Resumo
E se a ansiedade, em termos antropológicos, não se constituísse apenas como um afeto representado enquanto sintoma em um corpo adoecido? E se ela traduzisse uma sintomática mais ampla, a respeito de formas de significação e de identificação que operam por relações de contiguidade entre corporeidade, tempo e emoção? Sobre essas questões, o presente artigo apresenta um conjunto de entrevistas semiestruturadas, realizadas em 2022, em uma escola de educação profissional do sertão do Ceará. O trabalho aqui esboçado preocupa-se em interpretar a sintomática de alguns discentes no retorno às aulas presenciais no contexto pós-pandêmico. Trata-se de um estudo antropológico com contribuições psicanalíticas, produzido na interlocução com estudantes de 15 a 17 anos. A pesquisa organiza uma exegese etnográfica, a fim de evidenciar regimes de emoção e de identificação potencializados por gatilhos de sofrimento em que a alteridade é um aspecto fulcral para sua compreensão.
Palavras-chave: ansiedade; etnografia; identificação; emoção
Abstract
What if anxiety, in anthropological terms, was not just an affect represented as a symptom in an ill body? What if it translated a broader symptomatic, regarding forms of meaning and identification that operate through relationships of contiguity between corporeality, time and emotion? Regarding these questions, this article presents a set of semi-structured interviews, carried out in 2022, at a professional education school in the rural area of Ceará. The work outlined here is concerned with interpreting the symptoms of some students upon returning to face-to-face classes in the post-pandemic context. This is an anthropological study with psychoanalytic contributions, produced in dialogue with students aged fifteen to seventeen. The research organizes an ethnographic exegesis, in order to highlight regimes of emotion and identification enhanced by triggers of suffering in which otherness is a central aspect for their understanding.
Keywords: anxiety; ethnography; identification; emotion
Introdução
De todos os titãs, em sua revolta contra os deuses, o menos prestigiado foi Sísifo. Se Atlas tinha como responsabilidade erguer o globo nas costas e Prometeu, ficar acorrentado tendo seu fígado devorado por uma águia, Sísifo foi castigado com o absurdo: estava condenado a fazer rolar e buscar uma pedra pesada do alto da montanha mais alta pela eternidade. Para Albert Camus (2018), o absurdo não é uma instância do tédio, é, principalmente, a ausência de (fazer) sentido. Desse modo, Sísifo se torna arquétipo de uma vida dada à repetição. No final das contas, todos os titãs vivem sob o signo da repetição: ciclos intermináveis em que o desejo parece estar fixado além do percebido, nunca bem elaborado, eterno retorno. Diante dessa parábola inicial é que vejo o tema da ansiedade enquanto repetição e, portanto, como mediador de absurdo dentro de significações culturais.
No escopo das abordagens psicológicas, a ansiedade opera como um fluxo de pensamentos e sentimentos vertiginosos, imbuídos de uma certa pressa e de um estado de alerta. Ela configura uma espécie de curto-circuito químico que impede nosso corpo de processar devidamente as informações do ambiente e mediar adequadamente as sensações de medo e insegurança (Castillo et al., 2000). Aqui, psicologia e neurociência explicitam muito bem os mecanismos neurobiológicos da ansiedade enquanto uma doença potencialmente somática (Alves et al., 2012). Apesar da relevância desse conhecimento, tanto psicologia e psiquiatria como neurociência não me convencem completamente. Sendo a ansiedade fluxo de pensamentos e sentimentos, enzimas, reações químicas e redes neurais em pane, como tudo isso é significado? Quero dizer que, no campo antropológico, as doenças não se referem a elementos bioquímicos somente, vêm acompanhadas de representações (Laplantine, 1999; Pussetti, 2009) e até de cosmologias inteiras. A lição da antropologia é de que doenças comunicam e expressam, põem em ação modos de pensar e agir, estruturam guerras espirituais e (co)formam sistemas simbólicos complexos, modos de existência, pertencimento, etc.
Sísifo estaria doente para a psicanálise. Para a antropologia, seu ato de repetição possivelmente teria um significado compartilhado, um símbolo de hierarquia e punição ao agressor de deuses. Nada, porém, me retira da mente que ele, ao que apetece à minha experiência de professor de ensino médio e de antropólogo, estaria envolto em sua própria ansiedade, como alguém que passeia em jardins sem saída ou exaspera-se sobre um precipício. Não importa a prisão, a repetição sempre prende o desejo.1 Minhas alunas que saíam para chorar escondidas no banheiro ou que caíam desmaiadas na antessala da coordenação escolar repetiam o mesmo gesto, dotado de um absurdo brusco aos docentes que olhavam, ora preocupados, ora desdenhosos. Algo estava acontecendo. No estado do Ceará, foram emitidos dois decretos seguidos, em 2021 e 2022, respectivamente, entre os meses de novembro e fevereiro, regularizando o retorno às aulas presenciais. Houve euforia, houve uma sensação de alívio, houve angústia.
É no contexto de retorno às aulas presenciais, especificamente no primeiro semestre das aulas, entre fevereiro e junho de 2022, que busco descrever um conjunto de acontecimentos em que a urgência da saúde mental se fez presente na escola em que trabalho. Urgência caracterizada de todas as formas: histeria coletiva, contágio, estratégia dos(as) discentes para permanecer fora de sala. Era algo estranho. Menciono o verbo no passado para que os leitores e leitoras entendam que a situação mudou, não é a mesma. Naquele período, todos os professores, inclusive eu, e funcionários da escola,2 recepcionávamos os(as) estudantes com certo otimismo, como se a pandemia tivesse sido vivenciada na forma de um longo mergulho e agora pudéssemos respirar. No entanto, nas primeiras semanas notei que os meus colegas e as minhas colegas docentes relatavam casos de alunos e alunas saindo de sala, alguns para ficarem chorando no banheiro, outros para se dirigirem à coordenação ou à secretaria, solicitando autorização aos pais e responsáveis para voltarem para suas casas. Alunas, em situações extremas, eram socorridas em cadeiras de rodas.
Os gestores e funcionários tentavam o que lhes cabia: chás naturais, técnicas de respiração guiada, consolo, conversa com os responsáveis. Chegaram mesmo a desenvolver uma parceria com psicólogos voluntários, a partir do contato com uma ex-aluna formada na área, que resultou no projeto Psi tá On. A iniciativa era um passo importante diante da demanda de escuta, mas o sistema escolar (a burocracia educacional) limitava o campo de ação.3 Não se tinha oferta de um psicólogo para atuar presencialmente. Os voluntários atendiam de maneira virtual e cada aluno(a) tinha duas consultas por bimestre. Exemplifico o contexto da minha pesquisa com esse dado para ilustrar a emergência pela qual passávamos como instituição e demonstrar também que a escola vivenciava uma exasperação de crises de ansiedade pululando. Houve dias em que pelo menos dez alunos mostraram sintomáticas de falta de ar, choros, dores de cabeça ao mesmo tempo, superlotando a pequena secretaria.
Diante do exposto, a descrição que segue a partir de agora pousa-se sobre algumas hipóteses levantadas e transformadas pelos dados empíricos coletados com cinco entrevistas semiestruturadas, feitas em profundidade, com estudantes que experimentaram em algum momento os sintomas da ansiedade ou passaram, eles(as) próprios(as), por crises agudas. Esses adolescentes foram meus alunos. Durante aquele momento, submeti minha pesquisa ao Termo de Anuência da escola e todos os pais/responsáveis dos jovens que entrevistei assinaram o Termo de Consentimento Livre-Esclarecido (TCLE) para que seus filhos pudessem participar. A maioria que realmente aceitou meu convite era do gênero feminino e de pele branca, com idade entre 15 e 16 anos, mas também pude colher o depoimento de um menino negro de 17 anos, que decidiu participar de última hora. As entrevistas foram gravadas e transcritas entre maio e agosto de 20224 e tiveram por base um pequeno roteiro em que elencava elementos centrais: a vivência na escola e a sociabilidade; os relacionamentos intrafamiliares; a experiência de sofrimento psíquico e uma abertura de reflexão.
A estrutura do texto está dividida em três tópicos que objetivam estabelecer um cruzamento teórico e epistemológico entre o trabalho de campo e as narrativas expressas pelos(as) estudantes. Cada tópico desvela e aprofunda uma abordagem do tema da ansiedade. Perspectivada como um afeto imerso em diferentes significações culturais e enfatizada no seu laço de identificação enquanto um dispositivo de identidade e alteridade que se manifestara na forma de sofrimento, angústia, dor, impaciência e tristeza. Ao ler a ansiedade na potência de uma estrutura de linguagem sendo ela a fuga, o sufoco ou o medo, pode-se admitir que os(as) estudantes aludiam a uma experiência de corporeidade, compartilhamento e agenciamento; muito além de um psicologismo da consciência ou de uma histeria de retorno é a figura do Outro5 no espaço de sociabilidade da escola que oportuniza essa análise.
Luto e desordem
Vivemos o luto da crise pandêmica enquanto sociedade? Enterramos nossos mortos como se exige em tempos de guerra? A pandemia foi uma guerra? Apesar das mensagens e do discurso bélico do ex-presidente Jair Bolsonaro é sobre outra ordem de luta que escrevo, trata-se de luta dada entre a possibilidade de cortar laços e significá-los à maneira dos rituais fúnebres, tais quais os que faziam os povos autóctones da Austrália, que foram descritos por Mauss (1979), em cerimônias que expressam sentimentos.
Os números não mentem. Foram cerca de 705. 313 mil casos de óbitos por conta do Sars-CoV-19 entre 2020 e 2022 em todo o Brasil, e mais de outros 37 mil casos em análise, de acordo com o Painel Coronavírus do Ministério da Saúde (Brasil, [2022]). O fim de quase um milhão de vidas não delineia marcas em um povo? Presumimos a ruptura como forma de selar e ressignificar a morte? E desse modo partimos ao futuro quando enterramos os mortos? Todas as perguntas que faço acabam me levando a pensar sobre a linguagem do luto em seus suportes simbólicos, talvez, menos que uma ideia acabada, eu esteja procurando pensar como esse luto difuso se entranhou na sociedade, em particular, nos jovens e na escola.
Tais ideias me fazem lembrar que em antropologia, ao falarmos de experiências macrossociais, devemos ter em mente um certo receio acerca do modo que o geral se cristaliza no particular e vice-versa. Por exemplo, dentro da sociedade nacional a questão do enterro biosseguro (gerado a partir dos protocolos científicos contra a propagação da doença) geraram uma comoção sobre como se despedir de parentes e amigos. Para os Yanomami, os sentidos da interdição aos enterros se constituíam uma afronta à intimidade de sua cultura. Para esse povo, os ritos fúnebres traduzem a forma devida de separação entre a vida e a morte, e tal proibição é uma injúria, um ato de irresponsabilidade cosmológica (ver Silva; Estellita-Lins, 2021). A questão é controversa por envolver ontologias ancestrais que as razões epidemiológicas não levariam em consideração. Não é um jogo de racionalidade, como se pode pensar ocidentalmente. A pandemia também gerou uma crise de sentimentos, logo, uma espécie de desordem, diga-se de passagem.
Essa é minha hipótese inicial que guiou parte do roteiro das entrevistas. A pandemia enlutou a sociedade: o que os(as) alunos(as) vivenciavam não era algo para chamar atenção ou uma euforia do retorno. Na realidade, eles(as) organizavam em suas crises uma emoção para expressar os lutos não experimentados: pais, irmãos, tios, amigos. A questão poderia ser traduzida em um agenciamento de afetos não desfeitos que agora poderiam ser vistos. Aquela ansiedade toda estava endereçada. A ponta do iceberg permitia que eu compreendesse a angústia e a tristeza expressas intuitivamente enquanto um sentimento enlutado, preso pela quarentena, veio dar o ar da graça com intensidade desmedida (Rosaldo, 2019).6 Mas a hipótese era simples demais: não detinha dados específicos sobre a experiências de lutos dos(as) adolescentes entrevistados(as). Não há dados empíricos suficientes para confirmar se a ansiedade começou ou não no contexto pandêmico e somente na escola mostrou sua intensidade. No decorrer das entrevistas, um dado novo foi chamando minha atenção. Os(as) discentes afirmavam que esses episódios de ansiedade começaram a ocorrer no início de sua pré-adolescência, entre 12 e 13 anos, e que para eles(as) a pandemia agravou um sentimento já instalado - ela desordenou alguma coisa.
Uma das primeiras entrevistadas foi Ana, uma menina de 16 anos, moradora de uma cidade circunvizinha. Ana tem olhos amendoados de um castanho claro, cabelo liso e estava no segundo ano do ensino médio. Seu depoimento era rico em detalhes, entretanto, fiquei atento ao relato de que suas crises de ansiedade começaram entre 12 e 14 anos:
Ter crise mesmo de ansiedade foi lá para a metade do ano de 2020. Eu tinha uns 14 anos. Elas voltaram nessa época. Mas, antes, com 12 anos eu já tinha. Só que eu não sabia o que era. Descobri o que era quando eu voltei a ter com 14 anos. Daí, desde os 14 anos foi passando, foi passando e eu sempre tinha. Às vezes quando acontecia algo ruim que eu não entendia, acaba[va] entrando em crise não por conta da pandemia em si, por causa do medo. Eu acho que é porque passava muito tempo sozinha. Não conseguia distrair minha mente e acabava tendo crise. Ficava longe das pessoas, me isolava. Exemplo: eu via muito uma amiga minha, por conta da pandemia, a gente começou a se afastar porque eu não podia ir na casa dela nem ela podia ir na minha casa. E ela era meu ponto de apoio, às vezes eu conseguia me distrair com ela. Ficava nervosa e começava a ter crise de ansiedade. Também por outros problemas que foram extremamente fortes pra mim e que vieram coisas horríveis na minha mente e me deixavam muito mal, envergonhada e a sensação fica de isolamento e agonia fica mais forte (Entrevista 1, Ana, 5 de maio de 2022).
O relato de Ana era denso e ela fazia questão de enfatizar como a ansiedade ocasionava uma sensação intensa de angústia e ia compondo uma tessitura entre pensamentos intrusivos, problemas pessoais e isolamento social. Mas, ao insistir na pergunta sobre a idade exata em que teve sua primeira crise, ela dizia não ter plena certeza, porém reconhecia o mesmo aperto no peito e a necessidade de distrair a mente. Esse primeiro depoimento me fez realinhar a hipótese do luto. Assim, apesar de reconhecer o contexto do adoecimento psíquico enquanto uma dimensão singular dos sujeitos, era necessário pensar o contexto pós-pandêmico como algo além da soma de casos individuais. Era preciso ultrapassar a noção mecânica de que o luto, enquanto processo psicológico comum, poderia assumir um caráter diferenciado em escala social. Assim, Ana proporcionou um entendimento mais específico. Não é exatamente o fenômeno do luto que causa as crises de ansiedade no sujeito, tampouco foi o efeito extremo da quarentena. Era a desordem, a ruptura, a instalação de um medo futurístico sobre o “novo normal” que forneceria as pistas que eu queria.
Com essa nova informação em mãos, pude pensar a relação estreita que se estabelecia no retorno pós-pandêmico das aulas e a figuração de um debate sobre essa realidade surgida no posterior da crise. Aqui, a obra da antropóloga britânica Mary Douglas merece uma menção. No contexto do pós-guerra, a antropologia inglesa incorporava uma preocupação crescente sobre o domínio do simbólico e sobre a definição dos sistemas sociais como estruturas funcionais. Seu livro Pureza e perigo, de 1966, comungou com a sociologia durkheiminiana e reaplicou a noção de que as categorias sociais eram categorias epistemológicas, entre elas, a da pureza e da impureza, a da santidade e da profanação, a da ordem e da desordem, a do sujo e do limpo eram significadas simbolicamente. Portanto, longe de oferecer um aparato conceitual estático, essas dualidades fundacionais poriam em ação as lógicas de conhecimento e de percepção. Em suma, organizam a experiência dos grupos sociais. Nessa altura, o leitor ou leitora já imagina que vou relacionar as crises de ansiedade, esse luto incompleto, não apenas ao retorno abrupto do convívio com o Outro, mas também ao registro de uma reconfiguração das experiências sociais subjacentes ao reencontro.
A defesa de Douglas é de que esses pares ambivalentes constituem bússolas de navegação social e se cristalizam enquanto modos de classificar e situar a percepção das rotinas da vida. Resumidamente, promovem a predefinição e coordenam as relações que garantem a estabilidade em que os grupos ancoram não apenas seus pensamentos (modos de pensar) mas toda a estrutura de afetos (modos de sentir), simbolizadas e já previamente concebidas por aquela comunidade/grupo/sociedade. Em razão dessa característica, ela afirma:
A cultura, no senso comum, padronizou os valores de uma comunidade, serve de mediadora da experiência dos indivíduos. Provê, adiantadamente, algumas categorias básicas, um padrão positivo no qual ideias e valores são cuidadosamente ordenados. E, acima de tudo, ela tem autoridade, uma vez que cada pessoa é levada a consentir porque outros assim o fazem. Mas seu caráter público torna suas categorias mais rígidas. Uma pessoa pode ou não rever seu padrão de pressupostos. É um assunto particular. Mas categorias culturais são assuntos públicos. Não podem ser tão facilmente sujeitos à revisão (Douglas, 2012, p. 54).
O ponto que gostaria de enfatizar não é a ode à desordem sentimental e cognitiva trazida pela crise pandêmica, já bem evidente, mas o lugar do reencontro com o Outro na margem das experiências catastróficas. Se a pandemia fez triplicar casos de ansiedade, depressão, transtornos psiquiátricos variados, ela também fez instalar uma demanda por saúde mental, para além de um discurso vazio. A escola é facilmente agenciada nessa direção, principalmente, com avanço das escolas de educação integral, onde os(as) estudantes chegam a passar de oito a dez horas. Os projetos pedagógicos das escolas se esvaziaram nos anos de ensino remoto. A ideia do contato modificou-se nas relações virtuais. A inscrição cultural da instituição escola e das categorias que a subsidiam também foi transformada e os sujeitos que compõem esse espaço acompanharam essa transformação tão fugaz. Douglas, então, permite compreender que as desordens cognitivas advindas do período pandêmico realizam-se no pensamento e no sentimento como continuidade de uma não elaboração pública.
O que esse aspecto teria de relação com o fato de Ana começar a desenvolver ansiedade por volta dos 12 ou 14 anos? Nada que já não estivesse lá. Na intimidade dos pensamentos de Ana, a ansiedade poderia ter sido engatilhada exclusivamente por um evento traumático. Porém, é sabido que a passagem da pré-adolescência para a adolescência é acompanhada de mudanças hormonais e fisiológicas e de transformações de caráter psicológico e social.7 Essas mudanças remetidas a um contexto de anunciação de crise, novo colégio, novas amizades, permitem coadunar a ideia de uma espécie de incubação da ansiedade. Não em uma relação de causa e efeito, mas como um rito de passagem e de entrada do sujeito em um conjunto de esquemas de entendimento e de afeto diferentes do que aqueles marcados em sua infância. Douglas (2012, p. 51), por exemplo, explica que na relação entre o sujeito e a cultura estão presentes diversos pressupostos simbólicos:
Como observadores, selecionamos, de todos os estímulos que caem em nossos sentidos, somente aqueles que nos interessa, e nossos interesses são governados por uma tendência a padronizar […]. Num caos de impressões movediças, cada um de nós constrói um mundo estável no qual os objetos têm formas reconhecíveis, são localizadas a fundo, e têm permanência. Percebendo, estamos construindo, tomando certas pistas e deixando outras.
A questão não é apenas a interrupção social do luto, daquilo não vivido. É o potencial de irrupção desses rituais que permitiria aos sujeitos remanejarem as experiências e darem sentido em meio ao caos. A perspectiva pode ser ampliada, pois, outros depoimentos vão ao encontro da fala de Ana. No entanto, é necessário pontuar que ambos atravessam a ansiedade, a experiência ansiosa (digamos assim) enquanto uma desordem, mais que um luto ou uma luta. Um desarranjo simbólico e possivelmente angulado a uma cultura juvenil (Pais, 2003) onde os afetos dizem alguma coisa acerca de um significante de sofrimento compartilhado.8 A minha segunda hipótese versa sobre essa possibilidade, considerando as emoções, no fundo, das relações entre subjetividade9 e cultura, na forma de endereçamentos e mecanismos sutis e singularíssimos de vivência do social e do somático.
Corpo, tempo e angústia
Como poderia definir antropologicamente a vivência dos meus interlocutores? Tenho uma resistência, que considero até adequada, a meter o nariz nos assuntos da psicologia e da psiquiatria. Todavia, quero deixar claro que se trata aqui de uma investigação prioritariamente etnográfica e não estou propondo qualquer etiologia de transtornos de ansiedade. Mas, ao buscar uma exegese cultural dessa angústia10 como sintoma social, partilhado no laço, parece-me viável ponderar a ansiedade enquanto um estado emocional transicional em que a angústia é um afeto de corporeidade mobilizado entre passado e futuro. Logo, as crises são um estado de alerta máximo situado à margem de vozes, pensamentos difusos, imagens catastróficas que se amontam no indivíduo. A ansiedade parece colocar no meio dos significantes culturais que ordenam a percepção dos sujeitos uma pergunta de travessia: quem tu és quando estás em desordem?
Talvez a pergunta não dê conta de tudo, mesmo que eu consiga descrever aos leitores e leitoras a densidade etnográfica da experiência de escutar adolescentes envoltos em uma experiência de angústia, pouco conseguiria expressar das minhas próprias sensações que tive ao presenciar suas crises. O que ficou em mim foi necessariamente a impressão dos efeitos de despersonalização: como se o sentido de pessoa, dotada de personalidade e de um caráter duradouro, por conta de um conjunto estrutural de relações, se perdesse e as referências daqueles sujeitos se evanescessem. Assim, para compor um argumento à altura, precisei me ancorar em outros conceitos que não apenas na ideia de despersonalização. No quadro das ansiedades, como vai especificar Marta Roriz (2011) em sua dissertação sobre pacientes com crise de pânico em Portugal, a crise ansiosa apresenta um sintoma de desconexão entre pensamentos, sensações e sentimentos e o corpo. Além do que, para fins de uma análise antropológica, a despersonalização confunde-se com a perda de um sentido de identidade.11
Essa perda do sentido, seja transitória ou contínua, da noção de identidade12 vai se realizar por duas outras grandes perdas: a do tempo e a do corpo. Nos depoimentos, os(as) estudantes pontuavam uma corporalização intensa do sofrimento, um conjunto fenomênico de gestos que performavam as entrevistas em conjunto com suas falas, na tentativa de colocar nos meus olhos os sintomas como fatos de dor. Sara, uma menina branca de 15 anos, com cabelos escuros e curtos, em sua entrevista deixa esse aspecto bem evidente:
Desde de que eu entrei na escola tem sido tudo maravilhoso, claro, mas também tem momentos ruins. E desde que eu entrei na escola essa ansiedade ficou mais delicada. Ano passado [2021] eu tive a primeira crise que me desesperou fisicamente, e foi na verdade por um sonho, não foi por causa da escola. Mas quando voltou presencial aí que eu fui vivenciando essas crises, principalmente esse ano, às vezes era de tarde sem motivo. Em outros momentos por uma disciplina que eu estava com dificuldades. Mas tive crise por causa de pessoas e também sem “motivo” algum, simplesmente do nada. Eu posso estar em um grupinho de amigos ou fazendo alguma atividade e do nada bate aquela sensação de desespero. Parece que eu não me sinto segura ali ou eu fico pensando demais sobre algum problema recorrente. Primeiro tem as causas físicas que são: falta de ar e coração acelerado, muito tremor aqui [aponta para o lugar exato] na base da mandíbula e no braço, que eu comecei a sentir, essa semana. Eu fico muito acelerada, eu penso que eu vou desmaiar, mas não chega a acontecer isso. Minha cabeça fica a mil e ainda fica gente curiosa muito perto de mim, perguntando se eu quero chá, mas basicamente são os mesmos sintomas, falta de ar, dor no corpo. Não sei, às vezes não consigo andar, como se não sentisse as pernas (Entrevista 2, Sara, 12 de maio de 2022).
A corporalização da ansiedade parece por vezes se referir ao descontrole e ao estado de desespero, pondo em ação uma série de sensações que se convertem em um fluxo denso de sentimentos e de pensamentos que descambam na somatização. Por outro lado, é interessante notar que Sara fala de uma sintomática específica que surge nas suas crises - a sensação de não sentir as pernas, gerando uma angústia de não poder andar. Lembro-me de certa ocasião em que esse medo particular ocorreu. Estava na sala dos professores e percebi alguns gritos e barulhos de alguém correndo, abri a porta e vi outros professores e dois estudantes trazerem Sara no colo. Ela estava com um grupo de amigos na hora do intervalo, sentada e conversando na escada que dá acesso ao primeiro andar, em que ficam as salas de aula. Quando decidiu sair, antes de conseguir dar o primeiro passo, ela conta que teve uma vertigem e suas pernas falharam, quase tombou no chão, mas foi amparada por colegas.
Dentro da literatura antropológica, em especial, as antropologias do corpo ou as antropologias fenomenológicas (para ser exato), a abordagem de Thomas Csordas13 sobre os processos de cura e adoecimento dão uma importante contribuição ao modo que culturalmente pode se enxergar a experiência somática de uma crise ou doença. Diferentemente de uma posição autoexcludente, em que corpo, indivíduo e cultura seriam elementos postos em diferentes dimensões da existência, Csordas vai alimentar uma perspectiva de integração mais ampla, evidenciando que tais domínios existenciais não são tomados como impermeáveis, mas considerados em uma permeabilidade que justificaria a noção de corporeidade. Assim, ele aponta: “[…] corporeidade parte da premissa metodológica de que o corpo não é um objeto a ser estudado em relação à cultura, mas é o sujeito da cultura; em outras bases, a base existencial da cultura” (Csordas, 2008b, p. 102).
A lembrança da antropologia fenomenológica de Csordas me fez compreender que Sara, assim como Ana (mencionada anteriormente), partem de seu corpo não como recipiente de sua experiência, mas como formulação de um lugar de existência, no qual suas experiências são vivenciadas e tornadas singulares. Nesse sentido, vale analisar que a corporeidade pode propiciar que a interpretação sobre as crises da ansiedade abra-se para propriamente a ideia de que seus sintomas sejam ancorados em uma experiência cultural compartilhada. Voltando-se ao caso de Sara, ela foi uma aluna dedicada, entretanto desde o retorno presencial apresentava um comportamento de saídas contínuas e alegava passar mal em várias ocasiões, e nesses momentos era cercada de amigas e amigos. Quando ela manifesta seu maior medo em uma crise repentina, suas pernas falham e precisa ser carregada e amparada pelos seus amigos. Um dos pontos dessa situação é que Sara, na entrevista, contou-me que se sente dependente de terceiros e insegura diante de situações com que não está familiarizada ou quando não pode contar com alguém de confiança:
Eles querem me ajudar, só que eles também querem que eu me ajude, me autoajude. Por mais que seja difícil. Por esses tempos, eu tive um término e foi aí que minhas crises ficaram frequentes, por que ele era uma das pessoas que mais me ajudavam quando eu estava assim mal ou ansiosa. Principalmente, em crise de pânico, crise de ansiedade. Eu tinha uma certa dependência dele. Sempre procurava primeiro ele. Agora que eu passei a procurar mais meus amigos, tanto que a primeira pessoa que eu chamo quando eu estou com crise é a Daniela [amiga próxima]. Eu acho que é cansativo para eles; porque realmente talvez seja. Eles não sabem o que está passando na minha cabeça, então por mais que eles me ajudem eu também tenho que me ajudar (Entrevista 2, Sara, 12 de maio de 2022).
Csordas (2008a) tem um texto com o qual quero dialogar ao analisar a sintomática de Sara. Ele conta, no artigo “A aflição de Martin”, originalmente publicado em 1986, o caso de um jovem atormentado por um demônio sexual que o prostra em uma profunda tentação para que se masturbe e para que escute o pensamento de outras pessoas. Em alguns momentos, Martin, como jovem americano, em seu processo de conversão, afirma que sente que não tem corpo. Um claro sintoma psiquiátrico de desrealização. Martin passa por consultas clínicas e sessões de cura, entre padres e psiquiatras, entre a medicalização e a terapia religiosa. A tentativa de cura perpassa a significação de seus sintomas em sistemas simbólicos inteligíveis, mas necessariamente conflitantes, pois, a priori, nenhum desses sistemas, a psiquiatria e o catolicismo, abandonam a primazia da explicação. No final, Martin acaba compondo estratégias para vencer seus sintomas com uma alteração comportamental e também religiosa. Por exemplo, para vencer a sensação que não tem corpo, Martin se matricula em um curso de natação e a experiência sensorial com a água o faz sentir-se possuidor de um corpo.
O argumento de Csordas é de que a cura e o adoecimento ocorrem em processos de percepção e são mediados por formas de simbolização para dar conta da somatização em níveis que são variáveis em cada caso e experiência. Sara, a título de uma afinidade eletiva, parece performar sua própria dependência emocional e, nesse sentido, seu sintoma não apenas fala de uma posição subjetiva que ela assume diante das interações sociais na escola, mas também põe em questão para si mesma seu grau de individualidade e independência para com os outros. A falha de suas pernas somatiza aquilo que ela menciona como uma falta de expressão de sentimentos e emoções, resultante da dificuldade que sente de conversar diretamente com seus pais sobre seus problemas emocionais:
Meus pais não sabem. Eu digo que não sabem porque eu tenho vergonha de falar. Com meus pais eu fico evitando falar isso com eles. Por mais que eu venha a ter uma crise de ansiedade em casa eu tento ficar afastada deles. Tenho medo deles não me entenderem ao ponto de fazer alguma coisa para me ajudar. Eu só os evito, prefiro que eles não se informem. Parando pra pensar agora sobre a reação deles eu acho que eles ficariam assim “Mas por que você tá assim?”, sendo que nem eu sei bem o porquê disso aí, eu não sei como chegar neles e falar “Olha, eu tenho ansiedade”, eles vão falar “Ah, mas por que se a gente te dá tudo, você estuda em uma escola boa”. Eu acho que esse pensamento [é] de gente mais velha, eles não entenderiam (Entrevista 2, Sara, 12 de maio de 2022).
A ligação não é óbvia, tampouco quero afirmar categoricamente uma relação direta entre os sintomas de Sara e sua compleição afetiva com sua família. No entanto, as emoções de Sara e o modo como seu sintoma toma uma proporção diante de suas interações sociais me fazem apontar para a compreensão de que a ansiedade não é unicamente um fenômeno de corporalização entre cultura e indivíduo. Penso que existe uma estrutura afetiva,14 um conjunto comum de sentimentos cuja corporeidade fenomênica acha-se inserida no escopo da experiência social que é partilhada e interseccionada nos(as) adolescentes. Por esse motivo, ao tratar da ansiedade como um problema de/do corpo, deve-se perspectivá-la também como um problema de/do tempo (e no tempo), na condicionalidade de uma temporalidade intersubjetiva e singular. O tempo permite que minha análise localize as emoções como produto de algo não exclusivamente individual ou egoico, mas situado na produção do sentido social da existência, isto é, no tempo que faz durar as emoções.
O tempo é uma categoria de difícil conceituação dada a dimensão propriamente abstrata de sua natureza. Apesar disso, uma infinidade de filósofos e humanistas procurou conceituá-lo. Immanuel Kant (1980), talvez o mais prestigioso desses autores, argumentou que o tempo, assim como o espaço, é antes uma categoria de entendimento (um apriorismo categórico). Portanto, sua funcionalidade em termos da experiência seria de fornecer um sentido aos sucessivos e contínuos atos da existência, possuindo um aspecto de totalidade inalcançável ao intelecto humano. Nada útil essa informação (nesse momento). O tempo ao qual me refiro, e que se refere à ansiedade como sintoma social de uma experiência, é baseado em certa configuração cultural e societária e ao mesmo tempo distingue-se de uma temporalidade cronometrada. Menciono o tempo enquanto uma fórmula de significação. Logo, ancorado não em um dito tempo que passa e não volta, mas em um tempo estável que se presentifica - produzindo um sentimento de continuidade ou de ilusão de que algo é contínuo.
Minhas incursões se aproximam da ideia de duração de Henri Bergson (2006), em que o tempo não constitui a subjetividade dos sujeitos, entretanto é a própria matéria pela qual a subjetividade enquanto fato humano é necessariamente possível. Parece lógico construir dois pressupostos de referência para relacionar o tempo na forma de um elemento a ser reconsiderado constantemente em qualquer análise sobre a experiência da ansiedade: 1) o tempo apresenta-se vinculado ao registro da lembrança de si mesmo, constituindo assim um recurso de identificação e de referência entre o que passou e o que virá; 2) o tempo não se refere à experiência exclusivamente particular do indivíduo, ele se abre à presença de um Outro, que só é no tempo e no espaço da diferença. Para tanto, recorro à percepção de Alfred Gell (2014) em que o tempo, na retomada dos pressupostos kantianos, trata de uma forma perceptiva de entendimento, mas não é pré-cultural ou pré-simbólico, possuindo cartografias que refletem o agenciamento do tempo do indivíduo ao tempo de sua cultura.
Agora é útil mencionar que no sintoma de desrealização de uma crise de ansiedade ou de estresse extremo a ausência de um trabalho psíquico do tempo do sujeito o faz aderir ao colapso de um tempo da cultura, em que seu corpo não responde à experiência de uma identidade orgânica: ao desconectar tempo e experiência corpórea temos como resposta (qualquer que seja a enfermidade) a realização de uma formação de compromisso (nos termos freudianos) que é da ordem do trauma, do não sentido, do não dito, do não passado. Thays, uma menina branca de 17 anos, uma das últimas a me conceder entrevista falou exatamente dessa sensação de um tempo fragmentado, em que não é possível construir referências de localização; diferentemente de outras interlocutoras, Thays tem um diagnóstico de ansiedade desde 2017, quando procurou atendimento em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da sua cidade e o clínico a direcionou a um psiquiatra. Ela narra essa relação da seguinte maneira quanto aos seus sintomas:
Essa questão começa no corpo. A primeira coisa é de não sentir as pernas, logo no início. Assim, minhas pernas começam a ficar muito agitadas, eu começo a tremer muito a perna, ficar muita agitada. Logo após vem uma dormência muito forte: eu tenho dificuldade pra andar, ficar em pé e depois vem realmente a crise, com falta de ar, tremores. Parece que o tempo não passa, eu fico presa naquilo, não sei dizer. Tudo fica lento e parece uma vida inteira passando rápido e tendo sentimentos e pensamentos. É como se tudo ao seu redor dissesse para ti que isso não vai passar ou que vai ficar assim por muito tempo, é como se fosse ficar pra sempre naquela situação de desespero, nervosismo sempre (Entrevista 3, Thays, 11 de agosto de 2023, grifo meu).
Thays tem uma história emocional bem densa com sua própria ansiedade. Criada em uma família religiosa e com uma irmã mais velha com depressão, ela passou a subjetivar problemas que não eram seus e, na escola, com as demandas próprias da rotina escolar, acabou desenvolvendo microcrises de ansiedade que tenta administrar sozinha. A pressão que recebe - seja pelo fato de ser adolescente e ter que lidar com questões psicológicas graves frente às demandas impostas, seja pelos dispositivos de gênero que enfrenta - faz com ela tenha uma clara consciência de sua vulnerabilidade:
Eu tenho uma irmã, ela tem ansiedade também, tem depressão também. Ela é aquela irmã que a atenção precisa ser dela. Ela precisa de uma atenção a mais. Então acho que eu me vi tendo que aprender a fazer isso. Eu não sei exatamente o momento em que eu comecei a lidar com isso. Realmente não lembro exatamente o momento. Mas acho que desde criança que eu tenho isso de “Ah eu preciso fazer isso pra me ajudar”. Não é que eu não tenha o cuidado da minha família, eu tenho. Fiz terapia, agora não estou mais fazendo, fiz terapia durante muito tempo, minha mãe sempre me acompanhou de perto, mas eu acho que eu não me sentia livre. Pois eu estava sempre prestando muita atenção para não dar mais preocupação e trabalho para os meus país. Foi a partir disso que eu comecei a lidar tanto com as minhas crises [quanto] com as de outras pessoas. Nas minhas, eu saio de perto, procuro um tempo só para mim, tento me acalmar (Entrevista 3, Thays, 11 de agosto de 2022, grifo meu).
Destarte, ela mesma interpreta sua vivência acerca da ansiedade e se depara com uma necessidade de construir sua autossuficiência para não sobrecarregar sua família. Thays faz menções constantes, apesar de fortuitas, ao tempo. As menções que ela faz a um tempo que não passa ou a um tempo só para ela me fazem refletir sobre a construção da identidade de um sujeito. Um exemplo proveitoso que gostaria de utilizar é fornecido pela psicanalista Maria Rita Kehl. Em seu trabalho clínico com a depressão, Kehl (2015) vai propor que é necessário pensar a depressão enquanto sintomática social que se manifesta potencialmente em uma recusa do depressivo a enredar-se às formulações do imaginário societário que oferta uma demanda por felicidade. Em última análise, manifesta uma posição de recuo ao tempo que é ofertado no estímulo da vida social contemporânea e tal perspectiva se dá em razão de que
o tempo é uma das dimensões da falta. O mesmo tempo de espera que inaugura a formação do aparelho psíquico, tempo que corre em ritmo distendido e alheio à urgência das demandas do Outro, introduz a falta no psiquismo. A demora é uma das manifestações mais incontornáveis da falta para o sujeito. Inversamente, a automatização da pressa que nos leva a viver e realizar as tarefas da vida no tempo do Outro atropela o sujeito (do desejo) […] (Kehl, 2015, p. 188).
Dentro desse quadro, o tempo ao qual Thays se refere é próprio de seu processo de subjetivação. Todavia, resta algo: a questão do tempo do Outro (penso no tempo da cultura), e a constituição da falta e da perda de um sentimento de continuidade que vai fazer da ansiedade uma experiência angustiante se liga à maneira que os indivíduos endereçam entre si um significante de sofrimento. Quero dizer que se o tempo e o corpo singularizam os sujeitos e o tornam participantes de uma cultura, suas formas de adoecimento refratam questões de seu contexto de modo inesperado. Freud (2014), a título de ilustração, argumentou em Inibição, sintoma e angústia que o afeto angustiante é uma reação do Eu às situações de perigo (iminente ou não). Nesse sentido, a ansiedade contemporânea enquanto uma forma social de uma experiência põe em questão a segurança ou mesmo a eficácia dos processos de subjetivação os indivíduos frente às demandas de sua cultura. A angústia que se segue na crise ou nos espaços de interação reflete a própria linguagem da sintomática do ansioso: não há tempo e nem corpo que ampare o excesso de urgência da sua experiência.
Identificação e alteridade
Um ponto de inflexão à análise desenvolvida até aqui é necessário. Apresentei a ansiedade na forma de uma angústia em potência e por meio dos dados etnográficos coletados nas entrevistas objetivei narrar seu lugar enquanto experiência social cujas características se ligam tanto a uma significação fenomenológica de seus sintomas quanto a um processo mais amplo de compartilhamento de significantes culturais. Entretanto, é justo considerar um outro escopo nas discussões que trago, principalmente, quando se trata de contextualizar essa experiência ansiosa na esteira dos processos de enlutamento na vida pós-pandêmica e também na peculiaridade do campo de pesquisa que é a escola. Um dos aspectos da ansiedade, presenciado por mim na condição de observador-participante e professor, foi a maneira como que essa experiência, no esquadro da sociabilidade escolar, parecia partilhar uma “epifania” entre os(as) estudantes e isso dizia respeito a gatilhos das crises vivenciadas.
Os(as) entrevistados(as) mencionavam em algum momento de seus depoimentos que se sentiam impelidos a vivenciar a ansiedade quando viam ou presenciavam outros jovens passando por aqueles sintomas-chave que relatei no decorrer do texto. Tal era o efeito de ligação afetiva causado por esse gatilho, que houve um episódio na escola na qual trabalho em que cerca de 16 adolescentes passavam mal. Aqueles que se aproximavam para ajudar, em alguns minutos, exibiam os mesmos sintomas: dores de cabeça, sensação de sufocamento, espasmos musculares, tristeza, etc. Ressalto que esse exemplo não é o único e talvez diga sobre algo mais amplo que apenas uma escola. Há registros de casos semelhantes em escolas por todo o país. Em Recife, cerca de 26 estudantes apresentaram taquicardia e necessitaram de atendimento de urgência. No Ceará, em uma escola estadual da periferia de Fortaleza, dez estudantes com sintomas de ansiedade receberam ajuda médica (Alunos […], 2023).15
O espraiar do fenômeno chegou até a ser mapeado em São Paulo. O Instituto Ayrton Senna (2022), com a Secretaria de Educação de São Paulo, que há décadas realiza um trabalho de base junto às secretarias de educação estaduais, a partir das chamadas competências socioemocionais,16 realizou um estudo-piloto com cerca de 640 mil estudantes da rede pública de educação paulista e indicou uma prevalência de relatos de sofrimento e/ou adoecimento em quase 70% do corpo discente. O estudo dirigia-se prioritariamente a cartografar os efeitos da pandemia em termos de saúde mental. Os dados majoritariamente estatísticos, em um primeiro momento, dizem da prevalência de sintomática de modo sincrônico, talvez simplificando em demasia a experiência do sofrimento socioemocional (se me permitem o roubo da categoria). Porém, é viável destacar que a chamada saúde mental na escola se faz aparecer muito mais por dispositivo discursivo17 do que propriamente uma preocupação efetiva em termos de políticas públicas educacionais. Tal impressão se liga à diversidade de eventos que denotam a importância de arregimentar um olhar de assistência e de acolhimento às demandas da comunidade escolar que são ignoradas.
Para retornar ao fio dos meus argumentos acerca das crises de ansiedade dos(as) estudantes, penso ser preciso considerar esse dispositivo enquanto um não lugar reconhecido tacitamente pelos diversos atores educacionais em suas respectivas escalas de atuação. Todavia, dado o recorte da etnografia, é também desejável comentar que a experiência da ansiedade como dita anteriormente pode se constituir nesse endereçamento ao Outro, tendo, por assim dizer, uma dimensão imanentemente coletiva. Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud (2011) deixou claro que a identificação se tratava de um mecanismo psíquico original, dando aos sujeitos o acesso aos restos de um ideal, que mais tarde conformaria sua própria vivência de mesmidade. Logo, o conceito de identificação se projeta enquanto uma disposição afetiva e relacional. Para mim, faria sentido pensar as crises ansiosas e de difusão dos sintomas da ansiedade na forma de uma identificação quase instantânea, posta como uma relação de alteridade, estabelecendo-se por um jogo psicossocial de endereçamento e linguagem de afetos.
Entretanto, a ideia de identificação freudiana permite ir além de uma conclusão precipitada. A identificação pode se produzir no rastro de emoções desprezadas e não vividas, na interiorização do luto também. Para situar uma identificação em escala maior do que o setting analítico, é necessário pressupor não apenas a desordem dos rituais de luto, como afirmado nas minhas hipóteses iniciais, mas também o esvaziamento do sentido do luto em sua importância como medida de encerramento. A identificação faz durar o vazio do luto esvaziado, não porque instala individualmente objetos de amor perdidos. É justamente o contrário - a identificação se torna um dispositivo de endereçamento de um luto que não circula e não cede à realização singular de cada indivíduo com as perdas possíveis e impossíveis da pandemia. Ao não cair em individualidade alguma, ele se torna parte de um tempo excedido e que não passa. O luto é social tal qual foi a pandemia e só socialmente parece poder ser elaborado.
Resta, para o que interessa na minha análise, o espaço da convivência escolar no agenciamento de sociabilidade juvenil em sofrimento. Um luto esvaziado, a pressão escolar, o impacto da reentrada no mundo do Outro após a quarentena reinauguram assim uma forma de diferença e fazem brotar a alteridade do contato. Tal alteridade não é angustiante por princípio, é angustiante porque interpela o desejo. O que fazer com o Outro, tomado não mais enquanto uma presença-ausência de uma tela, e sim na realidade de seu corpo? A pergunta não é uma marcação simbólica e nem uma relação de fundo da qual posso desmembrar totalmente a experiência das crises de ansiedade relatadas pelos(as) discentes. Todavia, ela não deixa de se fazer presente. Do ponto de vista dos vínculos sociais a escola se torna um espaço estratégico de constituição de singularidades, mesmo nas relações de inter-relação em que a identificação opera. Mas, quando esse processo é feito na urgência do retorno pós-pandêmico, algo dessa alteridade é mal elaborado. Daí vem a lembrança ao sujeito isolado que existem outros, que existem estranhos no caminho do Eu, como experiência psicossocial. Tempo, corpo, angústia nesse desenho ligam-se nesse furo ao entrelace do Eu e do Outro, um sintoma de compromisso, uma exegese de medos e lutos.
Considerações finais
Os(as) leitores(as) devem ter percebido que o texto se faz oscilar entre uma análise propriamente etnográfica sobre as experiências de sofrimento dos(as) estudantes e o modo de considerar tais experiências enquanto significantes de um “mal-estar social” mais amplo (isso é feito propositalmente). Nesse sentido, eu recorri frequentemente aos instrumentos teóricos da psicanálise como meio de fazer uma demonstração quase ilustrativa das descrições, notas de campo e entrevistas. Entretanto, é importante demarcar as limitações dessa relação antropologia-psicanálise no escopo da problematização do artigo. Os aportes psicanalíticos de um jeito ou de outro estiveram presentes em distintas leituras antropológicas no culturalismo americano (Linton, 1970) que reunia argumentos a respeito dos padrões culturais e a formação das personalidades individuais, ou mesmo no estruturalismo francês de Lévi-Strauss (1973) e a sustentação de uma lógica inconsciente dos conteúdos culturais.
Mas a psicanálise é um recurso limitado ao escopo da tarefa etnográfica por sua dimensão epistemológica, pois é a partir do inconsciente e sua instanciação psíquica na forma de componente fundacional da vida psicológica que a técnica psicanalítica sustenta sua produção de conhecimentos. Teoricamente é possível encaixes e entrelaces como foi feito no decorrer do artigo, todavia, a extensão do que se pode produzir é visível. As crises de ansiedade aludidas pelos(as) discentes, suas narrativas de sofrimento emboladas com diferentes afetos e o espaço de socialização da escola não dizem a respeito a um dado isolável de uma clínica. São na realidade um conjunto complexo de interações culturais em um contexto social e histórico que realiza diferentes processos de agenciamento sobre o modo como eles(as) se sentem, como interiorizam e exteriorizam suas respectivas queixas, medos e desejos. Logo, é pela análise antropológica que é possível argumentar acerca da ansiedade no ambiente escolar; e demonstrar a existência de uma lógica de interface socioemocional.
A urgência do tema da saúde mental dos(as) estudantes da rede pública refrata um outro campo de questões sobre a maneira com que são elaboradas as políticas públicas de saúde. Principalmente no contexto de retorno pós-pandêmico e no efeito de não abordar efetivamente tais impactos em uma das áreas mais afetadas: o campo educacional e os processos ensino-aprendizagem, o acolhimento escolar e a própria estrutura das escolas públicas. Trago essa pequena digressão ao tópico final do texto por um motivo razoável: ao perspectivar a experiência de ansiedade dos(as) estudantes percebi que muitos deles e delas acionavam um laço de exaustão para com sua temporalidade.18 Dito de outro modo, a ansiedade descrevia embaraços de processos de subjetivação, marcados por um cansaço. Dessa maneira, a ansiedade nos espaços escolares é refração e reflexo de processos culturais mais amplos, porém contém uma singularidade relativa aos sentidos que os(as) discentes atribuem ao seu próprio processo de adoecimento.19
Se apontei que tempo e angústia, luto e desordem servem de pistas para pensar a vivência dos sintomas da ansiedade, foi em razão de pressupor que os afetos agenciados nas crises agudas ou nos sintomas isolados expressam uma exasperação na matéria da subjetividade dos(das) interlocutores(as) e o espaço escolar abria-se a essa expressão. As crises, a tristeza, a avalanche de alteridades projetadas em um retorno pós-pandêmico, em um lugar de regramentos, exigências e traquejos interacionais (como é a escola), as tecnologias, as redes telemáticas e um sentimento de continuidade de um luto esvaziado não elaborado faz da ansiedade algo muito pior que um desarranjo psicossomático. Ela se liga propriamente aos enlaces de alteridade e de identificação que circundam e atravessam a subjetividade. Portanto, a experiência ansiosa inscreve-se no espaço escolar não somente como transtorno institucional, mas um atravessamento simbólico de reconstrução das relações no pós-pandemia.
Os(as) estudantes que passaram pelas crises e/ou desenvolveram os sintomas viam na entrevista um momento de elaboração de seu sofrimento, momento em que podiam desenvolver um saber sobre aquilo que sentiam.20 Devo confessar que foi difícil escutar, pois, em algumas situações, quando descreviam os sintomas e vocalizavam as angústias que sentiam, eu também as sentia como minhas. O encontro intersubjetivo dos depoimentos tinha esse aspecto também de fazer circular e partilhar narrativas de sofrimento encurraladas na rotina da escola. Usei, por vezes, meu horário de planejamento para escutá-los e não apenas nas entrevistas, mas também nos corredores, nas disciplinas eletivas que ofertei sobre os temas de saúde mental e feminismo. Em todas as ocasiões, ao saber da pesquisa, os(as) estudantes, mesmo que não acordassem a entrevista, vinham relatar, falar, expor, traziam, à margem da investigação, seus descontentamentos e agruras. Eu deixava claro que aquilo que eles pareciam buscar, conforto, não era o que a investigação oferecia, mas isso não os fez recuar. Uma demanda de fala foi ficando evidente.
Mesmo não tendo grandes conclusões a mencionar - apenas o próprio registro do texto e suas consequências: apresentar a ansiedade na forma de uma sintomática social dotada de uma marca simbólica cada vez mais evidente na cultura - posso endossar que a experiência ansiosa e de sofrimento erigida nas páginas que se seguiram até aqui não trata de um pessimismo institucional em relação à escola ou é um tratado de angústias para o que restou da pandemia em termos emocionais e sociais. Trata-se de uma análise ainda em desenvolvimento, que tem pontos a serem aprofundados e argumentos que precisam ser confrontados com dados e leituras. No entanto, o artigo contém, a qualquer um que deseje, uma agenda de pesquisa sobre os seguintes temas: as questões do luto esvaziado a relação da pandemia e as emoções em desajustes simbólicos, a partilha acelerada de um tempo contemporâneo que esgota o trabalho psíquico de construir imaginários e permitir laços não adoecidos, a existência de correntes ansiogênicas21 de sentimentos circulando no retorno pós-crise pandêmica, um resto de angústia que se gruda na relação do Eu e do Outro. É na apresentação dessas pontas soltas e na demonstração de seus efeitos no espaço da escola que termino meu texto.
Referências
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1
A ideia de repetição utilizada aqui vai se configurar a partir da abordagem freudiana em que o ato de repetir vincula-se à resistência em recordar e, portanto, reproduz um comportamento sintomático.
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2
Para caracterizar: a Escola Alan Pinho Tabosa, localizada em Pentecoste, no sertão do Ceará, o município faz fronteira com pelo menos cinco outros municípios e recebe estudantes dessas localidades. O colégio existe há mais de dez anos e trata-se de uma conquista do Movimento Precista. O PRECE é um movimento de educação popular com 30 anos de existência; formulado no interior de uma comunidade vulnerável no sertão cearense, o movimento organizava células de estudo cooperativo com o intuito de desenvolver autonomia e autoestima a jovens interioranos que decidissem entrar no ensino superior. A escola é reconhecida por utilizar a Aprendizagem Cooperativa e Solidária como base pedagógica de metodologias de ensino ativas, sendo sua existência fruto da mobilização de ex-precistas que hoje compõem quase 70% do corpo docente.
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3
Atualmente a escola tem um psicólogo que realiza atendimentos individuais.
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4
Agradeço aqui, particularmente, ao meu ex-aluno Carlos Daniel Braga por se dispor a realizar as transcrições voluntariamente. Também quero advertir aos leitores que todos os nomes utilizados neste texto são fictícios, com o intuito de resguardar a privacidade e o direito ao anonimato dos participantes da pesquisa. Lembrando que a particularidade da pesquisa em ciências humanas e sociais aplicadas se encontra garantida pela Resolução 510 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde.
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5
Em referência ao modo que na psicanálise e na antropologia a outridade aparece enquanto fenômeno de interpelação - seja do sujeito do inconsciente ou do sujeito da cultura - julgo que o Outro com letra maiúscula se justifica para explicitar essa consideração. Daí o propósito que o Outro seja a lei, a interdição, a cultura, a posição da demanda/oferta a uma alteridade sem saber-se qual, mas que interpela.
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6
Michele Rosaldo aponta que as emoções ou sentimentos figuram como pensamentos corporalizados, portanto, dotados de uma dimensão necessariamente somática, em que a fronteira entre cognição, emoção, crença e cultura estaria borrada. Em razão de sua análise, a concepção de corporalidade dos pensamentos/emoções refere-se também ao sentimento de Self, de crença de um todo unitário e possuidor de uma personalidade dotada de afetos.
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7
A chamada “crise da adolescência” conforme destaca Margaret Mead (2001), no livro Coming of age in Samoa, não é um dado universalizável dos processos de vida dos/as sujeitos. Na realidade, vincula a adolescência a um modo culturalmente estabelecido das sociedades euramericanas de classificar as etapas de vida conforme critérios psicológicos e fisiológicos, situados, por vezes, em formas repressivas de encaixar os/as agentes sociais em representações culturais que seria empiricamente controversas.
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8
Márcio Seligmann-Silva (2008) introduz uma perspectiva interessante sobre os traumas causados por catástrofes históricas ou eventos extremos de violência, para ele ao se pensar formas de narrar o sofrimento esbarramos no inarrável. Uma espécie de núcleo duro e indefinido entre espaço de reconstrução do Eu e a possibilidade de uma dimensão temporal que torna os fatos do passado inteligíveis ao presente. Esse aporte me pareceu necessário ao pensar a crise pandêmica em seu impacto coletivo do luto e do testemunho do luto na forma de um inenarrável do trauma que se não escoa por uma linguagem ou mesmo não se configura na política de uma memória social.
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9
Há uma ampla conceituação de subjetividade e de processos de subjetivação que relacionam a formação cultural com a constituição do psiquismo, mas o teor dessa categoria no artigo vem em razão de significar um espaço de reflexividade e interioridade dos sujeitos, na forma de uma estruturação complexa de sentimentos (Ortner, 2007).
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10
Em termos técnicos (em psicanálise de abordagem freudiana), a angústia traduz uma reação do indivíduo a situações potencialmente disruptivas. Trata-se, pois, de um conjunto de estímulos de origem interna ou externa, em que o sujeito não condiciona tais situações ao fluxo comum de sua percepção e cognição (ver Laplache; Pontalis, 1988). Conclui-se que, diferente do medo, a angústia põe em causa a ausência de um objeto especificado de temor, colocando o sujeito na ordem do desamparo. A ansiedade como denominação contemporânea das causas da angústia não se confunde com ela, apesar de o texto, em algumas ocasiões, aproximá-las. A ansiedade vai descrever uma experiência angustiante, mas a angústia por si só, não necessariamente, descreve ou abarca as definições mais atuais de ansiedade.
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11
Evidentemente, o sintoma de despersonalização ou desrealização refere-se a um quadro de intenso estresse e suas origens etiológicas podem ter relações com negligência emocional da infância, abuso, violência doméstica e transtornos afetivos graves (ver Spiegel, 2023).
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É importante notar que a noção de identidade, assim como seu correlato analítico, identificação, não se referem exatamente à mesma coisa. A identidade no debate das ciências sociais esteve relacionada às formas de estabilização do ethos cultural em termos de modelo e/ou padrão. Na atualidade, tais ideias são confrontadas com o fato de que a identidade, geralmente, é um produto mais ou menos dinâmico de construções de sentido socialmente situadas. A contemporaneidade vai demonstrar a ficcionalidade da noção de identidade empiricamente falando. Porém, o conceito de identificação já colocava na ordem da teorização os aspectos dinâmicos: os restos do Outro que vão compor a formação do Eu.
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Vale mencionar que Thomas Csordas vem de um campo de pesquisa específico, proveniente da antropologia da religião, e suas pesquisas têm por base a investigação etnográfica da renovação carismática nos Estados Unidos, cujos aspectos são bem particulares, pois a renovação carismática, advinda da tentativa do catolicismo de se apresentar em uma nova roupagem para os jovens americanos, desemboca na incorporação de elementos do protestantismo estadunidense, como a possessão demoníaca e a glossolalia. Csordas, em sua abordagem frequentemente integra elementos da filosofia da percepção de Merleau-Ponty e da sociologia do habitus de Pierre Bourdieu, a fim de demonstrar que a noção de corpo não pode ser considerada pré-cultural, afinal os elementos que integram a própria percepção descendem de uma história cultural partilhada entre grupos sociais. Em resumo, o significado do corpo em sua existencialidade antecede a inauguração do corpo percentualmente.
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Parte de uma importante discussão antropológica relaciona as emoções e sentimentos como produtos de relações de poder e aos contextos sociais e históricos em que as emoções podem ser agenciadas culturalmente em seus aspectos macro e microssocial. Autoras como Maria Claúdia Pereira Coelho e Claúdia Barcellos Rezende (2010) destacam que os sentimentos pode ser objetos de investigação antropológica privilegiados por serem portadores de elementos plurais e empiricamente relacionais, dotados de força representacional que se molda aos cenários sociais e são, virtualmente, usados pelos próprios sujeitos enquanto forma de se estruturar afetivamente nesses mesmos cenários. Em resumo, os sentimentos são instrumentalizados e mobilizados nos processos de interação de modo a permitir, restringir, representar, evitar, classificar as ações dos sujeitos no mundo.
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Em agosto de 2022, a BBC News lançou uma reportagem em que marcava a incidência do sofrimento psíquico nas escolas e relacionou tal fenômeno não apenas às dimensões da contemporaneidade, mas também à própria estrutura de acolhimento das escolas, que até então (e ainda hoje) carecem de assistentes sociais e psicólogos.
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O debate sobre o conceito e a pertinência das competências socioemocionais no processo de escolarização ancora-se em dois grandes movimentos: 1) o avanço do neoliberalismo na agenda e na definição das políticas e das ações educacionais em todo o país; 2) a perspectiva da Educação Integral que garante um sentido orgânico aos processos formativos, apesar de seu esvaziamento em termos de investimento público. De modo geral, chamamos de competências socioemocionais um conjunto de capacidades “emocionais” de interação e individuação que seriam socialmente saudáveis para os sujeitos escolares.
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Existe uma ampla literatura histórico-filosófica sobre a categoria dispositivo discursivo calçada nas conceituações de Foucault (1988), todavia ao mencionar dispositivo discursivo apenas gostaria de enfatizar o caráter instrumentalizado das narrativas sobre saúde mental. Portanto, o sentido do termo é mais descritivo do que propriamente teórico.
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Byung-Chul Han (2017), filósofo sul-coreano, argumenta sobre o modo como a cultura do século XXI aportou novos problemas ligados não apenas ao tempo e às tecnologias, mas aos processos de sujeição. Han, por exemplo, considera que as sociedades disciplinares modeladas nas relações de saber-poder (Foucault, 2011) não mais modelam o espaço relacional do Eu.
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Os trabalhos de Ana Paula Müller de Andrade e Sônia Maluf (2015) demonstram que os sujeitos em adoecimento psíquico possuem agência para além de uma visão restritiva de suas capacidades. Menciono essa potencialidade porque ao se pensar a saúde mental de jovens e adolescentes é necessário manejar/traduzir algo sobre seus próprios processos de significação.
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A respeito desse aspecto, os processos de sofrimento no âmbito da escolarização tem sido frequentemente tomado por uma via de psiquiatrização em que o lugar do falar e da escuta da sintomatologia é substituído pelo avanço de uma medicalização cada vez mais difusa de crianças e adolescentes (Caponi; Daré, 2020).
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Faço menção aqui ao conceito durkheimiano de correntes suicidógenas (Durkheim, 2001) em que um conjunto de sentimentos produzidos coletivamente, em termos de difusão e transmissão, acham-se inseridos nas ondas (taxas) de suicídio analisados por Durkheim, porém, diferentemente de sua pressuposição inicial, pode-se considerar as correntes ansiogênicas como sentimentos de agenciamento aos significantes culturais que apresentam a ansiedade como parte própria do laço social contemporâneo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
23 Ago 2024 -
Data do Fascículo
May-Aug 2024
Histórico
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Recebido
06 Nov 2023 -
Aceito
31 Maio 2024