Resumo
No presente artigo pretendo apresentar práticas contemporâneas de subsistência adotadas por populações mbya (guarani) no Sul e Sudeste do Brasil, a partir de uma abordagem que articula economia e política, bem como alguns aspectos do xamanismo e ritual. Busco demonstrar como um modelo de reciprocidade assimétrica persiste entre os Mbya em conexão complexa com práticas econômicas que têm no centro o dinheiro e o comércio feito nas cidades. Contra a imagem de “desintegração” de um modelo coletivo de economia a partir de um processo de “individualização” que aproximaria os Guarani contemporâneos da lógica capitalista (conforme proposto por Egon Schaden nos anos de 1940), sugiro que as práticas econômicas contemporâneas conservam os princípios de reciprocidade e ainda otimizam o sistema mbya em sua abertura multilocal.
Palavras-chave
dinheiro; Mbya Guarani; subsistência; trabalho
Abstract
The article aims at presenting contemporary subsistence practices adopted by Mbya populations (Guarani) in southern and southeastern Brazil from an approach that articulates economy and politics, as well as some aspects of shamanism and ritual. It seeks to demonstrate how an asymmetric reciprocity model persists between the Mbya in connection with complex economic practices, whose main tenets are money and city trade. In contrast to the perception of “disintegration” peculiar to a collective economic model, and focusing on a process of “individualization” akin to a capitalist logic, as proposed by Egon Schaden in the 1940s, the author suggests that contemporary economic practices hold the principles of reciprocity and even optimize Mbya’s system in its openess to a multi-local perspective.
Keywords
Mbya Guarani; money; subsistence; work
Subsistência, mato e cidade
A despeito da variedade de situações de terras habitadas atualmente por grupos mbya guarani em contextos regionais diversos, marcados por tradições agrícolas ou extrativistas específicas, a presença mais ou menos intensiva do turismo, e, também, considerando diferenças importantes nos processos históricos de ocupação destas terras, a despeito disso, podemos dizer que, de modo geral, as populações mbya guarani que vivem no Sul e Sudeste do Brasil têm como um aspecto fundamental de suas economias, já há algum tempo, a relação com as cidades, seus habitantes e seus comércios.1 1 O termo Mbya designa um dos três subgrupos guarani que vivem atualmente no Brasil, em todos os estados das regiões Sul e Sudeste do país com a exceção de Minas Gerais, havendo ainda uma parcela da população no Pará e em Tocantins. Seu maior contingente encontra-se no leste do Paraguai, mas os Mbya estão presentes também nas regiões de fronteira do Brasil com a Argentina e o Uruguai. Na Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil há uma projeção de que a população mbya total estaria atualmente próxima de 27.000 pessoas. No Brasil, conforme dados de 2008, seriam os menos numerosos em comparação com os Guarani Kaiowá (31.000) e Ñandeva (13.000), nesse período somando cerca de 7000 pessoas (Ladeira, 2003).
Ainda que viver próximo do “mato”, e de um “bom mato” ou “bela mata” (ka’aguy porã) tenha um valor crucial para muitas pessoas mbya, que comentam com entusiasmo esse aspecto dos lugares onde vivem ou viveram, o acesso às cidades tornou-se um fator decisivo na escolha, por muitos, do local onde morar. Menos que permanecer nas cidades para onde só se mudam definitivamente aqueles que, em geral, envolvidos em casamentos com brancos, abandonam as aldeias, trata-se da capacidade de ir até lá e voltar, trazendo o que seja possível dessa investida. Minha sugestão, que buscarei desenvolver adiante, é que nesse movimento estariam presentes os princípios básicos que organizam a economia mbya contemporânea, que penso ser preciso considerar em sua articulação com outras dimensões, como a política e o ritual.
De um lado, a obtenção dos recursos básicos para a subsistência depende em grande parte da relação direta com as cidades, onde se compra boa parte dos alimentos hoje consumidos pelos Mbya, além de inúmeros outros itens, como produtos de limpeza, roupas, eletrodomésticos e celulares, e também onde se vende esporadicamente produtos de coleta, mas principalmente o artesanato feito nas aldeias, prática hoje amplamente difundida entre homens e mulheres mbya seja no Sul ou no Sudeste do país. A cidade é propriamente o lugar onde se “pega” dinheiro (-jopy perata), se não pela venda do artesanato, nos bancos, em dias de pagamento de aposentadorias ou benefícios de programas sociais como o Bolsa Família, programa do governo federal brasileiro para transferência de renda. Ou, ainda, onde “passeia-se”, e pode-se “achar” brancos que “ajudam”.
De outro lado, e este me parece um aspecto tão crucial quanto o anterior, as cidades ou a capacidade de trânsito e busca de recursos aí parecem oferecer alternativas interessantes a formas políticas e econômicas que organizam as relações entre as pessoas nas aldeias. Refiro-me às formas de reciprocidade no interior de grupos de parentesco e no âmbito da aldeia com seu cacique e outras possíveis figuras de liderança.
Múltiplos estilos e o princípio da reciprocidade
Durante minha pesquisa de doutorado (Pissolato, 20077 PISSOLATO, E. A duração da pessoa: parentesco, mobilidade e xamanismo mbya guarani. São Paulo: Editora da Unesp: ISA; Rio de Janeiro: Nuti, 2007.), morei e transitei por duas aldeias nas proximidades da cidade de Parati, no sul do estado do Rio de Janeiro – Araponga e Parati Mirim –, e também viajei com pessoas dessas aldeias para outras áreas no mesmo estado, em São Paulo e no Paraná. Não apenas cruzando fronteiras locais, mas vivendo meses seguidos em uma ou outra dessas áreas, me foi possível reconhecer uma variação importante nos estilos de organização das atividades e das relações no seio de um grupo de parentes. Certamente, também, algumas continuidades, o que me leva a pensar que os mesmos problemas estariam sendo tratados ao modo de diferentes estilos pessoais ou locais.
Uma primeira questão diz respeito à definição de unidades sociais ou socioeconômicas. Enquanto alguns grupos de parentesco tendem a organizar suas atividades sob o modelo da família extensa, com uma feição centralizada da produção e do consumo concentrados nas mãos do casal mais velho, outros grupos de parentes podem se comportar de maneira bastante diversa. Em Parati Mirim, a família de Lídia e Pedro, que mais tarde mudou-se desta Terra Indígena (TI) para a região de Camboinhas, em Niterói, adotava claramente uma organização do primeiro tipo, as atividades da roça, da produção e venda do artesanato e a distribuição de itens para o consumo concentrando-se no pátio desse casal e mantendo-se sob o comando principalmente de Lídia, dona de um estilo marcante de autoridade. Na mesma TI, por sua vez, diversos casais associados ao cacique da aldeia, Sr. Miguel, organizavam, por sua própria conta, a mesma atividade do artesanato: a coleta de material na mata, a produção e venda das peças, fossem estas expostas em barracas à beira da estrada que é rota turística, fossem levadas à cidade para exposição e venda nas ruas, tudo era matéria de decisão do casal, e o que o dinheiro da venda pudesse comprar, destinado ao consumo da família nuclear.
Assim também atualmente e em diversas localidades: adultos, na maioria mulheres acompanhadas de crianças, partem para a cidade e podem combinar saídas em dupla ou pequenos grupos ou escolher ir só. No primeiro caso, é comum que se apoiem nas movimentações pelas ruas para comprar refeições ou em outros “passeios”, quando deixam os panos em que as peças ficam expostas. Ainda, pode-se expor e vender cestos e outros itens de um parente ou vizinho, mas sempre as donas ou donos das peças são identificados e devem receber o dinheiro relativo à venda.
O tema da habilidade e gosto diferenciado entre as pessoas complementa essa variedade na organização das práticas. Homens e mulheres podem se dedicar, por exemplo, a tecer cestos, mas não há expectativa de que todos o façam e sempre. Assim também para a prática de talhar bichinhos em madeira, criando pequenas esculturas pirografadas, conforme um estilo muito característico mbya. Trata-se de atividade assumida por alguns homens – em geral mais jovens – que “sabem” e decidem se dedicar ao ofício. Mas os envolvimentos com uma certa atividade, a intensidade e o tempo dedicados a ela, bem como o empenho para tirar dali o sustento podem variar bastante de pessoa a pessoa ou em fases da vida de uma mesma pessoa ou de um casal. Isso vale não apenas para práticas voltadas para o sustento, mas também para a dedicação ao canto-reza e ao tratamento de parentes com petÿgua, o cachimbo de uso ritual e curativo. Momentos distintos numa trajetória de vida, contextos variados de residência, oportunidades que surgem, tudo isso pode fazer variar bastante os envolvimentos.
Tais envolvimentos e inclinações remetem, também, aos lugares “por onde se gosta de andar”. Considerando a paisagem – ao menos ideal – das aldeias mbya, podemos dizer que ela compreende uma área de mata, um ou mais cursos d’água, o espaço das casas e trilhas que as ligam, possivelmente algumas roças em seu entorno e um caminho para a(s) cidade(s).
Esses espaços, para além do que possam mobilizar simbolicamente, estão estreitamente articulados às práticas cotidianas e às alternativas na construção de modos próprios de ganhar a vida.
A mata, mencionada anteriormente em sua qualidade “boa/bonita” na referência ao lugar adequado para se viver, fornece, de modo privilegiado, recursos tanto simbólicos quanto de subsistência. Além de alguns itens de consumo nela coletados – como o palmito e o mel –, é onde se encontram os materiais para a produção do artesanato, a feitura de casas, onde se “acha remédios do mato (poã ka’aguy)” e pode-se achar, também, algum “bichinho” deixado pelo dono2 2 Os donos ou mestres de espécies animais, em guarani designados pelo termo -ja , frequentemente traduzido como “dono espiritual”, mantêm relação de proteção e controle sobre os indivíduos da espécie em questão. No contexto da caça, é um consenso a ideia de que é preciso ter o consentimento do dono para a captura de presas. nas armadilhas postas pelos caminhos.
As roças costumam estar sob os cuidados de uma ou outra família ou um homem que “gosta de plantar”, tendo, em geral, uma produção restrita. Podem, também, ser cultivadas “para o cacique”, ou, ainda, em certos casos, resultarem de projetos desenvolvidos nas aldeias, quando costumam ser chamadas “comunitárias”, ao modo da concepção dos agentes promotores não indígenas.
Egon Schaden (1962)9 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962. observou, em pesquisa realizada nos anos 1940, o lugar importante da “lavoura” para o sustento de grupos guarani, a despeito do gosto manifesto por outras atividades. Nas palavras do autor: “[O guarani seria] incapaz de conceber a vida humana sem as alegrias da caça e da pesca, [embora] a base de seu sustento lhe seja fornecida pela lavoura” (Schaden, 19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 45). O autor teria presenciado forte investimento na caça (com armadilhas, principalmente) entre os Mbya de Xapecó, em Santa Catarina, que dispunham de mata farta e virgem, ou ainda em Rio Branco, São Paulo.
Ao destacar a importância das roças, Schaden não nos fornece, contudo, informações sobre o volume de sua produção, enfatizando antes as transformações na organização do trabalho agrícola, que compreende nos termos do processo “aculturativo” em evidência, na visão do autor, principalmente na economia.
Com base em informações arqueológicas e etno-históricas, e retomando debates desenvolvidos pela antropologia econômica, Souza (2002)11 SOUZA, J. O. C. de. O sistema econômico nas sociedades indígenas guarani pré-coloniais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 211-253, dez. 2002. analisa o sistema econômico dos Guarani pré-coloniais como economia agrícola fundada no princípio da dádiva e tendo a família extensa como unidade de produção e consumo. Ao comentar em detalhe as diversas fontes etno-históricas, contudo, demonstra como famílias nucleares poderiam funcionar enquanto unidade econômica, e, por outro lado, como o tekoa, a reunião de famílias no nível aldeão, apenas sob condições excepcionais, corresponderia a essa unidade, o que associa diretamente ao caráter de “subprodução” da economia doméstica guarani (Souza, 200211 SOUZA, J. O. C. de. O sistema econômico nas sociedades indígenas guarani pré-coloniais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 211-253, dez. 2002., p. 226-227).
Alguns desses pontos serão retomados adiante, sob outras perspectivas analíticas, mas interessa-me destacar a variedade de formas sociais sob as quais a economia poderia se organizar, conforme observado por Souza (200211 SOUZA, J. O. C. de. O sistema econômico nas sociedades indígenas guarani pré-coloniais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 211-253, dez. 2002., p. 230), bem como o referido nível baixo de produção do sistema, imagem a que o mapa de muitas aldeias atuais não deixa de remeter. “Pouco produtivas” que sejam, entretanto, algumas roças persistem, ocupando um ou outro homem e possivelmente sua esposa, ainda que sem a adesão de outros familiares. Além do valor da agricultura marcado no ciclo do milho dito avaxy ete (“milho verdadeiro”), associado ao ritual nhemongarai, central na vida dos grupos mbya (ver adiante), há quem garanta itens importantes do sustento da própria família, pelo menos em certos períodos, através de suas roças: batata doce (jety), mandioca (mandio), outras qualidades de milho, etc.
É fato que, mesmo que há muito tempo ninguém mais viva nas aldeias mbya exclusivamente do que planta ou traz da mata, os produtos desses espaços não deixam de ser altamente valorizados. São eles também que, estando presentes, são objeto de distribuição e consumo mais amplos. Assim, quando um homem adulto traz um bicho maior de sua armadilha ou quando há fartura na roça de alguém, é certo que um número maior de pessoas deverá ter acesso a esses produtos.
Esse princípio de reciprocidade parece também valer para formas econômicas contemporâneas de captura de recursos, que, em sua maioria compreendem a participação de agências e/ou agentes do mundo jurua – os brancos. Refiro-me às cestas básicas recebidas nas aldeias, recursos em dinheiro originados de projetos, doações de itens como roupas, cobertores, etc. Se tais formas são propostas e organizadas no nível da aldeia, onde o cacique – seu núcleo familiar – assume o papel de principal mediador com as instâncias externas (jurua) e controla, por sua vez, a recepção e destino dos recursos, espera-se de quem ocupa tal função a capacidade de distribuir com generosidade tais recursos.
As casas de alguns caciques ou as despensas anexas à sua cozinha ou às chamadas “cozinhas comunitárias” presentes em várias aldeias atualmente costumam concentrar estoques de alimentos ou outros itens que são objeto de desejo e, quando possível, de demanda por parte de moradores da aldeia. A propósito, o comentário a respeito de modos não generosos de caciques que “não ajudam”, retendo alimentos ou outros itens para seus parentes próximos, aparece muito frequentemente como motivação para o abandono de aldeias.
Nos itens seguintes, pretendo desenvolver alguns pontos a propósito de implicações político-econômicas deste modelo de reciprocidade, se assim podemos chamá-lo, para uma aproximação da multiplicidade de práticas presentes no contexto atual das aldeias mbya.
Reciprocidade e trabalho
Em sua análise sobre a apropriação, a circulação e o uso do dinheiro entre os Cinta-Larga, João Dal Poz (2010)3 DAL POZ, J. Dinheiro e reciprocidade nos Cinta-Larga: notas para uma economia política na Amazônia meridional. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 11-23, jan./jun. 2010. demonstra como o “endinheiramento” que teve lugar nas últimas décadas em torno da exploração de madeira e diamante em terras cinta-larga não levou a rupturas importantes, muito ao contrário, acompanhou os princípios que estão na base de um sistema que antecede a presença dessas atividades e do dinheiro aí, fundado na reciprocidade assimétrica.
Partindo da crítica à equação entre reciprocidade e simetria, e com base numa análise da chefia amazônica (como, por exemplo, em Clastres, 19782 CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.), o autor propõe que a relação entre um chefe cinta-larga e os moradores de uma aldeia, ou a relação entre o zapivaj, “dono de casa”, e seus seguidores funda-se na reciprocidade assimétrica entre alguém que fornece casa (local) e alimentos (ou festas) de forma generosa, de um lado, e os que “trabalham” para o primeiro, de outro.
Dal Poz (2010)3 DAL POZ, J. Dinheiro e reciprocidade nos Cinta-Larga: notas para uma economia política na Amazônia meridional. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 11-23, jan./jun. 2010. nos mostra, por um lado, como essas funções ordenam, na mitologia cinta-larga, a relação entre o demiurgo Gora e seu ajudante Kot, fundando o modelo de vida aldeã; e, por outro lado, como tal modelo continua vigente no contexto das atuais mediações e obrigações dos chefes cinta-larga junto aos diversos agentes econômicos externos.
Entendo que um princípio de reciprocidade semelhante opera entre os Mbya e organiza, no plano político-econômico, a vida local, aparecendo também como modelo relacional no mundo do “alto” ou na atividade de Nhanderu3 3 Nhanderu, literalmente “nosso” (nhande) “pai” (-ru), é o termo que designa a divindade criadora da humanidade mbya e fonte das capacidades vitais e do conhecimento xamânico responsáveis pela permanência das pessoas mbya na terra. O termo costuma ser usado na referência genérica ao conjunto de “pais” divinos que habitam diferentes posições ou direções no “alto” (yva), fazendo par com Nhandexy (“nossa mãe”). Os “ajudantes”, “soldados” ou “servos” de Nhanderu se fazem presentes em relatos sobre os trabalhos dos deuses, seus feitos quando da criação da Terra, e em imagens sobre a hierarquia celeste. e seus “ajudantes” ou “servos” (-embiguai), a quem ordena tarefas.
Da mesma maneira que entre os “do alto” (yvategua), na terra, aquele que lidera um grupo de parentes ou “que vai na frente” levaria consigo os que, ao menos idealmente, “trabalham para ele”.
É comum ouvirmos nos comentários sobre estilos de liderança em diferentes aldeias, a respeito de haver “lei” e “polícia” dos caciques. Em certas ocasiões ouvimos tal afirmação em tom orgulhoso da boca dos próprios caciques, ainda que nem sempre possam efetivamente manter o controle sobre as atitudes dos que vivem ou visitam suas aldeias. O comentário parece ganhar ênfase especial na referência a aldeias a certa distância no tempo ou espaço, como se diz de áreas “no Paraguai”, “no Sul” (para os que se encontram no Sudeste), ou, ainda, “dos antigos”.
Duas figuras centrais aqui, seja no tempo “antigo” ou presente, são a “fuga” e o “castigo”.
Ainda que na prática pareça haver um limite importante ao exercício da autoridade dos caciques – que varia conforme o assunto em questão, o vínculo com os envolvidos, as demandas que lhes são dirigidas ou a presença efetiva de um grupo de rapazes ditos xondáro4 4 O termo xondáro, corruptela de “soldado”, é usado tanto nesse contexto, referindo-se aos rapazes que comporiam a “polícia” de um cacique ou líder de uma parentela, como também no do ritual, onde define o participante de danças de um estilo ao qual se aplica o mesmo termo. Num ou noutro caso estão implicadas habilidades como destreza e coragem. que se disponha a agir sob seu comando –, a despeito disso, “fuga” e “castigo” são meios bastante conhecidos e de uso comum – o primeiro certamente mais difundido – entre as pessoas mbya. De fato, “fugir” aparece como uma alternativa de que muitos lançam mão para abandonar uma aldeia e os vínculos aí travados, particularmente uma relação conjugal. Por sua vez, caciques com um certo estilo de autoridade e detentores das condições referidas acima podem se dispor a “mandar buscar” e “castigar” aqueles que teriam fugido.
São “castigos” que conhecemos hoje nas aldeias ter o cabelo cortado ou raspado, ficar amarrado e trabalhar.
Acompanhar alguém, trabalhar para o cacique
A definição do trabalho como castigo nos leva de volta ao contexto das práticas produtivas nas aldeias. Antes, contudo, de abordá-las, gostaria de comentar sobre variados estilos de liderança presentes entre grupos mbya contemporâneos.
Schaden (19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 102) já teria apontado a “coexistência de dois poderes” ou o que propôs como “duas noções de chefia em luta virtual: a religiosa e a civil”.
Assumindo, junto com Nimuendaju (19875 NIMUENDAJU, C. U. As lendas de criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo, 1987., p. 75-76), que tradicionalmente o líder guarani seria o “pajé principal”, o rezador ou chefe religioso para seus seguidores, Schaden (19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 99-106) interpreta a presença do “poder temporal” como um aspecto “ainda não integrado na cultura guarani”, presente por conta de imposições externas, isto é, por parte do Serviço de Proteção aos Índios, o SPI, através da figura do “capitão”. Sua etnografia nos permite visualizar, por outro lado, uma variedade grande nos arranjos possíveis de liderança na prática. De um contexto local a outro se alteram muito as formas de articulação entre posições de “poder”, quem as ocupa e as matérias efetivamente em questão.
De modo semelhante, podemos reconhecer hoje nas áreas mbya combinações as mais diversas.
Algumas aldeias estão organizadas econômica e politicamente em torno de um líder que dirige a reza, e trata, como opita’i va’e (rezador curador), os que residem em sua aldeia – ou ainda visitantes que venham lhe solicitar que os “olhe”. Isso ao mesmo tempo em que controla as atividades econômicas, a distribuição dos recursos e a mediação com agências ou brancos que “trabalham nas aldeias”. Tais líderes controlam, inclusive, a distribuição de postos de trabalho remunerados pela Funai ou outros órgãos entre moradores locais.
Essa estrutura se torna mais evidente em contextos menos extensos de parentesco, mas as habilidades pessoais e as disposições para o envolvimento com a reza e a cura são fatores decisivos na constituição dessa configuração de liderança.
Noutros contextos podemos encontrar composições diversas, seja com uma separação mais evidente entre as funções da reza cura e da organização de atividades econômicas/mediação nas relações ou “projetos” agenciados por jurua. E, ainda, conforme os históricos de ocupação e as dimensões de algumas áreas, cada uma dessas funções pode também estar, na prática, distribuída entre diversos líderes ou grupos de parentesco. Assim, é possível que encontremos em uma mesma área duas ou mesmo três opy, casas onde a reza-canto é feita sob a direção de um opita’i va’e e frequentada por moradores de certo setor numa aldeia. Da mesma maneira, a liderança política ou político-econômica pode distribuir-se entre alguns núcleos de parentesco ou definir posições mais específicas no interior de um núcleo, como, por exemplo, na separação entre assuntos/atividades desenvolvidos na aldeia e a tarefa de mediação com agentes externos.
A feição da liderança aparece como um aspecto fundamental para o modo de organização local. A começar pela definição da própria população do lugar. Estilos dos líderes são um fator crucial na decisão, por moradores, de permanecer numa aldeia ou não. A circulação entre áreas e a residência sucessiva em diversas delas aparece como uma estratégia muito difundida entre pessoas e famílias mbya, e alguns qualificativos dos caciques estão no centro da avaliação sobre o “viver bem” (-iko porã), “ficar alegre” (-vy’a) ou não nessa ou naquela aldeia.
Em termos de reciprocidade, além da generosidade na distribuição de recursos cuja captação é centralizada pelo cacique, seus modos de fala ocupam, também, um lugar importante nessa avaliação. Idealmente, a generosidade nesse campo corresponderia a distribuir palavras “boas/bonitas” ou “falar bem”, apaziguando conflitos e aconselhando brandamente, isto é, de modo não impositivo. Para o caso do rezador, que é também muitas vezes o líder de uma parentela, essa distribuição generosa de palavras inclui também a cura, feita com canto e invocações.
Se o caráter não impositivo da liderança tem seu valor, por outro lado a expectativa daqueles que “seguem” ou “se põem sob os cuidados” de um líder político e/ou rezador curador é a de que haja uma escuta para suas demandas. Podemos dizer, ao modo de uma ética ou estética do cotidiano (Overing, 19916 OVERING, J. A estética da produção: o senso de comunidade entre os Cubeo e os Piaroa. Revista de Antropologia, São Paulo, n. 34, p. 7-33, 1991.) que afirma como aspectos fundamentais do “viver bem” entre parentes a capacidade de “contar” e a recíproca do “falar-aconselhar”.
Levando seu “pessoal” consigo, líderes fundam locais, organizam atividades, definem posições, estabelecem maneiras de “trabalhar com a Funai” e de manter outras relações com brancos no âmbito da aldeia. O estatuto de Terra Indígena, a presença mais ou menos efetiva da Funai e de outras organizações governamentais ou não governamentais implicam, por sua vez, articulações com padrões externos de organização do trabalho e de ganho.
O que me parece muito interessante no mapa da multiplicidade atual das aldeias mbya é a distância que as dimensões do “acompanhar” e o “trabalhar para” alguém teriam assumido. De um lado, nos situamos aqui no interior de uma questão central à Amazônia, aquela da dinâmica entre obediência e autonomia, que, entre os Mbya, se expressa de um modo especial no campo do xamanismo (ver a seguir). De outro lado, essa distância nos permite discutir processos contemporâneos que articulam formas individuais de captação de recursos e a presença do dinheiro com padrões amazônicos de reciprocidade. Esses pontos serão desenvolvidos a seguir, partindo de uma observação que me parece ter caráter bastante geral para aldeias mbya atualmente.
Acompanhar um homem ou casal mais velho que encabeça um grupo de parentes é uma prática que orienta a trajetória de muitas pessoas ou casais mais jovens com vínculos consanguíneos e de afinidade com os primeiros. Isso implica morar junto deles e muitas vezes, também, segui-los em seus deslocamentos. Ou, como alguns dizem, segue-se a “orientação” desse líder. Essa pode ser política e/ou xamânica – “espiritual”, para usar uma tradução mbya. Assim, no primeiro caso, por exemplo, em um contexto de separação de outra parentela ocupando uma área conjunta, acompanha-se um grupo que se autonomiza e vai embora dali. No segundo caso, “escutam-se” os conselhos do líder a partir de suas impressões obtidas em sonhos ou na reza; tomam-se tais conselhos para os próprios deslocamentos, coloca-se a própria saúde e a dos filhos sob a proteção desse líder, etc.
“Trabalhar para o cacique”, por sua vez, tem implicações que a figura do castigo parece sugerir. Tais castigos em trabalho são, por exemplo, a capina de uma área, a limpeza de caminhos na aldeia, ou ainda, como já teria observado Schaden (19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 104-105), o trabalho em sua roça. Essas tarefas, bem como algumas participações em projetos ditos “comunitários”, como roças propostas enquanto tal, costumam ter um alto índice de rejeição por parte dos moradores de uma aldeia, mesmo entre parentes próximos do cacique.
Se em tempos passados o “puxirão” correspondia ao padrão de trabalho entre grupos guarani tanto no contexto da atividade agrícola quanto noutras atividades, como a construção de casas (Schaden, 19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 57-61), e se podemos associá-lo ao modelo amazônico da reciprocidade assimétrica em que os moradores de um local trabalham para um chefe que faz festa/oferece alimentos com fartura, atualmente o trabalho – em particular o trabalho em roças – parece ter se deslocado desse lugar, ainda que o modelo de reciprocidade assimétrica continue orientando, em boa medida, as relações com chefes de aldeias/chefes de grupos de parentesco.
Comentando sobre um projeto de “roça comunitária” proposto em 2001 pela Emater para a aldeia de Parati Mirim, Sérgio, professor na aldeia naquele período, observou o seguinte sobre a noção de “comunitário”. Afirmando que ele, tal como os demais homens casados do local, trabalhavam para o sustento da própria família (nuclear), disse-me que a noção só caberia à reza, única atividade que se poderia dizer “comunitária” no seu entender. A mesma roça era mais tarde objeto de crítica por outros moradores que reclamavam da falta de liberdade para colher ali, estando os produtos sob o controle do cacique e sua esposa.
Minha hipótese, seguindo a sugestão de Sérgio, é que fora da generosidade estendida da palavra (que dá direção/aconselha/reza/sopra para curar), a reciprocidade entre líder local e moradores implica hoje, mesmo que assumindo feições mais centralizadas, um grau de liberdade de escolha e de mobilidade.
Nem o chefe é mais o doador de alimentos de sua roça, sendo antes e principalmente um mediador dos recursos que vêm de fora da aldeia, os quais, inclusive, permitem, em certas ocasiões, a promoção de festas. Nem também, por sua vez, aqueles que “seguem” o chefe estariam dispostos a “trabalhar para” ele. Noutras palavras, a generosidade do cacique na partilha de recursos em grande parte tomados – ou que se “pega” – dos brancos não implica a contrapartida em trabalho com esforço físico concentrado, forma que hoje parece associada a uma noção negativa de submissão à chefia.
Considerando o universo multilocal em que se estende o socius mbya, “ficar” é já uma forma de apoiar um líder local, um cacique. Trazer gente para habitar sua aldeia é um empenho e um atestado de prestígio para caciques capazes de fazê-lo.
Reciprocidade e movimento
Os comentários anteriores nos levam a uma primeira proposição. Como teria observado Dal Poz para os Cinta-Larga no texto acima referido, não cabe distinguir uma “economia de prestígio” de uma “economia de subsistência”. A propósito reconhece o autor para o caso estudado “um único padrão ético ajuizado por uma mesma sentença moral que tanto desaprova a mesquinhez com relação às coisas quanto o ciúme excessivo entre as pessoas” (Dal Poz, 20103 DAL POZ, J. Dinheiro e reciprocidade nos Cinta-Larga: notas para uma economia política na Amazônia meridional. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 11-23, jan./jun. 2010., p. 14-15).
O mesmo podemos dizer para o caso mbya, onde a economia de prestígio conecta tanto a generosidade na distribuição de recursos materiais quanto de orientação e/ou cura “xamânica” (em sentido amplo), através do aconselhamento, da oratória, do ritual. Também na matéria do “ciúme”, akate’ÿ, termo que se aplica tanto a coisas quanto a pessoas, a ética define como negativa sua presença excessiva. Assim, por exemplo, ao aconselhar que não se “mesquinhe” com filhos e filhas (Cadogan, 19591 CADOGAN, L. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1959., p. 117-118).
Na prática, a circulação de pessoas entre aldeias diversas, o envolvimento em casamentos que levam homens e mulheres a deixarem muitas vezes de viver com seus filhos e filhas de uma união anterior, a saída sem aviso de parentes, tudo isso exige um exercício importante de controle do ciúme.
O tema do deslocamento parece assumir um lugar crucial aqui. Não apenas famílias ou grupos mais estendidos de parentesco podem se autonomizar em relação a um local e ao líder que antes “seguiam”. Também o fazem rapazes e moças – às vezes bem jovens –, ou homens e mulheres adultos, em visitas a parentes ou em “passeios” que fazem a outras áreas mbya, quando é o caso de encontrarem aí condições de permanência e estímulos para deixarem o local de onde partiram.
Entre os Mbya, colocar-se sob a proteção de um parente mais velho ou autonomizar-se de um líder – que é, antes de tudo e justamente um líder do grupo de parentesco a que se está ligado, parece constituir a dinâmica por excelência da socialidade. Proteção e seu correlato, a obediência, em um polo; autonomia e capacidade de achar a “própria orientação”, no outro.
Tal dinâmica teria sido já observada no campo do xamanismo e do ritual por autores como Nimuendaju (19875 NIMUENDAJU, C. U. As lendas de criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo, 1987., p. 77; 84-85) e Schaden (19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 122), ao apontarem as feições individual e coletiva do canto-reza guarani. É comum que as pessoas mbya se ponham sob a proteção de um opita’i va’e, juntando-se à sua opy, à sua reza, mas não deixem, por outro lado, de buscar (individualmente) o que possam receber (diretamente) das divindades como canto e/ou “inspiração” próprios.
Minha sugestão neste texto é que uma tal dinâmica entre proteção-obediência e autonomização, que opera sempre com uma abertura, como podemos ver no xamanismo, orienta a reciprocidade de modo geral, isto é, quando falamos de economia (política, ritual e de subsistência).
Voltando ao mapa das aldeias e à multiplicidade de formas diversas assumidas na atividade da subsistência e na política local, parece-me possível dizer que aqueles mesmos polos da proteção e autonomização organizam as práticas e orientam escolhas diferenciadas por pessoas, casais ou famílias corresidentes.
Por um lado, viver em um dado local implica colocar-se sob o “olhar” de quem assume ali uma posição de líder político (talvez também xamânico). Manter-se nesse local, como sugeri anteriormente, confere prestígio ao líder e implica expectativas quanto à sua generosidade. Envolve, também, potencialmente, algum apoio político frente a outras lideranças que venham a se constituir (por exemplo, quando um grupo de parentesco vivendo na mesma área começa a assumir posições contrárias às daquele primeiro líder), e também alguma adesão ou colaboração no tratamento e solução de questões internas ou na relação com instâncias externas as mais diversas.
Por outro lado, viver nesse local é sempre uma alternativa entre outras, isto é, uma experiência que estaria sempre sob o teste das emoções ligadas ao que se concebe como “ficar bem” (-iko porã) ou “ficar alegre/sentir satisfação” (-vy’a). Ou ainda, uma experiência que não impeça o grau de autonomia que se deseja e se tem condições de assumir. Isso vale para a experiência pessoal, mas também de grupos de parentesco que alcançam, a certa altura de seu desenvolvimento, condições, por exemplo, de fundar eles próprios “sua aldeia”.
No polo da “obediência” podemos situar as “leis” dos caciques ou dos parentes mais velhos e a presença dos xondáro que buscam fazê-la valer. No polo da “autonomia”, a capacidade de escolha sobre as próprias formas de trabalho e sustento, e, no limite, a liberdade de ficar e ir embora ou fugir.
Voltando à roça e seus produtos
A roça parece abarcar uma quantidade de questões de que não pretendo certamente dar conta neste texto. Como vimos anteriormente, continua tendo valor simbólico fundamental. Se antes seus produtos estavam no centro do sistema de reciprocidade mbya, colocando em relação dádivas de um dono de roça local (ou da maior roça) e o trabalho de um pessoal a ele ligado, atualmente teria seu valor marcado principalmente no plano cosmológico ritual e particularmente no contexto do nhemongaraí, quando colheitas e pessoas são “batizadas”.
O nhemongaraí é o momento por excelência de reunião e afirmação da humanidade mbya, definida pelo vínculo mantido com nhanderukuéry (o coletivo dos deuses). É potencialmente o contexto de maior concentração coletiva, como Nimuendaju (19875 NIMUENDAJU, C. U. As lendas de criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo, 1987., p. 89) já teria observado entre os Apapokúva, e também de um investimento intensivo na reza-canto que deve levar, após um certo período, ao “achado” dos nomes das novas crianças e à confirmação dos nomes de pessoas adultas.
Não reconhecemos hoje nas aldeias mbya um “ciclo econômico” que corresponderia a “ciclo da vida religiosa” como Schaden (19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 46) teria sugerido. Mas não deixa de estar presente a consciência de que as plantas cultivadas, tal como bichinhos ou materiais trazidos das matas, não resultam do trabalho humano, ao menos não exclusiva e principalmente. No caso da agricultura, a relação com os nhanderu é evidente, e particularmente a presença continuada de avaxi ete, o milho utilizado para a feitura do mbojape – pão assado em cinzas preparado por uma reunião das mulheres para o ritual – atestaria e reafirmaria o vínculo entre os “pais” e “mães” do “alto” e seus filhos e filhas enviados à terra.
Mas não só o milho “verdadeiro” marcaria tal relação. Outros itens agrícolas recebem o mesmo qualificativo: manduvi ete (amendoim verdadeiro), kumanda ete (feijão verdadeiro), espécies que teriam sido deixadas na terra pelas divindades para o sustento da humanidade mbya; alimentos que comporiam igualmente certos itens culinários conhecidos como parte do menu exclusivo dos “antigos” e que os mais velhos conhecem e ainda preparam em certas ocasiões, em especial quando da recepção de parentes visitantes de outras aldeias e/ou nos contextos rituais.
O valor conferido aos “alimentos verdadeiros” remete à consciência sobre os males produzidos por “comida de jurua”. Contam os mais velhos que antigamente os Mbya não comiam sal, nem açúcar, nem óleo. E que seus avós se alimentariam exclusivamente dos produtos (verdadeiros) de suas próprias roças. Em contraste, nas aldeias atuais, onde se come “comida do jurua”, a saúde estaria comprometida.
Há certamente muitos pontos a desenvolver aqui que nos levariam a uma discussão muito mais ampla de aspectos da cosmologia e do ritual. Limito-me, contudo, à observação de que, se por um lado, a roça e seus produtos – em particular, alguns destes – não deixa de ser objeto de grande interesse pelas pessoas mbya de modo geral, por outro lado, parece ter deixado de ser interessante enquanto meio privilegiado de sustento e de troca entre trabalho e proteção (nos termos desenvolvidos anteriormente).
Ainda, se é preciso manter o vínculo com Nhanderu, e, mesmo não tendo muita roça, manter alguma, particularmente a roça do “milho verdadeiro” que não deve faltar no ritual; se é assim, por outro lado, podemos afirmar que os alimentos comprados nas cidades e preparados nas aldeias5 5 Observo que há uma distância a considerar entre a “comida de jurua”, por exemplo, vendida em marmitex e consumida nas cidades em dias de exposição e venda de artesanato nas ruas, e a comida preparada nas aldeias a partir de mantimentos trazidos dos mercados das cidades. Veja-se, a esse respeito, a noção de “guaranização de alimentos regionais” proposta por Nadia Silveira (2011). têm servido há bastante tempo à reciprocidade mbya e à produção de parentesco.
Tais alimentos, cultivados noutras roças e submetidos a processos controlados pelos brancos até chegarem aos mercados das cidades onde podem ser obtidos com dinheiro, continuam ocupando lugar privilegiado na reciprocidade entre os humanos ou parentes. Porém, em contraste com os tempos antigos, outras maneiras produtivas, isto é, de pegar dinheiro e obter mantimentos para preparar e oferecer comida, para agradar e produzir relações dessa maneira teriam se tornado muito mais atraentes que o trabalho para donos de roças.
O lugar do dinheiro
Como já foi dito, poucos são os homens e mulheres mbya que gostam de se dedicar ao trabalho das roças atualmente. Mas muitos valorizam o que chamam de “trabalhar na aldeia”: assumir postos como o de professor ou professora, “merendeira”, motorista ou outras funções ligadas ao atendimento em saúde e ao saneamento que geram salários. Essa maneira de “pegar dinheiro” (-jopy perata) sem obrigar-se a uma relação de submissão a um patrão jurua parece das mais interessantes atualmente, bem como a obtenção de dinheiro através de benefícios governamentais como as aposentadorias e os recursos oriundos de programas como o Bolsa Família. A despeito da pequena quantia em dinheiro, aprecia-se a regularidade no acesso.
Outro modo importante de “pegar” dinheiro ou outros recursos vindos de jurua – particularmente mantimentos e roupas –, nesse caso em maior volume, dá-se no âmbito da aldeia, através das relações com a Funai e outras agências, como também já mencionado. Tais recursos, alguns deles com “entrada” regular nas aldeias, outros de caráter esporádico, a depender de projetos específicos desenvolvidos em parcerias com ONGs ou em articulações com brancos “que ajudam”, têm representado uma parcela importante na garantia do sustento de várias famílias, a começar pelas mais próximas ao cacique do ponto de vista do parentesco.
A amplitude da distribuição desses recursos depende sempre de negociações entre um estilo de chefia mais ou menos “generoso” assumido pelo cacique ou seu núcleo familiar, as demandas “internas”, isto é, por parte de moradores da área, e também as “externas”, que supõem frequentemente um caráter “comunitário” para as economias indígenas, como observado.
Se o cacique é idealmente aquele que deveria reunir o máximo de recursos para a mais ampla distribuição possível entre os moradores de sua aldeia, o mesmo vale para todo chefe ou casal que encabeça uma família. E o dinheiro de salários ou bolsas não deixa de fazer parte desse modo de reciprocidade.
Dinheiro que um homem ou mulher “pega” na cidade reverte-se muito frequentemente e em geral em poucas horas em itens vendidos no comércio da mesma cidade – notadamente mantimentos, mas também outros bens tidos como necessidades. Os alimentos são comprados e trazidos para a aldeia para a preparação e consumo junto de familiares. É bem possível, também, que um ou outro item do agrado de alguém seja consumido por lá mesmo, na cidade, junto de acompanhantes, normalmente algumas crianças. Na rodoviária de Parati muitas guloseimas costumam ser consumidas a cada visita à cidade: sorvetes, balas e biscoitos ou ainda refrigerantes, sempre presentes na espera do ônibus para o retorno a Parati Mirim.
O dinheiro que cada um “pega” parece compor com o modo de organização das práticas produtivas e do consumo no âmbito dos grupos de parentes, acompanhando a feição assumida pelo grupo. Voltando ao início deste artigo, podemos dizer que os salários podem ser de uso da família nuclear ou participar de uma economia familiar mais extensa, o que também vale para o dinheiro obtido com a venda do artesanato. De todo modo, eles estão inseridos no circuito de reciprocidade do qual o receptor participa. Daí a crítica forte feita a alguns homens que, ao pegar dinheiro, gastá-lo-iam completamente ao “ficarem bêbados” (-oka’u) na cidade.
Historicamente, o dinheiro parece ter criado alternativas a uma economia política que as “cercas” postas pelos brancos impediram. Remeto aqui ao relato de mulheres e homens mais velhos que contam do tempo em que permaneciam durante um período vivendo e explorando os recursos de um dado local, mudando-se em seguida para outra terra, onde reiniciavam o processo. Tempo em que também se visitavam, cruzando a pé trilhas entre os diversos assentos ou “fogos” habitados por parentes. Junto com as cercas, que impediram uma tal mobilidade no uso das terras, os brancos trouxeram, entretanto, suas mercadorias e o dinheiro. E, ao longo de alguns séculos, as populações mbya puderam experimentar e definir formas de relação com ambos, assim como interpretações sobre modos econômicos do jurua. Sem a intenção de aprofundar aspectos desses processos, gostaria de sugerir, em relação à presença obrigatória do dinheiro na economia mbya contemporânea, que esta não só não impediu, bem como se integrou ao modelo de reciprocidade mbya e aos padrões de mobilidade político econômica vigentes antes de sua chegada.
Hoje não se trabalha mais (ou tanto) para um líder local, especialmente não se faz roça para ele, mas espera-se dele generosidade no que captura para distribuir – seja dos deuses, como dos brancos. E, de sua parte, quem lhe acompanha sabe que lhe deve apoio enquanto vivendo em sua aldeia ou no entorno de seu fogo. Mas, preferencialmente, isso é feito enquanto não se reconhece nessa relação mesquinhez ou intenção de submissão. Ou, ainda, enquanto não se conquista por conta própria meios de obter (maior) autonomia.
Discordando da tese da “aculturação econômica” proposta por Egon Schaden (19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 45-63), que associava o dinheiro e o trabalho remunerado à noção de “individualização” da economia guarani, minha impressão é que as práticas econômicas contemporâneas adotadas pelos Mbya foram capazes de otimizar certos princípios da economia política e da socialidade aí.
De um lado, como vimos acima, as práticas que permitem pegar dinheiro atualmente e que não passam pelo controle de um chefe de família ou cacique não deixam de resultar em prestações em comida que estão no centro da produção de parentesco e da reciprocidade mbya. Assim ocorre na venda de artesanato produzido a partir de esforço próprio ou no caso de “ajudas” obtidas em relações travadas com brancos nas cidades longe de qualquer controle. Assim também nas ocasiões diversas em que se pega dinheiro nos bancos.
Além disso, as práticas contemporâneas otimizariam, a meu ver, as possibilidades de alteração de residência e de participação em contextos relacionais diversos que o sistema multilocal mbya compreende. As “novas” maneiras de pegar dinheiro e produtos dos mercados das cidades permitiriam não apenas escapar, em certa medida, do controle e obrigação ao trabalho para um líder de parentesco e das tensões possivelmente vividas no cotidiano de uma aldeia, da qual e possível sair em “passeios” à cidade, mas também permitiriam a adoção dessas mesmas maneiras de pegar dinheiro e produtos em novos contextos residenciais.
Sistema aberto
Para concluir, tomo o comentário de Sahlins (1972)8 SAHLINS, M. Stone Age economics. Chicago: Aldine, 1972. a propósito daquelas que seriam as “primeiras sociedades da afluência”, sociedades de caçadores-coletores que, longe de submetidas pela escassez, viveriam conforme um regime marcado pela prodigalidade (nas festas) e o valor da liberdade de movimento. O autor observa um sentido de aposta quanto à disponibilidade de recursos de coleta e caça, e a valorização da capacidade de mobilidade que contrastaria com outros valores que poderíamos supor, como a imprevisibilidade, a acumulação ou reserva.
Schaden (19629 SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: EPU: Edusp, 1962., p. 56), a despeito de entrever a “desintegração” de um modelo tradicional guarani de reciprocidade a partir da “individualização econômica” que se processava, no seu entender, nas décadas de 1940 e 1950, observava, quanto ao uso do dinheiro: “O dinheiro existe para ser gasto; não se trata de economizá-lo e à sua poupança não corresponde função na cultura Guarani.”
Convivendo, no início deste século XXI, nas aldeias guarani mbya, podemos dizer que o dinheiro continua sendo “para se gastar”. A propósito, só vi a disposição de “juntar dinheiro” entre as pessoas de meu convívio quando precisávamos comprar passagens interurbanas para a visita a parentes noutras aldeias.
O modelo dos salários e da obtenção “individualizada” de dinheiro através de benefícios ou pela venda de artesanato não se reverteu em desejo de acumular. Muito pelo contrário, quem faz sumir dos olhos de outrem seus próprios recursos continua sujeito à crítica por sua sovinice ou “ciúme”.
É possível que as práticas econômicas contemporâneas, longe das roças e com a flexibilidade que o dinheiro permite, tenham expandido o caráter de “liberdade” que o sistema multilocal permite. Pode-se ir para uma outra aldeia, juntar-se a outros parentes, levando consigo, ao menos em parte, a capacidade do próprio sustento – e daqueles familiares que se leve junto. Transfere-se o local de recebimento da aposentadoria; exploram-se recursos no novo ambiente para a produção e venda de artesanato. Experimenta-se o estilo da política local, a acolhida por pessoas relacionadas, as relações que se conquistar, as impressões e sentimentos que a vida ali trouxer. Aqui também há uma “aposta”. Uma expectativa sobre o “caminho” que se trilhará, expectativa que coloca em foco, de tempos em tempos, o problema de “qual orientação seguir”, ou qual seria o “bom caminho”, tape porã, que os nhanderu indicariam. De todo modo, a liberdade de ir – e, inclusive, de possivelmente, noutro momento, voltar –, de buscar novas maneiras de prover a vida é o que parece continuar no centro.
Referências
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1CADOGAN, L. Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guaraní del Guairá. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1959.
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2CLASTRES, P. A sociedade contra o Estado Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
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3DAL POZ, J. Dinheiro e reciprocidade nos Cinta-Larga: notas para uma economia política na Amazônia meridional. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 13, n. 2, p. 11-23, jan./jun. 2010.
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4LADEIRA, M. I. Mbya: população. Povos indígenas no Brasil, out. 2003. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-mbya/1289>. Acesso em: 24 abr. 2015.
» http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-mbya/1289 -
5NIMUENDAJU, C. U. As lendas de criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocúva-Guarani São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
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6OVERING, J. A estética da produção: o senso de comunidade entre os Cubeo e os Piaroa. Revista de Antropologia, São Paulo, n. 34, p. 7-33, 1991.
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7PISSOLATO, E. A duração da pessoa: parentesco, mobilidade e xamanismo mbya guarani. São Paulo: Editora da Unesp: ISA; Rio de Janeiro: Nuti, 2007.
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8SAHLINS, M. Stone Age economics Chicago: Aldine, 1972.
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9SCHADEN, E. Aspectos fundamentais da cultura guarani São Paulo: EPU: Edusp, 1962.
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10SILVEIRA, N. H. Imagens de abundância e escassez: comida guarani e transformações na contemporaneidade. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011.
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11SOUZA, J. O. C. de. O sistema econômico nas sociedades indígenas guarani pré-coloniais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 8, n. 18, p. 211-253, dez. 2002.
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1
O termo Mbya designa um dos três subgrupos guarani que vivem atualmente no Brasil, em todos os estados das regiões Sul e Sudeste do país com a exceção de Minas Gerais, havendo ainda uma parcela da população no Pará e em Tocantins. Seu maior contingente encontra-se no leste do Paraguai, mas os Mbya estão presentes também nas regiões de fronteira do Brasil com a Argentina e o Uruguai. Na Enciclopédia dos Povos Indígenas no Brasil há uma projeção de que a população mbya total estaria atualmente próxima de 27.000 pessoas. No Brasil, conforme dados de 2008, seriam os menos numerosos em comparação com os Guarani Kaiowá (31.000) e Ñandeva (13.000), nesse período somando cerca de 7000 pessoas (Ladeira, 20034 LADEIRA, M. I. Mbya: população. Povos indígenas no Brasil, out. 2003. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-mbya/1289>. Acesso em: 24 abr. 2015.
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/gu... ). -
2
Os donos ou mestres de espécies animais, em guarani designados pelo termo -ja , frequentemente traduzido como “dono espiritual”, mantêm relação de proteção e controle sobre os indivíduos da espécie em questão. No contexto da caça, é um consenso a ideia de que é preciso ter o consentimento do dono para a captura de presas.
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3
Nhanderu, literalmente “nosso” (nhande) “pai” (-ru), é o termo que designa a divindade criadora da humanidade mbya e fonte das capacidades vitais e do conhecimento xamânico responsáveis pela permanência das pessoas mbya na terra. O termo costuma ser usado na referência genérica ao conjunto de “pais” divinos que habitam diferentes posições ou direções no “alto” (yva), fazendo par com Nhandexy (“nossa mãe”). Os “ajudantes”, “soldados” ou “servos” de Nhanderu se fazem presentes em relatos sobre os trabalhos dos deuses, seus feitos quando da criação da Terra, e em imagens sobre a hierarquia celeste.
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4
O termo xondáro, corruptela de “soldado”, é usado tanto nesse contexto, referindo-se aos rapazes que comporiam a “polícia” de um cacique ou líder de uma parentela, como também no do ritual, onde define o participante de danças de um estilo ao qual se aplica o mesmo termo. Num ou noutro caso estão implicadas habilidades como destreza e coragem.
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Observo que há uma distância a considerar entre a “comida de jurua”, por exemplo, vendida em marmitex e consumida nas cidades em dias de exposição e venda de artesanato nas ruas, e a comida preparada nas aldeias a partir de mantimentos trazidos dos mercados das cidades. Veja-se, a esse respeito, a noção de “guaranização de alimentos regionais” proposta por Nadia Silveira (2011)10 SILVEIRA, N. H. Imagens de abundância e escassez: comida guarani e transformações na contemporaneidade. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2011..
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Jun 2016
Histórico
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Recebido
30 Abr 2015 -
Aceito
05 Out 2015