Resumos
Nossa proposta consiste em justapor duas experiências etnográficas, estruturadas por meio da observação da atividade missionária católica contemporânea junto a populações ameríndias, de modo a explorar os rendimentos de conceitos como mediação cultural e código de comunicação para se construirem novas abordagens para pensarmos os processos de comunicação intersimbólicos.
índios; mediação cultural; missionários; relações interculturais
Our proposal consists of juxtaposing two ethnographic experiences, structuralized by means of the observation of the activity of the contemporaneous catholic missionaries with to Amerindians populations, in order to explore the profits of concepts as cultural mediation and code of communication to construct new approaches to think the intersymbolic processes of communication.
cultural mediation; Indians; inter-cultural relations; missionaries
ARTIGOS
"Fé na cultura": índios, missionários e códigos de mediação
Aramis Luis Silva*; Melvina Afra Mendes de Araújo**
Universidade de São Paulo Brasil
RESUMO
Nossa proposta consiste em justapor duas experiências etnográficas, estruturadas por meio da observação da atividade missionária católica contemporânea junto a populações ameríndias, de modo a explorar os rendimentos de conceitos como mediação cultural e código de comunicação para se construirem novas abordagens para pensarmos os processos de comunicação intersimbólicos.
Palavras-chave: índios, mediação cultural, missionários, relações interculturais.
ABSTRACT
Our proposal consists of juxtaposing two ethnographic experiences, structuralized by means of the observation of the activity of the contemporaneous catholic missionaries with to Amerindians populations, in order to explore the profits of concepts as cultural mediation and code of communication to construct new approaches to think the intersymbolic processes of communication.
Keywords: cultural mediation, Indians, inter-cultural relations, missionaries.
I
O esforço deste texto será o de explorar os rendimentos de conceitos como mediação cultural e código de comunicação na construção de novas abordagens que possibilitem pensar os processos de comunicação intersimbólicos. No centro de nossa atenção estará o deslizamento da categoria cultura do discurso analítico-científico para os repertórios religiosos e nativos, ocorrido em dois contextos etnográficos, os das missões conduzidas por salesianos entre os Bororo, de Meruri, e pelos missionários da Consolata entre os Macuxi, analisados, inicialmente, a partir de dois projetos de pesquisa desenvolvidos no interior do projeto temático Missões Cristãs e as Populações Indígenas: o Problema da Mediação Cultural, sediado no Cebrap.1
A primeira pesquisa teve inicialmente como objetivo a análise de dois modelos de "projetos culturais" destinados à intervenção na vida social dos índios Bororo de Meruri, Estado do Mato Grosso. O primeiro, o Centro de Pesquisa e Valorização da Cultura Bororo Padre Rodolfo Lunkenbein, idealizado pela professora doutora Aivone Carvalho Brandão (2003), com apoio da Congregação Salesiana, organização católica que mantém há 103 anos uma missão junto aos Bororo da região.2 O segundo, o projeto de construção de Meri Ore Eda uma "aldeia cultural" distante cerca de 10 km de Meruri e da sede da missão criado sob liderança do bororo Paulo Meriekureu3 em par-ceria com a organização indígena Instituto das Tradições Indígenas (Ideti) e institucionalmente encampado pelo Ministério da Cultura, sob a gestão de Gilberto Gil.
A outra pesquisa4 teve por objetivo analisar as relações entre missionários da Consolata5 e índios macuxi, enfocando a questão da constituição de um sistema de atenção à saúde indígena baseado na formação de agentes indígenas de saúde, tornado possível graças às mudanças implementadas na atuação dos missionários da Consolata nos anos 1970.6
Ambas as congregações, salesiana e missões da Consolata, foram criadas no mesmo contexto o da reforma ultramontana e na mesma cidade, Turim, florescente centro industrial regional. Além disso, Dom Bosco, o fundador dos salesianos, foi diretor espiritual de José Allamano, o fundador do Instituto da Consolata para Missões Estrangeiras. No entanto, apesar desses elementos em comum, as formas de atuação de cada uma destas congregações não são idênticas.7
Mas, apesar das diferentes trajetórias dessas congregações e das diferenças relativas aos universos observados, tanto em relação ao seu contingente populacional ameríndio (bororo, grupo macro-jê e macuxi, família carib) como os contextos sócio-históricos regionais, nos chama atenção a existência de uma linguagem culturalista que trafega por entre as redes sociais na qual as categorias cultura e religião tornam-se homólogas. Ou seja, a categoria cultura ganha uma conotação religiosa no sentido em que faz emergir todo um movimento em torno do respeito e resgate do que é considerado "tradição indígena" ou pertencente à "cultura" dos índios.8 Dito de maneira absolutamente sintética, a questão de ordem é "fé na cultura!"
Antes de iniciarmos nosso exercício em busca de perspectivas para enfrentarmos a questão da criação de uma rede comunicacional por onde circulam códigos partilhados ao mesmo tempo em que asseguram a proliferação de múltiplos significados que se reconfiguram dinamicamente, vejamos sucintamente os desdobramentos de processos locais para, posteriormente, identificarmos elementos comuns.
II
Novembro de 2004, um grupo de índios bororo da Terra Indígena de Meruri, Mato Grosso, representando o Centro de Cultura Padre Rodolfo Lunkenbein, embarca para Gênova, cidade italiana escolhida para ser a capital européia da cultura daquele ano. Exibiriam no Museu da Cultura do Mundo Castelo D'Albertis, entre outras coisas, a produção de "oficinas culturais" realizadas no Brasil. Enquanto a mídia local vendia a exposição Io Sono Bororo Un popolo Indigeno del Brasile tra Riti e "Futebol"9 estampando manchetescomo "Os Índios Invadem a Europa", parte da comitiva segue para o Collège de France, em Paris, para visitar o antropólogo Claude Lévi-Strauss.
Após prestarem homenagem em forma de cantos e presente a um dos primeiros pesquisadores a estudar a "cultura bororo" e bombardearem o decano da antropologia moderna com perguntas relacionadas ao fato de alguns Bororo hoje estarem nas universidades e terem um centro de cultura, juntaram-se aos demais na Côte D'Azur italiana e seguiram de trem para Roma. Os Bororo queriam conhecer o papa.
Em abril do mesmo ano, o ministro brasileiro da Cultura, Gilberto Gil, e um dos expoentes do tropicalismo musical nacional, após ter assistido a reportagens veiculadas no Fantástico, programa dominical jornalístico da Rede Globo, sobre a "cultura bororo", desembarcou ao lado de personalidades políticas nacionais e mato-grossenses na mesma área indígena para lançar projeto, transformado em símbolo de política cultural para as minorias. Em suas mãos, amenos de uma semana da comemoração nacional do Dia do Índio, a planta de uma "aldeia cultural" que prometia conciliar modernidade e tradição. Projeto nascido das conversas entre uma liderança bororo com seus antepassados, quando aquela, junto aos riachos de Meruri, ouvia, por intermédio das águas, pedidos de socorro em nome da cultura bororo.
Eventos organizados por agências e redes independentes que contrastam com a habitual calmaria que impregna a aldeia criada pela Missão Salesiana Sagrado Coração de Jesus, em 1902.10 O objetivo de então: "pacificar" agrupamentos indígenas da região da bacia do rio Garças, hoje Sudeste de Mato Grosso, integrando-os simultaneamente ao Estado nacional brasileiro, à cristandade e à civilização. Metas estipuladas por certos agentes de uma história de contato que, ao mesmo tempo em que configura uma linguagem partilhável e partilhada, multiplica as possibilidades para a significação de uma modernidade cacofônica e marcada por ambivalências.
O primeiro ponto a se destacar no universo merurense é que a mesma língua (e episteme) culturalista que organiza discursos que têm com pressuposto uma unicidade da estrutura e experiência humana que se desdobra em múltiplas formas expressivas está divida em duas redes sociais que atravessam o contingente populacional local. Uma atrelada aos padres missionários, que hoje contam com a assessoria científica de uma doutora em semiótica especializada no rito funeral bororo e engajada no processo de patrimonialização da cultura material nativa. Outra, uma rede articulada em torno de uma liderança e seu grupo familiar, sustentados por uma organização indígena, o Ideti, que os interligam a redes estatais, especificamente como os quadros burocráticos do Ministério da Cultura.
Sejam os Bororo atrelados aos projetos museológicos financiados pelos salesianos, sejam os Bororo que foram atraídos pelos planos de criação de uma aldeia tradicional como espaço para aprendizado e registro da cultura e atração de turistas, todos com a Enciclopédia Bororo escrita pelos padres CésarAlbisetti e Ângelo Venturelli (1969-2003) nas mãos para outorgar a autenticidade de seus planos estão engajados nos plano de revitalização cultural, como define a rede missionária, ou de resgate, como prefere a parentela ligada a Paulo Meriekureu.
Porém, observemos a crucial ambivalência gestada em nome da cultura e em ressonância com a categoria religião. Os dois projetos, apesar de diplomáticas relações, mantêm certa tensão. Subliminarmente, disputa-se a autoridade da tradição quando ambos recorrem ao trabalho de codificação da cultura bororo para reconstruir uma dada totalidade cultural (entendida pelos nossos agentes como o conjunto de mitos, cantos, técnicas, peças da cultura material, etc.).
Enquanto para o centro de cultura financiado pelos religiosos o rigor com as informações acerca de uma codificação prévia (fruto do trabalho da etnografia religiosa e leiga, ou seja, via chancela científica) são condições necessárias para a manutenção ou restituição de uma tradição, segundo a lógica de Paulo, esta estaria assegurada por um pertencimento genético11 e espiritual. Ele seria filho de índios Bororo,12 sua ancestralidade lhe conferiria a autoridade para o exercício de um novo perfil de liderança: o líder cultural, aquele que, por meio do resgate da cultura, levaria seu povo a superar as mazelas sociais. Tal qual um curto-circuito, as causas e conseqüências dos problemas a serem enfrentados.
Mas os planos de independência cultural trouxeram para a nova aldeia sonhada pela parentela de Paulo Meriekureu uma outra necessidade: a criação de uma "religião verdadeiramente indígena". Onde procurá-la? "Na cultura", oras. Afinal, assim como fizeram os missionários que se dedicaram a exaustivo trabalho de inscrição de informações etnológicas nativas celebrados por autores como Claude Lévi-Strauss, que tomaram cultura como marca de uma proto-religiosidade, Paulo obstina-se a reconstruir tal cultura com a meta de redescobrir uma "religião original" adormecida pelo contato. Processo que implica ao mesmo tempo ações de intervenções sociais, que, segundo a ótica da agência, estariam resguardadas por uma instância transcendental.
Interessante notar uma inversão quando comparamos as duas empreitadas que têm a cultura bororo como foco. Enquanto Paulo usa a categoria cultura para resgatar uma religião bororo adormecida pelos anos de contato, as matrizes discursivas missionárias tecem operação contrária, efetuando o deslocamento de uma gramática religiosa para o campo da cultura: se promove "a cultura" para fazer a sua missão religiosa. Contexto referido às práticas missionárias articuladas em torno da Teologia da Inculturação. Trata-se de algo que a Igreja definiria como uma nova forma de evangelização, estruturada de maneira a responder questões relativas à afirmação de identidades culturais locais e problematizar a relação entre cristianismo e ocidentalização. Um projeto com pretensões de definir o novo lugar da diferença no mundo contemporâneo dentro de um processo de universalização "de valores humanos".13
Para o novo modelo missionário, o desafio missiológico seria descobrir um Evangelho imanente e comum a todas as culturas. Em uma interessante síntese funcionalista, as culturas seriam antes de tudo expressões de sistemas organizados em nome da produção e reprodução da vida. O que pode parecer um triplo deslocamento da religião ao cultural e do cultural ao político , assim como na perspectiva da liderança bororo, é unificado pela instância totalizadora do "sagrado", dimensão ontológica privilegiada em ambas as matrizes discursivas.
Assim, para além de suas diferenças em relação à composição sociológica de suas malhas sociais e de variações de suas estratégias discursivas que levam um a partir da cultura para se chegar à religião e outro a caminhar em sentido contrário, uma significativa identidade estrutural entre os projetos observado em Meruri torna-se inteligível quando percebemos que, no momento em que a malha merurense ligada a um dado movimento indígena e ao Estado tenta se diferenciar do projeto atrelado à malha relacionada ao universo missionário, acaba, a revelia, por revelar que ambas estão fundidas em uma imagem lógica complementar, como côncavo e convexo. Ambos comungados na certeza de que a cultura é o caminho para se chegar ao sagrado.
III
Em julho de 1999, a antropóloga chegava à missão do Surumu14 para sua primeira etapa de pesquisa de campo. Mal acabara de chegar e fora interrogada por uma missionária sobre a possibilidade do casamento entre pai e filha fazer parte da tradição indígena. A princípio, parecia tratar-se apenas de uma pergunta retórica com o objetivo de testar conhecimentos antropológicos, mas a recorrência de perguntas sobre a "cultura dos índios" demonstrou que a questão era outra: tratava-se de solicitar a uma antropóloga, "especialista da cultura", auxílio no sentido de identificar elementos da "cultura indígena" e evitar, des-sa forma, a intervenção de missionários num campo que não deveria ser tocado.
O mais surpreendente para a pesquisadora foi a recorrência a um conceito que, na antropologia, anda meio desgastado: já não se pode mais falar em cultura sem correr o risco de ser taxado de essencialista, dualista ou coisa que o valha.15 Mas se na antropologia o conceito de cultura perdeu muito do seu vigor enquanto expressão dos modos de ser de um grupo específico, delimitado territorial e/ou culturalmente, noutras paragens ganhou outros usos, dentre os quais vale destacar os ligados à questão da elaboração ou afirmação de identidades étnicas. E é esse o uso que dá a esse termo um caráter quase sagrado no contexto das relações entre missionários da Consolata e índios macuxi, cuja configuração atual tomou corpo em meados dos anos 1960 e foi oficializada com a "opção pela causa indígena" assumida pelo bispo Dom Aldo Mongiano, em 1976.
A atual configuração das relações entre missionários da Consolata e índios macuxi tornou-se possível graças, sobretudo, às experiências de missionários dessa congregação no Quênia, que abriga sua primeira e simbolicamente mais importante missão e que passou por um dos mais violentos processos anticoloniais africanos com a guerrilha Mau Mau. O Quênia foi marcado pelo modelo britânico de colonização que, de acordo com Peter Fry (2005), era calcado no "dogma da segregação". Este se baseava na criação de reservas nativas nas quais cada grupo cultural era encerrado e tinha como justificativa a preservação das diferenças culturais. Ora, se num primeiro momento a instauração de políticas de celebração das diferenças culturais fazia parte das estratégias colonialistas britânicas, num outro momento este mesmo argumento foi utilizado por movimentos anticoloniais como o Mau Mau, cujo maior objetivo era o de expulsar os brancos do Quênia e fazer respeitar os valores e tradições kikuyu.16
Neste contexto de luta anticolonial, os missionários da Consolata, em sua maioria italianos, ficaram numa posição ambígua: se, por um lado, eram brancos como os britânicos, por outro, não eram britânicos e suas relações com o governo colonial nunca foram isentas de conflito.17 Nestas disputas que opunham africanos e britânicos, os missionários da Consolata, de acordo com Trevisiol (1989), embora não defendessem os Mau Mau, não apoiaram o governo colonial na repressão à guerrilha. Esses foram fatores importantes nas relações que os consolatinos travaram com os Kikuyu após o final da guerrilha, mas não foram os únicos: para que a missão da Consolata pudesse continuar no Quênia foi imprescindível a adoção de atitudes que demonstrassem o respeito desses missionários pelos africanos e por suas tradições.18
Segundo Trevisiol (1991), os conflitos que ocorriam no Quênia e os riscos que os missionários corriam estando lá tomaram a atenção da hierarquia do Instituto Missões Consolata nos anos 1950 e 1960. Só após a estabilização da situação dos missionários naquele país é que novos religiosos começaram a ser enviados para outras missões. Este foi o caso da missão de Roraima. Segundo o padre Jordão Pessatti, em entrevista concedida à pesquisadora, no final dos anos 1960 houve uma quase completa substituição dos missionários que trabalhavam nas missões roraimenses. Esses novos missionários haviam recebido uma formação diferente daquela que recebeu a geração que assumiu esta missão em 1948. Na formação recebida por esses missionários as questões relativas aos conflitos coloniais e ao respeito às tradições indígenas tiveram uma grande importância.
A vinda desses novos missionários imprimiu mudanças na condução da missão de Roraima: os problemas relativos ao contato intercultural, tratados pelos missionários que aí estavam anteriormente de maneira mais ou menos similar às orientações da política indigenista brasileira, dirigida inicialmente pelo SPI e depois pela Funai, passaram a ser vistos pelo prisma da violência, da exploração do trabalho indígena e da destruição da cultura.
Num primeiro momento o esforço destes missionários voltou-se à organização política indígena, objetivando, de acordo com declarações de missionários, mostrarem-lhes que se eles se unissem poderiam "libertar-se" do jugo dos brancos e que os missionários estavam prontos para ouvi-los e apoiá-los. Uma outra frente de luta desses missionários relacionava-se à necessidade de alcançar a hegemonia para esta perspectiva no interior da missão para que ações mais eficazes pudessem ser efetivadas, o que ocorreu em 1976, quando o bispo Dom Aldo Mongiano aderiu à causa proposta por este grupo de missionários.19
Dentre os fatores considerados importantes para a organização política indígenas, um dos mais importantes referia-se à valorização étnica. Nesse sentido, tratando-se de povos cujo contato e ações no sentido de integrá-los à sociedade nacional eram bastante longos, uma das primeiras iniciativas dessa nova geração de consolatinos relativas à "preservação" ou "recuperação" das culturas indígenas foi a organização e edição do Boletim do Arquivo do Setor Indigenista, iniciada em dezembro de 1981. Dirigido particularmente aos missionários e indígenas, o Boletim consiste na compilação de artigos ou excertos de livros de etnólogos, historiadores, viajantes e missionários, entre outros, dentre os quais constam trechos da obra de Kock-Grünberg, Del Roraima al Orenoco, publicada originalmente em 1924, artigos de Baldus, Egon Shaden e Wirth, publicados na Revista de Antropologia, na Revista de Sociologia e Revista do Museu Paulista, a tradução de um artigo de Dom Alcuyno Meyer, intitulado Lendas Makuxis e publicado pelo Journal de la Société des Américanistes, bem como de artigos de A. Butt Colson. Os artigos reproduzidos versam sobre temas como a organização social, cultura material, mitos e ritos de povos indígenas de Roraima.
A compilação desses artigos tinha por objetivo informar índios, missionários e demais interessados sobre o modo de vida tradicional dos índios de Roraima, ou seja, aquele que poderia ter deixado de existir em função do contato com a sociedade nacional. Saber como esses índios se organizavam socialmente, quais eram seus rituais e artefatos poderia dar suporte à "recuperação de tradições" esquecidas ou esmaecidas e ajudar na construção, pelos missionários, de um quadro conceitual do que poderia ser considerado como fazendo parte da "cultura indígena".
Outro aspecto considerado importante foi o aprendizado e/ou manutenção das línguas indígenas. Nesse sentido, os consolatinos solicitaram a ajuda de dois pesquisadores italianos, Emanuele Amodio e Vicente Pira (1996), para a elaboração e publicação do dicionário Língua Makuxi. Makusi Maimu. Guia de Aprendizagem e Dicionário da Língua Makuxi, que serve de base ao aprendizado dessa língua para missionários, indígenas que não aprenderam macuxi na infância, antropólogos e demais interessados.
Após este primeiro impulso de compilação do material produzido sobre os índios de Roraima, os missionários organizaram sistematicamente encontros indígenas nos quais algum tema considerado "tradicional" estava em pauta. Neste sentido, foram realizados encontros entre pajés, rezadores e catequistas indígenas, que impulsionaram a organização de uma coletânea de mitos, Makusi Panton, Histórias Macuxi, publicada em três volumes pela diocese de Roraima (Makusi…, 1989).
Também como uma forma de valorizar a identidade étnica, os missionários da Consolata empenharam-se na recuperação da cultura material indígena, incentivando a confecção e comercialização de objetos tais como peneira, tipiti, jamaxim, jiqui com a realização periódica de ateliês nos quais os mais velhos ensinam aos jovens e crianças como elaborar tais objetos.20
O conjunto de ações implementadas pelos missionários da Consolata a partir do final dos anos 1960 possibilitou uma reconfiguração das relações entre estes e os indígenas. E foi no bojo dessas relações que se estruturou uma das organizações indígenas mais atuantes em Roraima, o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Os índios ligados ao CIR lançaram-se em campanhas para a conquista de direitos indígenas, dentre os quais os mais importantes relacionam-se à demarcação das terras,21 garantia de acesso à assistência à saúde e respeito às suas especificidades culturais.
Em todos esses campos, várias foram as ações conjuntas de índios e missionários, dentre as quais poderíamos citar as campanhas pela demarcação da Raposa/Serra do Sol, a organização de um sistema de saúde indígena posteriormente incorporado ao Sistema Único de Saúde, mais especificamente aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas , a organização das coletâneas de mitos e ateliês de que falamos acima e, a mais recente, a criação do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol, na missão do Surumu.
O projeto de criação do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol baseava-se na idéia de transformar as instalações da missão num centro regional de cultura indígena. No entanto, esse projeto foi prejudicado pela destruição dos prédios que compunham a missão por opositores da homologação da demarcação da área indígena Raposa/Serra do Sol em 17 de setembro de 2005.22 Após esse evento, a ocupação do centro e a continuidade das atividades que lá eram desenvolvidas transformou-se numa bandeira de luta pelo reconhecimento ao direito dos índios à terra e à manutenção de sua cultura. Além disso, estes jovens empenharam-se na reconstrução dos prédios da missão e, para tanto, lançaram campanhas nacional e internacional de arrecadação de fundos. Algumas paredes já foram reerguidas e, apesar dos prédios não terem ainda sido completamente reconstruídos, jovens indígenas continuam a ser formados no ensino médio profissionalizante em agropecuária23 e manejo ambiental.
Neste movimento que tomou corpo a partir da transformação do modo de perceber as populações nativas, a referência ao que é da "cultura indígena" adquiriu, para missionários e índios, um sentido que os aproxima do sagrado ou, como fora apontado anteriormente, houve uma transformação do espiritual em cultural através de uma apropriação fenomenológica da noção de "cultura" como "espírito de um povo". Nesse sentido, os missionários da Consolata são orientados a respeitar aquilo que consideram como fazendo parte da "cultura indígena" e os índios são incentivados a valorizar sua "cultura", preservando-a e difundindo-a.
IV
Os dois contextos etnográficos resumidos anteriormente mostram as feições locais de um processo mais amplo, no qual podemos observar conexões entre as transformações das práticas missionárias e o amadurecimento de um idéario indigenista, que se torna fonte repertorial para múltiplas performances discursivas de lideranças oriundas de diversos contextos sociais. E é justamente para esse espaço de entrelaçamento de trocas informacionais que dirigimos nossa atenção. Esse é um espaço para o qual determinados atores levam parte dos seus repertórios simbólicos e não uma cultura, que nessa perspectiva torna-se uma abstração nativa. É no seu interior que esses agentes entram em disputa para a elaboração de códigos partilhados, que serão as ferramentas para o mínimo entendimento mútuo e que efetivam a circulação de discursos por entre redes sociais mais amplas.
Os códigos, ou seja, unidades de informação reconhecidas pelos agentes cujo significado particular é fixado pelos atores na negociação sempre pontual e contextual , estamos chamando, como o faz Paula Montero (2006), códigos de mediação cultural. Seus produtores, os agentes de mediação, estão situados historicamente em redes sociais e operacionalizam seus repertórios simbólicos com o intuito de dar sentido às experiências comuns. Ora, nesse processo de construção de códigos de mediação, os agentes inserem repertórios simbólicos particulares em plataformas semânticas partilhadas e partilháveis cada vez mais inclusivas.
Assim, os códigos comunicacionais postos em operação, longe de serem elementos semânticos referidos a uma totalidade cultural abstrata fora da história e das relações societárias incorporados/impostos/assimilados por outra totalidade de igual caráter, emergem como resultantes de relações sócio-simbólicas nas quais redefinições de contextos estão em disputa. Ou seja, a produção dos códigos resulta "no plano das significações ou das configurações culturais, de estratégias mais ou menos calculadas dos agentes em interação para fazer valer seus interesses cujos valores (e conteúdos) só podem ser descritos contextualmente" (Montero, 2006, p. 61-62).
Ao centrar nossa análise nos espaços onde se travam relações entre missionários e índios nos inscrevemos num tipo de abordagem que tenta evitar tratar a questão das relações interculturais em termos duais. Ou seja, pretendemos ultrapassar certos dualismos que pretendem ora mostrar que tudo é fruto de um confronto entre uma força cultural simbolicamente mais poderosa, capaz de submeter universos particulares, e outra mais frágil, que tenta resistir ao domínio, ora afirmar que o fenômeno da aceitação do cristianismo por populações indígenas nada mais é que uma manifestação episódica do processamento de uma lógica monádica particular capaz de absorver o exterior para reconstruir sua mônoda.
A primeira dessas perspectivas poderia ser denominada, como o faz Bruce Albert (2002), de "paradigma da resistência". Esse tipo de perspectiva que, segundo o autor, emergiu como uma inversão das narrativas da assimilação presentes nas teorias da mudança social, apresenta o incômodo de supor a existência de seu oposto, a submissão cultural. Além disso, ainda de acordo com Albert, o reducionismo etnográfico do "resistenciocentrismo" tende a ofuscar a especificidade e sutileza das lógicas e agências próprias dos atores sociais.
Já a outra perspectiva, que trata o fenômeno da aceitação do cristianismo por populações indígenas como mera manifestação de uma lógica capaz de absorver o exterior para reconstruir-se apresenta como incômodo, como afirma Oscar Calávia Saez (1998, 1999), o fato de não admitir que essas populações se transformam nas relações com missionários cristãos.24
Tanto os estudiosos adeptos do "paradigma da resistência" quanto os pesquisadores cujos estudos estão calcados na capacidade de digestão das culturas indígenas amazônicas parecem exagerar suas conclusões, afirma Calávia Saez (1999). Para evitar esse tipo de reducionismo seria necessário, continua o autor, prestar mais atenção à capacidade de transformação dos grupos indígenas. Em outras palavras, seria mais produtivo observar atenciosamente esses processos e não assumir de maneira acrítica as queixas de agentes religiosos relativas ao fracasso do trabalho missionário.
Seguindo as pistas sugeridas por Paula Montero (2006), Bruce Albert (2002) e Oscar Calávia Saez (1998, 1999), ou seja, observando, a partir de dois contextos etnográficos, as relações entre indígenas e missionários, percebemos a existência de processos criativos nos quais, entre outras coisas, estão sendo elaborados novos significados para a categoria cultura. Nos casos aqui analisados, ao invés de ser um conceito antropológico ou um termo oriundo de um repertório de um dado lado de uma "trincheira cultural", cultura emerge como um código nascido nos processos de mediação cultural, capaz de gerar sentido em múltiplos contextos de enunciação.
Recebido em 31/10/2006
Aprovado em 09/01/2007
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Set 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2007
Histórico
-
Recebido
31 Out 2006 -
Aceito
09 Jan 2007