Open-access A vagina pós-orgânica: intervenções e saberes sobre o corpo feminino acerca do “embelezamento íntimo”

The post-organic vagina: interventions and knowledge about the female body concerning the “intimate embellishment”

Resumo

Este trabalho tem como objetivo problematizar textos disponíveis na internet favoráveis aos procedimentos de embelezamento íntimo, associados mais aos argumentos sobre autoestima e saúde da mulher e menos à vaidade. Há uma relação direta entre saúde da mulher e embelezamento da região íntima/aparência da genitália, mas também se fala que as cirurgias não ocorrem para corrigir apenas a estética/aparência da região íntima, que inicialmente eram cirurgias para a correção de problemas funcionais. Nesse contexto, a “mulher moderna” seria aquela que aproveita as novidades tecnológicas para proveito próprio – no entanto, há muitas controvérsias, nomenclaturas e significados em jogo. Se a vagina tem sido alvo da “ditadura da beleza” tanto quanto outras partes do corpo feminino, e se há possibilidade de fabricá-la, é possível pensá-la enquanto pós-orgânica. Eis o argumento que guia este artigo, acionando concepções referentes a corpo, gênero, sexualidade, beleza e saúde.

Palavras-chave embelezamento íntimo; medicalização; sexualidade; tecnologias

Abstract

This paper aims to discuss texts available on the internet favorable to intimate embellishment procedures, associated more to the arguments about self esteem and health of women and less about vanity. There is a direct relationship between women’s health and embellishment of the intimate region/appearance of the genitalia, but also it is said that the surgery did not occur to correct only the aesthetics/appearance of the intimate region, which initially were surgeries to correct functional problems. In this context, the modern woman would be one that takes advantage of new technologies to their advantage, however, there are many controversies, classifications and meaning simplicated. If the vagina has been the subject of beauty dictatorship as much as other parts of the female body, and if it is possible to manufacture it, we can think of it as post-organic vagina. Here’s the argument that guides this article, operating concepts referring to body, gender, sexuality, beauty and health.

Keywords intimate embellishment; medicalization; sexuality; technologies

Em julho de 2013, uma reportagem da Revista Glamour intitulada “Autoestima vaginal: como anda a sua?” (Laranjeira; Stopa, 2013) denunciou que a “ditadura da beleza” havia chegado “às nossas vaginas”.1 Prova disso é o significativo crescimento do número de mulheres à procura de cirurgiões plásticos “para deixar suas partes íntimas como as das estrelas pornôs”. De acordo com a reportagem, o Brasil lidera o ranking de um tipo específico de “cirurgia íntima”, a labioplastia, e que, em 2011, 9043 brasileiras haviam “entrado na faca” para “corrigir” o que consideravam ser “imperfeições” nos lábios vaginais. A indústria pornográfica seria uma das responsáveis pela difusão do “padrão estético vigente” da “vagina perfeita”: “nenhum pelinho pra contar história, coloração rosada, grandes lábios gordinhos e firmes, pequenos lábios discretos e clitóris bem escondidinho” (Filgueiras, 2013), assemelhando-se à aparência de uma menina pré-púbere (Vieira, D., 2012). Haveria uma preocupação de homens e mulheres com a aparência dos genitais2 principalmente em decorrência do fácil acesso a conteúdos pornográficos disponíveis na internet. “Encucação” estética ou não, as mídias influenciam fundamentalmente o desejo pela intervenção cirúrgica fabricando a sensação de inadequação sobre o corpo que pode advir do fato de os corpos de atrizes e modelos figurarem como referências de padrões a serem seguidos.

Notadamente a partir da década de 1990, as redes interativas de computadores vêm crescendo exponencialmente, “favorecendo a criação de novos canais de sociabilidade, de expressão cultural, de participação social e política, e de operações econômicas e financeiras”. Nessa “cultura midiática”, fazer circular informações torna-se ato cotidiano, corriqueiro (Trivinho; Cazeloto, 2009, p. 21-43). A internet surge como “um grande veículo de divulgação, comunicação, transmissão de arquivos e venda de produtos” (Dias, 2007, p. 46), passa a interessar pesquisadores de áreas diversas do conhecimento, revelando-se fecundo campo de investigação, estabelecido através da antropologia do ciberespaço e estudos das mídias.

Dito isso, este trabalho tem como objetivo problematizar discursos disponíveis na internet favoráveis aos procedimentos de “embelezamento íntimo”, associados mais aos argumentos sobre “autoestima” e saúde da mulher e menos à vaidade. Segundo esses discursos, haveria uma relação direta entre saúde da mulher e embelezamento da região íntima/aparência da genitália, sendo também dito que as cirurgias não ocorrem para corrigir apenas a “estética” da região íntima, e que antes disso as cirurgias eram mobilizadas para a correção de problemas “funcionais”. Paralelamente, há a recorrência do discurso sobre a “mulher moderna” como aquela que aproveita as novidades tecnológicas para proveito próprio.

Em pesquisa exploratória realizada em março de 2015 foi colhido material relacionado à palavra “autoestima vaginal”, ocasião na qual foi observada a existência de uma vasta produção on-line sobre cirurgias íntimas, insegurança genital e procedimentos estéticos para “reconstrução” da vulva. Muito dos resultados da pesquisa provém de sites de clínicas e blogs de profissionais do ramo da medicina estética genital, cirurgia plástica, fisioterapia pélvica, pompoarismo, terapia sexual, ginecologia e obstetrícia, além de revistas femininas. As informações sobre o assunto são variadas: a crescente procura pelos procedimentos de “embelezamento íntimo” em vários países, motivações e faixa etária das “pacientes”, tipos de procedimentos cirúrgicos e não cirúrgicos, além de cuidados com a higiene da vagina e tipos de depilação. O que chamou atenção nesse material foi que havia mais divergências do que consensos, a começar pela profusão de termos para designar as cirurgias e as especialidades que tratam do assunto,3 tais como “estética genital feminina”, “estética vaginal”, “cirurgia íntima”, “bioplastia intima”, “cirurgia estética genital”, “medicina estética e ginecologia”, “ginecologia estética”, “estética íntima”, “plástica da intimidade”, “cirurgia da intimidade”, “cirurgia cosmética vaginal”.

A genitália feminina tornou-se objeto de pesquisa de diversas áreas da ciência e tem se tornado território tão tecnologizado quanto o próprio corpo, configurando-se como lugar de múltiplas intervenções. Preciado (2014) afirma que a história da humanidade deveria ser rebatizada de “história das tecnologias” (téchné, cuja origem da palavra designa “ofício e arte de fabricar”, opondo-se a physis, “natureza”), tendo em vista que o que convencionalmente conhecemos por sexo e gênero são “dispositivos inscritos em um sistema tecnológico complexo”. Essa mesma história mostra ainda que o que é conhecido como “natureza humana” é um efeito da relação entre humano e animal, corpo e máquina e, assim, toma o corpo como um “arquivo orgânico da humanidade”, o qual possui órgãos sexuais que não existem em si mesmos, sendo, antes, produtos de uma “tecnologia de produção dos corpos”. Nesse sentido, se a vagina tem sido alvo da “ditadura da beleza”, tanto quanto outras partes do corpo feminino o foram no decorrer da “história da beleza”, e se há possibilidade de fabricá-la, é possível pensá-la enquanto “pós-orgânica”. Eis o argumento que guia este artigo.

A “tirania das aparências”:4 da ausência de formosura à tecnologia da beleza

“Mulheres contam como a plástica vaginal mudou suas vidas” (Oliveira; Sandoval, 2015), eis o título de uma matéria publicada em abril de 2015 no site UOL que traz relatos de mulheres que passaram pela “reconstrução” dos genitais. Segundo a matéria, uma mulher afirma que tinha “problemas” com seus pequenos lábios e que, além de ter vergonha de usar biquíni porque “marcava na calcinha”, chegou a descartar a hipótese de ter um parto normal para evitar o constrangimento de ter “de ficar muitas horas em uma posição que todos olhariam para a minha vagina”. Outra mulher lembra que sentia dores durante a relação sexual e quando tinha de ficar sentada durante um longo período “chegava ao destino toda dolorida. Eu tinha de ajeitar o lábio para dentro para amenizar”. A matéria afirma ainda que, nessas queixas, “não é só estética”: há um incômodo real que gera insatisfações em momentos cotidianos, inclusive vindo a atrapalhar a relação sexual, e que o procedimento cirúrgico, opção mais viável para solucionar o “problema”, é “rápido e quase indolor”. Essas são informações corriqueiras nos textos que publicizam as chamadas “cirurgias da intimidade”.

Antes de adentrar no universo das intervenções específicas dos genitais femininos, é importante contextualizá-lo. Para tanto, é preciso recorrer à temática da indústria da beleza, apontando a apropriação e a divulgação de discursos e tecnologias sobre padrões estéticos, seu papel na medicalização do corpo feminino e nas intervenções médico-tecnológicas na vulva/vagina, induzidas pela injunção médico-midiática à beleza. Essa apropriação e uma certa banalização “do discurso médico, aliada à espetacularização e ao estímulo consumista destas técnicas e práticas corporais” apontam para a emergência dessas questões (Mesquita, 2013, p. 20).

No começo do século XX, muito embora os conselhos que visassem a “beleza física” fossem direcionados a homens e mulheres, eram as mulheres os alvos privilegiados. A promoção de uma “imagem desejável de si” repousa na valorização da aparência, no desejo de agradar, seduzir, ser bela, jovem e reconhecer-se dentro dos padrões difundidos pelas revistas femininas, periódicos, televisão e rádio (Laurent, 2013, p. 20).

A modificação radical da “natureza” do corpo não era vista com bons olhos. Entendia-se que a “natureza humana” não podia ser totalmente modificada de acordo com os desejos individuais. Cabia, então, disfarçar a ausência de “formosura” com alguns artifícios temporários, como, por exemplo, os enchimentos. Entre 1930 e 1950 já eram anunciadas intervenções cirúrgicas faciais realizadas pelo doutor Pires, cujo argumento era que “as tristezas resultantes da falta de beleza eram injustificáveis e as promessas de um embelezamento radical incluíam as ditas operações”. Ainda assim, havia relutância por parte das mulheres na adesão a esse tipo de intervenção na “beleza física”, no sentido de que vários eram os conselhos, na época, para que o “embelezamento” fosse “comedido e provisório”. Não se falava em “embelezamento íntimo”; o que mais se aproximava da discussão sobre a intimidade feminina era a exposição dos “males uterinos”, a qual associava beleza, doçura e bom humor com a saúde do útero, “considerado o centro irradiador da saúde da mulher” (Sant’Anna, 2012, p. 110).

Um assunto comum à grande parte dos conselhos de beleza da época girava em torno da “necessidade de levar as jovens ao altar” ou auxiliar as mulheres casadas a entenderem que são as responsáveis pela construção de um “lar feliz e honesto”. Recomendava-se que as mulheres nunca se descuidassem de si, uma vez que era a partir do cuidado de si que a “chama do amor conjugal” deveria se manter acesa, configurando o amor como uma “conquista obrigatória, um sentimento essencial em nome do qual era preciso batalhar cotidianamente”, batalha que só seria vencida se o interesse masculino por seus corpos fosse ampliado (Sant’Anna, 2012, p. 111-112). Esse era um motivo para cultivar e podar: “cultivar aquilo que se considera belo e, possivelmente, bom. Podar aquilo que seja considerado feio e, portanto, ruim. Publicizar e exibir a beleza. Eliminar a feiura – ou senão, restringi-la ao âmbito privado”, desde que longe dos olhares masculinos (Mesquita, 2013, p. 19).

A partir da década de 1950, inicia-se uma forte influência do cinema e das tele/fotonovelas que se espalha através do enaltecimento de “ícones”, artistas considerados modelos de beleza e comportamento, estrelas de cinema e manequins, “modelos superlativos da feminidade que saem do reino da raridade e invadem a vida cotidiana”, induzindo a ampliação da adesão às “práticas de embelezamento” (Lipovetsky, 2000, p. 130). O uso da imagem desses ícones era frequentemente associado ao anúncio de produtos cosméticos sugeridos pela publicidade nas revistas femininas, tornando possível a qualquer um/a aproximar-se dos hábitos de embelezamento daqueles ídolos midiáticos, através do consumo desses produtos. Assim, a partir do desenvolvimento da cultura industrial e midiática deu-se “o advento de uma nova fase da história do belo sexo, sua fase mercantil e democrática” (Lipovetsky, 2000, p. 135), propagando em um tom mais de alerta do que de promessa que “toda mulher tem o direito de se tornar bela e tão sedutora quanto suas artistas prediletas”. Dessa forma, tornar-se bela se reveste da ideia de uma conquista individual e, como corolário, só permanece feia quem quer (Sant’Anna, 2012, p. 115). A mídia tornou-se, então, importante instrumento de divulgação e capitalização do chamado “culto ao corpo” (Siqueira; Faria, 2007, p. 179).

Depois da década de 1960 um tom científico se afirmou na cosmética, “época dos primeiros congressos internacionais sobre o assunto e de uma progressiva evolução dos produtos”. Abriu-se então o caminho para a “mega indústria da beleza contemporânea” (Sant’Anna, 2012, p. 117), na qual a beleza foi se tornando uma mercadoria que pode ser adquirida em vários tipos de estabelecimentos, como em salões de beleza e centros de estética, espaços criados para oferecer serviços a todos que desejam melhorar o seu corpo (Rodrigues, 2005, p. 14).

A partir daí, parece impossível falar do corpo e de seu funcionamento sem recorrer ao vocabulário médico (Faure, 2012, p. 13). Não foi por acaso que, nesse contexto, os “problemas” em torno da aparência física se revestiram de uma maior complexidade com a banalização do vocabulário médico e de suas promessas de intervenção. Do vocabulário psicanalítico, por exemplo, foi apreendida a expressão “vergonha do corpo”, a qual “tinha lá suas razões inconscientes”, além de “trauma” e “frustração”. Outro fator de mudança dos roteiros “da beleza e da sedução” foram os “movimentos de emancipação feminina e o advento da contracultura, a necessidade de ser autêntico e sexualmente livre” (Sant’Anna, 2012, p. 119).

Houve, digamos assim, uma intensificação do “gosto por si”, que logo foi captado pela crescente indústria da beleza. A partir daí percebeu-se que os produtos cosméticos deviam ser benéficos para a relação da mulher consigo mesma, enquanto uma satisfação pessoal, e não apenas para uso com o parceiro (Sant’Anna, 2012, p. 120). Só nas décadas seguintes cai por terra o antigo tabu das cirurgias plásticas com a “evolução das próteses e técnicas, somada ao permanente espetáculo midiático de um corpo rigorosamente jovem e infalivelmente sedutor” que encheu de naturalidade a decisão de remodelar determinadas partes do corpo. Surge então o imperativo e a naturalidade de “passar o corpo a limpo” (Sant’Anna, 2012, p. 122-123), quando a “linguagem da beleza” é penetrada de vez pelo vocabulário científico.

Mais tarde, no século XXI, os discursos favoráveis às cirurgias plásticas, que podem ser encontrados na internet, chamarão atenção para a importância delas na manutenção de uma vida conjugal equilibrada: diz-se que as mulheres temem desagradar seus maridos e namorados, então o investimento na aparência íntima seria uma maneira eficaz de melhorar a autoestima e principalmente o relacionamento com o parceiro para evitar que o problema se desdobre “em consequências devastadoras para o casal” (Vítor, 2014). É dessa maneira que a “recauchutagem íntima” surge como fundamental para a “modificação da intimidade”. Em contrapartida, diz-se também que embora os “pequenos procedimentos no corpo e na genitália” femininos produzam “grandes transformações na alma feminina”, a cirurgia “não salva casamento, não dá orgasmos e nem traz ou ‘segura marido’”, o que realmente importa é que a mulher redescubra sua “feminilidade potencial que está prisioneira dos tabus” (Nemov, 2015). Ou seja, o “embelezamento íntimo” seria, em última instância, um investimento na “autoestima” feminina. Os olhares masculinos não importariam tanto quanto o próprio olhar da mulher sobre si mesma.

A figura da “mulher moderna” aparece em sites de clínicas, cirurgiões e revistas femininas como “um tipo de mulher sempre em busca de melhorar a aparência” e também os “momentos íntimos” (os quais incluem seu prazer sexual), atualizada com os desenvolvimentos da medicina estética, de como esta pode ajudá-la não só a ter uma aparência física melhor, mas também “um bem-estar psicológico de excelência” (Pontes, 2012). A busca por “contornos e volumes perfeitos até mesmo para a sua genitália” poderia ser entendida como um “reflexo do atual momento da mulher moderna e independente que decide sobre seu corpo e quer ser feliz” (Vítor, 2014). Nesse sentido, além de ser considerada uma grande conquista para a “mulher moderna”, a cirurgia íntima traria como benefício para a mulher um aumento de expectativa de vida e um prolongamento de sua vida sexual, em decorrência do seu interesse em “melhorar a estética e funcionalidade do seu espaço mais íntimo do corpo” (Pontes, 2012).

A medicalização do corpo feminino: beleza sem dor, sexualidade e a “funcionalidade” das questões íntimas

A história do corpo no século XX se caracteriza por um incremento de medicalização e intervenção sem precedentes, resultando no enquadramento de acontecimentos cotidianos e na medicalização da própria existência através de regras de comportamento e censura dos prazeres, as quais aprisionam o cotidiano em uma rede de recomendações (Moulin, 2011, p. 15) que multiplicam medos e “fórmulas para prevenir milhares de danos possíveis ao corpo. Entre eles, o mais geral e difícil de circunscrever: a ‘falta de autoestima’” (Sant’Anna, 2012, p. 124). O saber médico, assim, se infiltra no imaginário público, esclarecido por uma poderosa indústria da imagem, remanejando o próprio corpo (Moulin, 2011, p. 80). Nesse palco, no qual o corpo parece ter se tornado alvo de combate e campo de batalhas diárias, “revela-se um corpo ‘em carne viva’” (Mesquita, 2013, p. 32).

Importa lembrar, no entanto, que a elaboração de estratégias de regulação do corpo feminino, provenientes sobretudo dos campos da psiquiatria e da sexologia, tem início no século XVIII, cujo objetivo principal era “circunscrever as mulheres à esfera doméstica e à maternidade”, tornando assim “a mulher e sua sexualidade como assunto privilegiado dos discursos médicos” e, simultaneamente, como assunto de higiene pública, “reforçando velhos mitos e caucionando um projeto de controle minucioso sobre a sexualidade feminina” (Nunes, 2000, p. 11). Michel Foucault identificou o corpo feminino como uma das peças-chave de um processo de adestramento dos corpos (Nunes, 2000, p. 14), uma das personagens típicas criadas pelo biopoder e pelo projeto de uma sciencia sexualis, no fim do século XVIII (Foucault, 1988). Nesse sentido, o “controle do corpo” feminino torna-se assunto não apenas concernente à lei, mas relevante ao projeto de uma “economia política da verdade”: torna-se assunto de ciência (Martin, 2006, p. 59).

Historicamente, o processo de “medicalização do corpo” feminino baseia-se na ideia de que existe uma “natureza biológica” que determina e domina a mulher. Esse é precisamente o argumento que concede legitimidade ao discurso médico sobre o corpo feminino, encontrando base nos “eventos físicos” que as mulheres experimentam no decorrer da vida (Martin, 2006, p. 63), como a capacidade reprodutiva. Tal “determinação biológica” feminina contribui fundamentalmente na “divisão de gênero na sociedade”, consequentemente, para a diferença sexual. É a partir do século XIX, portanto, que se estabelece a “exaltação da maternidade” (Vieira, E., 1999, p. 68-69).

Manifesta-se um interesse diferenciado da medicina pelos corpos de homens e de mulheres, notadamente na passagem do século XIX para o XX, quando se constituem as especialidades médicas que têm a função de “cuidar” do corpo feminino, a ginecologia e a obstetrícia. Nesse contexto o corpo feminino é privilegiadamente investigado a partir das questões relacionadas à reprodução e à maternidade, deixando entrever que há uma “economia dos órgãos” que reflete a divisão do trabalho reprodutivo (Preciado, 2014, p. 143).

Quando se trata do surgimento da ginecologia, é importante chamar atenção para os progressos técnicos observados em relação à assepsia, a antissepsia e a anestesia, que foram revolucionários para a medicina de uma forma geral (Rohden, 2002, p. 107). A “banalização” da anestesia ocorre no século XX, quando aparece com mais frequência em pequenas intervenções, reforçando a partir daí a “não aceitação da dor operatória” (Moulin, 2011, p. 48), algo que se confirma quando da adesão às cirurgias íntimas, pois é dito que “um número cada vez maior de mulheres se livra do problema e consegue um aumento significativo da qualidade de vida por meio de um procedimento cirúrgico simples e definitivo, com anestesia local e alta no mesmo dia” (Weruska, 2008), o que acaba sendo uma publicidade positiva que contribui para maior aceitação dos procedimentos que prometem o acesso à beleza sem dor.

Ao passo que a mulher passa a ter um lugar privilegiado no hospital, em torno dos cuidados médicos, estes se baseiam na ideia de que as doenças das mulheres são difíceis de tratar e são “acompanhadas de muito sofrimento e sensibilidade nervosa, o que requeria atendentes especialmente treinados para lidar com os perigos desse excitamento nervoso” (Rohden, 2002, p. 110). Em relação à cirurgia íntima, algumas clínicas oferecem “atendimentos multidisciplinares” (Nemov, 2015) com o intuito de oferecer um atendimento completo, com avaliações clínica, ginecológica e psicológica. Tratar dos “males” femininos requer, então, maior cuidado, principalmente porque há a singularidade do corpo feminino, corpo portador de uma sensualidade “natural”, no sentido de que as mulheres são mais dominadas pelas funções sexuais e por isso caracterizadas como mais físicas, instintivas e emotivas (Rohden, 2002, p. 116-119). O discurso médico sobre a emotividade ganha um caráter ainda mais particular quando se trata do “embelezamento íntimo”, tendo em vista que o “universo” feminino requer atenção e dedicação, e os pequenos detalhes fazem muita diferença (Zelaquett, [s.d.]).

Corrigir e embelezar, eis dois lemas que guiaram o ramo da cirurgia plástica desde seu início, reforçados com a imperativa publicidade que valoriza os procedimentos e a divulgação de “um padrão de beleza no qual o sucesso está sempre junto às aparências jovens e longilíneas, à pele impecavelmente lisa e firme”. Foi a partir de 1980 que o tema ganhou um destaque sem precedentes no Brasil, quando foi dada a largada à “aventura de passar o corpo a limpo” (Sant’Anna, 2014, p. 166).

A partir da segunda metade do século XX houve um progresso significativo na área das cirurgias plásticas acompanhado de discursos otimistas sobre segurança e os progressos científicos, muito embora não fosse um recurso aconselhado para mudanças radicais. Era possível melhorar anatomicamente as “feiuras” através das novas tecnologias da beleza que se insinuavam cada vez mais sub-repticiamente no cotidiano das mulheres. Paulatinamente, o recurso às cirurgias plásticas passou de um “pecado à obra divina” a uma “prova de autoestima” (Sant’Anna, 2014, p. 172), na qual se assume a busca por “algo que nada tem de palpável ou concreto: beleza, prestígio, aceitação social, bem-estar, elevação da autoestima” (Castro, 2011, p. 14), ora remetendo ao sofrimento físico, ora ao emocional, e, às vezes, misturando-os. A “falta de autoestima” pode configurar uma espécie de “doença” que a plástica pode “curar”: “inventa-se a ‘doença’ ou o defeito e promove-se a sua cura mágica” (Vieira-Baptista, 2014, p. 225). O termo “autoestima” é usado tanto por pacientes como médicos, “num jogo retórico que envolve constrangimento, dilemas e expectativas” (Feriani, 2014, p. 517). Correlatos dos desenvolvimentos da “medicina estética”, vários procedimentos cirúrgicos são entendidos como “tratamentos estéticos” (Sant’Anna, 2014, p. 173), termo que tem como objetivo reforçar a relação entre saúde e beleza, naturalizando ainda mais a relação entre falta de autoestima e doença.

De uma maneira geral, nos sites e blogs que consultamos é criado um cenário justificativo para a adesão aos procedimentos propostos, onde é afirmado que são realizados com muita frequência, são simples e livres de complicações (Vieira-Baptista, 2014, p. 24), havendo a mobilização de termos diversos sobre um mesmo assunto. Afirma-se, por exemplo, que as intervenções cirúrgicas melhoram e corrigem aspectos funcionais e estéticos/aparência da vagina, que a “ginecologia estética apresenta soluções capazes de atenuar o envelhecimento ginecológico” de forma a aprimorar, aumentar, fazer adquirir, reestabelecer, levantar, recuperar, devolver a autoestima e a qualidade de vida, a segurança sexual e o poder de sedução. Fala-se em alterações, deformidades, anomalias, problemas, inesteticismo, imperfeições e defeitos na genitália feminina, os quais podem ser congênitos, adquiridos por vários processos “naturais”, como o envelhecimento, ou provocados, como gravidez, obesidade, uso de anticoncepcionais, má nutrição, tabagismo, dentre outros, ou ainda “imaginados”, podendo gerar ansiedade, depressão, perda de autoestima e frustração sexual alterando a libido (Lage, 2013). “Seja para se soltar mais na cama ou para poder usar uma roupa justa sem se sentir desconfortável”, afirma-se que é significativo o número de mulheres que estão recorrendo à cirurgia plástica para remodelar ou corrigir imperfeições na região pubiana (Vieira, F., 2013).

Observa-se, de acordo com informações sobre intervenções cirúrgicas realizadas no Brasil nos sites e blogs pesquisados, que as cirurgias são mais procuradas por mulheres jovens, casadas ou solteiras e, ainda, realizadas somente a partir da idade de 18 anos, com base no argumento de que o corpo da mulher não está “plenamente desenvolvido” até os 15 anos de idade; antes disso, não haveria como saber a aparência definitiva da vulva. Em contrapartida, especialistas do ramo afirmam que não deve haver restrição de idade e que a plástica pode ser feita a partir dos 14 anos, no início da puberdade. No entanto alguns cirurgiões plásticos afirmam, preocupados com a procura por meninas em idade escolar e pelo caráter irreversível dos procedimentos, que os profissionais devem requerer mais “rigor” no sentido de perceber se a motivação da paciente não é “puramente emocional”, pois ainda que seja atestada que as medidas de suas vulvas são consideradas “normais”, as pacientes insistem na concretização da intervenção. Se antes a imagem da mulher bela confundia-se com a de uma boa esposa e boa mãe, cuja feminilidade “refletiria em um corpo arredondado, volumoso, seios generosos, ancas desenvolvidas – qualidades apropriadas à maternidade” (Rohden, 2002, p. 121), no discurso atual sobre o “embelezamento íntimo” é a vagina o símbolo da feminilidade (Vasconcelos, 2013), no qual tem havido um crescente investimento.

As partes externas da genitália mais mencionadas nos sites e blogs pesquisados são os pequenos e grandes lábios e o monte de Vênus, chamado vulgarmente de “capô de fusca” (Poskus Vaz, 2014). As alterações anatômicas relatadas são excesso ou falta de gordura, seja nos lábios vaginais ou no monte de Vênus, excesso ou “rarefação” de pelos, flacidez, assimetria, escurecimento, ressecamento, palidez, cicatrizes, alargamento do canal vaginal (em virtude de um ou mais partos vaginais), “distopias” (prolapsos de útero, bexiga e reto) e incontinência urinária de esforço. Todos esses “problemas” são responsáveis por incômodos emocionais e/ou físicos, como vergonha em momentos íntimos, seja em relação à estética ou à dor. O incômodo físico está relacionado, por exemplo, quando o tamanho “exagerado” dos pequenos lábios pode causar dor durante a relação sexual. Nesse caso, haveria o risco de as “estruturas” dobrarem para dentro durante a penetração, podendo assim causar lesões na região; configura, portanto, que a “intervenção” visaria mais à “funcionalidade” da vagina do que à “estética”. Tendo em vista que os pequenos lábios têm por função “proteger a entrada da vagina dificultando o aparecimento de inflamações bacterianas além de ajudar na lubrificação”, seria preciso atentar para que a intervenção não comprometa essa função, ou seja, que não haja uma diminuição exagerada dos lábios (Régis, 2015).

Os sites e blogs constituem arenas de discussões nas quais se nota um jogo retórico em torno das cirurgias enquanto “estéticas” e reparadoras ou “corretivas”, ligado à percepção de que a noção de beleza “se expande e se conecta à de bem-estar, saúde” (Feriani, 2014, p. 519), muito embora em alguns discursos haja a afirmação de que a cirurgia íntima é apenas “estética’’. Segundo alguns sites, a cirurgia plástica íntima é considerada um tipo de cirurgia estética, não uma plástica corretiva (Saiba…, 2014), que dá conta das “desarmonias que comprometem a beleza e a função da genitália feminina” (Estética…, [s.d.]). No entanto, há os que divulgam a informação de que se tratava apenas de uma cirurgia reparadora inicialmente e, com o tempo, os médicos perceberam que poderia ser indicada para melhorar o “lado psicológico” das mulheres insatisfeitas com o aspecto estético da sua intimidade (Beleza…, [s.d.]). Hoje, a cirurgia íntima faz parte das opções estéticas que a cirurgia oferece, funcionando como “um resgate da mulher” (Vítor, 2014).

Na sessão “Delas” do site Internet Group, em uma matéria intitulada “Plástica íntima pode melhorar a vida sexual e a autoestima” (Manbrini, 2011), publicada em janeiro de 2011, um especialista do ramo da cirurgia plástica afirma que 5% das pacientes o procuram para fazer a cirurgia reparadora, enquanto 95% chegam por razões estéticas. Em outro site, outro especialista afirma que suas pacientes falam mais “olha que horrível, doutor” e menos “ai, isso aqui machuca” (Santos, 2015). Em matéria do site Dicas de Mulher intitulada “Cirurgia íntima: questão de bem-estar e autoestima” (Colaneri, 2013), diz-se que se a mudança operada pela cirurgia não é “visualizada”, não configura uma alteração “estética”. Há uma divergência, nesse sentido, pois enquanto muitos sites divulgam ambas as motivações, estéticas e funcionais (Cirurgia genital… [s.d.]), outros afirmam ser apenas “com objetivo puramente estético” (Aumenta…, 2012), ainda que a relacione com a saúde da mulher. Argumento comum é que “a mudança física é muito menor do que a psicológica na maioria dos casos” (Cirurgia íntima…, [s.d.]).

Para tornar o assunto ainda mais controverso, alguns médicos criticam a vontade de “esculpir ou clarear a genitália só para ficar igual à última estrela da Playboy” (Pronin, 2008). Assim, quando o médico percebe que a paciente está “descontando” mágoas na cirurgia, é orientada a não fazê-la (Manbrini, 2011). Nos textos consultados é recorrente a ideia de que a mulher do século XXI sabe a necessidade de autoaceitação e, portanto, está confortável em buscar soluções para os problemas que afetam sua autoestima (Bioplastia…, [s.d.]). Parece, portanto, que os imperativos divulgados pela publicidade favoráveis às cirurgias, bem como a difusão de padrões estéticos, têm sido recebidos de formas divergentes no meio médico.

Observa-se que a “mulher do século XXI”, para além de ter acesso à reconstrução cirúrgica dos genitais, tem uma preocupação estética e funcional (Beleza…, [s.d.]), ou uma das duas preocupações. É nesse sentido que “a classificação da cirurgia como estética ou reparadora vem acoplada a uma série de significados e moralidades referentes a gênero, corpo, idade, o que leva a uma tipificação dos próprios pacientes” (Feriani, 2014, p. 520). Em um determinado site (Pronin, 2008) há a notificação de três perfis de pacientes, dentre eles: o primeiro é de jovens com aproximadamente 18 anos de idade que apresentam vergonha do volume exibido ao colocar uma roupa mais justa; o segundo consiste nas que “passaram por um ou mais partos naturais e querem corrigir os músculos do períneo ou estreitar o canal vaginal”, enquanto o terceiro é de mulheres mais maduras “que se queixam da flacidez dos lábios vaginais ou também da perda de elasticidade na vagina provocadas pelo tempo”. O “negócio da beleza” (Sant’Anna, 2014, p. 174) cresce, assim, repleto de controvérsias e lacunas.

Eis que o poder transformador da cirurgia plástica cria a vagina pós-orgânica

As primeiras referências à cirurgia vulvar, “puramente estética”, remontam aos finais da década de 1970 e início de 1980 (Vieira-Baptista, 2014, p. 233), quando “a vagina também entrou na exigência de ser fotogênica” (Sant’Anna, 2014, p. 175). Os procedimentos recebem termos correlatos para falar sobre o mesmo assunto, nos discursos consultados na internet, como “técnicas”, “tratamentos” (estéticos ginecológicos), “correção”, “remodelagem”; são encarados como “alternativa”, além de identificados como simples e “rápidos”, em geral, com duração de 30 a 60 minutos. Quando se trata de observar o que tem sido dito sobre esse assunto, parece não haver clareza sobre quais são os procedimentos mais voltados a tratar da aparência e os mais voltados à “funcionalidade” da vagina.

Desde o início dos anos 1980, especialmente nos Estados Unidos, têm proliferado investigações acadêmicas sobre as relações entre tecnologia e corpo feminino e têm sido difundidas leituras mais progressistas relacionando tecnologia e gênero que partem da concepção de que “em um mesmo corpo, reúnem-se o mecânico e o orgânico, a cultura e a natureza, o simulacro e o original, a ficção científica e a realidade social” (Santaella, 2003, p. 186).

Com o desenvolvimento das tecnologias, o corpo humano passa a ser imerso em uma atmosfera pós-biológica/pós-humana/pós-orgânica5 na qual há uma indiscernibilidade entre orgânico e maquínico, nascendo assim o corpo “híbrido”6 como uma possibilidade mais próxima do que remota. A noção de “pós-humano” recebe várias conotações a partir de 1995, quando passa a ser mais frequente em publicações e exposições de arte, fala-se na representação do corpo construído como sendo parte de um “circuito integrado de informação e matéria que inclui componentes humanos e não humanos”, a ideia de que nossa visão daquilo que constitui o ser humano está passando por transformações e, ainda, que será possível a convergência geral dos organismos com as tecnologias até o ponto de se tornarem indistinguíveis (Santaella, 2003, p. 192)

É importante considerar que por “tecnologias” podemos entender também a sexualidade “bem como suas práticas e identidades sexuais”, as quais podem ser entendidas enquanto máquinas, produtos, instrumentos, aparelhos, truques, próteses, redes, aplicações, programas, conexões, fluxos de energia e de informação. É nesse sentido que é apropriado afirmar que a “história da humanidade” deveria ser rebatizada de “história das tecnologias”, já que a própria “natureza humana” seria apenas um dos efeitos de tecnologias sociais, assim como o “gênero”,7 que é “protético” no sentido de ser “puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico”. Partindo dessa realidade híbrida, os órgãos sexuais não existiriam em si, posto que são produtos “de uma tecnologia sofisticada que prescreve o contexto em que os órgãos adquirem sua significação” (Preciado, 2014, p. 22-31), ou seja, em uma tecnologia que produz corpos coerentes, onde os órgãos sexuais são mais do que “órgãos reprodutores”, são “produtores” ao passo que produzem “coerência do corpo como propriamente ‘humano’” (Preciado, 2014, p. 131). Apesar de as tecnologias misturarem “maquínico” e “orgânico”, a coerência do corpo que reitera a diferença sexual parece importante de ser mantida.

É nesse sentido, enquanto produtores de coerência com base em um determinado padrão imaginado de “beleza íntima”, que as técnicas são aplicadas. Entre estas, as que visam o aumento dos lábios vaginais, a diminuição/redução dos pequenos lábios vaginais (chamada de ninfoplastia ou labioplastia), correção da dilatação da vagina, eliminação/enxerto da gordura do púbis, reconstrução do hímen (himeoplastia), remodelagem do clitóris (clitoriplastia), reconstrução do períneo (perineoplastia), ampliação do ponto G, dentre outras. Nos procedimentos são utilizados instrumentos tecnológicos variados, como lasers e injeções de colágeno/ácido hialurônico/Polimetacrilmetacrilato (Pontes, 2012); a chamada Terapia Drácula para o rejuvenescimento da vagina, por exemplo, utiliza injeções de plasma rico em plaquetas (Terapia…, [s.d.]).

A vagina, assim como o corpo, é remodelada e protética: enxertada, implantada, híbrida; têm suas funções ampliadas, é corrigida. De fato, parece difícil dizer onde começam e terminam os “corpos naturais” e onde começam as “tecnologias artificiais” (Preciado, 2014, p. 158), já que as próteses borram as margens entre o que é compreendido como “natural” e o que é entendido como “artificial”, marcando uma intersecção entre dois sistemas: tecnológico e orgânico (Santaella, 2003, p. 201). Essa “construção técnica” da feminilidade (Preciado, 2014, p. 142) produz a vagina pós-orgânica.

Se, por um lado, “o corpo feminino se emancipou amplamente de suas antigas servidões”, por outro, “ei-lo submetido a coerções estéticas mais regulares, mais imperativas, mais geradoras de ansiedade do que antigamente” (Lipovetsky, 2000, p. 135). É importante considerar que alguns dos discursos contrários às intervenções cirúrgicas na genitália feminina chamam atenção para o caráter inventado de todo o contexto, como uma necessidade que é fabricada, comparando as tecnologias que fabricam as vaginas pós-orgânicas à mutilação que acontece com mulheres africanas (Aronovich, 2011).

O aumento da necessidade fabricada de cirurgia plástica não seria, portanto, um dado para comemoração, mas um dado preocupante, no sentido de que “ele apenas nos diz que as mulheres não estão nem um pouco seguras com seu corpo” (Patrocinio, 2015), além de não conhecê-lo. Diz-se que a maioria das mulheres não têm muita intimidade com sua área genital e agem como se não fosse uma parte do corpo delas (Francisco, 2012). Uma das razões para esse desconhecimento e a falta de intimidade com sua vagina consistiria na impossibilidade de vê-la por inteiro mesmo usando espelho, ou ainda, por não quererem vê-la (Ferreira, 2010). Assim, muitas “não têm noção do que é normal” (Francisco, 2012). Para outras mulheres, o que não parece “normal” é “uma vagina plastificada” (Patrocinio, 2015), já que não é fácil definir a “estética normal da vagina”, tendo em vista que outras partes do corpo humano também variam (Manbrini, 2011), possuem tamanhos e formas diferentes, ou seja, que não haveria um “padrão de beleza íntima”. A diversidade, contudo, parece ser a regra (Vieira-Baptista, 2014, p. 224), argumento que mobiliza a defesa das vaginas orgânicas.

Observa-se que há uma demanda e produção significante de discursos acerca da vagina enquanto território de aprimoramento e/ou reconstrução possibilitados por intervenções cirúrgicas, mas também de aceitação das diferenças, do caráter “natural” do corpo, destacando a complexidade da construção cultural dos genitais a partir de múltiplos campos de saberes e de especialistas de diversas áreas de conhecimento que prescrevem e ditam “verdades” sobre o corpo feminino.

Referências

  • 1
    Utilizaremos ambos os termos, vulva e vagina, em decorrência do uso indiscriminado de ambas as palavras para designar a genitália feminina nos textos consultados. No entanto, como o termo “vagina” aparece com mais frequência do que “vulva”, também aparecerá com mais frequência neste artigo.
  • 2
    Livoti e Topp (2006) reiteram que a “genitália externa” feminina é composta pelo monte de Vênus (a gordura que cobre o osso pubiano), os grandes lábios (lábios externos da vagina, cobertos de pelo), os pequenos lábios (revestimento carnudo logo acima do clitóris), o clitóris e o períneo (a área que se estende desde a parte de trás da vagina até o reto).
  • 3
    Vieira-Baptista (2014) sugere que a profusão de designações para o mesmo procedimento e vice-versa é sintomática de que provavelmente algo está errado no cenário, onde por exemplo num mesmo grupo de “especialistas” parece não se falar a mesma linguagem.
  • 4
    Cf. Laurent (2013, p. 26).
  • 5
    O prefixo “pós” relaciona-se a um conjunto de perspectivas analíticas/intelectuais com matriz na crítica pós-estruturalista e no pensamento da desconstrução, produzidas no final dos anos 1960, problematizando os regimes estáveis e homogêneos de representação e identidade, assim como as dicotomias e hierarquias entre cultura versus natureza, orgânico versus maquínico, etc.
  • 6
    Segundo Cláudia Madeira (2010, p. 95), o termo “híbrido” se apresenta na atualidade “como norma global de ‘desarrumação das coisas’, gramática ou mesmo ‘paradigma’ para definir todas as zonas de fronteira e de cruzamento emergentes na sociedade contemporânea”, que repercutem inclusive no nível das identidades pessoais. “Afecta o quotidiano de cada indivíduo, tornando menos rígidos os dualismos e as hierarquias constituídas desde as dinâmicas sociais e individuais, com o aumento potencial das migrações, da mobilidade social e da multiplicação de papéis sociais (por vezes até contraditórios), até ao esboroamento possível de dualismos considerados intransponíveis, como os de natureza/cultura, colocados por exemplo nas problemáticas dos (trans)géneros sexuais. Ou seja, as identidades contemporâneas ganham as mesmas características do híbrido: são multidimensionais, fragmentárias, relativas, performativas, em devir” (Madeira, 2010, p. 4, grifo da autora).
  • 7
    Teresa de Lauretis (1994) propõe, num sentido convergente ao que está sendo aqui discutido, pensar a diferença sexual e o gênero como “tecnologias sexuais”. Dessa forma, afirma a autora, “o gênero como representação e como auto-representação, é produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (Lauretis, 1994, p. 208).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Fev 2016
  • Aceito
    28 Set 2016
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