericultura, fichas antropométricas, higiene mental etc. Não sabia o que fazer com esse material, nem entendia seu significado. Depois de uns meses no Brasil, tive de voltar para os EUA por causa de um falecimento na família, e nessa viagem me reuni com meu orientador, Thomas Skidmore. Ao mencionar a documentação que estava encontrando nos arquivos, ele me deu o livro The hour of eugenics, de Nancy Stepan.1 Comecei a lê-lo já durante o voo de volta ao Brasil. Quando o avião pousou, já havia adquirido uma compreensão inicial do tema que viria a desenvolver em Diploma de brancura.
Sendo um brasilianista, como percebe a construção de raça e cor na trajetória do Brasil?
O principal desafio é a ambiguidade de raça e cor, e sobretudo, das relações raciais no Brasil. Num país caracterizado pelo que Florestan Fernandes qualificou como “preconceito de não ter preconceito”, o racismo e a discriminação têm sempre estado presentes, e em certos casos, de forma bastante pronunciada, ainda que sem a severidade que se observou nos EUA ou na África do Sul. Como os indivíduos expressam seus sentimentos de variadas maneiras, percebe-se uma acentuada tendência a não assumir seus preconceitos publicamente. Isso cria uma enorme dificuldade para quem se propõe a analisar as relações raciais: embora a desigualdade racial no Brasil seja enorme, e a discriminação racial, persistente no decorrer de sua história, os registros dessa discriminação são lacônicos.
Eugenia e educação são duas áreas muito interessantes para se estudar questões de raça. A eugenia abre uma janela para múltiplas percepções de raça e cor e a relação entre essas percepções. O ensino público, por sua vez, como outras instituições e práticas, é uma expressão dos valores vigentes em uma sociedade – entre elas, valores sobre raça. E mais: sistemas de educação, como outras instituições, criam registros que subsidiam o trabalho do historiador dedicado a analisar as relações raciais.
Como “brasilianista”, enfrento também o desafio epistemológico de pressuposições sobre relações raciais que são produtos da cultura dos EUA. E esse desafio é complexo: não há apenas a obrigação de reconhecer diferenças entre percepções e definições no Brasil e nos EUA. Também há a necessidade de perceber que existe uma correlação entre as relações raciais nas duas sociedades, embora essa seja distinta das concepções do pesquisador. Ou seja, o imaginário sobre as relações raciais nos EUA e, sobretudo, a história da segregação alimentam percepções sobre relações raciais no Brasil. Não é por acaso que a história das relações raciais é uma das mais ricas áreas de estudos comparados e transnacionais.
Quais desafios você encontrou em termos de fontes e bibliografia com relação à eugenia?
O estudo de relações raciais é um desafio em si, porque é difícil achar fontes que tratam de experiências tão ambíguas e informais. O apartheid ou a segregação no sul dos EUA intencionalmente criavam registros de sua atuação. Mas esses países também tinham e continuam tendo discriminação informal, semelhante à experiência brasileira. Essa discriminação informal é, em todos os casos, muito mais difícil de documentar. Nesse sentido, as fontes sobre práticas eugênicas na educação pública brasileira eram mais uma solução que um desafio: criavam um retrato de pensamento e valores por um lado, e, por outro, mostravam as maneiras pelas quais esse pensamento era transformado em políticas públicas.
O que mais o surpreendeu ao analisar a questão racial e sua relação com a educação e as instituições educacionais no Brasil?
O que mais me surpreendeu foi a intensidade do impacto do pensamento eugênico, tanto como norteador de projetos de expansão e reforma escolar quanto no cotidiano dos professores e alunos. No contexto brasileiro, a eugenia forneceu um impulso, uma lógica e uma gama de práticas que conformaram a renovação e a expansão da escola pública no Brasil. Poderíamos dizer que o projeto da escola pública universal no Brasil é inseparável da história da eugenia.
Em Diploma de brancura focalizei a experiência do sistema educacional do antigo Distrito Federal, mas também considerei tendências nacionais. No Rio de Janeiro, vemos a influência da eugenia explicitada na organização administrativa, que incluía um Serviço de Antropometria, um Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental, e um Serviço de Testes e Medidas, que aplicou muitos dos instrumentos debatidos na eugenia para diferenciar pessoas consideradas mais e menos qualificadas. Dentro da escola, vemos o pensamento eugênico ampliar-se no currículo, que incluía desde o ensino da puericultura – cuidados para a mãe gestante e a criança – para meninas, até a separação de alunos por medidas e testes. Há mesmo o pedido de uma quadra de basquete feito por alunos do Colégio Pedro II, que utilizaram argumentos de teor lamarckiano e de linguagem técnica sobre robustez para destacar a necessidade da quadra para propósitos eugênicos.
Muitos dos líderes do movimento eugenista no Brasil estavam envolvidos no sistema escolar do Rio de Janeiro ou de outros estados; figuras como Afrânio Peixoto, Antonio Carneiro Leão, Isaias Alves e Bastos D’Avila. E vemos a influência de pensamento eugênico entre os principais articuladores da reforma de ensino conhecida como a Escola Nova,2 como Fernando de Azevedo, Manoel Lourenço Filho e Anísio Teixeira. Essa difusão das concepções eugênicas era reflexo de sua época: a eugenia teve muita influência e prestígio nas ciências sociais no Brasil e no mundo durante as décadas de 1920 e 1930. Mas o que é notável no contexto do ensino público é a força de ideias eugênicas derivadas do neolamarckismo: a noção de que o ambiente e a cultura podiam inibir ou nutrir o desenvolvimento e mudar a condição de uma população foi um forte impulsionador para políticas públicas em áreas como educação e saúde. O poder do pensamento eugênico ajudou a acelerar o desenvolvimento do ensino público, porque a escola seria um dos espaços privilegiados para redimir uma população diagnosticada como deficiente pelos defensores da eugenia.
A ligação entre eugenia e escola teve efeitos contraditórios: por um lado, concentrou esforços, recursos e técnicas para ampliar a educação pública num molde que alcançava famílias até então excluídas. Mas, por outro, os conceitos eugênicos que nortearam as escolas e ordenavam os alunos e professores tendiam a definir como deficientes as pessoas negras ou provenientes de meios pobres. Em vez de exclusão, a presença do pensamento eugênico no ambiente escolar resultou numa moderna inclusão marginalizadora.
Em suas aulas em Illinois, como seus alunos interpretam os problemas raciais no Brasil?
Eu tento colocar a experiência brasileira em diálogo com o quadro das relações raciais nos EUA. A história brasileira traz questões importantíssimas para a interpretação da história norte-americana. Cada vez mais, as relações raciais no Brasil despertam interesse por lá, onde atualmente casos de violência policial em comunidades negras chamam atenção para a persistência da desigualdade racial, como o caso de Ferguson, Missouri, em que um jovem negro desarmado foi morto em 2014, uma tragédia que se repete em inúmeras outras cidades (como em Tulsa, Oklahoma). Isso coincide com o momento em que o Supremo Tribunal Federal dos EUA está desmantelando políticas de ação afirmativa, sob o argumento de que tais políticas correspondem às ações de discriminação do passado. A experiência atual do Brasil oferece um contraponto, uma vez que a implementação de políticas de ação afirmativa responde ao diagnóstico de desigualdade entre a população negra e as demais na sociedade contemporânea. É uma análise mais crítica.
Esse tipo de comparação envolvendo Brasil e EUA tem uma longa história. Na década de 1940, o historiador Frank Tannenbaum inspirou-se no trabalho de Gilberto Freyre para imaginar o Brasil como uma alternativa positiva à experiência estadunidense de segregação.3 O polo inverteu-se depois dos avanços nos direitos civis dos afrodescendentes nos EUA, gerando uma comparação negativa que criticava a suposta falta de reação contra a discriminação racial no Brasil. Estamos vivendo uma nova virada do ciclo.
Como observa o campo dos estudos da eugenia hoje?
Nos últimos 20 anos, o campo de estudos da eugenia, tanto no Brasil quanto internacionalmente, tem se tornado cada vez mais amplo e dinâmico. Por um lado, entendemos cada vez mais o quanto a eugenia serviu como um circuito de conhecimentos entre diversas áreas de investigação científica e fomentou a circulação transnacional de ideias científicas e sociais. Por outro lado, a inquirição de arquivos e fontes está ampliando gradualmente nossa compreeensão da extensão em que as pessoas foram submetidas a intervenções eugênicas como a esterilização involuntária.
Como avalia o seminário realizado na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz sobre o tema da eugenia no segundo semestre de 2015, do qual participou com outros pesquisadores brasileiros e norte-americanos?
Sendo a Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz um eixo de estudos sobre a história da eugenia nas Américas, um seminário como esse, realizado em 2015, reflete a evolução desse campo de pesquisas e os diversos interesses que ele alimenta. O curso teve participação de alunos e professores de vários estados de Brasil, Peru e EUA. O organizador do curso, Robert Wegner, discutiu os laços entre eugenia e zootécnica. O professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná Vanderlei Sebastião de Souza e a professora da Universidade Federal de Minas Gerais Ana Carolina Vimieiro-Gomes discutiram, respectivamente, os debates entre o antropólogo Edgard Roquette-Pinto e o médico eugenista Renato Kehl, e as redes de pesquisa e colaboração na área de biotipologia. A coorganizadora do evento, Alexandra Minna Stern, da Universidade de Michigan, apresentou novas tendências de estudo da eugenia nos EUA, destacando o uso de fontes sobre as esterilizações involuntárias e suas interpretações na historiografia atual. No curso, enfatizei três questões sobre a eugenia que acho especialmente interessantes: que era uma área de atuação científica que esteve sempre vinculada a projetos políticos de construção da nação e do Estado; que estudos e práticas de eugenia contribuíram para conectar áreas de pesquisa e pensamento científico; e, por fim, que ela serviu para orientar políticas públicas em diversas áreas.
Como sabemos, embora teorias eugênicas tenham circulado e sido debatidas internacionalmente, os projetos e discussões por elas inspirados manifestaram-se de modo particular em cada país, ou mesmo de acordo com a região do país. Essa expressão local da eugenia foi produto de circunstâncias intelectuais, sociais e econômicas, mas foi especialmente delimitada pelas dinâmicas específicas de formação de cada Estado e da nação. Por que Estado e nação? Estado porque o pensamento eugênico serviu para ordenar e fornecer lógicas para a atuação de governos sobre suas populações, alimentando projetos de criar saberes, estabelecer controle social e moldá-las em áreas tão diversas quanto a criminologia e o saneamento. E formação nacional devido aos esforços de definir e orientar a suposta natureza da nação e de seu povo por meio do controle da imigração, da migração interna e da reprodução.
Outra questão que acho fascinante é a maneira como a eugenia formou conexões e diálogos – ou seja, circuitos – entre disciplinas e campos de investigação científica novos ou diferentes dos existentes. Essa tendência ocorreu, em grande parte, por causa de dois fatores: um foi o debate bastante presente sobre o que era propriamente a eugenia e como devia ser praticada – começando pela diferença entre abordagens genéticas mendelianas e neolamarckianas; o outro foi que a eugenia abrangeu a atuação em políticas públicas, o que gerava espaço para diversos cientistas definirem intervenções nessas políticas privilegiando seus respectivos campos. O resultado foi que a eugenia abriu um espaço de diálogo entre pesquisadores de áreas como psicologia, medicina, antropologia e zootecnia. Tornou-se também um espaço de articulação de pequenos campos ainda não bem consolidados.
Por fim, a eugenia incentivou e orientou políticas públicas como a universalização do ensino por meio da reforma e expansão da educação pública.
Em qual sentido têm caminhado suas pesquisas?
Um dos desafios que enfrentei em Diploma de brancura foi a escassez de fontes que abrissem perspectivas sobre as percepções dos segmentos da população que foram alvo das políticas públicas e práticas escolares inspiradas pela eugenia. Os registros encontrados mostram entre as comunidades negras um claro reconhecimento da crescente exclusão de professoras e professores de cor, um campo de atuação profissional importante para as comunidades negras. Mas não revelam claramente como os pais e alunos compreenderam as normas eugênicas presentes nas práticas educacionais, ou como eles traduziram percepções sobre normas e práticas eugênicas para outras áreas de suas vidas públicas e privadas.
Lidei com essa questão das percepções em meu estudo seguinte, Hotel trópico: o Brasil e o desafio da descolonização africana. Pesquisei a circulação de diplomatas, artistas e intelectuais brasileiros em países africanos no contexto da descolonização nas décadas de 1960 e 1970. Por meio de história oral e fontes documentais, analisei a maneira como esses brasileiros refletiram sobre raça, identidade e nacionalidade. Continuo nessa vertente com minhas pesquisas atuais sobre denúncias contra a discriminação racial. Por exemplo, estou analisando casos levados à justiça sob a Lei Afonso Arinos, promulgada em 1951, procurando entender como os denunciantes definiam o que era discriminação racial e quais eram as provas que mobilizaram em suas denúncias.
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1
Nancy Stepan, The hour of eugenics: race, gender and nation in Latin America, Ithaca: Cornell University Press, 1991. Publicado no Brasil como A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina, Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
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2
Trata-se de um movimento em prol de reformas na área da educação que ganhou força nas décadas de 1920 e 1930 no Brasil. Seus propositores percebiam na educação um elemento indispensável para o desenvolvimento da nação e um direito universal da população.
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3
Ver Frank Tannenbaum, Slave and citizen: the negro in the Americas, New York: Alfred A. Knopf, 1947.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Dez 2016