Resumos
A autora trata dos aspectos políticos, institucionais e eleitorais dos partidos de esquerda no Uruguai e no Brasil, com referência ao seu legado histórico e sua cultura política atual, e enfoca as novas formas de fazer política introduzidas pela Frente Ampla e pelo Partido dos Trabalhadores, destacando sua capacidade de convocação sobre os variados movimentos sociais, e sua condição de representantes das "classes populares".
cultura política; esquerda; partidos políticos; democratização; Uruguai; Brasil
The author deals with the political, institutional and electoral aspects that characterize the left parties in Uruguay and Brazil, concerning their historical heritage and recent political culture. The main focus is the new political practices introduced by the 'Frente Ampla' and the 'Partido dos Trabalhadores', in what concerns their relationship with social movements and popular sectors.
political culture; political parties; democratization; Uruguay; Brazil
A esquerda no Uruguai e no Brasil: cultura política e desenvolvimento partidário
Constanza Moreira
Departamento de Ciência Política Universidad de la República, Uruguai
RESUMO
A autora trata dos aspectos políticos, institucionais e eleitorais dos partidos de esquerda no Uruguai e no Brasil, com referência ao seu legado histórico e sua cultura política atual, e enfoca as novas formas de fazer política introduzidas pela Frente Ampla e pelo Partido dos Trabalhadores, destacando sua capacidade de convocação sobre os variados movimentos sociais, e sua condição de representantes das "classes populares".
Palavras-chave: cultura política, esquerda, partidos políticos, democratização, Uruguai, Brasil.
ABSTRACT
The author deals with the political, institutional and electoral aspects that characterize the left parties in Uruguay and Brazil, concerning their historical heritage and recent political culture. The main focus is the new political practices introduced by the 'Frente Ampla' and the 'Partido dos Trabalhadores', in what concerns their relationship with social movements and popular sectors.
Key words: political culture, political parties, democratization, Uruguay, Brazil.
Introdução
Os partidos de esquerda no Brasil e no Uruguai apresentam, atualmente, processos de crescimento e consolidação muito significativos.
Essas esquerdas mostram vínculos contraditórios com os legados de seu passado, e mostram uma configuração específica que deve ser analisada. Parafraseando Huntington, poderíamos falar de três grandes "ondas de esquerda", que tiveram lugar na América Latina do século XX. Um primeiro momento assistiria à ascensão do comunismo e do anarquismo, que organizaram o primeiro sindicalismo dos anos 20. Uma segunda "onda" seria a que surge no contexto da Guerra Fria, marcada pela mobilização e luta armada, que caracterizaram algumas das mais importantes vertentes latino-americanas. A terceira "onda" da esquerda pós-ditadura na América Latina tem algumas características distintas: nasce e consolida-se no pós-Guerra Fria em contraposição ao impulso neoliberal do "Consenso de Washington"; é estatista, movimentista, keynesiana, social-democrata, essencialmente política e tem - como sempre - uma ampla capacidade de mobilização entre os movimentos sociais.
Brasil e Uruguai representam dois casos relativamente opostos em termos da consolidação e da institucionalização de um sistema político democrático: o Uruguai é uma das democracias mais velhas do continente e o Brasil, uma das mais recentes; o sistema partidário uruguaio aparece na literatura (Scully e Mainwaring, 1995) como um dos mais consolidados, enquanto o brasileiro aparece como o de menor institucionalização. Porém, tanto no Brasil quanto no Uruguai, a esquerda aparece como o partido de mais forte estruturação relativa, ao menos se for medido por sua disciplina parlamentar (Scully e Mainwaring, 1995; Buquet, Chasquetti e Moraes, 1998) e pela força da auto-identificação partidária de seus eleitores (Serna, 1998). Em ambos os casos, também, esses partidos possuem uma forte e quase exclusiva capacidade de mobilização entre os movimentos sociais das mais diversas naturezas. Finalmente, a esquerda disputou as eleições presidenciais passadas (e tudo leva a crer que o mesmo se dará nas próximas) em pé de igualdade com os maiores partidos nos dois países.
O objetivo deste trabalho é comparar as trajetórias políticas, institucionais e eleitorais dos partidos de esquerda no Uruguai e no Brasil, destacando diferenças e semelhanças em termos de: a) seu legado histórico e sua cultura política atual; b) seus vínculos com os movimentos sociais e com o resto do sistema político. O efeito combinado das trajetórias políticas dos partidos de esquerda, as transformações do sistema político produzidas como conseqüência das rupturas institucionais das décadas de 1960 e 1970, e os atuais processos de reforma do Estado e de liberalização econômica contribuíram para explicar o "êxito" das propostas de esquerda nos anos 90 nos dois países.
1. Democracia e desenvolvimento no Uruguai e Brasil: Uma comparação entre dois padrões de desenvolvimento institucional
Brasil e Uruguai diferenciam-se em termos de desempenho político, de forma notável, ao longo do século. O Brasil teve um regime competitivo entre elites1 1 Existem diferentes classificações, dependendo do critério escolhido. Neste caso remeto-me, já que ao longo do trabalho farei uso dele, ao esquema analítico de Dietrich Rueschemeyer, E.H. Stephens e John D. Stephens (1992). até 1930, um regime autoritário do tipo corporativo até 1945, uma democracia restrita entre 1945 e 1964, um regime militar entre 1964 e 1985 e uma democracia restrita entre 1985 e 1990. O Uruguai, por sua vez, não consolidou uma situação de competição política até 1903, foi uma democracia restrita desde então até 1919, e a partir dali pode-se considerar uma democracia plena, interrompida por dois períodos autoritários (1933-1942/1973-1984). Ao nosso ver, duas conseqüências derivadas da continuidade/ descontinuidade democrática em ambos os países serão decisivas para o desenvolvimento das esquerdas: o ritmo do processo de inclusão política e a capacidade de organização autônoma do sindicalismo.
Uruguai e Brasil diferenciam-se fortemente no processo de incorporação política. O processo de extensão da participação foi incompleto no Brasil, ou pelo menos muito pouco "inclusivo" até o primeiro período democrático (1945-1964), interrompido depois e só completado nos anos 90. A Primeira República não conseguiu estender a participação: antes de 1930, a porcentagem de votantes em relação à população total não passava de 4%. Em 1945, com a inauguração do primeiro período democrático da história do Brasil, somente 15% da população são integrados ao processo eleitoral (Schwartzman, 1982). No Uruguai, à retórica liberal do século XIX segue-se um "alargamento" da participação, bastante atípico na América Latina nos primeiros anos do século XX. A participação eleitoral efetiva sobe de 4,3% em 1908 para 15% em 1919, quando se universaliza o voto masculino. Mesmo o voto não sendo obrigatório até 1971, a participação eleitoral em geral supera, durante a primeira metade do século, 60% do eleitorado. Na mesma data que o Brasil, em 1946, o eleitorado no Uruguai incorpora 47,6% da população (Errandonea, 1994).
Quanto ao processo de competição, tanto o Uruguai como o Brasil estiveram longe de instaurar regras de competição política abertas, até meados do século. As eleições no Brasil, durante a Primeira República, em geral não eram competitivas, tendo como conseqüência que, em 1945, com a instauração da democracia, o país enfrentou simultaneamente a disputa partidária e a participação eleitoral. O Uruguai, apesar de haver conseguido integrar, através da cobertura partidária, quase todos os setores do país, teve uma disputa partidária bastante restrita até meados do século, constituindo o que alguns chamam um sistema de "partido dominante" (o Partido Colorado venceu todas as eleições até 1958). Usando os termos de Dahl, poder-se-ia dizer que enquanto o Uruguai evoluiu sua solução democrática em termos da "seqüência virtuosa" - institucionalização da competição política e ampliação da participação - o Brasil "abriu" simultaneamente ambos os espaços em 1945, com o conseqüente resultado de 1964 (Santos, 1988).
Os partidos cumpriram papéis muito diferentes no Uruguai e no Brasil, quanto à capacidade de articulação política dos interesses (tanto os "de baixo para cima" como os "de cima para baixo", usando a expressão de Rueschemayer, Stephens e Stephens, 1992). No Brasil, o papel de articulação política será desempenhado pelo Estado (Schwartzman usará a expressão "neopatrimonialismo" para descrever a forma como as classes dominantes tiveram e têm no Brasil influência direta sobre os poderes do Estado), o que foi reforçado pelo fato de que o período conhecido como "Estado Novo" (1930-1945) impediu a aglutinação política que havia possibilitado a transformação dos partidos oligárquicos em "partidos de massa". No Uruguai, em contrapartida, os partidos tiveram continuidade desde o século XIX. O fim das guerras civis no princípio do século XX possibilitaria a construção de um Estado democrático que os teria como principais administradores, e continuariam protagonizando a gestão governamental desse Estado sob diversas formas de coparticipação2 2 Distintas formas políticas foram utilizadas, ao longo da história política do século XX, para assegurar esse compromisso entre partidos, entre as quais o Colegiado (uma forma de governo ''duas cabeças'', em que as funções executivas supunham a coparticipação dos dois grandes partidos, e que foi implantada e eliminada sucessivas vezes até que a reforma constitucional de 1967 logrou eliminá-la definitivamente) é a mais conhecida. Esse sistema manifestou uma flexibilidade e uma duração enormes e os distintos regimes que se sucederam nunca lograram eliminá-lo por completo. A co-participação dos dois grandes partidos é a chave dessa ''antecipação'' de democracia irrestrita na região nas primeiras décadas do século. ao longo de todo o século.
Isso causou impactos decisivos sobre a capacidade de configuração corporativa que as elites têm nos dois países, com conseqüências para a organização autônoma do movimento sindical. O Brasil pode ser caracterizado como um sistema de intermediação de interesses fortemente "corporativo" desde 1930 até 1988, enquanto o Uruguai pode ser caracterizado como um sistema pluralista de relação entre interesses e Estado. Duas são as características que definem o predomínio de um padrão "corporativo" ou "pluralista" de organização de interesses: a) a autonomia de organização do movimento sindical; b) a capacidade de intermediação dos partidos entre sociedade civil e Estado. Em ambos os aspectos o Uruguai gozou das possibilidades de implantação de um estilo "pluralista" de relação entre sociedade civil e Estado, com mediação dos partidos políticos. Ao contrário, o sindicalismo no Brasil foi debilitado pela "usurpação de sua representação" pelo Estado. Para isso colaborou a composição de sua força de trabalho: massas rurais chegadas às cidades como conseqüência de um processo de urbanização mais rápido que o de industrialização, sem experiência de vida associativa, pouco qualificadas, afastadas das classes médias e camponesas e marcadas por uma grande heterogeneidade regional (Rodrigues, 1966; Esping-Andersen, 1985). Diferentemente do Brasil, o Uruguai constituiu um sindicalismo urbano nascido da indústria incipiente, concentrado na capital do país, que vinha das experiências associativas das migrações italiana e espanhola e que encontrou, em sua aliança com as classes médias, um recurso organizativo importante. Os dois países diferenciam-se também pelo valor de sua mão-de-obra, em um contexto de necessidade e escassez (Uruguai) ou superabundância (Brasil), ou "essa sociedade em que a força de trabalho não é nada, nem sequer chega a ser mercadoria..." [Sader, 1990:16], e pela maior ou menor necessidade de "enquadrar" ou "disciplinar" sua mão-de-obra, fruto de um modelo de acumulação intensivo. Nessas condições, a explicação de autores como Collier e Collier (1991), sobre o desenvolvimento do padrão corporativo, a partir de um dilema de ação coletiva, adquire sentido: o Estado resolve os problemas de ação coletiva dos sindicatos na medida em que proporciona os incentivos necessários para a filiação compulsória, resolve seus problemas financeiros e lhes outorga o monopólio da representação. A relação custos/benefícios da cooperação com o Estado parece ter sido muito diferente nos dois países, como conseqüência da estrutura do mercado de trabalho.
Uruguai e Brasil reagiram de modo similar diante da crise de 1929 e dos novos desafios que lhes impunha uma reinserção internacional. Os impactos da crise foram modernizadores e autoritários em ambos os países: o Brasil do Estado Novo (1930-1945) implica, porém, uma modernização mais radical do que a que a ditadura de Terra (1933-1942) pôde imprimir a um Uruguai já moderno. Ambos os países, durante a década de 1940, transitaram rumo a um período democrático financiado por um modelo de industrialização substitutiva de importações, característico do "desenvolvimentismo" impulsionado por organismos como a Cepal3 3 Os estudos sobre a América Latina (Rueschemayer, Stephens e Stephens, 1992) identificam dois padrões de ''industrialização substitutiva''. O primeiro é gerado graças ao estímulo da grande depressão e da guerra, e é compartilhado por Uruguai e Brasil com Argentina, Chile e México. O segundo ocorre entre os anos 50 e 60 e é compartilhado por Colômbia, Peru e Bolívia. .
As bases políticas (e o repertório cultural) dessa "primeira modernização" nos remetem ao fenômeno da "democracia populista", tão cara à tradição latino-americana, como diferente do fenômeno da democracia "representativa" (Rueschemayer, Stephens e Stephens, 1992; Mainwaring e Scully, 1994; Cardoso, 1972; Lafer, 1975). Brasil e Uruguai representariam uma e outra, respectivamente. Posteriormente isso terá impactos sobre a noção de "democracia delegativa" que O'Donnel (1992) empregará para descrever algumas democracias latino-americanas (e especialmente a brasileira), meio século depois. Em tal contexto, o Uruguai (junto com o Chile e, com ressalvas, a Costa Rica) parece ter sido a grande exceção no conjunto latino-americano.
O populismo brasileiro foi, por conseguinte, uma combinação de ordem liberal no plano político e de ordem corporativa no plano econômico. Isso gerou deslocamentos entre ambos os planos, o econômico e o político, com conseqüências negativas para a institucionalização do sistema de partidos. Santos, em Gênese e Apocalipse (1988), apontará, entre outras conseqüências, o divórcio entre o processo político-partidário e a dinâmica de disputa entre empresariado e classes trabalhadoras.
Não obstante, democracia populista e democracia representativa expressavam o mesmo desafio, ainda que no Uruguai o golpe de Estado possa ser pensado como "crise da democracia", e no Brasil, como resultado da democratização do sistema. No caso brasileiro, um sistema partidário que estava em vias de institucionalização entre 1946 e 1964, ao ser interrompido pelo golpe militar, revelou-se incapaz para sobreviver ao mesmo (Lavareda, 1991). Isso contrasta com a recuperação dos partidos, após os regimes autoritários da Argentina, Chile e Uruguai. No entanto, Uruguai e Brasil padeceram do mesmo conjunto de circunstâncias pré-golpe: alto grau de polarização e realinhamento partidário. Sob essa perspectiva deve-se atribuir ao aumento da representatividade dos partidos no Estado, a crise das instituições da democracia liberal e não vice-versa. No Uruguai, esse realinhamento partidário expressava-se no vertiginoso crescimento da esquerda, aliada a um setor sindical muito organizado, sendo ambos altamente desafiantes do status quo, em um contexto de forte polarização ideológica. No Brasil, esse realinhamento partidário significava uma ameaça ao status quo, dado o crescimento da facção "progressista" (o Partido Trabalhista Brasileiro) e o declínio das facções à direita (UDN e PSD). Mas se o golpe de Estado ocorre como conseqüência, entre outras coisas, de um realinhamento dos partidos em direção a uma política ideológica, a ditadura não pôde evitá-lo, ao menos a longo prazo. Quando os partidos emergem, no Uruguai, não emergem como "eram tradicionalmente", mas sim como eram imediatamente antes do golpe: o golpe não pôde apagá-los. Quando o sistema se recompôs no Brasil, existia já um novo ator sindical, e um novo ator que o varguismo ajudou a criar: o partido dos trabalhadores.
As distintas trajetórias institucionais de Brasil e Uruguai desembocaram em processos também diferentes de transição para a democracia. Usando termos correntes na literatura desses dois países, pode-se ilustrar essas diferenças como o "declínio da ordem regulada" (Brasil) e a "democracia restaurada" (Uruguai). De fato, a transição para a democracia no Brasil enfrenta o tema da "construção" da ordem política, ao passo que em relação ao Uruguai, dificilmente se poderia falar nesses termos.
As características "típicas" da transição brasileira, ao menos como aparecem mais ou menos consensualmente nos estudos sobre o tema, são basicamente três: a extensão do processo no tempo, a manutenção de mecanismos eleitorais e a altíssima renovação dos atores políticos. Essas características diferenciam notoriamente o Brasil do Uruguai, país que conhece um processo de abertura que dura aproximadamente quatro anos (1980-1984), onde a ditadura caracterizou-se pela "suspensão" de toda atividade político-partidária, e a taxa de renovação dos dirigentes partidários foi a mais baixa dentre os países que desenvolveram a transições no continente (Gillespie, 1991).
As interpretações sobre a abertura no Uruguai diferenciam-se das do caso brasileiro em quatro aspectos significativos: a) a abertura no Uruguai não obedeceu a "pressões de uma sociedade modernizada", posto que a sociedade e a economia uruguaias experimentaram uma considerável paralisação no período; b) por conseguinte, os militares não conseguiram legitimar-se "via desempenho", o que parece ter sido bastante diferente no caso brasileiro, ao menos em algumas etapas "exitosas" do modelo; c) os novos movimentos associativos, que parecem ter sido cruciais na emergência democrática brasileira, não conseguiram sobrepor-se no Uruguai à importância dos atores-chave do período democrático anterior: partidos políticos e sindicalismo; d) os partidos políticos no Uruguai foram "suspensos" e o regime não elaborou nenhuma proposta que os desafiasse, diferentemente do caso brasileiro, onde alguns partidos foram impostos "de cima" e o espectro político-partidário que emergiu da transição foi radicalmente distinto daquele que havia antes do golpe de Estado. Isso implicou, no caso uruguaio, que a configuração político-partidária anterior ao golpe, com o surgimento da esquerda como terceiro ator, se consolidasse no primeiro período posterior à transição democrática, transformando um bipartidarismo de mais de um século em um esquema tripartite, no qual a esquerda alcançou um terço do votos do país (a metade dos votos da capital e a maioria dos novos eleitores da "terceira onda democrática").
Podem-se destacar algumas semelhanças no contexto pós-transição dos anos 90 em ambos os países. Em primeiro lugar, Brasil e Uruguai parecem ser os dois únicos países da América Latina que exibem um sindicalismo relativamente autônomo, ativo, e com vínculos mais ou menos orgânicos com os partidos de esquerda. Em ambos os países, os partidos de esquerda parecem ter fincado suas bases eleitorais, chegando a disputar as eleições nacionais em pé de igualdade com seus adversários. Em segundo lugar, ambos os países experimentaram o mesmo "legado" da ordem ditatorial: a implantação de modelos econômicos "liberalizantes", que não sofreu descontinuidade até o momento. Em terceiro lugar, e como já foi mostrado, se em ambos os países o golpe de Estado caminhou ao lado de um importante "realinhamento ideológico" dos partidos, a ditadura não parece ter podido superar esse legado e o mapa político que emerge da transição confirma isso.
A década de 1990 encontrou Brasil e Uruguai com um certo "atraso" em relação à agenda que chilenos e argentinos haviam impulsionado. Brasil e Uruguai pareciam fortemente refratários às reformas "liberalizantes" e apareciam como as duas últimas economias inflacionárias da região. Os últimos anos, contudo, assistem à estabilização em ambos os países, e a um calendário de reformas que se acelera, via privatizações em massa no Brasil, e reformas institucionais no Uruguai. No Uruguai, a resistência de "reconversão" dos setores afetados pelo ajuste e a paridade de forças políticas no parlamento delineiam um cenário de difícil governabilidade, frente à fúria "liberalizante" que foi característica dos anos 90. Por outro lado, a deficitária integração da esquerda ao sistema político4 4 Basicamente estou me referindo à participação da Frente Ampla nos organismos públicos: Corte Eleitoral ou Tribunal de Contas têm sido os casos mais debatidos ultimamente. e a resistência dos partidos políticos tradicionais, privados de seus recursos de poder põem em questão a "paz social" ante uma eventual vitória da esquerda nas eleições presidenciais. O projeto brasileiro, ao contrário, coloca a preocupação com o funcionamento democrático, em uma comunidade política com um baixíssimo grau de integração, caso não se promovam políticas de integração social que gerem a solidariedade necessária para enfrentar a dupla tarefa de administrar a reforma e consolidar a democracia no país.
2. As trajetórias históricas e o desenvolvimento dos partidos de esquerda no Uruguai e no Brasil
A Frente Ampla surge em 1971 como uma coalizão de grupos e partidos de esquerda para disputar as eleições nacionais daquele ano. Em 1964 havia-se consolidado a iniciativa do movimento sindical no sentido de criar o que se chamou a Central Nacional dos Trabalhadores (CNT). O surgimento do PT implicou uma direção oposta: a consolidação do PT é anterior (1979) à consolidação da Central Única dos Trabalhadores (1983)5 5 Moacir Gadotti (1989) sustenta que o próprio dirigente do PT (Lula) assegurou que a precedência da consolidação do PT em relação à da CUT está guiada pela idéia de que, sem ação política, não seria possível convencer a classe trabalhadora de que a tomada do poder não se daria através das reformas convencionais. Nesse caso, a campanha eleitoral é usada mais como instrumento para levar a mensagem do PT aos trabalhadores do que para maximizar as possibilidades eleitorais em sentido estrito. que, defendendo inicialmente a tese do paralelismo sindical em oposição ao monopólio da representação das centrais sindicais tradicionais, é quem representa hoje, com maior legitimidade, o conjunto dos trabalhadores6 6 ''É inegável que a CUT vem atuando como a principal referência sindical para o conjunto dos trabalhadores brasileiros...'', sustenta Costa (1994:113). . Mas a diferença mais importante do ponto de vista da "conjuntura" é que o PT nasce na transição para a democracia brasileira. Por seu lado, a FA é, no Uruguai, uma reação à decadência econômica e política de um consenso esgotado: sua criação antecede em apenas dois anos o golpe de Estado, permanece em estado de "animação suspensa" (Gillespie, 1991) durante o longo período militar, e ressurge como força decisiva nos anos 90, destinada a romper definitivamente com o bipartidarismo que havia organizado o sistema político uruguaio durante mais de um século.
Algumas explicações para o surgimento da FA assentam-se no modelo desenvolvimentista do pós-guerra, na crise de legitimidade do bipartidarismo tradicional, na pauperização e na radicalização da classe média, que havia sido a base e a sustentação o modelo batllista, na "difusão" desencantada dos movimentos de esquerda latino-americanos, surgidos sob o influxo da Revolução Cubana, e no surgimento de uma nova "fonte" de socialização política, como o movimento sindical, que possibilitou a criação de uma cultura política diferente (Serna, 1998; Rama, 1995).
Quanto aos fatores que explicam o surgimento do PT, alguns de tipo "estrutural", vinculados ao esgotamento do ciclo econômico expansivo iniciado em 1968 (Sampaio, 1986), aliados às mudanças que a rápida industrialização do pós-guerra proporcionou em termos de composição da mão-de-obra (industrialização, urbanização, alfabetização7 7 Meneguello (1989:30) defende que a sofisticação do parque industrial e as profundas diferenças da estrutura produtiva, tanto no padrão de tecnologia e produtividade como na estratificação da mão-de-obra em níveis de qualificação, remuneração e condições de trabalho, são o que permite o surgimento de um ''novo sindicalismo''. ), são apresentados (Dirceu, 1986) para dar conta desse "novo ator" que é o sindicalismo independente. Independente de quê? De, ao menos, três legados: independente do Estado e da cooptação de cima para baixo, independente das elites tradicionais e de suas formas de representação política, e independente do legado histórico que fazia do Partido Comunista Brasileiro, o partido operário por cognome. Alguns autores (Meneguello, 1989) sustentam que, como no Uruguai, processos de pauperização e assalariamento das classes médias nos anos 60 incentivaram a mobilização de segmentos dessas que estimularam os movimentos sociais urbanos da década de 1970.
Independentemente das diferenças apontadas quanto ao momento do surgimento e à antecedência ou não da consolidação do movimento sindical, em relação à formação de um partido político das esquerdas, parece claro que: a) em ambos os países, a consolidação de um movimento sindical autônomo foi decisiva para a consolidação de um partido de esquerda que transcendesse sua condição de pequeno partido "ideológico", para se consolidar como partido "de massa"; b) em ambos os países, esses processos se verificam posteriormente à crise do industrialismo desenvolvimentista, alentados pelos movimentos sessentistas de "terceira onda" na América Latina: esses partidos são pacifistas, desejam chegar ao poder por meio das urnas, e geram uma cultura política específica (estatista, igualitarista, basista e movimentista), desencantada do monopólio da representação política tradicional; c) em ambos os casos a aliança sindicalismo-classes médias parece determinante das probabilidades de êxito da penetração partidária das esquerdas.
Do ponto de vista de sua constituição, também podem ser apontadas diferenças e semelhanças entre ambos. Enquanto a FA reconhece ao menos três vertentes - a dos partidos "ideológicos" anteriores (Partido Socialista e Partido Comunista), a do sindicalismo, e a da cisão dos partidos tradicionais (Partido Colorado e Partido Nacional) -, o PT reconhece entre suas bases: o movimento sindical "autonomista" da base industrial paulista do setor "de ponta" (indústria automotora), os movimentos cristãos de esquerda (Pastorais da Terra e do Menor, Comunidades Eclesiais de Base), assim como militantes e intelectuais provenientes das organizações políticas marxistas-leninistas (Partido Comunista Brasileiro, Partido Comunista do Brasil).
Uma primeira diferença entre ambos os partidos está dada por suas relações com o movimento sindical. Diferentemente da Frente Ampla, o PT possui, desde suas origens, uma identidade de "classe", que se manifesta na escolha de sua sigla e de seu principal representante (Lula, dirigente do movimento sindical do ABC paulista). A Frente Ampla, ao contrário, como seu próprio nome indica, começa como uma frente que reúne comunistas, democrata-cristãos, dissidentes blancos e colorados, socialistas e toda classe de independentes. Paradoxalmente, seu representante máximo é um militar, o general Seregni. Ainda que a FA se distancie nesse aspecto do PT, invocando uma identidade mais ampla, suas estreitas relações com o sindicalismo permitirão, como no caso brasileiro, que capitalize os votos dos trabalhadores sindicalizados, rompendo, no Uruguai, com a tese da "esquizofrenia sindical", que defendia que os trabalhadores leais ao movimento sindical de base comunista votassem nos partidos tradicionais nas eleições nacionais (Solari, 1991). O PT nasce com o primeiro sindicalismo independente, de base industrial. A FA nasce quando o sindicalismo independente já existe, porém no momento de maior industrialização que o desenvolvimento uruguaio conhece. Em ambos os casos, o sindicalismo se galvanizou quando o processo de acumulação estava exaurido (1960, no Uruguai; 1980, no Brasil).
É preciso buscar as origens do movimento sindical dos dois países nos imigrantes que, trazidos depois da Primeira Guerra Mundial, colaboraram com sua experiência associativa para consolidar o primeiro sindicalismo, de origem anarquista, que logo deu lugar ao sindicalismo de base comunista dos anos 20. No entanto, a trajetória do movimento sindical no Uruguai diverge, de forma muito significativa, não apenas da trajetória brasileira, marcada pelo autoritarismo, como também da trajetória argentina, com quem compartilhou boa parte de seu legado cultural e político. Essa divergência, ou "conjuntura crítica" (Collier e Collier, 1991), teve conseqüências políticas importantes não apenas para a consolidação de movimentos de esquerda como para a sorte da democracia em geral (Moreira, 1997; Rueschemayer, Stephens e Stephens, 1992).
O incipiente sindicalismo brasileiro, difícil de ser consolidado em um país de dimensão continental, caracterizado por enormes desigualdades regionais, com uma população fundamentalmente agrária e analfabeta, foi fortemente reprimido desde sua origem. O sindicalismo uruguaio, de base urbana, não apenas foi permitido, como incentivado, em um contexto de rápida expansão dos direitos sociais e grande desenvolvimento do Estado. A escassez e a abundância da mão-de-obra em um e outro país, aliadas à maior ou à menor necessidade de disciplinamento da mesma, como conseqüência de padrões de desenvolvimento agropecuário intensivos ou não em mão-de-obra (café no Brasil; criação extensiva de gado no Uruguai), explicam, em parte, a variação nos graus de repressão das organizações de trabalhadores (Rueschemayer, Stephens e Stephens, 1992). Como conseqüência, no Brasil se consolida um padrão corporativo de cooptação do sindicalismo, fortemente repressor e autoritário, desde os anos 30, conjuntamente com a suspensão da ordem liberal e de suas garantias. O atraso no estabelecimento dos "direitos sociais" no Brasil (como a lei de oito horas, as garantias sindicais, o seguro-desemprego, ou o direito a indenização) colaborou para que estes pudessem ser usados pelo populismo como "doação" ao movimento operário, assegurando certas bases de lealdade.8 8 De fato, um dos ''legados históricos'' do PT, o qual o partido renega, é a herança do ''trabalhismo'' do período populista. Getúlio Vargas criou o Partido Trabalhista Brasileiro. Assim foram recebidos do ''pai dos pobres do Brasil'' não apenas o sindicalismo ou o salário mínimo, como também um partido ''criado'' para eles (Gadotti, 1989) Mas o sindicalismo "varguista" no Brasil, originalmente concentrado nas empresas estatais, começou, a partir da segunda metade dos anos 50, a desenvolver-se com mais intensidade no setor privado, nas indústrias "de ponta" (como a automobilística) e nos centros urbanos mais importantes (como São Paulo). Esse sindicalismo tem outra experiência de luta e uma posição de independência em relação ao Estado. É esse sindicalismo que levantará a bandeira do Partido dos Trabalhadores no final dos anos 70.
Em ambos os países, o sindicalismo foi um dos principais alvos da política de repressão que caracterizou a ascensão das Forças Armadas ao poder. Entre 1964 e 1979, no Brasil, e entre 1971 e 1984, no Uruguai, os principais líderes sindicais foram presos e suas organizações foram postas na ilegalidade. Diferentemente do Brasil, o movimento sindical uruguaio está unificado. No Brasil, a CUT divide o espaço sindical com a Força Sindical e a CGT, que mesmo muito limitadas em sua capacidade convocatória e mobilização, são parceiros privilegiadas dos governos (inclusive o atual) para negociar suas medidas e pactuar acordos.
Uma segunda diferença na conformação histórica das esquerdas uruguaia e brasileira é o peso e a penetração do Partido Comunista no movimento sindical e nos respectivos partidos de esquerda. No Uruguai, a base comunista foi central para a conformação do movimento sindical e a estruturação da esquerda (centralidade que foi se perdendo em conseqüência da crise do "socialismo real" principalmente nos últimos anos), enquanto no Brasil, apesar de o PCB preceder o movimento operário autônomo dos anos 70, "sua larga clandestinidade, sua submissão aos ditames de Moscou e as alianças à direita pelas quais manifestou especial preferência..."(Oliveira, 1986:11) implicaram certa resistência ao comunismo dentro do PT e certo afastamento das lideranças do novo sindicalismo em relação aos velhos líderes comunistas. Enquanto o PT lutou contra o Partido Comunista e suas tradições aliancistas, no Uruguai este foi o "coração" da Frente Ampla. O Partido Comunista, em suas variadas versões no Brasil, foi um antagonista declarado do Partido dos Trabalhadores em suas origens: desconfiou, como fruto de seu iluminismo leninista, de uma organização de trabalhadores feita pelos próprios trabalhadores; falou em "aristocracia operária"; tachou essa organização de "trabalhismo isolacionista", de "voluntarista e espontaneísta", de "reformista", de agente da social-democracia alemã, de radicais pequeno-burgueses e de satélites das comunidades eclesiais de base (Chauí, 1986:69). Aliou-se à Unidade Sindical, uma central com setores de prática moderada, que apostava numa abertura lenta, gradual e segura, optando pelo MDB, a oposição criada pelo regime.
Uma terceira diferença relaciona-se à inclusão dos movimentos cristãos. Ainda que a Frente Ampla tenha surgido sob a sigla Partido Democrata-Cristão9 9 Na Constituição do Uruguai de 1966 foi estabelecida uma diferença entre siglas partidárias transitórias e permanentes, que a atual reforma de 1996 suprimiu, sobre a necessidade de registrar-se como sigla para poder participar das eleições nacionais. A Frente Ampla teve que participar como Partido Democrata-Cristão em suas primeiras eleições de 1971. (um pequeno partido católico, tradicional, condenado a ser uma expressão minoritária em razão da forte tradição laicisista do Uruguai e da demanda desse eleitorado pelo Partido Nacional, que viesse a representar os "católicos progressistas"), o certo é que estes católicos não compartilham as características de radicalismo e movimentismo que balizaram a atuação de boa parte da Igreja brasileira, sob influência da Teologia da Libertação, incluindo facções como a Ação Popular (que fora dirigida pelo falecido Herbert de Souza, o "Betinho"), atuantes na época dos principais movimentos armados da esquerda no Brasil. Ainda que, em ambos os países, a Igreja tenha se inserido no espaço criado pela repressão ditatorial, congregando aqueles que se engajavam em campanhas de solidariedade às vítimas da repressão e pelos direitos humanos, as tradições movimentistas da esquerda católica brasileira contrastam fortemente com a moderação própria dos católicos mais progressistas no Uruguai, a ponto de sua participação na Frente Ampla (fortemente neutralizada pelas bases marxistas e leninistas trazidas pelo Partido Comunista e pelo Partido Socialista) ter sido relativamente efêmera, e cindiram como grupo, junto com a ala "direita" da FA nas eleições de 1989. Finalmente, a base cristã do PT parece ter sido muito mais refratária à política, mais basista e movimentista que seus pares no Uruguai. Isso parece também resultado de um movimento mais geral das esquerdas uruguaia e brasileira com relação ao resto do sistema político: a ruptura do PT com os outros partidos (fruto do modo pelo qual esses partidos haviam sido criados, isto é, "de cima para baixo") é sem dúvida mais radical que a da FA com seus pares, com quem suas próprias lideranças expressavam uma linha de continuidade.
Sob o ponto de vista de sua configuração ideológica, ambos os partidos, partindo de matrizes muito diferentes em sua origem, tenderam a convergir nos últimos anos, fruto da mesma atitude de resistência às políticas de ajuste e desregulação e à reforma do Estado.
As relações entre liberalismo e estatismo foram muito complexas na América Latina, e tiveram um significado diferente do que tiveram na Europa (Sader, 1995). Enquanto o Uruguai conseguiu amalgamar um componente definido de liberalismo político a um contexto fortemente estatista do ponto de vista econômico e social, no Brasil essas relações se expressaram de forma contraditória, dando lugar ao padrão corporativo de relação entre Estado e sociedade civil, que caracterizou as "más" democracias na América Latina (O'Donnell, 1992). As conseqüências desse vínculo entre liberalismo e estatismo sobre a cultura política foram distintas nos dois países, assim como as conseqüências sobre a ideologia das esquerdas.
Em O anjo torto, Sader mostra como no Brasil o liberalismo foi apropriado pelas oligarquias tradicionais que, "centradas na exportação de produtos primários e na importação de mercadorias industriais das metrópoles, souberam opor-se ... à ação protetora do Estado em relação ao mercado externo (reivindicando) o laissez-faire e a não-ingerência estatal na economia" (Sader, 1995, p. 73). No Uruguai, o Partido Nacional, que concentrou a direita pecuarista e oligárquica do campo (por oposição à fração batllista do Partido Colorado, estatista e industrialista, que governou durante a primeira metade do século), abrigou também concepções liberais no campo econômico, opondo-se à taxação "compulsiva" com que o Estado onerava a atividade pecuária para financiar sua indústria incipiente. Todavia, os dois partidos puderam transformar-se de partidos de "notáveis" em partidos de massa logo no início do século, e consolidar uma das primeiras democracias plenas do continente.
Diferentemente do Uruguai, o "estatismo antiliberalizante" no Brasil caminhou junto com a absoluta restrição dos direitos políticos e da disputa partidária durante os anos 30, e o interregno democrático entre 1945 e 1964 foi marcado pela ilegalidade do Partido Comunista. "Getúlio Vargas representou o estatismo e o antiliberalismo em versão ditatorial. Aqui, ser antiliberal, se por um lado significava ser ditatorial, implicava, por outro, ser a favor da industrialização e, junto com isso, do reconhecimento dos direitos sociais dos trabalhadores..." (Sader, 1995:75). Ao mesmo tempo, a velha esquerda comunista privilegiou, de acordo com ditames da URSS, a questão social e a defesa da soberania do varguismo. Os liberais apropriaram-se do tema da democracia. Em conseqüência, "a oposição na política brasileira era feita pelos que reivindicavam a defesa da liberdade e da democracia - à direita - e pelos que privilegiavam as conquistas sociais e a defesa da nação brasileira - à esquerda" (Sader, 1995:79). O PT chegou para romper com isso, para unificar a luta pela democracia e a questão social, mas o fez ao custo de renegar o legado da esquerda precedente e de aceitar um socialismo democrático, dentro dos padrões do capitalismo, mas com distribuição de renda (Costa, 1995:61).
As origens da FA no Uruguai, ainda que esse partido compartilhe com o PT a "amplitude democrática" de sua proposta socialista, fruto da unificação de "terceira onda" das distintas vertentes de esquerda, evidenciaram um componente marxista e socialista, como conseqüência do peso das facções marxistas em sua composição (e de sua importância no movimento sindical) e de seus fortes vínculos com o sindicalismo, que deram ao partido seu caráter combativo e militante, diferenciando-o dos partidos tradicionais.
A tradição democrática do PT teve que lutar não apenas contra um contexto autoritário, mas também contra a oposição às formas elitistas de fazer política dos partidos criados "de cima para baixo". A matriz classista do sindicalismo se potencializou com a "desconfiança na política" dos grupos cristãos e resultou em uma difícil combinação entre "movimento" e "partido", que o PT não parece haver superado totalmente até o presente. "Nascido no clima de enterro teórico e político de Marx e Lenin..." (Sader, 1986:163), o PT, diferentemente da FA, foi anticomunista, mas à semelhança dela, defendeu um socialismo democrático.
As bandeiras do PT foram mais amplas que as da FA, resultado das múltiplas frentes de batalha que a heterogênea sociedade brasileira abre: defendeu os direitos dos sem-terra, dos índios, dos negros, das mulheres.
As liberdades sindicais e políticas foram, no Uruguai, um resultado da transição desejado por todos. Enquanto a esquerda uruguaia havia combatido a "democracia burguesa", o PT teve que brigar duramente por ela (incluindo as liberdades partidárias, o direito de greve e a liberdade de organização sindical).
Os primeiros programas do PT direcionaram-se inicialmente a três frentes de luta: a luta pela democratização do sistema (uma de cujas bandeiras mais conhecidas seria a das Diretas-já, reivindicando a eleição direta para presidente da República), as reivindicações propriamente sindicais (salário, seguro-desemprego, redução da jornada de trabalho para 40 horas) e as demandas por uma "reforma estrutural" que transformasse a tão desigual distribuição de riqueza no Brasil.
A FA nasce com um programa reformista radical, de defesa dos direitos dos trabalhadores, e exigindo o cumprimento de "direitos humanos" e "legalidade", seriamente prejudicados pela execução das medidas de segurança que atentavam não apenas contra a ação de um movimento sindical particularmente ativo, mas também contra as ações guerrilheiras que se tornavam freqüentes na época e que denunciavam a nova doutrina da Segurança Nacional, que estava no auge no final da década de 1960.
As reformas estruturais sugeridas no início por ambos os partidos não eram diferentes: redistribuição de renda, fortalecimento do capital nacional em detrimento do estrangeiro, reformas agrária e tributária, fim da política econômica do governo, rompimento do acordo com o FMI, nacionalização do comércio bancário, não-pagamento da dívida externa, estatização dos meios de produção etc. Muitos anos depois, no final dos anos 90, as bandeiras do PT e da FA não são muito diferentes e estão fortemente orientadas à resistência às políticas de ajuste: contra as privatizações, contra a desregulação, contra o desmantelamento dos serviços públicos próprios do Estado de bem-estar, contra o desemprego entendido como conseqüência de uma política exclusivamente orientada à estabilização, e contra a transformação dos velhos "direitos sociais", transformados agora em privilégios (como a estabilidade dos funcionários públicos).
3. As esquerdas pós-transição e sua evolução eleitoral na última década
As esquerdas brasileira e uruguaia evoluíram em contextos partidários e institucionais completamente distintos, que colocaram restrições e ofereceram oportunidades diferentes ao seu desenvolvimento político. Se no Uruguai a esquerda teve que lutar com uma alta integração do sistema político, para "encontrar seu lugar", no Brasil, enfrentou o desafio de configurar-se como partido, em um sistema político desarticulado e diante de uma cidadania refratária à política.
Os partidos políticos uruguaios "históricos", o Partido Nacional e o Partido Colorado, antecederam à própria formação do Estado-nação, constituíram-se em fontes de identificação e em referências culturais para os cidadãos, consolidaram um sistema bipartidário que teria uma duração muito longa, e construíram o Estado uruguaio, ao final das guerras civis em 1903. Dividindo o país em duas metades, o Partido Nacional, com suas bases rurais, e o Partido Colorado, com suas bases urbanas, souberam conviver reinventando fórmulas de acordo que viabilizaram a governabilidade do Uruguai, e também conviveram na armação das conspirações que resultaram nos dois golpes de Estado e que souberam reunir direitas "blancas" e "coloradas", ainda que o Partido Nacional só tenha conquistado a primeira magistratura em 1958.
A crise dos anos 60, o surgimento da guerrilha e a derrubada do modelo industrialista caminharam junto com o surgimento de um terceiro ator: a Frente Ampla. Criada havia pouco e "estreando" nos duros e repressivos anos 70, obteve em sua primeira eleição 18% dos votos. Dois anos depois, sobreveio a ditadura, e durante a longa década em que esta imperou, os partidos e as eleições foram suprimidos. Quando o Uruguai recuperou sua democracia, a Frente Ampla recuperou seu espaço, incorporou os "desleais" (a guerrilha) e quebrou para sempre o bipartidarismo tradicional, obtendo a vitória por duas vezes consecutivas na capital do país. Atualmente é o partido que com maior propriedade pode ser chamado uma "família política": existe uma probabilidade de mais de 80% de que os filhos de pais "frentistas" também o sejam (nos partidos Nacional e Colorado essas probabilidades oscilam entre 20% e 40%).
O Brasil é apontado na literatura (Mainwaring e Scully, 1995) como um caso extremo de subdesenvolvimento partidário. Seus partidos são frágeis, instáveis, de pouco enraizamento na sociedade, e seus representantes políticos gozam de uma ampla autonomia de "saída" e "entrada", o que facilita uma mobilidade interpartidária muito alta. Diferentemente do Uruguai, como é mostrado na Tabela 1, o peso dos partidos históricos fundados antes de 1950 é desprezível no Brasil, enquanto no Uruguai alcança 70% do parlamento. Parte do desempenho dos partidos brasileiros pode ser explicada pelo fato de que nenhum outro sistema na América Latina experimentou tantas mudanças radicais, a maioria delas implementada em situações "de exceção" (sob regime autoritário). Em 1930, o Estado Novo suspendeu a atividade partidária dos velhos partidos "liberais", elitistas e oligárquicos. Somente em 1945, com o início do período democrático, pode-se falar em partidos "modernos". Os três partidos de maior solidez nesse período democrático foram o Partido Democrático Social (de centro-direita e bases rurais), a União Democrática Nacional (o mais conservador e de bases urbanas) e o Partido Trabalhista Brasileiro (o mais progressista e que cresceu rapidamente até disputar o lugar da UDN). Durante as duas décadas de duração da "democracia populista" (Weffort 1978), e em que pesem as limitações com que esta operou no período - ilegalidade do Partido Comunista em 1947 e proibição da participação eleitoral aos analfabetos (constituindo, os analfabetos, a maior parte da população) - , teve início um processo de institucionalização partidária, que foi interrompido pelo golpe de 1964. Contudo, e a despeito dos processos políticos nos países vizinhos, o governo militar no Brasil manteve uma espécie de atividade partidária (o Congresso continuou funcionando, em um contexto de limitada atividade eleitoral), impulsionada pelos dois partidos criados pela cúpula militar: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) - o partido oposicionista - e a Aliança Renovadora Nacional (Arena). Em 1974, essa atividade partidária começou a minar o regime militar, com a vitória do MDB nas eleições legislativas, que rapidamente se fizeram plebiscitárias. No entanto, nenhum desses dois grandes partidos conseguiria sobreviver plenamente até o final do século.
A Tabela 1 mostra alguns indicadores de "integração" do sistema político, volatilidade eleitoral, participação dos partidos "históricos" no parlamento, polarização ideológica, entre outros. À exceção do grau de polarização ideológica, alto no Brasil e no Uruguai, ambos os sistemas políticos figuram entre os desempenhos mais desiguais se comparados com seus pares latino-americanos.
Contudo, ambos os sistemas engendraram partidos de esquerda integrados, consistentes, fortemente disciplinados em sua atuação parlamentar e exibem dois dos mais ativos movimentos sindicais da América Latina. Como se explica isso?
Hoje em dia o PT é conhecido como o único partido ideológico, a única força política não comprometida com o regime de dominação vigente (Sader, 1990:173). Embora a FA compartilhe em boa parte dessa avaliação, sua trajetória mais longa e sua colocação privilegiada como força eleitoral semelhante à dos partidos tradicionais e como administrador da capital do país estão transformando-o, progressivamente, em um "partido tradicional", se por isso entendermos sua capacidade de transmitir identidades pelo mecanismo tradicional de socialização - a família (Aguiar, 1998).
Em segundo lugar, ambas as esquerdas compartilham das incertezas próprias da "crise das esquerdas", na convergência do colapso do "socialismo real", do "notável êxito da social democracia nos países centrais do capitalismo..." (Oliveira, 1986:19) e da perda da "centralidade operária". Essa crise tem impacto tanto sobre o discurso como sobre a prática da esquerda em relação ao resto do sistema político e aos movimentos sociais. Para alguns, a defesa de um modelo "social-democrata" com forte regulação estatal e redistribuição de renda é um sinal de uma cultura de esquerda esgotada. O movimento sindical, debilitado pela crise da esquerda e pelas próprias mudanças em sua composição derivadas das mudanças nos modelos de acumulação, encontra cada vez mais dificuldades para responder à altura à ofensiva neoliberal. Assim como no Uruguai, a esquerda e o sindicalismo lutam contra as privatizações, a redução do gasto público e o abandono por parte do Estado de serviços sociais nas áreas de educação, saúde e habitação. É provável que o "pós-consenso de Washington", liderado por discursos como o de Joseph Stiglitz, permita relegitimar algumas dessas demandas, por parte de setores hoje refratários à esquerda (por exemplo, as alas mais "progressistas" dos partidos "tradicionais"). Mas esse reconhecimento apenas mostrará que o discurso "estatizante" pode não ser suficiente para que alguém se defina como "socialista" (Oliveira, 1990).
Como resultado, se no Uruguai a esquerda é capaz de pôr em questão alguns "custos" do atual modelo de acumulação, vinculados ao desmantelamento do "Estado de bem-estar", e se isso tem eco em um eleitorado nostálgico do Uruguai "batllista", no Brasil o problema parece estar colocado em outros termos: trata-se de saber, como o formula Sampaio (1986), se a sociedade brasileira continuará sendo um capitalismo selvagem ou será um capitalismo mais atento ao bem-estar da população.
O PT e a FA parecem estar enfrentando na pós-transição democrática um conjunto similar de problemas: a) suas relações com o movimento sindical e os movimentos sociais, amiúde em contradição com sua condição de representante do Parlamento; b) os limites impostos a seu crescimento eleitoral como conseqüência de sua condição de "partido de esquerda"; c) os desafios impostos pelas administrações municipais; d) os problemas derivados da resistência ao ajuste e às privatizações, por um lado, e da necessidade de oferecer uma alternativa viável ao neoliberalismo, por outro, que parecem situá-los no estreitíssimo ângulo de "oposição ao regime" e de "alternativa de governo" viável.
As relações entre o movimento sindical e a Frente Ampla têm sido marcadas pela autonomia recíproca e a cooperação. Crescentemente, nos últimos anos, todavia, o sindicalismo tem optado por um comportamento independente, em sua resistência a diversas medidas relacionadas à reforma do Estado.10 10 Seu papel principal e seu pioneirismo político no caso de: a) plebiscito para a fixação de uma porcentagem constitucional mínima de 27% do orçamento para a educação em 1994; b) referendo para derrogação da Reforma da Seguridade Social aprovada em 1995; c) referendo para derrogação da Lei de Inversões (1998) parecem ir nesse sentido. A Frente Ampla aderiu, mas com um certo atraso, a essas iniciativas. O PT, um partido "colado" aos movimentos sociais, sofre aquilo que Moisés chamou de uma certa "esquizofrenia" entre o social e o político, cujo exemplo é "a separação que, freqüentemente, aparece entre a luta sindical e a luta parlamentar ou entre a luta do movimento popular e a necessidade do partido de formular um elenco claro de propostas a serem trabalhadas no parlamento e fora dele, para forçar os governos a resolver esses problemas..." (Moisés, 1990:184).
Ainda que, em ambos os países, o sindicalismo seja crescentemente acusado de ser o ator social "retardatário" do modelo, que representa os interesses "estabelecidos" e o "corporativismo" que impedem a modernização (Sader, 1995), no Brasil, a existência dessa "luta armada, secreta, infindável" - a luta pela terra, que obriga os sem-terra a "responder com armas ao ataque armado pelos latifundiários que contratam mercenários para torturar e matar líderes rurais..." (Chauí, 1986:64) - compromete o processo de competição eleitoral.
Todavia, alguns autores afirmam que, em ambos os casos, o cenário eleitoral desempenhou um papel central na integração das regras do jogo da competição democrática, seja na determinação de relações de força com outros partidos para legitimar posições dentro do sistema, seja como mecanismo para resolver conflitos entre setores ou correntes internos; e também a canalização do 'voto flutuante' ou 'de protesto', produto dos déficits das instituições democráticas" (Serna, 1998:37).
Com efeito, ambas as esquerdas exibem perfis eleitorais similares: seus votos provêm do país "moderno". Ambos os países compartilham um contingente de eleitores de esquerda jovens, educados, urbanos, localizados nos principais centros "urbanos", e concentram o voto dos trabalhadores mobilizados. Em ambos os países, a auto-identificação partidária dos eleitores de esquerda parece ser mais alta que no resto do espectro político. Mas enquanto a Frente Ampla avança de forma ininterrupta desde a transição democrática (apesar da notória concentração geográfica desse avanço na capital), o PT experimenta avanços e retrocessos. As Tabelas 2 e 3 mostram a evolução do voto no Brasil e no Uruguai.
Como mostra a Tabela 2, o voto no PT foi crescendo ao longo do período, ainda que modestamente. Se observarmos a tendência, perceberemos que o voto para senadores e deputados foi crescendo em médias sustentadas, enquanto o voto para governadores não mostrou uma evolução parecida, registrando-se uma relativa diminuição do crescimento entre 1990 e 1994. Essa evolução eleitoral reconhece pelo menos três marcos fundamentais: o ano de "estréia" do PT, 1982, foi um ano decepcionante, já que a participação eleitoral do partido foi muito inferior às expectativas criadas; as eleições de 1985 apresentaram uma surpresa, já que o PT cresceu consideravelmente, ainda que esse crescimento tenha sido concentrado na região sudeste do país; finalmente, em 1988, o PT ganha a prefeitura de São Paulo, o que se constitui numa conquista decisiva. Para obter esses resultados o PT fez alianças com o Partido Comunista, o Partido Verde e com o Partido Democrático Trabalhista (PDT) de Brizola, com o qual se aliou para a disputa da eleição presidencial de 1998. A Tabela 3 mostra a evolução do eleitorado da FA no Uruguai, em comparação com o resto dos partidos.
A Tabela 3 mostra a evolução dos votos da FA nas eleições legislativas que (até a reforma de 1996) foram eleições legislativas, presidenciais e municipais concentradas num único pleito. A FA aparece em cena conquistando, desde o início, uma porcentagem importante de votos (18,3%). Se considerarmos que o período 1971-1984 esteve marcado pela falta absoluta de atividade política, o crescimento em dez anos de existência política é bastante acelerado, chegando a disputar por alguns milhares de votos o lugar dos partidos "históricos" (Nacional e Colorado).
Diferentemente do Uruguai, o crescimento da esquerda no Brasil evidencia uma limitada participação no Congresso, como mostra a Tabela 4:
A composição do Congresso Brasileiro mostra um peso muito pequeno da esquerda em relação aos demais partidos. Ainda que o PT tenha feito, nas eleições de 1990, 17 deputados, seu peso é ínfimo se comparado aos outros partidos.
No Uruguai, como mostra a Tabela 5, o peso relativo da FA na Câmara de Senadores permitiu-lhe ser o "fiel da balança" nos conflitos entre blancos e colorados. Por outro lado, a aliança destes últimos desde 1984, sob forma de coalizões e repartição de cargos no Estado, permitiu aos sucessivos governos aprovarem suas leis mais importantes. A esquerda partiu para a oposição através da "dinâmica plebiscitária", que contou com pelo menos quatro iniciativas de "fora do sistema", destinadas a bloquear leis aprovadas pelo Parlamento11 11 Referendo para derrogar a Lei de Caducidade (anistia aos militares) em 1989; derrogação parcial da Lei de Empresas Públicas (privatização) em 1992; plebiscito para a fixação de uma porcentagem constitucional mínima de 27% do orçamento para educação em 1994; referendo para derrogar a Lei de Marco Regulatório Energético (desmonopolização dos serviços elétricos) em 1998 .
Uma característica comum às duas esquerdas é a composição regional do voto, que mostra a forte concentração do PT e da FA nos centros "modernos" do país. As Tabelas 6 e 7 confirmam essa informação.
A Tabela 6 mostra a distribuição dos votos no PT para presidente, nas eleições disputadas pelo líder do partido: a primeira enfrentando Collor de Mello, e a segunda, Fernando Henrique Cardoso. Como mostra a Tabela, houve um crescimento sustentado do eleitorado petista entre a eleição de 1989 e a de 1994 (tomando-se só o 1o turno), verificando-se o maior crescimento na região sul do país. Moisés (1990) e Tadeu (1996) observam que o apoio a Lula deu-se nas regiões sul e sudeste do país, nos centros mais desenvolvidos da economia capitalista. Alguns estudos também mostraram uma correlação positiva entre o voto no PT e o grau de industrialização e urbanização.
A Tabela 7 mostra a composição regional do voto para a FA no Uruguai.
Como mostra a Tabela, a FA tem seu eleitorado muito desigualmente concentrado na capital (44,1%) e no interior do país (19,5%). Se observarmos a distribuição interna do voto no "interior" do país, veremos que se produz uma forte concentração dos mesmos na "área metropolitana" de Montevidéu e nos centros urbanos mais modernos do litoral do país. Essa distribuição do voto põe em questão a "governabilidade" possível de um governo da FA, com a maioria dos municípios administrados por representantes dos partidos tradicionais.
Quais seriam as explicações para essa participação desigual do eleitorado nas esquerdas em um e em outro país?
Serna (1998) oferece um quadro das distintas interpretações para o fenômeno do escasso crescimento do PT no Brasil. O PT teria tido um momento de "explosão" eleitoral nas eleições de 1985, graças à sua postura intransigente a favor da eleição direta para presidente (que demonstrou, no final, ser um forte sensibilizador da opinião pública), mas, posteriormente, "definhou", em conseqüência das contradições e dificuldades de articulação da estrutura partidária e da base movimentista. Todavia, o PT parece ser capaz, progressivamente, de capitalizar o descontentamento e a apatia do eleitorado brasileiro, em relação aos partidos maiores. Vale a pena anotar, contudo, a lista de dificuldades que o PT enfrenta para lograr um crescimento eleitoral efetivo: a) dificuldade de "produção de quadros políticos" que sejam capazes de competir na arena parlamentar e na gestão dos governos municipais; b) dificuldades inerentes ao custo organizativo e financeiro das campanhas eleitorais em um país de dimensões "continentais" como o Brasil; c) dificuldade de articular um discurso de esquerda, que agrade às bases, e moderado, que agrade ao eleitorado, em um partido que nasceu "classista" e cujos vínculos com o movimento sindical e cujo "basismo" são ainda muito estreitos; d) dificuldades de legitimar um candidato operário, como Lula, em uma sociedade fortemente legitimadora das hierarquias sociais. As dificuldades enfrentadas pela necessidade de fazer alianças com outros setores (muito custosas em termos da relação com as bases do partido) e as que emanam de fazer da gestão municipal um âmbito de multiplicação das adesões partidárias (algo que a FA parece ter resolvido muito bem) são as que o PT enfrenta hoje e as que definirão sua evolução futura.
No Uruguai, a FA pode capitalizar o descontentamento na capital, em parte pela erosão de legitimidade dos partidos históricos esperada após mais de um século de governo e descaracterização progressiva de suas diferenças por exercícios de coalizão permanentes e também por sua condição de administradores de um modelo com fortes componentes liberais e antikeynesianos, pouco simpático a uma população ainda fortemente "estatista". Ao mesmo tempo em que a FA representa a "tentação do diferente", as inquietações a respeito dessa força política foram progressivamente eliminadas pelo êxito na gestão do governo da capital do país. Também, diferentemente do PT, a FA é hoje um partido nitidamente eleitoralista. Suas estruturas militantes desmoronaram e ainda que seu vínculo com os movimentos sociais continue muito intenso, as margens de autonomia relativa aumentaram entre eles, como já foi mencionado. A reforma constitucional de 1996, que incluiu o segundo turno, assim como o desafio de crescer no interior do país, foi o que, em grande parte, determinou a evolução eleitoral da FA e suas possibilidades de ascender ao governo nacional.
4. Cultura política das esquerdas brasileira e uruguaia na década de 1990: uma comparação entre elites e opinião pública
As atitudes políticas dos dirigentes de esquerda no Brasil e no Uruguai (incluindo as atitudes políticas do sindicalismo) evidenciam uma proximidade muito grande, explicável em boa parte pela existência de uma "cultura política de esquerda" ali onde ela se expresse. No caso da América Latina, e a experiência da Europa parece ir na mesma direção, uma cultura política de esquerda expressa-se por três tipos de atitudes "básicas" que poderíamos chamar a dimensão "social", a dimensão "política" e a dimensão "econômica". Na dimensão social, as orientações atitudinais da esquerda evidenciam um igualitarismo social muito consistente em nível de valores e crenças básicas, que se expressa preferencialmente em termos políticos no apoio a medidas redistributivas. Na dimensão política, a orientação democrática privilegia os conteúdos "participativos" (por oposição aos conteúdos "liberais") defendendo uma maior participação das organizações dos setores populares no processo de tomada de decisões. Na dimensão econômica, as orientações são predominantemente "estatistas" por oposição ao liberalismo de mercado, manifestando-se, em termos políticos, como uma ampla resistência às políticas de "ajuste estrutural" (privatizações, desregulação, entre outras).
A análise que segue está baseada em duas fontes de dados: dados de opinião pública do Latinobarómetro 1997 e dados de uma pesquisa sobre as elites realizada nos dois países em 1993-1994.12 12 A pesquisa foi realizada nos anos 1993-1994. No Uruguai, as entrevistas foram feitas entre setembro e dezembro de 1993. No Brasil, entre outubro de 1993 e junho de 1994. No Uruguai, foram entrevistados 250 membros de elites (100 políticos, 50 dirigentes de associações, 50 dirigentes empresariais e 50 altos funcionários públicos). No Brasil, foram entrevistados 320 membros de elite (54 políticos, 95 dirigentes empresariais, 82 dirigentes de associações e 89 altos funcionários públicos). Os resultados de ambas as pesquisas constam nos seguintes relatórios: no Brasil, no relatório de pesquisa ''Elites estratégicas e dilemas do desenvolvimento'', Iuperj, 1994, e, no Uruguai, no ''Informe sobre cultura política e elites no Uruguai: Análise de uma pesquisa'', Série Informes CIESU n o 57, Montevidéu, 1994
4.1. Uma "cultura política de esquerda" no Uruguai e no Brasil?: A opinião pública de esquerdas e direitas
A "cultura política" de ambos os países, revelada através da opinião pública, é consistente com o seu legado histórico. As adesões à democracia e a confiança nos partidos políticos diferenciam fortemente o Uruguai do Brasil. A preferência pela democracia e a satisfação com o regime democrático são notoriamente mais altas entre a opinião pública uruguaia (80% e 57% respectivamente) que entre a brasileira (41% e 30% respectivamente): ambos parecem confirmar casos "extremos" entre os países do Cone Sul.
Ao mesmo tempo, as características de uma cultura cívica "participante" (adesão política, interesse e proximidade com a política) diferenciam o Uruguai do resto dos países que participaram no estudo, e notoriamente do Brasil. O Brasil diferencia-se do Uruguai pela maior "alienação" dos cidadãos em relação à política e pela maior "propensão autoritária". A cultura política uruguaia segue construindo - se sobre a base de uma importante adesão dos cidadãos à política (interesse pela política, proximidade com os partidos, grau em que consideram a política "compreensível"): enquanto 64% dos uruguaios consideram a política "compreensível" e somente 31% declaram-se "nada próximos" dos partidos, no Brasil essas porcentagens são de 42% e 65%, respectivamente.
Os dados do Latinobarómetro 1995 mostram que existe uma avaliação das instituições políticas mais favorável no Uruguai que no Brasil (partidos, parlamentos), onde fontes tradicionais de socialização política (Igreja, militares) revelam ter uma amplíssima aceitação entre a opinião pública. A "desconfiança" nos políticos aparece como um traço determinante para a apatia política brasileira, em termos relativos, ao passo que se pode dizer o contrário do Uruguai.
Contudo, a "tolerância" política da opinião pública brasileira e uruguaia para com os partidos "extremistas" encontra-se entre as mais altas dos países indicados. Isso, aliado à legitimidade dos atores sindicais em ambos os países e ao rechaço à influência das grandes empresas na vida política nacional, parece mostrar, ao menos para o caso brasileiro, que o padrão cultural "corporativo" e "regulado" é mais do que discutível. Ao mesmo tempo, isso reflete a realidade de movimentos sindicais de esquerda e autônomos, reconhecidos em ambos os países como um legado da transição democrática.
A desconfiança das esquerdas13 13 Neste estudo optamos por trabalhar com o eixo esquerda-direita como variável independente, e não como identificações político-partidárias que, apesar de no Uruguai serem a principal variável que permite diferenciar atitudes, não cumprem o mesmo papel na opinião pública brasileira. Para tanto vale ressaltar que ainda que a porcentagem dos que ''rechaçam'' a identificação esquerda/direita seja menor que 15% na opinião pública, em ambos os países, as elites parecem se sentir muito mais cômodas com essa auto-identificação do que a opinião pública em geral. No Brasil, 64% dos entrevistados em 1995 declararam reconhecer os termos ''esquerda'' e ''direita'', enquanto no Uruguai essa porcentagem ascende a 86%. Em 1995, o Latinobarómetro mostra que as porcentagens que se situam à esquerda da escala (variando de 1 a 10, tomando como ''esquerda'' os três primeiros índices decimais da mesma) são muito similares no Brasil e no Uruguai (18% e 16% respectivamente) ante o sistema político e suas expressões político-partidárias está em sua condição de partidos de oposição: relegados ou escassamente representados pelas organizações partidárias tradicionais ou históricas. Como já foi dito anteriormente, essa condição de "oposição" partidária só conquistou sua expressão "de massas" em uma conjuntura histórica comum: os anos 70 latino-americanos. Contudo, gestou-se de forma muito diferente no Brasil e no Uruguai. Enquanto, no caso brasileiro, a oposição ao sistema partidário surgiu da condição "elitista" dos partidos tradicionais, somada à restrição às expressões político-partidárias de esquerda, no Uruguai, os "setores populares" parecem ter-se sentido representados pelos partidos tradicionais, até a década de 1960.
A Tabela 8 mostra que a maioria dos entrevistados de esquerda nos dois países considera formas de democracia que podem funcionar "sem partidos", ainda que as diferenças sejam muito significativas. Enquanto 81% dos uruguaios consideram que a democracia não poderia funcionar sem partidos, somente 50% dos brasileiros declararam isso. Porém, em ambos os países, a esquerda é quem, em maior medida, considera que a democracia poderia funcionar sem partidos.
Possivelmente, a maior desconfiança da esquerda acerca dos partidos esteja relacionada ao vínculo mais estreito que ela sustenta com os movimentos sociais, e ao fato de que sua origem está mais vinculada a estes últimos do que aos primeiros. Todavia, explicações mais ousadas podem ser ensaiadas aqui a respeito da tradição teórica sobre a qual se fundamentam as esquerdas. Se conseguíssemos separar os componentes da tradição "clássica" da democracia e os da tradição "liberal", veríamos que o protagonismo ou monopolização por parte dos partidos da representação política dos setores populares foi bastante discutido pela experiência histórica.
Os dados anteriores mostram-se consistentes com a forma como, no Brasil e no Uruguai, seus públicos relativos evidenciam proximidade com a política e com os políticos. Os uruguaios, em comparação com seus pares da América Latina, são os que, em maior medida, se sentem mais próximos aos partidos políticos, o que reflete o protagonismo dos partidos na construção da cultura política uruguaia: enquanto 41% dos uruguaios sentem-se próximos, somente 7% dos brasileiros o fazem. Mas as diferenças entre esquerda e direita parecem muito importantes, como mostra a Tabela 9.
No Uruguai, a proximidade em relação aos partidos políticos é mais forte na esquerda que na direita: enquanto 66% dos uruguaios auto-identificados de esquerda sentem-se muito próximos ou bastante próximos aos partidos, somente 7% dos brasileiros auto-identificados no mesmo espectro o fazem. A conclusão mais significativa desses dados é que enquanto os eleitores uruguaios de esquerda mostram mais proximidade em relação aos partidos do que o resto do sistema político, seus pares brasileiros são os que em menor medida sentem-se representados: ao contrário, a direita brasileira é a que parece sentir-se mais bem representada pelo espectro partidário.
Finalmente, vale a pena mostrar as atitudes diante da desigualdade nos dois países. A Tabela 10 mostra que apesar de Uruguai e Brasil situarem-se nos extremos de máxima e mínima desigualdade de renda na escala da América Latina, as diferenças em matéria de percepção não são tão importantes no nível da opinião pública.
Nos dois países, a esmagadora maioria crê que a distribuição de renda é injusta. Provavelmente, crenças e percepções andem juntas, e a menor tolerância à desigualdade relativa no caso uruguaio caminhe ao lado de uma percepção relativamente ampliada sobre sua importância.
Para além da esperada assimetria entre realidade e atitudes, o eixo esquerda-direita parece consistente com essas percepções. A esquerda tende a perceber a realidade como mais injusta que a direita: isso fica muito evidente, em ambos os países, pela forma como se distribuem as respostas "muito injusta" da direita e da esquerda. Todavia, a grande diferença entre o caso uruguaio e o caso brasileiro não está dada pela avaliação do espectro de esquerda, equivalente em ambos os países, com independência das situações "reais" evidenciadas. A diferença está dada pela direita: com efeito, a direita parece muito mais "sensível" à desigualdade no caso brasileiro (onde 83% dos entrevistados responderam "injusta" ou "muito injusta") que no caso uruguaio (onde somente 68% o fizeram).
4.2. A cultura política das elites de esquerda
O indicador de auto-identificação ideológica mostra uma correlação significativa com o setor de elite de cada país.14 14 No Uruguai, a porcentagem dos auto-identificados de esquerda, em nível de elites políticas, em 1994, era muito similar ao Brasil (24,1% e 26,7%), ainda que, diferentemente do Brasil, onde a esquerda se distribui entre vários partidos, no Uruguai ela esteja inteiramente concentrada na Frente Ampla. Visões ideológicas mais gerais caminham junto com "posições estratégicas": à direita colocam-se os empresários e à esquerda, os sindicalistas.15 15 Também neste caso há diferenças entre Brasil e Uruguai: enquanto a quase totalidade do sindicalismo uruguaio situa-se na extrema esquerda da escala, um terço do sindicalismo brasileiro situa-se na ''centro esquerda''. Deve-se levar em conta que o segmento de elite sindical no Brasil é uma mostra comparativa da direção da CUT, da CGT e da Força Sindical. Em ambos os países, também, o "padrão atitudinal" da esquerda política e do sindicalismo, nas dimensões social, política e econômica, é equivalente (Moreira, 1997).
Em que pesem essas coincidências nas "tendências atitudinais gerais", as diferentes trajetórias do sindicalismo uruguaio e brasileiro refletem-se em suas atitudes: o sindicalismo brasileiro não somente evidencia um deslocamento maior para o centro do espectro ideológico, como também é menos partidário de uma intervenção do Estado na economia, apóia em maior medida que o uruguaio medidas de reforma econômica, e exibe um apoio às hierarquias e uma aversão ao conflito muito superiores aos de seus pares uruguaios.
Todavia, o sindicalismo brasileiro tende a visualizar os conflitos com o empresariado de forma mais acentuada e conflitiva, diferentemente do sindicalismo uruguaio, majoritariamente voltado para conflitos com o governo.
A despeito dessas diferenças, pode-se afirmar que, no geral, o que ambos os atores sindicais reclamam é uma maior participação no processo das decisões, coerente com o que tem sido sua estratégia política e com o que são suas visões "normativas" de democracia. Os sindicalistas são, desse modo, mais democraticamente "consistentes" que o empresariado.
As atitudes diante da democracia e das instituições políticas encontram adesões muito similares entre elites brasileiras e uruguaias. A diferença é constituída pelo peso que as elites atribuem aos partidos políticos na construção da vida política nacional. Isso, somado à "proximidade" da opinião pública uruguaia em relação aos mesmos, confirma sua centralidade na construção da democracia uruguaia. Os partidos políticos no Brasil são hierarquizados "prescritivamente" pelas elites que "fazem política", mas nem as elites consideram que eles são determinantes da política nacional (basicamente construída por instituições "extrapolíticas", como a televisão) nem o povo confia neles. Pelo contrário, o sindicalismo goza de grande aceitação entre a opinião pública brasileira, e de uma aceitação relativa entre as elites brasileiras, em ambos os casos superior à que se evidencia na opinião pública e nas elites uruguaias.
A interpretação desses dados sugere que, apesar de as elites brasileiras confiarem nas instituições políticas de maneira "ideal" (como instituições), elas reconhecem que as instituições políticas reais que possuem deixam bastante a desejar. Diante delas, as organizações da sociedade civil parecem estar fazendo mais em prol da democracia.
Uma das distinções mais utilizadas com respeito a esquerda/direita é a idéia de que a grande distinção é a causa da igualdade (Bobbio, 1985).
A Tabela 11 mostra que, com efeito, as preferências em matéria de liberdade/ igualdade dividem esquerdas e direitas nos dois países.
A Tabela revela que existe uma associação estatisticamente significativa entre as preferências liberdade/igualdade e a auto-identificação ideológica. As preferências pela liberdade aumentam à direita, e as preferências pela igualdade, à esquerda.
Quanto à relação entre o eixo esquerda/ direita e valores mais "básicos" acerca da ordem social (apoio a hierarquias, orientação para o conflito), as correlações não são estatisticamente significativas. De qualquer maneira, um menor apoio às hierarquias e uma maior propensão ao conflito figuram entre as preferências da esquerda. Os dados são mostrados nas Tabelas 12 e 13.
Uma das principais diferenças do Brasil em relação ao Uruguai, do ponto de vista de sua cultura política, é a maior tolerância à desigualdade e o apoio às hierarquias socialmente construídas. A Tabela 12 mostra que o apoio às hierarquias no caso brasileiro é notoriamente mais alto que no caso uruguaio, e essa diferença também alcança as esquerdas. Não obstante, em ambos os países a esquerda evidencia um menor apoio às hierarquias que a direita.
Esses resultados parecem ser consistentes com a maior "sensibilidade" à igualdade social, patrimônio da esquerda como "padrão atitudinal", refletida em: a) uma maior propensão à igualdade por parte da esquerda em comparação à direita (Tabela 11); b) uma maior percepção de uma ordem social "injusta" por parte da esquerda em comparação à direita (Tabela 10). Em um contexto onde a desigualdade tende a se reproduzir, junto com o privilégio, como parte da "ordem natural" das coisas, a esquerda mostra uma menor aversão pelos conflitos sociais e políticos manifestos entre grupos com interesses contraditórios. Os resultados estão na Tabela 13.
Como mostra a Tabela 13, a aversão ao conflito é alta em ambos os países no nível das elites. As elites brasileiras mostram mais "simpatia" pelo conflito do que evidenciam as uruguaias. A esquerda uruguaia é consistentemente mais propensa ao conflito que a direita, ainda que as porcentagens de variação sejam mínimas. No caso brasileiro, igualmente, as simpatias pelo conflito manifesto são muito mais pronunciadas na esquerda do espectro ideológico.
Em síntese, a esquerda parece mostrar alguns valores "básicos" com respeito à ordem social, muito mais consistentes com a ideologia política "liberal" (aceitação do conflito, repúdio às hierarquias sociais) que a direita, apesar de suas preferências pela igualdade chegarem a ser superiores às suas preferências pela liberdade. Essa contradição de esquerdas e direitas acerca dos modelos de democracia liberal clássica são reforçadas quando se consideram as preferências liberais no campo econômico.
A consistência das atitudes de direita e esquerda acerca do papel do Estado na economia e da importância da regulação pública de áreas e setores é altíssima. A esquerda manifesta um estatismo muito alto, da mesma maneira que a direita é "ideologicamente antipática" ao Estado. Em ambos os países isso tem uma conseqüência clara em termos de atitudes diante de políticas específicas: a Tabela 14 mostra esses dados.
Como mostra a Tabela 14, as esquerdas uruguaias e brasileiras manifestaram-se igualmente desfavoráveis às medidas de ajuste, embora a esquerda brasileira seja menos desfavorável ao ajuste que a uruguaia. Ao mesmo tempo, a direita brasileira é absolutamente consistente em suas preferências de ajuste, enquanto a uruguaia, apesar de expressar uma adesão mais problemática à reforma econômica, encontra uma ala extrema, de adesão mais que relativa, coerente com o padrão antes mencionado.
Finalmente, e em consonância com o que foi dito sobre as relações entre apoio a medidas de redistribuição e intervenção estatal, as esquerdas, em ambos os países, manifestam atitudes mais favoráveis à redistribuição dos recursos e a uma intervenção decisiva do Estado na economia (as direitas, em ambos os países, fecham com os valores que informam a reforma econômica e o ajuste estrutural).
Nos dois países, as atitudes em matéria de ajuste e eqüidade estão fortemente relacionadas: a esquerda, que defende uma intervenção decisiva do Estado, é ao mesmo tempo, quem mais favorávelmente se manifesta por uma redistribuição radical de renda e riqueza, e isso caminha junto com uma crença na "injustiça" básica da ordem social, na aversão à ordem hierárquica, e na "positividade" do conflito social e político. Os mais "liberais", do ponto de vista econômico, são ao mesmo tempo os mais adversos ao status quo.
Conclusões
O PT e a FA representaram e representam uma "novidade" nos sistemas políticos uruguaio e brasileiro que chegou para ficar. O processo de sua consolidação, no entanto, é de longo prazo. Se os golpes de Estado em ambos os países podem ser vistos como conseqüência, entre outras coisas, de um realinhamento dos partidos na direção de uma política "ideológica", a ditadura não somente não evitam esse processo, como a transição para a democracia consolidou-o plenamente. Quando os partidos emergem no Uruguai ocorrem na configuração específica prévia dos anos imediatamente anteriores ao golpe de Estado, isto é, com a esquerda crescendo vertiginosamente.
Quando o sistema recompõe-se no Brasil, existe já um novo ator sindical, com uma expressão política própria: o Partido dos Trabalhadores.
Nos dois países, as esquerdas são partidos "de massa", com fortes vínculos com o movimento sindical, e com vocação política e governamental. Surgiram quando o impulso da modernização estava já exaurido. Em ambos os países as esquerdas são filhas de um sindicalismo com vocação política, que soube transcender o plano do meramente reivindicativo. Se a autonomia política e organizativa da classe trabalhadora foi a variável-chave para a democratização do sistema, a consolidação democrática parece ter exigido que esses interesses tivessem sua expressão política autônoma por meio de partidos de esquerda. Estes parecem cumprir uma dupla função: monitorar a atuação governamental dos velhos partidos tradicionais, obrigando-os a ser "responsabilizáveis" (e "puníveis"), e permitir uma expressão "democrática" dos conflitos de interesse, evitando que estes se manifestem de forma refratária ao sistema, ou nos limites do mesmo.
A esquerda no Uruguai pode converter-se em um partido "de massas", no sentido de Duverger, porque ocupou um vazio: soube representar um eleitorado cujas atitudes políticas muito estáveis deixaram de encontrar sua referência nos partidos "históricos", notoriamente situados à direita. No Brasil, as esquerdas souberam ser a opção "popular" que as formas elitistas tradicionais de fazer política não haviam conseguido consolidar. Puderam, em ambos os casos, conquistar amplíssimas adesões, porque transcenderam o discurso comunista e marxista que as sociedades brasileira e uruguaia não pareciam dispostas a adotar: é por isso que essas esquerdas ficam fortes no pós-Guerra Fria, liberadas já da "espada de Dâmocles" da política externa da União Soviética.
A FA e o PT impuseram novas formas de fazer política às quais os partidos "tradicionais" tiveram que se adaptar em sua luta por manter as adesões de seus eleitorados, outrora "cativos". Boa parte da novidade desses partidos reside em sua capacidade de convocação quase hegemônica sobre os movimentos sociais da mais variada natureza, e em sua condição quase indiscutível de representantes das "classes populares". Em ambos os casos, esses partidos gozam da enorme credibilidade de não se verem comprometidos com o sistema de dominação vigente.
No entanto, existem marcadas diferenças entre Brasil e Uruguai e a evolução eleitoral em cada um dos dois casos assim demonstra. Os dados de opinião pública mostram que no Brasil, diferentemente do Uruguai, não existe uma "cultura política de esquerda": o eleitorado de esquerda sente-se pouco representado, enquanto a direita parece situar-se comodamente no espectro partidário que se oferece. No Uruguai, ao contrário, é o eleitorado de esquerda que em maior medida "encontra seu lugar" na oferta política a seu alcance (a FA). Isso também se relaciona com a pouca institucionalização do sistema de partidos no Brasil. Além das dificuldades próprias de sua condição de "esquerda", em um país tradicionalmente governado pela direita, o PT enfrenta a dificuldade que qualquer partido enfrenta no Brasil para consolidar-se como tal: a inexistência de um sistema político estável, disciplinado e duradouro. Em um país onde a televisão parece ser a principal fonte de recursos na construção de identidades políticas (dado que somente a "imagem" parece capaz de percorrer livremente a imensa distância social e geográfica que separa os eleitorados de seus líderes), o PT encontra seu adversário mais difícil. O domínio dos grandes meios de comunicação por parte das elites tradicionais, assim como os custos financeiros e organizativos das campanhas conspiram de forma radical contra o crescimento e a credibilidade do PT, somente sustentado pela estrutura da militância e pelo apoio dos movimentos sociais que lhe deram suporte desde a origem. Pelo contrário, a limitada extensão do território uruguaio, a altíssima taxa de urbanização e a ainda importante capacidade dos partidos de "retenção" de seu eleitorado (70%) parecem colaborar para o crescimento e a consolidação das identidades partidárias da esquerda.
As esquerdas sempre existiram e sempre existirão, sob a forma de alternativas anti-status quo, cujo signo é a igualdade, mas suas marcas e seus sinais delinear-se-ão a cada vez com traços específicos, resultado das conjunturas históricas, políticas e ideológicas que enfrentem. A conjuntura atual não parece ser uma "boa conjuntura" para o crescimento das esquerdas. Seus sinais inconfundíveis são hoje a luta pelos "direitos sociais" e a defesa das instituições do Estado diante do mercado. A enorme similitude entre países tão diferentes como Uruguai e Brasil em termos de uma "cultura política das esquerdas" mostra-nos até que ponto essas bandeiras hoje se fizeram universais.
Porém, longe do questionamento radical a respeito dos modelos de desenvolvimento que caracterizou as esquerdas no passado, o PT e a FA encontram-se hoje em uma mera lógica de resistência a um modelo de desenvolvimento que parece lesar fortemente os direitos sociais adquiridos no passado (Uruguai), ou que se mostra incapaz de superar os problemas de integração social, pobreza e marginalidade já crônicos na sociedade mais desigual do mundo (Brasil). A legitimidade que foi adquirindo o discurso liberal entre as elites empresariais e políticas domésticas não parece encontrar eco, todavia, em uma população caracterizada por um "antiliberalismo" latente, que se expressa de diversas formas no Uruguai e no Brasil. Ao mesmo tempo, a forma como os programas de ajuste estrutural e limitação dos poderes do Estado foram crescentemente transformados nas "panacéias" do desenvolvimento, assim como o "bom exemplo" de alguns países (como o Chile) ou a ausência de alternativas radicais ao modelo após o "colapso" do "socialismo real" obrigaram as esquerdas a se refugiar em uma espécie de "lógica da resistência". Sua débil estruturação institucional, a fragilidade de seu acesso às instituições políticas como o Parlamento, e sua inevitável condição de "terceiro excluído" foram limitando sua capacidade de proposta política, exercida sempre nos limites do sistema, seja sob variadas formas de "democracia direta", como no Uruguai, seja como mobilização dos excluídos, como no Brasil.
Além disso, a esquerda enfrenta mais dois desafios, em termos de suas alianças "históricas": sua aliança com o movimento sindical e sua aliança com as classes médias. Por um lado, seu crescimento parece depender de sua relação com um movimento sindical duramente golpeado pelas mudanças no mercado de emprego produzidas pela combinação dos efeitos das políticas de ajuste, da desindustrialização e do pós-fordismo. Como a esquerda conseguirá sobreviver em um mundo pós-sindical, se é que este sobrevirá? Por outro lado, a esquerda cresceu com base na "virtuosa" aliança entre setores médios e classe operária. Em um processo desigualador e excludente, como o que vivem os dois países, os benefícios do crescimento podem chegar a recompensar generosamente os segmentos da classe média com os quais a esquerda terá que aprender a não contar, dada a previsível pouca simpatia desses segmentos por aqueles setores radicalizados contra o modelo que promove esses benefícios. Mas nem todos os riscos de sobrevivência da esquerda delineiam-se em sua condição de partido "opositor": alguns riscos da esquerda virão de sua própria vocação de governo. O risco inerente à condição de partido que busca situar-se como alternativa de governo nacional não é novo para a esquerda. Em seu exemplar trabalho, Pizzorno (Intereses y partidos en el pluralismo) havia antecipado, diante da experiência européia (e as experiências das esquerdas francesa e espanhola o mostram com clareza), que a necessidade de respaldar as regras da competição política, de conquistar o apoio do empresariado e de transformar-se em "confiáveis" em plena revolução conservadora obrigaram e obrigarão as esquerdas a distorções ideológicas pouco suportáveis para bases que não entendam a necessidade de tais movimentos. Em nossos países não será diferente: as pesquisas permanentes de opinião pública mostram que, em ambos os casos, os eleitorados de esquerda são fortemente refratários e desconfiados da política.
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Tradução de Lúcia Morelli
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jun 2005 -
Data do Fascículo
Abr 2000