Resumo
Como definir o tempo pandêmico de 1918, que interrompeu o ritmo alucinado do início do século XX e imprimiu uma temporalidade da morte? Talvez como um intervalo tão radical na noção progressiva de tempo do Ocidente, que tenha ficado no silêncio. Na própria falta de tempo: durante três meses os calendários pararam de se alterar. Esse era um tempo, o tempo da morte numa sociedade que não sabia lidar com ela. O tempo do presente que impede pensar no passado e no futuro. O tempo da espera, o tempo da dúvida, o tempo dos traumas silenciados e, também, das experiências do aprendizado possível. O artigo pretende, pois, explorar a temporalidade da doença como um marcador social, assim como estabelecer paralelos com o contexto da Covid 19. Por fim, toma Porto Alegre como um estudo de caso para a análise. (Este artigo foi originalmente uma palestra dada no Departamento de Antropologia da UFRGS, por isso seu estilo mais ensaístico.)
Palavras-chave: gripe espanhola; temporalidade pandêmica; Porto Alegre; representações imagéticas
Abstract
How to define 1918 pandemic times, that interrupted the rhythm of the beginning of the 20 century and introduced the death temporality? Maybe it was an intermission in the radical notion of progress - a real myth in the Western Culture of that time. For three months the calendar, almost stopped to move. This was the death time, in a society that was not prepared to deal with it. The present time that prevents to think about the past and the future. The waiting time, the doubt time, the trauma time that are frequently silenced, but also the learning experience time. This article intends, therefore, to explore the pandemic temporality as a social marker, and to stablish parallels with the contemporary context of Covid 19. Porto Alegre appears as a case study. (This article was originally a talk to the Anthropology Department of UFRGS, that is why it keeps an essay genre.)
Keywords: Spanish Flu; pandemic temporality; Porto Alegre; imaginary depictions
Introdução: tempo pandêmico1
Os mais velhos costumam lembrar do evento da pandemia que assolou a humanidade em 1918, como “o tempo da espanhola”. Não é raro referirem-se a ela, também, como um certo espaço perdido do passado, e que não volta mais. “Vivíamos no tempo da espanhola”, costumam dizer eles, como se a doença tivesse interrompido o nosso curso regular de temporalidade, marcado pelos dias que escorregam seguros de nossos calendários - “uma seta do tempo” na definição de Henri Bergson (2006).
Tudo parece lembrar um “parágrafo temporal”, uma interrupção dada pela experiência diante da morte cotidiana e coletiva, de uma temporalidade marcada pela doença, de atividades interrompidas pelo regime da moléstia, uma história que deixou de “progredir”, para girar por sobre si mesma.
Tal experiência histórica nos permite tomar o tempo e a temporalidade como categorias, marcadores sociais da diferença, que produzem impacto sobre as construções sociais (Gell, 1992; Koselleck, 2004).
Aliás, não foram poucas vezes que a antropologia, enquanto disciplina, refletiu sobre a história. Ou melhor, como algumas escolas de antropologia - e certos autores - dialogaram com várias histórias: um modelo ocidental de história (digamos assim, e de forma muito provisória) - pautado pela cronologia e pela comprovação documental; uma história tal qual os historiadores a fazem (a disciplina histórica); uma história entendida como categoria social (e que me remete à noção de temporalidade); ou a crítica a uma certa “Filosofia da História”, o que permitiria pensar no conceito de historicidades. Afinal, diante da experiência etnográfica, não há como entender história no singular.2
Mas comecemos do mais básico. É possível definir história como um conceito universal, já que a experiência comum da passagem do tempo é consensual, mas também particular: na dimensão dos eventos e quando o acontecimento é culturalmente valorizado. A história pode, ainda, ser tomada como uma disciplina, ou como uma categoria fundamental. Nesse último sentido, e nos termos de E. Durkheim, estaríamos lidando com uma “categoria básica do entendimento”, um a priori: não há sociedade que não construa sua noção de tempo, mas cada cultura a realiza empiricamente de forma diversa.3
Poderíamos opor, também, duas noções mais óbvias de tempo e, como veremos, de história. Assim como as coisas vivas nascem, crescem e morrem - e, portanto, mudam -, também certos fenômenos da natureza se repetem (a semana, as estações, o dia que vira noite, e vice-versa).
Um paralelo pode ser ainda feito com a famosa distinção entre “sociedades com ou sem história”: as que se definem pela mudança ou pela reiteração - nesse último caso, as nomeadas “sociedades frias” (na versão de Lévi-Strauss, 1975, 1996), “estagnantes” (na concepção de Claude Lefort, 1979). Mas esse debate foi abandonado faz algum tempo, ou pelo menos o mal-entendido que o circundava. Claude Lefort mostrou como teria procurado não por “realidades empíricas”, mas antes por modelos; e Claude Lévi-Strauss (1983, p. 1219, tradução minha) explicitou que tal classificação servia, apenas, para assinalar diferenças entre culturas: definia somente dois estágios que, nos termos de Rousseau, “não existem, não existiram, jamais existirão”.
Como se pode notar - e parafraseando Lévi-Strauss -, a história e a temporalidade são “boas para pensar”.4 Assim como se estudam parentescos, rituais, simbologias, também o uso do tempo e do passado permitem prever como a humanidade é variada em suas manifestações.
Só dessa maneira nos é compreender o tempo dos Nuer, que, como mostra Evans-Pritchard (1978), adotavam um referencial interno; o tempo dos Mendi, um povo que, como explica Marshall Sahlins (1997), fazia tudo convergir para si; o modelo pendular encontrado por Leach (1974, p. 193) entre os Kachin, no qual o tempo é representado como uma repetição de inversões; o tempo dos Piaroa, descrito por Joanna Overing (1995), o qual é ora linear ora não; o tempo dos Umeda, praticado no ritual pesquisado por Alfred Gell (1992), quando se encenam com diferentes cores os vários ciclos da vida,5 e o “nosso” - um tempo seriado e cumulativo. Aí estaria uma questão, de fato, antropológica: a busca de alteridades entre sociedades; formas diversas de expressão que ajudam a refletir, no limite, sobre a própria experiência.
Mas como definir o tempo pandêmico de 1918, que interrompeu o ritmo alucinado do início do século XX e imprimiu uma temporalidade da morte: uma temporalidade do assombro? Talvez como um intervalo tão radical na noção progressiva de tempo do Ocidente, que tenha ficado no silêncio. Na própria falta de tempo: durante três meses os calendários pararam de se alterar. Esse era um tempo, um tempo sem tempo, um tempo pandêmico. O tempo da morte numa sociedade que não sabia lidar com ela. O tempo do presente que impede pensar no passado e no futuro. O tempo da espera pela solução do problema. O tempo da dúvida. O tempo do aprendizado possível. O tempo dos traumas silenciados.
Notícias de uma morte anunciada6
A insegurança, o medo do desconhecido, o temor diante da morte coletiva muitas vezes vem expresso numa dança de nomes que acompanham a história de doenças coletivas e emergências na saúde. E esse foi o caso do surto de “gripe espanhola”, que inundou o mundo em 1918. Também chamada de la dansarina, gripe pneumônica, peste pneumônica ou simplesmente pneumônica, a gripe espanhola foi uma pandemia violenta que atingiu o mundo em 1918-1919, provocando milhões de mortes, com uma especificidade: atacou principalmente os setores jovens da população. Ela foi inclusive considerada, até a emergência da Covid 19 em 2020, como a mais severa pandemia da história da humanidade, e foi causada pela virulência até então desconhecida de uma variante do vírus Influenza A, do subtipo H1N1. Tudo muito semelhante à atual pandemia.
O excesso de nomes da doença já dava noção do imenso desconhecimento que a nova epidemia causava. A denominação “gripe espanhola” foi cunhada devido ao fato de muitas das informações a respeito da doença terem sido veiculadas pela imprensa espanhola. Os jornais desse país, que se manteve neutro durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), não sofriam censura de qualquer espécie, e sobretudo em relação às notícias sobre essa doença pública que açodava as tropas que participavam da “Grande Guerra”, como era então chamado o episódio internacional. Por isso, e por temer as consequências de tal demonstração de fraqueza, a imprensa dos países beligerantes silenciou, ou foi silenciada, no relato dos casos de espanhola. E foi por conta dessa circunstância específica, que, quando a gripe chegava a algum país, era logo chamada de “espanhola”. Já na Espanha, ela era chamada de gripe francesa, mostrando como as causas e o desenvolvimento da peste continuavam em disputa.
Desconhecia-se também a origem geográfica do fenômeno, mas hoje se reconhece que o primeiro caso observado ocorreu nos Estados Unidos em março de 1918, no Texas, e uma semana depois, em Nova York. Chegou ao continente europeu em abril, atingindo os exércitos aliados franceses, britânicos e norte-americanos, já enfraquecidos por conta da Primeira Guerra Mundial. Na verdade, os Estados Unidos não tinham como saber, mas, involuntariamente, levavam duas armas ao chegar aos campos de batalha: as armas bélicas e essa nova arma biológica.
Em maio, Grécia, Espanha e Portugal sentiram o impacto da espanhola. Em junho, a doença chegava à Dinamarca e Noruega, e em agosto à Holanda e à Suécia. A marcha era firme e constante e os rastros de morte plenamente visíveis no cotidiano das populações. Nesse último mês, encerrou-se a primeira onda da gripe, que, embora extremamente contagiosa, foi considerada mais benigna do que as seguintes por ter causado relativamente poucas mortes.
Já em agosto começou uma segunda onda da gripe, que atingiu seu auge nos meses de setembro a novembro (o outono do hemisfério norte, quando as temperaturas começavam a ceder). Mais virulenta do que a primeira - causando mais mortes, e muito mais rápidas -, essa fase envolveu, além da Europa e dos Estados Unidos, também Índia, Sudeste Asiático, Japão, China, África, Américas Central e do Sul.7 Os registros de perecimentos eram agora muito elevados, a despeito de não existirem fontes totalmente confiáveis.
Estima-se que a pandemia tenha afetado, direta ou indiretamente, cerca de 50% da população mundial, matando de 20 a 40 milhões de pessoas - mais do que a própria Primeira Guerra (cujos números oficiais mencionam cerca de 15 milhões de vítimas) -, razão pela qual foi qualificada, até a primeira vintena do século XXI, como o mais grave conflito epidêmico de todos os tempos. Mesmo assim, o episódio gerou um grande silêncio. Era como se não fosse possível descrever - nesse contexto de início do século XX, marcado por uma grande crença na ciência (Sevcenko, 2003) e nos seus poderes emancipatórios - o espetáculo da morte e seu descontrole.
A terceira e última onda da gripe espanhola começou em fevereiro de 1919 e terminou em maio seguinte. Antes disso ela chegou ao Brasil. O país acompanhou a doença, inicialmente, apenas, à distância, através dos jornais. Aliás, a imprensa nacional e a população brasileira não demonstravam grande preocupação com a espanhola, por considerar que ela não se propagaria no território nacional, devido à distância do continente europeu e ao clima ameno, posto que tropical. Era o velho negacionismo que marcava presença em terras locais. Ninguém sabia exatamente do que se tratava e por isso misturou-se o noticiário da Grande Guerra com as esparsas matérias acerca da estranha doença que assolava os soldados combatentes. Seguindo-se essa versão, essa seria apenas uma triste circunstância vinculada à saúde dos combatentes enfraquecidos.
Todavia, contrariando as previsões mais otimistas, a gripe chegou ao país a partir de setembro de 1918, quando a divisão naval, enviada pelo Brasil a Dacar, para participar do patrulhamento do Atlântico Sul como parte do esforço de guerra do país ao lado dos Aliados, retornou. Nesse momento inicial, morreram mais de uma centena de marinheiros - o que correspondia, por sua vez, ao número de brasileiros que pereceram em decorrência da participação na Primeira Guerra Mundial. Mesmo assim, o episódio ficou vinculado, nesse primeiro momento, ao fenômeno da Guerra, que pela primeira vez ganhava uma proporção global. O ineditismo e a proporção dariam conta de explicar o incidente que foi considerado “coisa de ocasião”.
Mas a própria realidade trataria de desdizer a ingenuidade dessa que foi uma primeira interpretação, rapidamente vencida pela marcha veloz e irrecusável dos acontecimentos. No território brasileiro, mais propriamente dito, a disseminação da gripe se deu a partir da chegada de alguns navios que aportaram no Nordeste, como o inglês Demerara, que estava com sua população de bordo contaminada. Logo foi apelidado de o “navio da morte”.
Jornal do Recife noticia a chegada do Demerara à capital pernambucana em 9 de setembro de 1918: sem saber, navio carrega o vírus da gripe espanhola (Jornal do Recife, 1918, p. 2).
O navio atracou primeiro em Recife, e de lá foi para Salvador, naquele mesmo mês de setembro. Em pouco tempo a espanhola invadiu várias cidades do Nordeste e no final de outubro já atingia quase todas as grandes cidades do país. Depois de atingir fortemente Rio de Janeiro e São Paulo, de lá seguiu para o centro do país, dizimando vários grupos indígenas e fez um vértice para o sul, alcançando Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Em novembro chegava à Amazônia. Sua expansão provocou um esvaziamento dos orgulhosos centros urbanos, que justamente passavam por processos de modernização então chamados a partir do eufemismo de “Regeneração” - um belo nome para silenciar acerca da expulsão dos grupos mais pobres e vulneráveis para as periferias das cidades.
Desconhecendo medidas terapêuticas para evitar o contágio, as autoridades pediam à população que evitasse as aglomerações, o que era particularmente impossível no caso dos agrupamentos sem infraestrutura localizados nos arredores das capitais, onde morava uma população mais pobre, na maioria das vezes negra.
Por sinal, a doença, que tinha pecha de democrática, logo mostrou como nada disso era verdade. Morriam principalmente os imigrantes nos casarões fétidos e improvisados, as populações negras recém-saídas da escravidão, os grupos indígenas que foram expostos ao contágio e sem anticorpos necessários para vencer a doença, que seguia seu curso.
Registraram-se mais de 35 mil mortes, ao longo do período pandêmico e em todo o Brasil. O Rio de Janeiro, maior núcleo urbano do país, naquele momento, apresentou o mais elevado número de óbitos. No espaço de dois meses faleceram cerca de 12.700 pessoas, cerca de 1/3 do total registrado no país, para uma população de quase um milhão de habitantes. Em meados de outubro, a Diretoria Geral de Saúde Pública, através de seu titular Carlos Seidl, admitiu a impossibilidade de a gripe ser controlada. O medo generalizou-se e a cidade parou. Faltavam alimentos, remédios, leitos nos hospitais e até caixões.
Em São Paulo, com população estimada em 470 mil habitantes, de outubro a dezembro foram registrados 5.328 óbitos causados pela gripe espanhola. As elites procuraram refúgio em áreas afastadas, sobretudo no interior. Apenas no mês de outubro, morreram 1.250 pessoas em Recife, cuja população chegava então a 218 mil habitantes. Salvador apresentou o menor percentual de vítimas fatais entre as grandes cidades brasileiras. Numa população estimada de 320 mil pessoas, cerca de 130 mil contraíram a gripe e 386 morreram. E em Porto Alegre - onde se registraram 1.316 óbitos para uma população de cerca de 160 mil habitantes - foi criado um cemitério especialmente para as vítimas da doença.
Proliferaram então os falsos remédios: xaropes milagrosos, expectorantes de espectro amplo, e até mesmo cloroquina, vendida em uma farmácia de Belo Horizonte. Vendia-se esperança na base do milagre; algo sempre muito presente em situações de aflição coletiva como essas (Bloch, 2005). Em cada estado a sua particularidade; e assim, enquanto no Rio de Janeiro se oferecia canja de galinha para combater a doença, em São Paulo a cura popular era feita na base da caipirinha de limão e em Belém, no enterramento em redes. Também não faltaram teorias conspiratórias, culpando-se o “algoz alemão” por tanto infortúnio.
Esses eram tempos de incerteza, numa era das certezas. O desencontro ontológico era evidente, e causava grande desespero. O século XX começava entregando o oposto que prometera: ao invés da modernidade, o império da doença; no lugar da rapidez do avião e da locomotiva, grandes símbolos dessa era que se queria veloz, a temporalidade lenta, compassada pela morte (Schwarcz, 2005). Distante da temporalidade não só veloz, como pretensamente evolutiva e ascendente das sociedades ocidentais, agora se vivia no reino do imprevisto e da temporalidade marcada não pelo “progresso” - grande panaceia dessa época - mas pela pandemia, que, durante alguns meses, reinou soberana.
Gripe não combina com chimarrão: o caso de Porto Alegre
A situação não seria diferente em Porto Alegre. Por sinal, em geral descreve-se o cenário da espanhola no Brasil a partir da região Sudeste, sem dar-se grande destaque à situação de estados que, como o Rio Grande do Sul, foram não só muito afetados pela epidemia, como guardaram as particularidades do seu contexto.
O poeta e jornalista José De Francesco (1961, p. 58) em suas memórias assim descreveu o estado de ânimo da cidade em finais de 1918: “Diante das forças me faltavam, sentei-me a beira da calçada […] assim que dei-me por muito tempo, as poucas pessoas que passavam olhavam-me, mas, temerosas do contágio, seguiam seu caminho sacudindo a cabeça, outros a abaixavam como se quisessem dizer: Deus me livre de tal epidemia… era o temor da peste.”
As testemunhas que presenciaram a história da gripe na cidade de Porto Alegre costumam comentar como nunca haviam visto coisa igual; tampouco semelhante. A rua da Praia, de um dia para o outro, surgiu vazia, bares e cafés ficaram desertos, casas comerciais fecharam suas portas, bondes elétricos pararam, os colégios não abriram suas portas e a entrega de correspondência ficou temporariamente suspensa.8 Se tudo lembra os anos 2020, naquele momento o espetáculo era novo, sem qualquer registro anterior (Pesavento, 1999).
Com as atividades funcionando de maneira absolutamente irregular, o desabastecimento de produtos e medicamentos atingiu em cheio o cotidiano da cidade - faltavam remédios, leite, lenha, gasolina, gêneros alimentícios e tudo dobrava de preço de um dia para o outro. E foi preciso apelar para que os detentos condenados substituíssem os coveiros, que morreram no serviço. Como já havia ocorrido em outras cidades brasileiras, os caixões disponíveis se tornaram insuficientes, por conta do alto número de óbitos, com centenas de pessoas pobres e mais vulneráveis sendo sumariamente enterradas em valas coletivas, ao passo que dezenas de corpos se amontoavam à espera de sepultamento. Para piorar o cenário fúnebre, a cada edição os jornais locais publicavam a relação oficial dos mortos, nome por nome; atividade esperada pela população com um misto de curiosidade e temor. Era o espetáculo do luto invadindo o cotidiano local, mas também uma forma respeitosa de encarar a morte: tirando o véu do anonimato.
“A frente da Federação Operaria, no Campo da Redemção, durante as horas de distribuição de alimentos aos pobres” (Mascara, 1918c, p. 14).
“No Commissariado de Alimentação e Soccorro - A entrega dos alimentos. Vê-se ao fundo, o major Cassio Brum, inspetor geral” (Mascara, 1918c, p. 13).
“Povo esperando a distribuição de generos alimenticios em frente do G. O. do Rio Grande do Sul” A população mais pobre, destacadamente negra, espera pela distribuição de gêneros alimentícios (Mascara, 1918c, p. 11).
Nas fotos da diligente revista Máscara, ficava escancarada a desigualdade social. Sim, porque uma epidemia dessas proporções não traz nada de bom, apenas escancara características nacionais e locais. Nas filas de espera por comida e auxílio, nas multidões que acompanhavam funções religiosas, era agora a populações pobre e sobretudo negra que se destacava nas fotos, com suas roupas simples e os pés ainda descalços - rescaldo do período da escravidão, cujas características perversas continuavam presentes no contexto do pós-emancipação.
Assim como havia ocorrido em outras grandes cidades brasileiras, também em Porto Alegre a espanhola gerou muito descontrole social. Cenas de histeria pública, filas formadas pelo “povo” que esperava a distribuição de gêneros alimentícios, casos de suicídio, desordens; o certo é que a insegurança bateu forte entre os gaúchos. E não era para menos; dos sinos da Igreja Matriz partiam três vezes ao dia os dobres tristes que anunciavam novas vítimas da “influenza espanhola”. Nas calçadas, os poucos transeuntes seguiam apressados, improvisando máscaras ou utensílios a tapar bocas e narizes, sem falar com ninguém ou cumprimentar alguns poucos conhecidos. Por isso, quem tinha condições financeiras abandonou a cidade em busca de ares mais saudáveis e na tentativa de encontrar locais que a gripe não alcançasse em sua marcha.
Porto Alegre, nos idos de 1918, contava com 160 mil habitantes, espalhados por casas ainda velhas, dispostas em vielas estreitas e escuras. A exemplo de outras urbes, não havia tratamento na água municipal, sendo que, nos dias de chuva, as torneiras soltavam um líquido da cor do barro, o que forçava a maioria da população a utilizar os serviços dos aguadeiros - os populares “pipeiros”. O recolhimento de lixo não seguia qualquer regra mais regular, e a rede de esgoto se concentrava apenas nos locais nobres - Independência, Duque de Caxias, parte do Menino Deus. As, assim denominadas, “casinhas”, localizadas fora das áreas sociais, desempenhavam o papel de vasos sanitários da cidade (Pesavento, 1988, 2001).
Para piorar o cenário, que já era grave, vivia-se, nesse contexto, uma aguda crise econômica, produzida pela guerra que ocorria na Europa e que gerou muita carestia, endividamento, inflação e um sentimento de insatisfação generalizado. Além do mais, não era raro encontrar comerciantes oferecendo nos mercados alimentos falsificados, vencidos ou deteriorados. Carne velha, pão feito de fava e milho, pimenta-do-reino misturada a pó de sapato, leite aguado e manteiga rançosa eram alguns dos produtos encontrados na cidade.
Como sabemos, a “influenza” entrara no Brasil em meados de setembro, a bordo de navios que chegavam da Europa. Mas, se a gripe atingiu primeiramente as capitais litorâneas ou portuárias - Belém, São Luís, Fortaleza, Recife, Salvador, Rio - em questão de um ou no máximo dois meses alcançou do norte ao sul do país. E esse era o caso de Porto Alegre, onde a peste tardou um mês, mas chegou.
A data oficial, que marca a chegada da gripe ao Rio Grande do Sul, é o dia 9 de outubro, uma quarta-feira. A espanhola teria aportado no estado junto com o navio Itajubá, que vinha do Rio de Janeiro. Quando atracou no porto de Rio Grande, localizado na margem direita do Canal do Norte, que liga a Lagoa dos Patos ao Oceano Atlântico, no município de Rio Grande, o comandante do Itajubá comunicou às autoridades portuárias que 38 de seus tripulantes apresentavam sintomas da febre; porém, acrescentou, com certeza tentando aliviar a situação: uma febre de “caráter benigno”. As autoridades sanitárias gaúchas tomaram, então, as medidas de praxe para a época: examinaram os tripulantes para depois isolá-los, fizeram com que o navio fosse desinfetado e - seguindo o protocolo - comunicaram o fato ao Palácio Piratini.
O navio Itaquera chegou três dias depois. Embora tivesse sido impedido de atracar nos portos do Paraná e de Santa Catarina, devido à “estranha doença” que acometia alguns de seus tripulantes, teve autorização de aportar em Rio Grande. Imediatamente as autoridades encaminharam 32 doentes que se encontravam a bordo da embarcação para o lazareto da cidade. Porém, cumpridas as formalidades sanitárias, o vapor seguiu viagem pela Lagoa dos Patos, chegando a Porto Alegre no dia 14 de outubro, com todos os tripulantes que não haviam sido sequer observados.
E a sequência de fatos não seria nada boa. No dia 16 de outubro, com outros sete doentes confirmados, atracava no cais da capital o navio de cabotagem Mercedes, do Lloyd Brasileiro, procedente do porto de Rio Grande. Como não existia qualquer médico a bordo, os tripulantes doentes só seriam atendidos e colocados em isolamento a partir daquele momento. No dia 17, foi a vez do Itajubá atracar na cidade, trazendo consigo os tripulantes que tinham sido submetidos a uma curta quarentena em Rio Grande.
Não por coincidência, logo no dia 18 começaram a pipocar nos jornais locais as primeiras notícias acerca de uma série de casos que traziam os mesmos sintomas descritos por doentes contaminados pela espanhola. Eram três registros distintos: um funcionário da Higiene Pública e mais dois homens que pediram para serem isolados. Além deles, também uma moça compareceu à Diretoria de Higiene do estado, apresentando um quadro de saúde semelhante aos demais: febre de 40 graus, calafrios, dores generalizadas - musculares, de cabeça, na barriga, nos olhos, nos ombros, nas costas, nos rins e nas pernas -, prostração intensa, muita tosse e catarro abundante, além de sensibilidade à luz, náuseas, vômitos, calor no rosto, vertigens e lágrimas que escorriam sem controle. Junto com esses sintomas, tão diversos, também se destacava um sentimento comum de “depressão psíquica” e, em alguns poucos casos, alterações cardíacas ou respiratórias.
A agenda ficou, então, subitamente apertada: logo nos dias 20 e 21 seriam notificados mais 12 casos suspeitos; todos, conforme faziam questão de destacar as autoridades gaúchas, “benignos”. Além deles, outros quatro caixeiros viajantes recém-chegados à cidade apresentavam os mesmos sintomas. No dia 23, já chegava a 21 o número de pessoas recolhidas ao isolamento.
Lá na outra entrada do estado, e no mesmo dia 23 de outubro, foi comunicada às autoridades da capital, em caráter extraordinário, que, à exceção de um telegrafista, todos os demais funcionários da estação de trens de Marcelino Ramos, na divisa com Santa Catarina, haviam caído vítimas da influenza. Em poucos dias, mais de 30 praças deram entrada no Hospital da Brigada, na capital; todos eles vítimas da febre. Outros 130 soldados foram imediatamente colocados em isolamento compulsório. O tempo parecia ter ficado urgente: depois de varrer o mundo, a gripe espanhola ganhava agora um sotaque gaúcho.
Nesse meio-tempo, foi acionado o intendente José Montaury, que comandava a municipalidade e pertencia ao Partido Republicano Rio-Grandense. Espécie de testa de ferro do presidente do estado, o caudilho Antônio Augusto Borges de Medeiros, Montaury era um fluminense nascido em Niterói, assumira o cargo em 1897 e já o exercia há longos 21 anos. Nesse largo período, presenciara muitos surtos epidêmicos, sendo que o último, a varicela, não fazia muito tempo castigara os rio-grandenses. Datava de 1916 o registro do último surto.
Borges de Medeiros, que foi presidente do estado do Rio Grande do Sul durante 25 anos - de 1898 a 1908 e depois de 1913 a 1928 - estava, a essas alturas, em seu quarto mandato e não queria saber de epidemia alguma para atrapalhar a sua gestão. Afinal, o governo considerava positiva a sua atuação até aquele contexto, ao menos em termos de obras. Borges de Medeiros concluíra, até então, as obras do palácio do governo e do cais de Porto Alegre, construíra diversos colégios e finalizara a Biblioteca Pública, bem como dera início à expansão dos transportes públicos, organizando uma rede considerável de estradas e ferrovias.
No entanto, a essas alturas, com o prolongamento da Primeira Guerra Mundial, uma crise se instalou no país como um todo e afetou diretamente o Rio Grande do Sul. Borges de Medeiros, surfando no sucesso da gestão anterior, havia se candidatado a um quarto período: 1918-1923. A despeito de ter sido reeleito de maneira tranquila, contava, dessa vez, com uma forte corrente oposicionista, a qual, derrotada, estava de olho e pronta para denunciar falhas do governo. E foi nesse ambiente dividido que o presidente do estado teve que enfrentar um novo desafio. Se o caudilho se julgava preparado para lidar com os inimigos políticos, que não eram poucos, tinha muito menos preparo para enfrentar um silencioso, mas igualmente perigoso, inimigo sanitário.
A capital do Rio Grande do Sul era considerada uma das mais populosas do país. Contava na época com uma população de 160 mil pessoas, concentradas no centro da cidade e em alguns bairros de mais difícil acesso. Ainda se andava muito em cima de parelhas de bois, as quais competiam com os carros de praça “motorizados” e poucos bondes elétricos. No fim da tarde a elite elegante praticava o “footing” na rua da Praia, imitando as modas do Rio da Reforma Pereira Passos, com os homens vestindo ostentativos chapéus e equilibrando-se em bengalas estilosas e as mulheres desfilando com seus vestidos pesados e chapéus à moda.
Advogados, industriais, comerciantes, funcionários públicos e advogados mais abonados, mas também jornalistas, poetas, boêmios, desocupados e curiosos com melhor situação financeira, dividiam-se entre a Confeitaria Rocco, na Riachuelo; o Café Colombo, na Andradas; o Chalé da Praça XV, a Livraria do Globo, o luxuoso cineteatro Guarani e o popular Apolo (onde se assistia ao cinema mudo de Carlitos), o Petit Casino, o Clube do Comércio, o Germânia, o Caixeiral, o Clube dos Caçadores e o Hipódromo do Moinhos de Vento. Esses eram os points de referência da sociedade mundana local.
Por mais que estivesse localizada numa das pontas extremas do país, a capital dos gaúchos recebia, via cabo submarino, notícias atualizadas sobre o restante do país e do mundo, sempre com um dia de atraso. Também mantinha comunicação constante com seus países vizinhos, de onde chegavam notícias de tudo que ocorria na Europa. De uma forma ou de outra, os principais jornais locais - Correio do Povo, A Federação, A Gazeta do Povo e O Independente - davam conta de informar o que acontecia longe das paragens do sul, e sobre as grandes novidades locais. Por sinal, com um pouco bairrismo, boa parte das matérias versavam sobre a situação econômica, política, mas também cultural da capital do estado e das principais cidades gaúchas: Pelotas, Rio Grande, Bagé, Santa Maria.
Além do mais, novidades sobre a vida social da capital e das elites das principais cidades gaúchas podiam ser encontradas nas revistas Kodak e Máscara - que se definiam como noticiosos voltados para “o entretenimento e as variedades”. Muito modernas, elas davam conta da cena cultural também.
No entanto, por mais que a capital tivesse, a exemplo de outras capitais brasileiras, tomado um “banho de modernidade”, continuava a manter seu cotidiano mais pacato. Com a iluminação elétrica convivendo com os lampiões, as noites eram tão tranquilas como escuras. Domingos eram dedicados às pescarias e esportes náuticos no rio Guaíba, cujas águas, limpas e calmas, chegavam até a Cidade Baixa. Havia também futebol - ou “matchs”, como era chamada a modalidade esportiva (Minas, 2008).
As famílias mais abonadas costumavam veranear no “arrabalde” da Tristeza e nas proximidades da praia da Pedra Redonda, que, além de ter se convertido num dos cartões postais da cidade, também servia de cenário para festas e saraus onde não faltavam intelectuais e escritores, como Augusto Meyer, Olyntho Sanmartin, Teodomiro Tostes e alguns poetas parnasianos.
Os “chiques” da cidade também passaram a frequentar o “luxuoso balneário do Cassino”, inaugurado no fatídico ano de 1918 em Rio Grande, no sul do estado, alardeando muita elegância. E como as ruas ficassem mais vazias à noite, no centro multiplicavam-se os discretos “rendez-vous” e cabarés mais caros, onde era possível desfrutar a companhia de mulheres francesas e polacas. No entanto, todo cuidado era pouco - como a penicilina só surgiria dali a uns dez anos, a tuberculose mas também a sífilis pediam atenção e castigavam a vida dos jovens mais desprevenidos (Benchimol et al., 1990).
Entretanto, a despeito de tantas benesses, a cidade não estava preparada para a peste. Porto Alegre contava com apenas seis hospitais, que ofereciam serviços bastante precários, quatro postos de saúde e quatro médicos voltados ao atendimento público da população. Isso sem esquecer que as necessárias ampliações da rede de esgotos, o abastecimento e tratamento da água, o recolhimento de lixo, bem como a assistência pública, não faziam parte das prioridades na agenda política estadual e municipal. A Diretoria de Higiene, com 56 funcionários em todo o estado, dispunha de duas ambulâncias e seis carroças na capital. Por seu lado, os médicos mais renomados - Sarmento Leite, Mário Totta, Jacinto Gomes, Ivo Corseuil, Landell de Moura e Protásio Alves, e que hoje viraram nomes de ruas e avenidas - ocupavam-se prioritariamente de suas clínicas e do atendimento familiar em domicílio. Esse tipo de quadro refletia a visão das elites de Porto Alegre, que preferiam ser tratadas em casa, e assim evitar a promiscuidade, as infecções e a sujeira dos quartos da Santa Casa, que, nas palavras do dr. Mário Totta, representavam “um atentado à higiene”.
Com tantas falácias, reconhecidas pelos próprios habitantes da cidade, e na falta de um serviço médico mais eficaz, a tônica geral parecia ser o improviso. Mães tratavam seus filhos na base da Emulsão de Scott e óleo de rícino, os submetiam a “banhos de mar” no litoral - indicados também no tratamento da tuberculose - ou optavam pelos “bons ares” da serra, a despeito de estarem cientes dos perigos que envolviam tal prática.
Porto Alegre não estava, portanto, preparada para a crise sanitária que se montava, e que desembarcaria na cidade na última semana de outubro. E foi nesse momento, mais exatamente no dia 24 de outubro, que Borges de Medeiros achou por bem interromper a calmaria dos tempos recentes e soltar uma bomba nos jornais: anunciou que tinha dados a comprovar que a influenza espanhola havia chegado ao estado! Mesmo assim, tentou manter a calma da população, afirmando que os casos de falecimento de pessoas que “não sofressem de outra moléstia mortal” eram ainda raros.
Tratava-se de retórica política das boas, e recurso para tirar a responsabilidade da sua administração; se alguém viesse a falecer a culpa era da própria pessoa que, infelizmente, já carregava consigo, previamente, algum tipo de vulnerabilidade. Além do mais, e passando o problema para o colo da população de baixa renda, afirmou, como se fosse trunfo, que 95% dos casos ocorreriam, e estavam ocorrendo, “entre pessoas miseráveis”.
Enfermaria do Hospital da Brigada Militar, em Porto Alegre, recebeu doentes com gripe espanhola (Tatsch, 2020).
Nas fotos, salas ocupadas por dezenas de leitos, poucos enfermeiros, davam conta do estado do atendimento público em Porto Alegre. Bem que o governo positivista de Borges de Medeiros tentou clamar para que os cidadãos agissem com calma e evitassem o pânico, pois a gripe não se mostrava tão virulenta e fatal, como em outros locais. Mas a população, já alertada pelas notícias que não paravam de chegar da Europa e, desde setembro, de outras cidades do Brasil, logo se deu conta da extensão do problema.
Imediatamente, e repetindo um tipo de reação verificada em outras capitais, hordas de populares correram para as portas das farmácias, disputando qualquer tipo de remédio que prometesse prevenir da doença, em especial o quinino, até então utilizado no combate à malária. No entanto, se o medicamento era entendido como milagroso, seu uso abusivo, não raro, causava intoxicações, com prejuízos irreparáveis à audição e à visão.
E enquanto o governo delongava-se, os estoques do produto, mas também de purgantes, de óleo de rícino, limão e pencas de cebola, sumiram do mercado e alcançaram preços exorbitantes. Receitas populares de chá de eucalipto, cachaça com mel e limão, aspirina, suco de cebola, vinho, caldo de galinha, purgantes, infusões, preces, benzimentos, promessas, talismãs invadiram o mercado, repetindo-se o que ocorrera em outros locais, com dois meses de antecedência. Curandeiros que já atendiam as populações pobres, mas também charlatões ou sujeitos simplesmente “espertos” - que se aproveitavam do desespero da população - encontraram terreno fértil para a venda dos mais excêntricos produtos e receitas: pílulas, chocolates e até cigarros que “preveniam ou afastavam o mal”.
Era um vale-tudo. Segundo artigo do dr. Mário Totta, publicado no Correio do Povo de 23 de outubro, a população
[…] no empenho de se libertar da moléstia […] vai lançando mão, sem conta nem medida, de quanto remédio surge por aí, com o rótulo de preservativo. Como resultado desses exageros, estão aparecendo, a cada instante, os casos de intoxicação medicamentosa e as perturbações da saúde, provocadas pelos remédios tomados sem o necessário discernimento […] embaraços gástricos originados pelo abuso de quinino […] ainda surgem […] as hemorragias nasais produzidas pela introdução brutal, no nariz, de bolas de naftalina e outras substâncias irritantes. (cf. Schwarcz; Starling, 2020, p. 229).
Tirando partido do desespero, a empresa que produzia os “Filtros Chaves”, comunicou que, como a ingestão de água contaminada era um dos “mais importantes transmissores de microbios”, seria imprescindível “voltar toda a nossa attenção” para ela (A Federação, 1918a, p. 6). A saída era comprar um bom filtro; de preferência o Chaves. Já a empresa de “Licor da Quina Montano” avisou que seu xarope era um poderoso “preventivo da influenza hespanhola e de todas as febres”, pois composto de “vegetaes anti-febris, tonicos e estomacaes”, indicado também “com muita vantagem”, nos casos de “vertigens e vomitos” (A Federação, 1918d, p. 2).
Caricaturas e charges também serviam de alívio, enquanto a doença não dava sinais de ceder. No caso do desenho abaixo, o rapaz aproveita-se da gripe para pedir em casamento a moçoila; deixando em destaque o anel de noivado, que ainda se encontra no dedo do pretendente. Era melhor se antecipar, antes que fosse tarde demais.
Enquanto isso, hospitais, como a Santa Casa de Misericórdia - que costumava abrigar um terço dos doentes do estado - passou a receber centenas de novos pacientes. E, como não havia maneira de resolver a superlotação, quando os leitos ficaram tomados, a instituição passou a acomodar os doentes na base do “qualquer jeito”, com os enfermos dispostos em corredores ou em entradas mal escondidas por lençóis provisórios.
Diante do agravamento insofismável do quadro, o governo não teve outro jeito senão reconhecer a gravidade da situação. Passou a organizar, então, hospitais de campanha e equipes de emergência para percorrer as residências e levar assistência médica à população pobre. A orientação, porém, era um tanto generalizante: recomendava-se cama, higiene e repouso, além de limpar a boca e as fossas nasais várias vezes ao dia com uma lavagem de água e sabão, sem esquecer dos gargarejos com água oxigenada ou boricada.
Com a marcha da peste, e a fim de conter a epidemia de maneira mais organizada, o presidente do estado, Borges de Medeiros, dividiu a capital em 25 quarteirões sanitários e criou, em 30 de outubro, o Comissariado de Abastecimento e Socorros Alimentícios. Mesmo assim, nada impediu que as mortes começassem a invadir o cotidiano dos gaúchos. Os primeiros óbitos foram registrados a partir de 21 de outubro. Jornais locais, até então muito concentrados na cobertura da Grande Guerra, nos acontecimentos políticos da capital do país, voltaram seus olhos e manchetes para a evolução da doença.
Alguns estabelecimentos de ensino de Porto Alegre anteciparam-se às determinações oficiais e, logo no início de novembro, a Escola de Engenharia, o colégio Sevigné, o colégio Militar, o Ginásio Anchieta e outros suspenderam aulas e adiaram os exames finais. O comércio e as repartições também fecharam suas portas e os teatros e cinemas comunicaram a interrupção do seu calendário de atividades. Clubes suspenderam partidas de futebol “por tempo indeterminado”. Até mesmo a tradicional Confeitaria Rocco, com a maioria dos empregados doentes, anunciou que seria obrigada a suspender o atendimento aos clientes. Uma notícia, no jornal A Federação, de 25 de outubro, explicava que também a Câmara não funcionaria nesses dias e comentava: “Tempo precioso gasto com o medo da hespanhóla” (A Federação, 1918b, p. 1). Que tempo era esse, afinal? O tempo da certeza, sendo substituído pelo tempo do medo.
Também algumas empresas, que ficaram subitamente sem empregados, passaram a oferecer vagas, como foi o caso da Livraria do Globo e do jornal Correio do Povo. O mesmo dia a dia de outras localidades brasileiras passou, então, a vigorar em Porto Alegre, com o comércio fechado, guardas doentes que ficaram em casa, horários de bondes que rareavam, a Assembleia Legislativa cancelando sessões ordinárias, a Companhia Força e Luz sem prestar os serviços devidos. Até mesmo os leiteiros, que percorriam as ruas logo de manhã, desapareceram. Além do mais, como os carteiros adoeceram, os Correios suspenderam as entregas e a Companhia Telefônica, desfalcada de 285 funcionários, conclamou os gaúchos a só fazerem ligações em caso de extrema urgência.
Símbolo forte ocorreu no feriado de Finados, quando as autoridades passaram a demandar que ninguém frequentasse os cemitérios, a fim de evitar não só aglomerações, como o contágio. O jornal O Independente assim descreveu o cotidiano epidêmico de Porto Alegre: “A cidade tem durante o dia um aspecto doloroso e à noite este aumenta, tornando-se fúnebre. Raro é o transeunte que anda. Os cafés, os bares, tudo escuro, dando à Capital a forma de uma cidade morta e sem vida” (Minas, 2008).
A vantagem de não ser a primeira cidade contagiada pela espanhola ajudou, um pouco, na adoção de medidas que já se mostravam oportunas e eficientes em outros locais. No entanto, a desvantagem era, porém, já ter imaginado o cenário desastroso dos efeitos da peste, uma vez que notícias de Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e sobretudo Rio de Janeiro, não paravam de chegar.
E, assim como ocorrera em outras localidades, também no caso de Porto Alegre, a epidemia mexeu com as práticas dos governos locais. Borges de Medeiros, que não queria dar qualquer pretexto para a oposição, achou por bem diminuir a importância da doença. Por isso, determinou que o jornal A Federação, vinculado ao seu governo, alertasse para o “perigo de boatos extremados”: “O pavor coletivo, o alarma social, se está tornando mais grave do que a própria epidemia. Alguns suicídios o demonstram” (Minas, 2008). A tentativa era de acalmar a histeria, numa boa hipótese; negar a evidência da doença, numa interpretação mais negativa da manifestação. Afinal, vários governos tinham sido atingidos - sobretudo negativamente - diante do descontrole que a espanhola ia espalhando.
Nenhum governo tem, porém, a capacidade de controlar o pânico social e o debate acerca de um tema que influencia no dia a dia da população. Mas bem que Borges de Medeiros procurou, e foi ajudado pelo dr. Mário Totta, inesperadamente convertido em celebridade. E o médico advertiu: “Em todas as epidemias são justamente os que mais medo têm são os que mais depressa são levados de lufada” (Minas, 2008). Ou seja, a doença só prosperava em quem tinha medo - mais outra estratégia de evasão por parte das autoridades locais. A atitude era diametralmente oposta àquela adotada pelos padres do estado, que nesse momento passaram a tratar abertamente da doença. Tanto que, nas missas que oficiavam, vários deles pediam a Deus para que desse um jeito na situação. Mas os religiosos não foram os únicos a reagir. Enquanto as autoridades municipais e estaduais pediam calma à população, garantindo que a situação andava sob controle e a epidemia em refluxo, o boletim da União Metalúrgica clamava pelo esforço pessoal de cada um: “Povo! Não devemos entregar-nos à morte, sem nada fazer pela vida: devemos esforçar-nos para combater o mal” (Minas, 2008).
Nesse meio tempo, o governo ia buscando reforçar o tom de “normalidade”, da maneira que podia. Na sua edição de 5 de novembro, a revista Máscara insistia na tese de que o pior já havia passado e que dentro em breve a cidade voltaria a ser o que sempre fora.
E esqueçamos… Conforme previmos em nosso número passado, a epidemia entrou em declínio em princípios desta semana. As notas fornecidas pela Diretoria de Higiene da imprensa foram sempre as mais animadoras, o que faz supor a estas horas que os casos novos da gripe sejam raros […] é nosso dever afastar o mais possível da recordação popular esses tristíssimos dias de angústia e sobre excitação nervosa a fim de que possamos beber novamente a grandes haustos a vida que o anjo da paz promete dulcificar. (Minas, 2008).
O cenário era, porém, bem outro, e a própria imprensa, depois desse período inicial, mudaria seu tom - passando a veicular uma visão bem mais pessimista. O Correio do Povo, em 9 de novembro, noticiava: “Das 18 horas de ante hontem às 18 horas de hontem foram registrados nesta Capital 32 óbitos de pessoas que faleceram em consequência da influenza hespanhola” (Minas, 2008). Na lista dos “falecidos em domicílio”, que em geral se remetia aos doentes mais abonados,
constavam pessoas de todas as idades e moradores das principais ruas da cidade: Juvenal Faria Dias, de 29 anos, residente à rua General Auto, 35; Sabina Antonia da Silva, 50 anos, moradora do número 123 da rua José de Alencar; Angela Teixeira Nunes, da rua Ramiro Barcelos, 133, menina Catharina, filha de Ariosto Menezes, rua Lima e Silva, 147-B; Jorge Anto, residente no Hotel Lagache; Rubens Santos, de 32 anos, morador da rua Aquidaban, 9; “menino Alziro”, filho de Frederico Castro, com endereço à rua Santa Luíza, 66; Antonio Monteiro, morador da rua Moinhos de Vento, 70; Antonieta Rabello Gorfmann, residente à rua Fernandes Vieira, 36; Bibiana Rodrigues, 20 anos, “mixta, solteira, residente à rua Santana, 7” Na edição do dia 11 a lista incluía, dentre os óbitos em domicílio, os seguintes nomes: Carlos Albuquerque, 52 anos, residente à rua Andrade Neves, 6; Carlos Haesbaeri, 39 anos, morador da rua Garibaldi, 32; Dante Matteoli, 17 anos, rua Castro Alves, 156; Mathilde de Michaelsen Wolff, 43 anos, da rua General Vitorino, 13. (Minas, 2008).
O certo é que o luto ia incluindo a todos e não poupava pessoas reconhecidas nos núcleos mais abonados da cidade.
Ontem enfermaram sete pessoas da família do major Edmundo Arnt; a exma. Esposa do Dr. Joaquim Gaffrée; o Dr. Gaspar Saldanha, sua senhora e três filhos; sete pessoas da família do major Labieno Jobim; “o nosso colega Lourival Cunha, da Kodak (revista); as senhoritas Aracy, Júlia, Odette e Nayr Bacellar, filhas do capitão Bacellar Júnior. (Minas, 2008).
No interior de suas residências elegantes, a gripe não poupava vítimas ilustres: o dr. Jacinto Gomes, diretor da Enfermaria de Gripados da Santa Casa de Misericórdia, contraíra a gripe e teve que ser substituído; o doutor Álvaro Nunes Furtado, clínico residente na capital, faleceu vitimado pela influenza espanhola; “o jovem Antenor Maciel Júnior, filho do tenente Antenor Maciel” também morreu do mesmo mal, e seu enterro foi muito concorrido, com grande número de coroas por sobre o caixão mortuário (Minas, 2008). Os termos de intimidade iam ficando mais evidentes a partir do uso de palavras como “nosso colega”, “diretor da enfermaria”, “o jovem, filho de” ou “filha de”.
E a história se repetia. A moléstia atacou mais fortemente os locais onde faltavam equipamentos urbanos e sobrava aglomeração populacional. Dos mais de 600 detentos da Casa de Correção metade estava enferma, informava o dr. Ivo Corseuil, médico da Diretoria de Higiene. No dia 13 de novembro de 1918, uma quarta-feira, a empresa de navegação Cahy comunicava a suspensão de todas as viagens ao longo do rio, “visto a maior parte dos seus empregados estarem enfermos” (Minas, 2008). E há sempre alguém que se aproveita do desespero alheio. Um anúncio na capa do Correio do Povo oferecia um novo e rápido serviço de impressão de “convites para enterro” e prometia “presteza” na entrega.
O certo é que a cidade se vestiu de luto e como há sempre gente disposta a lucrar, também apareceram nos jornais os anúncios fúnebres que ofereciam alívio na hora da morte e no momento da última homenagem aos enlutados.
Finalmente, a partir de 29 de outubro, o governo do estado, a partir do decreto de número 2.379, abriu um crédito de 500.000$000 para “despesas extraordinárias com a saúde pública” (cf. Schwarcz; Starling, 2020, p. 236). Todavia, ao invés de declinar, conforme, aliás, o governo do estado, a influenza espanhola avançava em seu curso, crescendo em números absolutos os óbitos em Porto Alegre. Cortejos fúnebres, seguidos por pessoas a pé, que carregavam muitas vezes os caixões aos ombros, cruzavam-se a caminho dos cemitérios, enquanto nos cortiços, velórios rápidos eram realizados diuturnamente. Os moradores mais pobres adoeciam em seus barracos, e os poucos que encontravam força percorriam quilômetros a pé para disputar os donativos distribuídos nas portas de algumas instituições filantrópicas, como a Maçonaria, a Igreja Católica e os centros espíritas. Iam em busca de feijão, café, açúcar, banha, distribuídos pelas instituições filantrópicas, pela Federação Operária do Rio Grande do Sul ou por alguns comerciantes em melhor situação financeira.
“Um dos depositos de alimentos da Loja Maçonica Grande Oriente do Rio Grande do Sul” (Mascara, 1918c, p. 16).
O jornal Gazeta do Povo, do dia 11 de novembro, tratou de avisar: “Está tudo pela hora da morte” (Minas, 2008). Leite e aves, quando não sumiam do mercado, chegavam a preços exorbitantes. Nesse caso, a metáfora era real, pois a falta de alimentação regular facilitava a propagação da espanhola. A lenha para os fogões dobrou de preço e os aluguéis dispararam. Quem saiu momentaneamente de voga foi o chimarrão partilhado; não era hora de “dividir” nada e com ninguém, ainda mais em tempo de contágio fácil. Na mesma lógica, cumprimentos calorosos, abraços ou apertos de mão foram temporariamente cancelados.
Para entornar de vez a situação, os próprios médicos, sem gasolina suficiente para abastecer seus carros e visitar os doentes em suas casas, deixaram de realizar esse tipo de serviço. Foi a vez das populações mais ricas se queixarem às autoridades, dizendo que “não podiam” frequentar os mesmos “hospitais imundos e contaminados”. Já as farmácias passaram a vender quinino e óleo de rícino como se fossem especiarias, e, na falta da vacina, saídas milagrosas para o mal que afligia os gaúchos.
Essas situações também, por vezes, alimentam o autoritarismo político. As autoridades estaduais, incomodadas pelas críticas à ineficiência e morosidade das medidas de combate à epidemia, passaram a impor uma censura aos noticiosos, alegando que era necessário “resguardar a população”.
No dia 1º de novembro o governo do estado baixou decreto avisando que todas as publicações referentes à epidemia estariam sujeitas à censura da chefia de polícia, “visando a indispensável e recomendada tranquilidade pública” (cf. Schwarcz; Starling, 2020, p. 238). O Correio do Povo, assim como os demais veículos, recebeu ordem de não publicar mais a lista diária das vítimas da gripe; mas não se curvou. Em protesto, informou aos “caros leitores” que deixaria uma série de colunas em branco. Particularmente visado pela censura borgista, o jornal tinha cumprido um papel importante, ao denunciar a morosidade e a falta de eficiência das medidas que visavam controlar e combater a epidemia. Também mostrava como era seletivo, socialmente, o tratamento da doença, com o socorro público às populações mais pobres jamais chegando. Por isso mesmo, o jornal foi bastante perseguido.
O chefe de polícia enviou carta para as principais redações do estado, informando que “ficavam sujeit[a]s à censura policial as publicações referentes à influenza espanhola” (Rolha…, 2020). Procurando justificar-se, afirmava que tratar da gripe, e da catástrofe por ela provocada, só levava à propagação do pânico dentre a população.
E enquanto o Correio do Povo não se dobrava, os periódicos governistas, conhecidos por seu comportamento “chapa-branca”, não só aprovaram a medida, como elogiaram a sua intenção. A Federação, por exemplo, endossou as ações do governo afirmando que a censura era inevitável. “Certa imprensa pouco escrupulosa assumiu uma atitude francamente inconveniente, fazendo-se o veículo de boatos alarmantes e, sobretudo, descomedida e tendenciosa aos atos do governo do Estado” (Rolha…, 2020).
Um artigo publicado na revista semanal A.B.C., na edição de 2 de novembro de 1918, provocava já no título: “Rôlha, - a bem da Saúde Publica” (Rôlha…, 1918). No texto, o autor anônimo denuncia a censura posta em prática no Rio Grande do Sul, mas, ao mesmo tempo, alertava para “[…] a macabra e abundantissima informação que os grandes órgãos cariocas prodigalisam sobre a marcha da epidemia, sobre o numero de mortos, sobre a physionomia dos mortos, sobre o cheiro dos mortos, sobre os mais dolorosos detalhes da conducção de cadaveres […]” (Rôlha…, 1918). O articulista desaprovava a cobertura jornalística que lhe parecia exagerada e ainda ponderava: “Mas o que ninguem poderá negar é que essas descripções tragicas são um fautor de desmoralisação sanitaria do paiz no estrangeiro e, o que é mais grave, do panico intensissimo que passa, como uma rajada de destruição e de morte, atravez das cidades e aldeias da Republica […]” (Rôlha…, 1918). Louvava, por fim, o exemplo dos Estados Unidos, segundo ele, “um paiz essencialmente democratico e o mais liberal do mundo” (Rôlha…, 1918).
Artigo publicado na revista A.B.C. em 2 de novembro de 1918 sugeria a censura de notícias sobre a gripe espanhola (Rôlha…, 1918).
Preocupado em negar a letalidade da espanhola, em qualquer lugar, o mesmo jornalista explicava que um turista de passagem por Nova York não perceberia que o país atravessava
[…] desde fins de Agosto, lavra a epidemia de grippe pneumonica, com uma intensidade assustadora. As estatisticas de mortalidade, occasionada pela molestia mysteriosa que dá a volta ao universo, tomaram um vulto extraordinario e mantêm, ainda hoje, um ‘crescendum’ alarmante na grande metropole norte-americana. […] E não fossem os mappas demographicos, com as suas centenas de notificação de obitos pela influenza, publicados diariamente, e o estrangeiro consideraria New-York immune do flagelo […]. (Rôlha…, 1918).
Essas e outras matérias eram utilizadas para tentar comprovar como não se deveria divulgar os dados da doença. Mas como retórica não impediam o conhecimento da realidade; na contramão das notícias que defendiam o impedimento da divulgação dos dados de mortalidade e de contaminação, o clima geral estava mais para a crença nos boatos que se multiplicavam. A revista Máscara de 23 de novembro publicou: “‘Eu vi com estes olhos cinco mortos na rua dos Andradas; disseram-me que os coveiros cavam noite e dia as sepulturas; Fulano (que está vivo e um poucochinho doente) acaba de morrer…’ e outras e outras affirmações que só a policia correcional podia evitar” (Mascara, 1918c, p. 13).
A gripe não se limitaria, entretanto, à capital do estado; no mesmo mês de novembro apareciam notícias sobre a chegada da epidemia em Passo Fundo, São Leopoldo, Gravataí, Bagé, Caçapava, Guaporé e outras cidades. Não era mais possível escamotear as evidências que iam ficando visíveis demais. A partir da segunda metade de novembro, a epidemia fugiu ao controle, e a relação dos óbitos fornecida pela Diretoria de Higiene voltou a aparecer nas páginas dos jornais.
Telegramas e notícias enviadas pelos correspondentes do interior traziam agora dados de mortalidade em Passo Fundo, Santa Maria, Rio Grande, Pelotas, Arroio Grande, Tapes, São Gabriel, Encruzilhada, Carlos Barbosa, Rio Pardo, Taquari, Cruz Alta, Ijuí. O comandante do Sétimo Regimento de Cavalaria de Quaraí cometeu suicídio desferindo um tiro de revólver contra a própria cabeça. Segundo o correspondente, o militar “se achava doente, atacado de forte neurastenia, tendo ficado muito impressionado com o número de soldados enfermos na unidade que comandava, e ainda pela falta de recursos” (Minas, 2008). Neurastenia era um conceito amplo, que procurava dar conta de todo o espectro largo da loucura. A pequena Cacequi noticiava estar sendo “transformada num vasto hospital. Há ali um número superior a 150 doentes, não havendo sequer uma pequena farmácia de campanha” (Minas, 2008). Cada local tinha sua história para contar, com a intensidade do surto epidêmico variando em função das condições sanitárias, da densidade populacional e do clima, embora praticamente nenhum município do estado tenha escapado ao flagelo.
No entanto, na mesma velocidade em que com a notícia da gripe chegou e interrompeu qualquer normalidade, de repente ela foi embora. Assim como em outros locais, não parecia haver lógica ou explicação para o súbito declínio e depois desaparecimento da espanhola.
No dia 21 de novembro, os diários da capital já falavam em “progressivo recuo”, com os números da epidemia simplesmente tombando no final daquele mês. E assim, frente à evidência das estatísticas e notas de jornais, as pessoas começaram a arriscar sair de casa. Com a inesperada afluência de transeuntes, as lojas abriram, os bondes retornaram com seus ruídos característicos, os guardas de trânsito voltaram com seus apitos.
Casos novos eram cada vez mais raros, e a mortandade andava em queda livre. Por isso, os clubes Monte Carlo, Brazil Club e dos Caçadores também voltaram a funcionar regularmente. O teatro Apolo anunciou uma matinê com episódios de a “Garra de Ferro”, e, à noite, “uma grandiosa obra americana em sete belíssimos atos: New York” (Minas, 2008). O cineteatro Coliseu, o Petit Casino, o Hipódromo colocaram notícias de que estavam de volta às atividades. Repartições públicas reabriram, os colégios avisaram os pais que era hora de os alunos retornarem para as suas classes, os cafés voltaram a ferver no centro, e a rua da Praia recuperou sua habitual movimentação. Um anúncio publicado na capa do Correio do Povo parecia atestar o retorno à velha e boa rotina: “Leitaria. Previno a minha distinta freguesia que reabri minha leitaria pelo nome Barroza Número 4. O motivo de estar fechada foi meu empregado estar doente” (Minas, 2008).
No dia 29 de novembro, por exemplo, apenas oito óbitos foram registrados em 24 horas e, finalmente, a 3 de dezembro, a Diretoria de Higiene afirmou não ter conhecimento de nenhum novo caso da doença. Como veio, ela se foi - se é que uma doença desaparece fisicamente ou pelo efeito do cansaço do comércio, das autoridades e da própria população. Foram 48 longos dias, com a cidade como que sitiada por conta da doença. De toda maneira, como a moléstia agudizasse as desigualdades, as populações mais pobres, vítimas da fome e da indigência, foram as que mais padeceram. As principais vítimas da influenza espanhola eram cidadãos anônimos, desempregados, operários, comerciários, biscateiros, moradores dos bairros São João e Navegantes, no Quarto Distrito, e da Colônia Africana.
Não há como precisar as taxas de morbidade e de mortalidade ocorridas, visto que muitos casos não foram sequer notificados pelas autoridades sanitárias. Oficialmente foram 1.316 óbitos em Porto Alegres causados pela influenza, dos quais 1.209 na cidade e o restante na zona rural. Há quem também tenha calculado esse número na base da subtração. Em 1918 atingiu-se a cifra de 30.219 óbitos, com um excedente de 6.639 sobre o ano de 1917. Nos três últimos meses de 1918, faleceram ao todo 12.811 pessoas. Por isso a Diretoria de Higiene calculou que o total de óbitos decorrentes da epidemia seria de 3.971.
Esses não eram, todavia, números comprovados. Jamais se soube ao certo a quantidade exata, ou mesmo aproximada, das vítimas causadas pela gripe espanhola de 1918. Se as estatísticas oficiais remetem a cerca de 70 mil infectados e pouco mais de 1.300 mortos em todo o município de Porto Alegre, seria necessário incluir nessa conta as mortes que aconteceram longe das vistas das autoridades sanitárias, em casebres, cortiços ou em casinhas da zona rural, sem contar os enterros clandestinos - comuns numa sociedade em que nem todos tinham documentos. Além do mais, apenas aqueles aos quais os médicos reconheciam a morte, em função da epidemia, eram incluídos nas listas dos vitimados pela peste, excluindo-se dessas relações quem falecia, quem sabe, de doenças cardíacas ou tuberculose, para lembrarmos de dois exemplos que, entretanto, poderiam ter sua origem no vírus da própria gripe.
Se tomarmos apenas o Livro de Óbitos da Santa Casa de Misericórdia, já fica claro como o número de mortos estava subestimado. Do dia 21 de outubro de 1918 a 11 de janeiro de 1919, 2.420 mortes foram registradas e a Diretoria de Higiene do Rio Grande do Sul contabilizou naquele ano 30.219 falecimentos no estado. Nos últimos três meses de 1918, aconteceram 12.811 óbitos, dos quais 5.840 na capital. Ainda segundo o governo, 42% das mortes decorreram de moléstias transmissíveis.
É mesmo impossível, diante da falta de rigor na aferição, chegar a um número mais próximo dos perecimentos efetivamente ocorridos por causa da gripe. De toda maneira, para aqueles que ficaram vivos, o início do verão de 1918-1919 parecia anunciar uma página virada.
A espanhola, no entanto, ainda não morrera em definitivo. Depois de deixar Porto Alegre e outras cidades afetadas simultaneamente, a doença dirigiu-se para localidades da Serra e por lá fez um novo grupo de vítimas. Mas a ordem agora era “lembrar de esquecer”, e as festas de final de ano vinham chegando. No clube do Jocotó, frequentado pelo dr. Mário Totta - conhecido como médico, mas também como bon-vivant - e com uma alegria redobrada, homens e mulheres da sociedade porto-alegrense participaram da festa nos saraus elegantes do arrabalde da Tristeza. À beira do Guaíba, embalados por orquestras típicas e especialmente contratadas, com muitas batalhas de confetes, poucos tiveram tempo ou quiseram pensar na epidemia que, de maneira sorrateira, em menos de dois meses, causara imenso número de vítimas, e imenso prejuízo econômico.
Muitas vezes, porém, uma crise pode virar uma solução, com efeito benéfico. No caso de Porto Alegre, desde o final da espanhola se passou a dar mais atenção à qualidade da água servida à população, com a construção de uma grande hidráulica ainda no governo de José Montaury.
A peste foi embora, mas deixou uma forte marca na população, que demorou para descrever seu luto. Erico Verissimo (1973), em Solo de clarineta, o primeiro volume de suas memórias, recorda, como adulto, a experiência aguda da infância:
Em 1918 a influenza espanhola atirou na cama mais da metade da população de Cruz Alta, matando algumas dezenas de pessoas. Não se dignou, porém, contaminar-me. Lembro-me da tristeza de nossas ruas quase desertas durante o tempo que durou a epidemia, e dos dias de calor daquele dramático novembro bochornoso. Era como se os próprios dias, as pedras, a cidade inteira estivessem amolentados pela febre. A escola achava-se em recesso e eu podia passar dias inteiros a ler romances. […] Foi durante a influenza em 1918 que li pela primeira vez Eça de Queirós (Os Maias), Dostoiévski (Recordações da Casa dos Mortos e Crime e Castigo). […] Passada a epidemia a cidade entrou em lânguida e trêmula convalescença. (Verissimo, 1973, p. 137-138).
Uma trêmula convalescença diz respeito às inseguranças que continuavam a marcar o cotidiano da cidade. O tempo da pandemia ficara no passado, mas não tanto. Continuava presente no tempo do medo e da insegurança.
Ontem como hoje: tempo pandêmico
Muitos regimes de semelhança podem ser estabelecidos entre 1918 e 2020-2021. Em primeiro lugar, uma primeira reação distante e basicamente negacionista, até que a epidemia se instale em território nacional. Em segundo, o descrédito diante do fato de que uma emergência na saúde desse porte tem endereço, CEP e registro. Tanto no passado como no nosso presente, epidemias, a despeito de mobilizarem recursos humanos e científicos, nem sempre trazem saldos muito bons; em geral escancaram características do país: no caso, a nossa tremenda desigualdade estrutural. Em terceiro, o uso de remédios paliativos e de muito pensamento mágico para dar conta da insegurança e do infortúnio - a cloroquina usada pelo governo em tempos recentes foi também um subterfúgio no começo do século XX.
Mas existem diferenças importantes. Se em 1918 as autoridades demoraram para atentar sobre a gravidade do fenômeno sanitário, quando o fizeram - e diferentemente dos dias de hoje - passaram a agir sem reservas ou mais delongas. Basta ver como os procedimentos recomendados no Rio de Janeiro eram rapidamente implementados nos diferentes estados da União.
Carlos Seidl, diretor-geral da Saúde Pública, na capital federal, deu duas informações oficiais em 27 de setembro. Uma, de que até aquela data não existiam casos suspeitos da “Grande Influenza” no Rio de Janeiro; é provável que estivesse mentindo àquelas alturas. A outra era a de que realizara pessoalmente uma inspeção nos navios que chegavam com contaminados, tendo conversado com o médico de bordo de alguns deles, e chegara à conclusão de que não havia nada de errado. Afinal, e segundo os dados coletados por ele, apesar de terem falecido três pessoas entre Lisboa e Recife e mais duas do Recife ao Rio de Janeiro, as causas das mortes foram definidas pelo médico de bordo como lesão cardíaca, angina e broncopneumonia. Apenas o óbito do espanhol Juan Cajal, maître do Demerara, foi registrado como decorrente da gripe espanhola.
Mas a situação iria se complicar, e muito, com Seidl não tardando a reconhecer seu erro. Na viagem em direção ao sul, duas semanas depois da escala em Salvador, podia-se ler no jornal A Tarde que o Demerara deixava “cerca de setecentos enfermos nos quartéis, nos hospitais, em casas particulares e em todos os centros de aglomeração de operários” (cf. Schwarcz; Starling, 2020, p. 62) com a gripe espanhola. Ou seja, por onde passava, o navio deixava um rastro de contaminação e morte. Do Rio, a embarcação seguiu para Montevidéu, aonde chegaria com seis mortos e 22 infectados.
Infelizmente, essa não foi a única embarcação a espalhar a doença por estas plagas. Pelos portos brasileiros, passou ainda o vapor Liger, de bandeira francesa, que estivera no porto de Dacar, centro da disseminação da epidemia para os navios transatlânticos e de carga. O Liger atracou em Salvador, no Rio de Janeiro e em Santos. Outros navios também arribaram em portos do Nordeste, e a espanhola não demorou a atingir várias cidades da região (Aragão, 1918).
Assim, logo a urgência mudou de mão. Medidas de vigilância foram estendidas para toda a longa costa do Brasil. Agora era preciso se antecipar à chegada do inimigo. Por exemplo, o lazareto da Ilha Grande, no Rio de Janeiro, começou a ser preparado para receber possíveis infectados. No fim de setembro, alguns jornais brasileiros publicaram as determinações de Carlos Seidl (1919), que apontou a necessidade de se agir imediatamente, e sem retardo, no sentido de evitar a propagação da epidemia. E o diretor-geral de Saúde Pública denominou a operação de “profilaxia indeterminada” e avisou: “Que sejam rigorosamente desinfetados todos os navios, quer estrangeiros, quer nacionais, de procedência suspeita, bem como cuidadosamente examinados todos os passageiros. Esse serviço fica a cargo dos inspetores de saúde do porto desta capital [federal]” (cf. Schwarcz; Starling, 2020, p. 63).9
Como se vê, se o negacionismo foi a primeira reação, em 1918 não tardou para que as autoridades sanitárias passassem a educar a população e a determinarem medidas para estancar o mal que vinha pelo mar. Muito diferente foi a atitude do atual governo brasileiro, que não só negou a primeira oferta de vacinas Pfizer, como até hoje procura diminuir a gravidade da pandemia da Covid-19.
Também puderam ser vistos mais gestos de voluntarismo e de filantropia. No critério humanidade, parece que perdemos de lavada. No passado como hoje em dia a epidemia parece ter ido embora “por decreto”. É certo que no início do século os casos continuaram frequentes em 1919 e 1920 em cidades como Manaus. Mas a impressão era que a doença se extinguia aos poucos. No caso de 2020-2021 foi a vacina que encurtou o tempo da pandemia. De toda maneira, a representação geral e pública é que a moléstia surgiu como um susto e se foi como um mau agouro.
No carnaval de 1919 dizem que quem sobreviveu ao episódio saiu para dançar como nunca, com medo de não ter outra oportunidade. Mas sabe-se que a gripe continuava passeando pelo Brasil, fazendo muitas vítimas, ainda mais nos estados do Norte. Mais uma vez a coincidência chama atenção, assim como a violência da falta de comunicações. Da mesma maneira, sabemos como em 2022 a doença parece ter ido embora por exaustão da população e dos governantes. Conhecemos, porém, como ela continua fazendo vítimas e de que maneira persiste como trauma na experiência de pessoas marcadas por decorrências prolongadas da doença; tanto física como psicologicamente.
Também impressiona como, num país com tantos cronistas, e em que a crônica é tão reconhecida - quase que como um gênero nacional -, não tenham restado muitos relatos da doença. Era como se fosse melhor esquecer, deixar de falar, para que a dor da morte acabasse neutralizada.
Emblemática é uma troca de correspondência epistolar entre Monteiro Lobato e Lima Barreto. Em carta datada de 26 de fevereiro de 1919, Monteiro Lobato desafiou Lima Barreto: “Por que não fazes um estudo macabro do que foi a gripe no Rio? - para a Revista? Ela espera que logo rompas pelas suas páginas com ‘A expiação’ […] Adeus, vou cozer na cama a minha formidolosa constipa, a duzentos espirros por segundo.” Já Lima, escrachado, assim reagiu no dia 8 de março: “O meu Rio, é essencialmente carnavalesco e, ao que parece, vai pegando a moléstia em todo o Brasil” (Barreto, 1956, p. 61).
Ninguém tinha certeza de nada. Mas enquanto ela, a espanhola, não desse novamente o ar de sua graça, o melhor era cair nas graças de Momo e dançar para esquecer e não voltar a lembrar.
“Vivemos um mundo que desaprendeu a lidar com o luto e a morte” (Schwarcz; Starling, 2020, p. 336). Na opinião do historiador Philippe Ariès, foi no começo do século XX, mais particularmente após a Primeira Guerra Mundial, que se deu “a morte da morte”. Essa espécie de interdito da morte - essa recusa de lidar com ela - ficou mais patente nos Estados Unidos e na Europa industrial do Noroeste que paralelamente passaram a louvar exclusivamente a vida na forma da longevidade e do não envelhecimento (Ariès, 1977).
Ao mesmo tempo, com a epidemia da gripe espanhola de 1918, criou-se toda uma engenharia médica e sanitária, visando contornar “acidentes cotidianos” da morte. Uma tecnologia adaptada e capaz de proteger as pessoas foi então implementada com o objetivo de preservar vidas, visando liberar os corpos para que seguissem em suas tarefas diárias, livres da morte que costumava espreitar as pessoas nas esquinas mais inesperadas.
O silenciamento da morte é, assim, coerente com a chegada da modernidade, que veio acompanhada pela urbanização, pela industrialização e por uma certa racionalidade científica disposta a driblar o perecimento humano. Três diferentes fenômenos sociais e médicos fizeram parte dessa rota. O primeiro deles foi quando se deu uma ocultação generalizada da morte, e a espetacularização de apenas algumas poucas perdas, aquelas de celebridades. Nesse processo, ocorre um tipo de superexposição de determinados falecimentos, por parte dos meios de comunicação e da população que compactua com a dor, e o silenciamento diante do grosso da população: a morte das pessoas comuns de uma forma geral, o perecimento dos mais idosos, a morte de jovens negros nas periferias brasileiras que continua a passar “em branco”. Um segundo procedimento foi a transferência dos doentes para os hospitais, onde se combate a morte, por certo, mas onde ela também permanece escondida, longe da visão dos saudáveis. O terceiro passo representou uma espécie de extinção social do luto, sobretudo quando ele é coletivo: causado por guerras, acidentes ambientais, pandemias.
Mas não me parece estranho que também a gripe espanhola de 1918 tenha causado o “sequestro da morte”. Afinal, sua passagem foi tão rápida e tão vertiginosa, que gerou uma espécie de amnésia coletiva em resposta ao desconhecido e à insegurança por ela causada. A insegurança do desconhecido.
O sentido ambíguo do termo “história” foi explorado pelo antropólogo e historiador haitiano Michel-Rouph Trouillot (1995), quando analisa as relações entre poder e regimes de historicidade em seu país de origem. Na opinião do autor, seria possível distinguir, metodologicamente, duas faces do termo história: a historicidade ou história como processo, e a historicidade ou história como narrativa. Trata-se de uma diferença entre os sentidos ontológico e epistemológico do termo, que envolvem uma ideia de verdade sobre o passado, por um lado, e de construção fictícia sobre ele, de outro. O autor ressalta, porém, que não existe a sobreposição de uma historicidade sobre a outra, uma vez que nada neste mundo estaria isento de temporalidade. Sendo assim, a suposta divisão seria apenas um exercício lógico de distinção de domínios.
Mesmo assim, Trouillot arrisca destacar duas dimensões da história: a que diz respeito à experiência social do tempo e a narrativa que se faz dela. É nesse sentido que elas podem ser vistas mais como dois lados de uma mesma moeda do que como unidades disjuntivas.
Podemos nos aproveitar da distinção apenas metodológica de Trouillot para refletir sobre as relações entre história e antropologia, voltando ao início deste artigo. Seria o caso de pensar a história como uma disciplina, que remonta a uma narrativa sobre o passado feita a partir de uma posição específica, o saber ocidental; e como um conceito operatório, que se refere às maneiras pela qual a antropologia refletiu sobre as distintas apreensões do tempo, tanto em sua sociedade de origem como nas outras que tratou de estudar.
E não é difícil admitir que emergências sanitárias em sociedades que se querem e representam como “normalmente saudáveis” desarrumam, ao mesmo tempo, as narrativas do passado, como os regimes de temporalidade.
Eric Hobsbawm afirmou que o longo século XIX só terminou em 1918. Seu argumento é que a Grande Guerra alterou o curso da vida e impôs uma outra datação e temporalidade. A barbárie exercida nos campos de batalha calou fundo na certeza da emancipação prometida pela ciência da época. Afinal, onde é que morava a barbárie? (Hobsbawm, 1995).
Concordo que 1918 seja a data de mudança de século. Mas incluiria a gripe espanhola como marcador de temporalidade. Afinal, foi ela que interrompeu o tempo do progresso, incluiu a morte coletiva como destino e fez com que o ano passasse em outro ritmo, ditado pela doença.
Se assim for, arrisco dizer que também o século XXI só há de começar quando tivermos lidado com a Covid 19 - e não determinado solenemente o final das máscaras, do perigo de contaminação, do impedimento às aglomerações, e da pandemia. Só então, quando nos for possível tratar do que passou e dos traumas que ficaram: das pessoas que perderam seus familiares e amigos, dos filhos e filhas que se culpam pela morte dos pais, dos netos que carregam a responsabilidade da contaminação de seus avós, dos doentes que sofrem com efeitos prolongados e inesperados da doença, estaremos prontos para enfrentar os desafios do novo século.
Enquanto isso tudo não vem, nos manteremos nesse tempo hesitante da pandemia. Aquele que não lida com o presente e tem medo do futuro. Na passagem oficial do século XIX para o XX, as notícias falavam muito da passagem de um cometa… que destruiria as marcas daquela civilização. Quem sabe a pandemia de Covid 19 seja nosso cometa. E se o grande meteoro vindo do céu acabou não confirmando sua rota, já a doença fez cratera no nosso regime de temporalidades. Bem-vindos ao velho século XX.
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-
1
Este artigo é pautado, nas suas análises mais históricas e documentais, na pesquisa que realizei para o livro A bailarina da morte: a gripe espanhola de 1918, em coautoria com Heloísa Starling (Schwarcz; Starling, 2020).
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3
Ver Émile Durkheim (1988). Sugiro também a leitura de Heloisa Pontes (1993).
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4
Expressão utilizada por Lévi-Strauss (1986) para se contrapor a Malinowski.
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5
Gell faz, inclusive, um apanhado sobre as noções de tempo encontradas nas obras de Durkheim, Evans-Pritchard, Lévi-Strauss e Leach.
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6
O ensaio foi escrito para a palestra que ministrei no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFRGS no dia 17 de agosto de 2022. Por isso guarda uma certa oralidade própria desse tipo de atividade. Agradeço aos colegas não só pelo convite, como pelas sugestões.
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7
Ver, entre outros, Kolata (2002).
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8
Ver, entre outros, Abrão (1998).
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9
Para demais procedimentos, ver, entre outros, Kolata (2002) e Goulart (2005).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
30 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
20 Set 2022 -
Aceito
04 Out 2022