Open-access Entrevista com Sidney Mintz

ESPAÇO ABERTO

Entrevista com Sidney Mintz*

Ceres Gomes Víctora

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil

Nesta entrevista, solicitada a Sidney Mintz para ser oferecida a Horizontes Antropológicos, ele fala de sua obra e carreira e muito mais. Agradeço sua generosidade e disponibilidade de concedê-la em março de 2011 no seu escritório, localizado no prédio do Departamento de Antropologia da Johns Hopkins University, em Baltimore, Estados Unidos.

Sidney Mintz: Você gostaria de começar fazendo uma pergunta?

Ceres Gomes Víctora: Sim. Você poderia nos contar como passou dos estudos na área da história social e da economia política para a antropologia da alimentação?

Sidney Mintz: Bem, deixe eu lhe dizer primeiro – de modo que ele isso fique junto da entrevista – o meu nome é Sidney Mintz. Sou um antropólogo norte-americano que recebeu a sua formação na Universidade de Columbia, sob orientação do professor Julian Steward e a professora Ruth Benedict. Eu concluí o meu doutorado em 1951, mas tenho trabalhado como professor desde 1949 até o presente, e ainda dou aulas, embora tenha me aposentado em 1997.

A questão que você coloca para mim é naturalmente uma questão importante. Vou começar minha resposta apontando que até 1985 o meu trabalho esteve totalmente concentrado na região do Caribe, onde fiz pesquisa de campo, particularmente na Jamaica, Porto Rico e Haiti. Em 1985, publiquei um livro intitulado em inglês Sweetness and power (Mintz, 1985), que está disponível em várias línguas, incluindo turco, coreano, mandarim e árabe, mas não – ou ainda não – em português. Nesse livro falei sobre o açúcar, a sua história e os usos, passados e presentes. Depois de ser publicado, um número de pessoas com interesse em comida me fazia perguntas sobre outros alimentos também. Mas não percebi naquele momento que eu tinha começado uma espécie de moda: escrever livros sobre um único alimento. Na verdade, sempre existiram esses livros, e alguns deles, eu lembro, são simplesmente maravilhosos. Mas a impressão que tenho é que eu acertei um momento especial, ou talvez um alimento especial.

Mas o que me levou a escrever esse livro não foi o fato de que o açúcar é um alimento. Eu escrevi isso porque eu trabalhei por um longo tempo em uma região que havia se tornado extremamente importante econômica e politicamente, há muito tempo, mas depois perdeu completamente essa importância. Ela tinha se tornado importante porque foi o primeiro centro no exterior de produção em massa de alimentos básicos para as pessoas nas terras europeias. Por causa disso, ela havia criado um primeiro capítulo na história de uma forma particular de capitalismo. Isso se repetiria em muitos outros lugares, mas o berço desse tipo de capitalismo foi a região do Caribe. Então, não era realmente o alimento que eu tinha em mente quando eu escrevi esse livro, mas a história do mundo.

O que me moveu depois na direção de alimentos foram as respostas de tantos leitores para o que eu tinha feito. Esse grande interesse me fez perceber que eu já me interessava por comida, há muito tempo, mas não era exatamente uma preocupação profissional. Meu pai era cozinheiro-chefe, cozinheiro profissional, e então eu estive exposto à culinária e a cozinhas desde a infância. Eu fazia a minha lição de casa, quando chegava da escola, sentado na parte de trás do restaurante. Eu servia mesas. Eu aprendi um tipo simples de cozinhar para mim. Na época eu tinha uns 11 ou 12 anos e eu já fazia meu próprio café da manhã, do tipo cozido, feito no fogão, não apenas cereal frio. E assim, dada a minha associação amadora de longo tempo com comida, eu percebi que poderia ser capaz de fazer alguma antropologia nessa área. Eu não desisti – ou pelo menos eu não tinha a intenção de desistir – do meu interesse em economia política simplesmente porque eu estava adicionando a questão da comida aos meus interesses profissionais. Muito cedo nesse período, por exemplo, eu escrevi um artigo sobre a comida de escravos, que reuniu os meus interesses no Caribe e em comida. Minha razão para escrevê-lo, porém, foi porque achei que era importante ver como a culinária era uma esfera da criatividade, mesmo para as pessoas escravizadas – era uma parte da vida em que eles poderiam especializar-se, tornando-se conhecidos por suas habilidades, mesmo escravizados. Na verdade, essa performance dos escravos se desenvolveu sob o olhar dos senhores de terra e da sua insistência em afirmar que eles eram geneticamente inferiores. Tudo o que os escravos faziam para demonstrar a sua inteligência e capacidade era uma forma de resistência à ideologia do senhor das terras, que sustentava que a escravidão só existia porque os escravos eram incapazes de se tornar plenamente humanos sem a ajuda de seus opressores.

Assim, mesmo que eu tenha, em parte, me distanciado da região do Caribe – e pelo menos um estudioso me criticou por fazê-lo – eu não desisti dos meus interesses em economia política e nas estruturas da vida econômica. Como alguém que estuda comida pareceu-me que o que eu podia fazer de melhor, em primeiro lugar, era explicar minha visão particular sobre o que é alimento, mesmo que eu tivesse nenhum treinamento formal para estudá-lo. Enquanto eu fazia isso e enquanto eu realizava leituras, percebi que, no âmbito de estudos sobre alimentação, me dei conta que havia algumas pessoas capazes de enganar os seus leitores. Isso não quer dizer que também não houvesse esse tipo de pessoa nos estudos sobre o Caribe! Mas parecia haver mais deles nos estudos de alimentos. Temos uma expressão em inglês que deve ter uma equivalente em português. Dizemos em inglês: "Na terra dos cegos quem tem um olho é rei." E eu pensei que isso se aplica perfeitamente a mim. Parecia que eu era um "expert", embora eu não soubesse quase nada.

Esse interesse em comida num nível mais ou menos profissional surgiu para mim relativamente tarde na vida. Até 1985, eu vinha publicando sobre antropologia do Caribe por 35 anos – artigos e livros nos quais a comida pouco era mencionada. Embora eu tenha começado a me voltar para a comida mais seriamente depois de 1985 – parecia que muitas pessoas queriam saber mais sobre comida do que sobre o Caribe – eu nunca abandonei meu interesse fundamental na região do Caribe. Muito do que eu havia aprendido na primeira metade da minha vida profissional, e minhas experiências ali, estavam ligadas a essa região, uma região que a antropologia tinha ignorado quase inteiramente. Eu queria naquela época, e ainda hoje, que mais antropólogos contemporâneos trabalhassem nela.

Como você sabe, Ceres, estudiosos brasileiros como Federico Neiburg e Natacha Nicaise, entre outros, estão fazendo trabalho de campo na região do Caribe. É geograficamente bastante próximo ao Brasil e tem muitas semelhanças históricas com o Brasil. Outros estudiosos, inclusive minha amiga Christine Rufino Dabat e seus alunos da Universidade de Pernambuco, têm lido, traduzido e estudado meus materiais sobre o Caribe. A professora Rufino Dabat, que traduziu alguns dos meus trabalhos, publicou um livro com eles. O sucesso foi tanto que o livro, chamado O poder amargo do açúcar: produtores escravizados, consumidores proletarizados (Mintz, 2003), está agora em sua segunda edição. A professora Olivia da Cunha é outra antropóloga, com quem tenho trabalhado, e ela está agora ativamente empregando materiais sobre Caribe em sua pesquisa.

Estou mais satisfeito do que eu posso dizer com o fato de que o meu trabalho ainda é do interesse de pessoas nas Américas. Nos últimos 25 anos, eu tenho tentado continuar meu trabalho tanto na região do Caribe como na antropologia da alimentação. Recentemente eu publiquei um livro sobre o Caribe, intitulado Three ancient colonies: Caribbean themes and variations (Mintz, 2010). Algumas das coisas que eu escrevi são uma visão retrospectiva de minha experiência no Caribe. Mas grande parte é também um olhar reflexivo e analítico sobre as sociedades nas quais eu trabalhei desde muito tempo atrás.

O núcleo dos argumentos do livro tinha de se debruçar, na minha opinião, sobre a antropologia concebida como uma filha da história. Enfim, essa é a maneira que eu a concebo. Sem uma perspectiva histórica, acho que antropologia perde algumas das suas razões de ser. Podemos correr o risco de reduzir a sua extensão a um tipo inadequado, muitas vezes, literário de sociologia. Meu viés histórico é relevante para a região do Caribe, que alguns antropólogos jamais haviam estudado, provavelmente por ser "misturada", por lhe "faltar cultura", em certo sentido, ser desprezível no que se refere à vida material e imperfeita em suas instituições sociais, tais como a religião, o parentesco e, sim, mesmo na língua. Atrevo-me a sugerir que o trabalho dos antropólogos na região do Caribe desde a Segunda Guerra Mundial, finalmente, começou a eliminar a barreira artificial entre "primitivos" e civilizado, e com isso fizeram a antropologia global e "total", pela primeira vez.

Tanta coisa da vida contemporânea faz mais sentido quando é conceituada como descendendo do passado recente. Para antropólogos, esquecer o legado dos últimos cinco séculos é esquecer o lugar do imperialismo e do colonialismo na formação do mundo que a minha geração herdou. Acredito que estas são coisas que nós precisamos ter em mente para explicar qualquer fenômeno contemporâneo. Eu mesmo sugeri em um artigo, há quase 25 anos, que tratar a globalização como se fosse um fenômeno novo, por exemplo, significava reprimir a realidade brutal de quase cinco séculos de escravidão no mundo.

Eu tive sorte, é claro, porque no meu primeiro trabalho de campo, em Porto Rico, havia muitas pessoas muito brilhantes na nossa equipe de pesquisa. Um deles se tornou um amigo muito querido, e meu primeiro trabalho publicado, um artigo que se baseou fortemente na história, foi escrito com esse colega de trabalho. Tive a sorte de ter amigos como ele a quem eu podia recorrer para apoio e ajuda intelectual.

Mas, diferentemente, eu confesso que sempre me senti como um impostor no estudo dos alimentos. Neste ponto da minha vida, eu tenho praticado antropologia ativamente por cerca de 60 anos. Comecei meu trabalho de pós-graduação em 1946 e o terminei em 1951. Eu não pretendo fazer mais trabalho de campo, mas eu pretendo continuar a escrever e publicar.

Ceres Gomes Víctora: Você me disse algumas vezes que há uma coisa muito básica relacionada à antropologia: o fato de que as pessoas comem.

O que isso significa na perspectiva de uma antropologia da alimentação?

Sidney Mintz: Todos os seres vivos são estruturalmente predispostos, principalmente, a duas tarefas na vida. Uma delas é manter-se metabolicamente e a outra é se reproduzir. Tudo na vida é movido por esses dois fenômenos. Pensamos nessas duas atividades de forma muito diferente, claro. Muitos de nós, e particularmente os jovens, entendem a sexualidade como um impulso muito mais básico do que a alimentação. Mas para quem pensa assim, eu sugiro um jejum de 36 horas, após o qual eu gostaria de saber quão sexy ele ou ela se sente, então!

A necessidade de comer é muito mais urgente e muito mais periódica. Sexualidade, claro, é um impulso fundamental para a nossa espécie, mas a sua execução, sua consumação, é muito diferente em natureza e em consumação do que a saciação da fome, ou seja, na maneira como vamos satisfazer nossa necessidade de alimento. Isso foi apontado por uma das maiores antropólogas que trabalhou com comida que já viveu, Audrey Richards, em sua tese de doutorado. Mas é óbvio o suficiente, penso eu, que somos capazes de controlar a nossa sexualidade de uma forma que não poderíamos controlar a fome. Além do mais – e isso pode parecer paradoxal –, sabemos que a greve de fome é uma arma política e muitas pessoas morreram de fome por uma causa. Esse tipo de ato político difere basicamente de uma determinação de alguém abster-se de sexo para o equilíbrio de sua vida – como as notícias nos jornais diários continuam a nos lembrar. Então eu acho que é bastante fácil, quando pensamos seriamente sobre isso, ver quão fundamental é a fome para a existência de todo o tipo de vida.

Quando olhamos como as outras espécies comem, percebemos imediatamente quão diferentes os seres humanos são. Os ursos comem. Eles não têm nenhum livro de culinária e não cozinham as coisas que comem. Mas, aparentemente, eles sabem o que comer. O coelho também sabe o que comer. Obviamente, os micro-organismos, tanto benignos e malignos, sabem o que comer. Os seres humanos parecem ser a única espécie viva que não possui embutida no seu interior uma ideia do que comer. Essa é a segunda coisa importante sobre a alimentação: ao mesmo tempo, uma vez que reconhecemos a nossa ignorância ímpar sobre o que comer, percebe-se que um grande número de grupos humanos possuem diferentes alimentos, e muitas vezes têm forte apego aos alimentos que comem. É claro que isso é baseado em localidade e recursos locais, em certa medida. Você não pode fazer a escolha de comer o que você não tem. Dito isso, porém, os seres humanos, em todos os lugares, escolhem os alimentos que consomem dentro da gama de alimentos que podem comer. Somente em alguns casos, as pessoas chegam próximas de comer tudo o que poderiam considerar como alimento. E assim há seleção; e compreender como ocorre essa seleção, como as pessoas verbalizam, racionalizam e intelectualizam os seus comportamentos alimentares, é uma parte importante do que os estudos sobre comida fazem.

Em todos os lugares, as crianças são ensinadas a comer coisas específicas e são informadas repetidamente pelos adultos ao seu redor que as coisas estão comendo são deliciosas. As crianças podem resistir às vezes, mas a maioria delas, na maioria das vezes, crescem pensando que os alimentos que são dados e ditos que são deliciosos, são deliciosos. Depois descobrem, para sua desilusão e por vezes sua irritação, que as pessoas de outros lugares podem dizer "ai, eu não suportaria comer aquilo." E muitas vezes ficam confusos com essa reação, porque parece que o que eles comem seria atraente a qualquer ser humano normal. Entende? "Qualquer" ser humano "normal"?

E assim que o alimento fornece-nos um poderoso instrumento, uma linha divisória entre os grupos. E nesse sentido é ainda mais importante do que a maneira como as pessoas arrumam seus cabelos, ou decoram seus rostos, ou se vestem. Quem você é, e mesmo o que você pensa que você é, baseia-se nessas coisas; e a comida é a substância que mais se sobrepõe e que mais carrega símbolos que temos. Nada expressa o que somos tão bem como a comida. Nada define melhor quem está no grupo e quem está fora do grupo quanto a comida. Comida, em outras palavras, é uma ferramenta para nós, porque é um produto cultural, que usamos para nos distinguir de outros. Nós comemos isso, eles não. Ou eles comem isso, nós não.

Esses são os tipos de símbolos dramáticos ligados à comida que podem ser comparados de forma criativa com os caminhos que temos que lidar analiticamente com o sexo. Embora esses dois tipos de atividades sejam completamente diferentes, sua enorme importância nos indica por que as pessoas constantemente os interconectam simbolicamente. E essas atividades, é claro, definem os micróbios, da mesma forma que nos define: reprodução e sustentação.

Essas, então, são algumas das coisas que fazem o estudo de alimentos uma parte interessante da antropologia. Permita-me apenas acrescentar um ponto, no entanto. Parece um campo novo para nós, e é um campo novo para nós. Mas se voltarmos para os primeiros antropólogos, descobrimos que eles reconheceram quão importante a comida era. Pessoas tecnicamente mais simples, que têm de lutar para comer todos os dias do ano, costumam definir-se ainda mais fortemente do que nós por aquilo que comem. Se você vai para as monografias sobre povos menos avançados tecnicamente, como os australianos ou os bosquímanos africanos, você percebe que a comida ocupa muito a sua consciência, porque é, de certa forma, como as pessoas sabem quem são. Nos primeiros cem anos da antropologia, quando se perguntava a esses povos o que, acima de tudo, os definia como diferentes dos animais, eles diziam: nós cozinhamos. Nós somos os únicos animais que cozinham. E assim, esta sempre foi uma parte fundamental da nossa humanidade, e o fato de que nós não sabemos o que comer é um aspecto do nosso comportamento, da nossa espécie, que realmente precisa ser investigado.

Ceres Gomes Víctora: Atualmente, encontramos novos movimentos que visam ensinar as pessoas a comer alimentos saudáveis. Você poderia falar um pouco sobre isso? Se, como você diz, nós somos os únicos animais que não têm ideia do que comer, isso significa que estamos abertos a todo tipo de influências, por exemplo, de pessoas nos dizendo o que é saudável e bom para se comer?

Sidney Mintz: Bem, as pessoas vêm nos dizendo o que é saudável e o que é bom para comer desde que nos tornamos humanos. Eu tenho certeza disso. Isso não é uma coisa nova. Nós mudamos o que dizemos, mas nós temos dito há muito tempo. Primeiro de tudo, e isso é fundamental, uma boa parte do que as pessoas procuram na tentativa de encontrar o alimento que acham preferível ao que estão comendo, vem de querer acreditar que os alimentos que comemos são naturais. E, a fim de entender o caráter real do comportamento alimentar humano, temos de perceber que o único alimento genuinamente natural para os seres humanos é o leite da mãe. Desde que nós somos o tipo de animal que come algumas coisas e não come outras, temos de escolher nosso alimento. Nós não sabíamos o que comer, mas nós escolhíamos nossos alimentos – e desenvolvemos uma ideologia para apoiar as nossas escolhas. Muitas monografias diferentes mostram isso claramente. Desde que somos criaturas que simbolizam, criaturas que podem construir uma imagem mental de si e dos outros e dizer quem era o diferente, nós temos sido assim. Daquele tempo em diante passamos realmente a prescrever alimentos e dizer às pessoas o que comemos, do mesmo jeito que fazemos hoje. Isso não significa que o avanço das ciências médicas e nutricionais não tenha sido importante para nos ajudar a entender o que é saudável para nós. Eu digo isso o tempo todo – a cada ano, cerca de 200 pessoas morrem na Europa ao comerem cogumelos venenosos. Agora, não podemos dizer que elas escolheram isso para se matar. Mas elas optaram por ir à procura deles, e comê-los. E elas morrem. Aqui neste país, todos os anos, algumas pessoas vão morrer por comerem ostras de águas poluídas, e nós vamos continuar nos matando dessa forma. Então você pode dizer que comemos tudo o que não nos mata, mas também alguns alimentos que nos matam – e isso fazemos de propósito, voluntariamente. Portanto, temos uma espécie que escolhe o seu próprio alimento e, em determinados momentos, alguns de nós escolhem se matar com ele. O peixe japonês fugu tem um veneno mortal e as pessoas gostam de comê-lo em fatias finas como sashimi. Imagine, então, um animal que pode comer tudo o que quer, e escolhe comer alimentos que podem matá-lo; e esse mesmo animal tem a medicina e a nutrição para dizer o que é bom para comer. Então, nós somos uma espécie contraditória, e sustentamos as nossas preferências a todo custo, às custas do meio ambiente, às custas dos nossos concidadãos. E sabendo tudo o que sabemos, se queremos um hambúrguer, por Deus, nós conseguiremos um hambúrguer. As nossas preferências realmente tem efeitos globais, consequências para todos. As estatísticas, por exemplo, sobre o consumo mundial de proteína animal – quem recebe o que e quanto – mostra que ele é motivado por preferências culturais. Mas é claro que, subjacente às preferências, há o poder. Isso é o que eu tentei demonstrar historicamente com o meu livro sobre o açúcar. O açúcar era meramente um exemplo de um processo maior em andamento. Comida, então, é um campo muito importante, que os antropólogos devem olhar atentamente e levar a sério. Sim, tem a ver com cozinheiros e livros de culinária e canibalismo, com Iron Chef e com comer insetos, mas também tem a ver com processos econômicos e ideológicos de fundo, como eles se apresentam, aqui e agora, alguns deles deliberadamente destinados a moldar e controlar – e lucrar com – o nosso consumo. Mas meus pronunciamentos provavelmente não devem ser levados muito a sério, eu nunca estudei formalmente os alimentos.

Ceres Gomes Víctora: Quem você acha que foram os pesquisadores mais importantes nessa área?

Sidney Mintz: É um campo muito grande e está se tornando bem mais importante agora, por isso há mais e mais pessoas trabalhando nele. Um dos estudiosos mais inteligentes na área que eu conheço é o antropólogo americano Eugene Anderson. Ele tem escrito muito, mas seu livro sobre os alimentos da China, em particular, é uma joia, assim como o seu livro, Everyone eats: understanding food and culture (Anderson, 2005). Marion Nestle, na New York University, não é antropóloga, e sim formada em nutrição e biologia. Ela escreveu vários livros sobre a política de alimentos, sobre como acabamos comendo o que comemos, e como isso é afetado pela lei, como a legislação afeta o que nós comemos. Depois, há alguns ensaios belos e genuinamente pioneiros escritos por um colega já falecido há mais de uma década, que iniciou o estudo dos alimentos antes da maioria de nós, Marvin Harris. Como você sabe, ele fez muito do seu trabalho no Brasil. Marvin tinha uma determinada perspectiva teórica com que eu não concordava inteiramente, mas seu trabalho é maravilhoso de ler: inteligente e muito bem escrito. Mencionei Audrey Richards, que eu acho que é muito importante. O livro de Jack Goody sobre comida foi um complemento fundamental para o nosso campo. Há muitos mais.

Ceres Gomes Víctora: O que você tem publicado sobre alimentos e o que você recomendaria para os alunos lerem?

Sidney Mintz: Há alguns anos eu editei com dois colegas um livro sobre soja chamado The world of soy. Meus colegas editores foram Christine Du Bois e Chee Beng Tan, e está disponível aqui neste país. Nele, há 14 artigos escritos por estudiosos, inclusive um do Brasil, mas também artigos sobre alimentos de soja na Ásia, na Indonésia, na Coréia, no Japão e outros. O que foi mais importante para mim foi o sucesso dos editores na elaboração dos artigos de introdução e conclusão, que são claros e úteis. Como você sabe, a maioria desses livros recebe apenas um aceno superficial dos editores. Tentamos mostrar aos leitores o que editores conscientes podem fazer. Eu acho que o livro pode ser de interesse para os estudiosos brasileiros, em parte porque o Brasil está representado nele, mas também porque o tema é tão amplo, e o Brasil tornou-se um produtor de soja mundial, apenas nos últimos anos. Contudo, o Brasil, não faz nada de bom com essa soja; só produz para outras pessoas. Os Estados Unidos fazem ainda pior. Eles pegam essa proteína – e o grão rico em óleo – e usam para engordar porcos e galinhas com ração de soja, e então depois os fritam em óleo de soja. Mas eu não quero entrar nisso.

Para esse livro e para um volume que vai se lançado no Oxford Food Symposium, eu escrevi artigos sobre fermentação. Apesar de sermos o único animal que cozinha, provavelmente perto de um terço dos alimentos que os humanos comem é tratado de uma maneira diferente do cozimento. Não é comido fresco como a alface, ou cozido – e sim tratado de outra forma que não por lavagem antes de ser consumido. E esse um terço – uma proporção enorme – é composto quase inteiramente por alimentos fermentados. Todo o pão levedado, todas as bebidas alcoólicas; todos os queijos e iogurtes; carnes diversas, como salames; e enormes quantidades de verduras e legumes são produtos fermentados. A fermentação é uma parte vital do quadro mundial de alimentos; o seu futuro fica mais promissor a cada momento. Tenho escrito muitos outros artigos sobre alimentos e você pode encontrar a maioria deles listados no meu site (http://sidneymintz.net/).

Ceres Gomes Víctora: Você estava falando sobre a fermentação e alimentos que se transformam em outras coisas. Gostaria de compartilhar conosco a sua opinião sobre alimentos ou qualquer tipo de cultivo que sejam utilizados para a produção de combustível alternativo?

Sidney Mintz: Se tentarmos traçar uma imagem mais ampliada, o consumo de alimento e o de combustíveis fósseis são atividades assustadoramente interligadas atualmente porque elas estão diretamente relacionadas com o controle de energia. O burburinho estranho sobre etanol nos Estados Unidos – como se essa fosse a solução para todos os nossos problemas – fez com que nós, o povo norte-americano, acordássemos finalmente para esse fato. Sem considerar toda a energia em um mundo global – sua produção e consumo – não podemos falar de forma proveitosa sobre usos alternativos de energia em relação a produtos que uma vez foram principalmente alimentos. Temos que começar com essa unidade de recursos energéticos mundial, e encarar o fato de que o mundo está preso em uma luta cada vez mais séria sobre quem deve controlá-los. Está se tornando cada vez mais claro que o uso e disponibilidade de energia estão frequentemente sujeitos à tomada de decisões políticas, e alguns dos responsáveis pelas decisões veem a guerra como simplesmente uma forma diferente de conduzir a política. Ao mesmo tempo, outras decisões poderiam colocar um rosto bem mais humano nos recursos energéticos. Se o povo dos Estados Unidos estivesse disposto a reduzir seu consumo de proteína animal, digamos, cerca de 14% – talvez um dia sem carne por semana – isso afetaria de forma importante o uso de energia e recursos e, provavelmente, melhoraria significativamente a nossa saúde como uma nação. Obviamente, o fato de não comermos proteína animal não fornece aos outros condições – o poder de compra adicional – para comer mais proteínas. Mas é um cenário ridiculamente improvável neste momento da história. É por isso que eu disse anteriormente, apenas parcialmente como uma piada, que os americanos farão o que for necessário para obter os seus hambúrgueres.

As pessoas não estão acostumadas a pensar todas as necessidades energéticas de uma forma unitária, e eu acho que elas resistem a fazê-lo. Parece ser uma mistura entre coisas diferentes, tais como gasolina e vegetais. Mas se falarmos de usos alternativos para substâncias comestíveis, então temos de falar sobre a luta da energia em todas as suas formas, não apenas campos para plantar ou poços de petróleo para perfurar. Embora quase ninguém se refira a isso agora, durante a Segunda Guerra Mundial, os químicos industriais alemães desenvolveram uma gordura comestível a partir do carvão, e milhões de pessoas estavam comendo. Os brasileiros, ao contrário de nós, americanos, se deram conta anteriormente que "alimento" e "combustível" são palavras diferentes para a mesma coisa, enquanto nós ainda não conseguimos chegar a acreditar nisso.

A comida é uma parte fundamental desse quadro, e o que nós queremos comer ou estamos preparados a abrir mão se tornaram fatores críticos na avaliação de nossas fontes de energia, real e potencial, e seus usos. Isso é em parte o que me levou a estudar a fermentação. A fermentação pode realmente melhorar o valor nutricional do alimento, se houver um bom ambiente para os microrganismos que o transformam. Daí torna-se uma parte importante da luta pela energia, particularmente para os países muito pobres neste momento, para adicionar vitaminas, proteínas ou outras substâncias necessárias para o próprio alimento.

Os leitores devem ser advertidos de que a história a seguir é incompleta: um entomologista foi convidado a estudar a porcentagem de perda calórica devido a danos causados por insetos na agricultura. Quando ele começou a examinar a questão, ele percebeu que, se ele quisesse saber quantas calorias em um campo de milho foram perdidas por causa dos insetos, ele teria que saber, primeiro, quantas calorias foram usadas para produção daquele acre. Mas uma vez que ele virou a esquina e começou a calcular um total, ele se deu conta que uma enorme quantidade de calorias colocadas naquele campo chegara lá por meio da fotossíntese. Além disso, ele poderia calcular quanta energia fora posta naquele acre, sob a forma de combustíveis fósseis – abastecendo as máquinas que foram usadas para cultivar o milho, colher quando estava pronto, transportar aos consumidores e assim por diante. Ele chegou a algumas conclusões notáveis, porque quando ele percebeu o que estava fazendo, ele queria pensar em mais do que danos causados por insetos. Ele queria que as pessoas entendessem como a energia estava sendo usada para produzir alimentos. Suas pesquisas levaram a uma conclusão surpreendente: alimentos enlatados populares comuns nos Estados Unidos, tais como milho, forneciam apenas um décimo do valor calórico das calorias que foram necessários para produzi-las.

Era como se o uso da energia como tal não tivesse valor algum. Faz-nos pensar sobre uma sociedade que usa, por exemplo, 4400 calorias para produzir uma lata de comida que acaba por proporcionar ao consumidor 440 calorias. É uma boa pergunta, não é? Entre as coisas que esse caso indica é que eu realmente não posso dar uma resposta completa à sua pergunta sobre usos alternativos para os alimentos. Eu acho que o importante é compreender que as coisas vivas, se elas vão permanecer vivas, têm de manter seu metabolismo, elas o mantêm vivo comendo. E sendo esse o caso, e como nós gostaríamos de pensar que todo ser humano tem uma chance justa, então a luta global sobre fontes de energia é, em boa medida, uma luta sobre quem deve ter uma boa chance, e como isso será decidido.

Ceres Gomes Víctora: Você gostaria de comentar mais alguma coisa?

Sidney Mintz: Gostaria de dizer algo sobre o fazer da antropologia, porque isso era algo que você me perguntou no início. Acho que a coisa fundamental para nós é que temos que entender que as pessoas com as quais estamos fazendo trabalho de campo são tão bons como nós somos – não importa quem somos. Vejo isso como um ato de fé, e como uma declaração de princípio sobre a nossa profissão. A meu ver, se nós realmente não achamos que todo ser humano é tão bom como nós somos, que valem tanto quanto nós, então não estamos fazendo jus ao que os antropólogos afirmam acreditar quando falamos de unidade da nossa espécie. Estou certo de que não é um ponto de vista que todos aceitam. Mas, como um antropólogo, essa é a maneira que eu penso.

A segunda coisa é que, quando fazemos perguntas sobre as pessoas, devemos nos dar conta que, pelo menos em alguns casos, a essas pessoas com quem estamos falando nunca foi feita uma pergunta cortês, sincera, por parte daquele supostamente de maior status social, e que essa pode ter sido a primeira vez que alguém lhes perguntou sobre o que elas sabem. Estamos constantemente dizendo a elas o que nós sabemos, mas nós nunca trabalhamos o bastante para tentar descobrir o que elas sabem. Se nós tivéssemos nos empenhado mais em compreender o que elas sabem, essas pessoas poderiam ficar mais persuadidas a nos ouvir ocasionalmente.

Portanto, há um problema real – e eu acho que é em todo o lugar – um problema real de levar as pessoas de classe média a reconhecer o valor humano de quem tem menos do que eles. Eu acho que atentar para isso é também antropológico. Compreendendo isso, seremos mais competentes no trabalhado de campo e o nosso trabalho vai ganhar em qualidade. Observar com certo distanciamento e atenção considerável as atividades desenvolvidas pelas pessoas com quem trabalhamos pode ser uma porta para a compreensão de muito mais. Alguém está fazendo uma tarefa – seja tecer uma cesta ou colocar um telhado – se nós trabalhamos duro com as pessoas, enquanto eles fazem isso, vamos aprender muita coisa que não sabemos, e essa observação cuidadosa é boa para as nossas mentes. Se você pode realmente colocar no papel como esse teto vai sendo construído, você terá feito um bom trabalho.

Eu sou muito desajeitado ao lidar com o universo material, mas admiro muito as pessoas que são talentosas para fazer isso. Eu tento, no meu próprio trabalho, começar com o mundo concreto, mesmo que eu não tenha talento para isso. O livro sobre o açúcar que eu escrevi foi uma tentativa de envolver o mundo material concreto, apesar da minha inaptidão. Aprender sobre coisas comuns e como as pessoas as utilizam, em seguida fazer os outros apreciarem a suas habilidades, é uma das coisas que podemos aprender a fazer. Torna-se testemunho de como as pessoas podem ser inteligentes para lidar com o mundo, nós nos tornamos suas testemunhas, e devemos documentar suas habilidades.

Ceres Gomes Víctora: Muito obrigada por esta entrevista.

Recebido em: 28/02/2012

Aprovado em: 30/07/2012

Referências bibliográficas

  • ANDERSON, E. N. Everyone eats: understanding food and culture. New York: New York University Press, 2005.
  • MINTZ, S. W. Sweetness and power: the place of sugar in modern history. New York: Viking, 1985.
  • MINTZ, S. W. O poder amargo do açúcar: produtores escravizados, consumidores proletarizados. Organizado por Christine Rufino Dabat. Recife: Editora Universitária UPFE, 2003.
  • MINTZ, S. W. Three ancient colonies: Caribbean themes and variations. Cambridge: Harvard University Press, 2010.
  • *
    A entrevista foi realizada durante o estágio de pós-doutorado junto ao Departamento de Antropologia da Johns Hopkins University, com bolsa Capes de doutorado sênior, processo nº 5043/9-3.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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