Resumos
Nosso objetivo é explorar o modo pelo qual o "jeito" supostamente brasileiro de organizar as categorias ou identidades sexuais (especialmente em relação à homossexualidade masculina) vem sendo tematizado na antropologia desde finais dos anos 1970, transformando-se às vezes num eixo para a construção/manutenção de uma identidade nacional caracterizada como exótica, retardatária e "não-ocidental". Também traçamos paralelos entre dois momentos da reflexão sobre as relações entre sexualidade, cultura e política, procedendo a uma breve revisão de algumas contribuições teóricas e empíricas anteriores que antecipam problemas e conceituações centrais dos atuais estudos de sexualidade, relacionados à instabilidade/fluidez das identidades sexuais e à imbricação da sexualidade em relações de poder e hierarquias sociais dinâmicas e contextuais.
Homossexualidade; Antropologia Brasileira; Identidades Sexuais; Identidade Nacional
Our aim is to inquire into the ways in which a presumed Brazilian "managing" of sexual categories or identities (mainly related to male homosexuality) has been conceived in anthropology since the end of the 1970, sometimes becoming an axis for building and maintaining a national identity characterized as exotic, backward and not pertaining to "the West". We also parallel two moments in the reflection about the links between sexuality, culture and politics, briefly reviewing some of early theoretical and empirical contributions that prefigure central concerns and conceptualizations in present sexuality studies which are related to instability and fluidity of sexual identities, as well as to the entanglement of sexuality with dynamic and contextual power relationships and social hierarchies.
Homosexuality; Brazilian Anthropology; Sexual Identities; National Identity
DOSSIÊ: SEXUALIDADES DISPARATADAS
Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira
Sexuality, culture and politics: the journey of male homosexual identity in Brazilian anthropology
Sérgio CarraraI; Júlio Assis SimõesII
IProfessor do Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. carrara@ims.uerj.br IIProfessor do Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo/USP e pesquisador do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp. juliosimoes@uol.com.br
RESUMO
Nosso objetivo é explorar o modo pelo qual o "jeito" supostamente brasileiro de organizar as categorias ou identidades sexuais (especialmente em relação à homossexualidade masculina) vem sendo tematizado na antropologia desde finais dos anos 1970, transformando-se às vezes num eixo para a construção/manutenção de uma identidade nacional caracterizada como exótica, retardatária e "não-ocidental". Também traçamos paralelos entre dois momentos da reflexão sobre as relações entre sexualidade, cultura e política, procedendo a uma breve revisão de algumas contribuições teóricas e empíricas anteriores que antecipam problemas e conceituações centrais dos atuais estudos de sexualidade, relacionados à instabilidade/fluidez das identidades sexuais e à imbricação da sexualidade em relações de poder e hierarquias sociais dinâmicas e contextuais.
Palavras-chave: Homossexualidade, Antropologia Brasileira, Identidades Sexuais, Identidade Nacional.
ABSTRACT
Our aim is to inquire into the ways in which a presumed Brazilian "managing" of sexual categories or identities (mainly related to male homosexuality) has been conceived in anthropology since the end of the 1970, sometimes becoming an axis for building and maintaining a national identity characterized as exotic, backward and not pertaining to "the West". We also parallel two moments in the reflection about the links between sexuality, culture and politics, briefly reviewing some of early theoretical and empirical contributions that prefigure central concerns and conceptualizations in present sexuality studies which are related to instability and fluidity of sexual identities, as well as to the entanglement of sexuality with dynamic and contextual power relationships and social hierarchies.
Key Words: Homosexuality, Brazilian Anthropology,Sexual Identities, National Identity
Ao Professor Peter H. Fry
Em certo ponto de sua etnografia sobre o mundo das travestis em Salvador, o antropólogo Don Kulick analisa a relação que as informantes mantinham com seus namorados ou "maridos". Sua principal informante lhe dizia que, na verdade, o fato de as travestis "sustentarem" seus namorados com dinheiro e presentes marcava o poder que elas exerciam sobre eles e não o contrário. Diferente do que poderia parecer a um observador desavisado, não eram as travestis as exploradas nessa relação. Ou, como escreve Kulick:
Um estrangeiro, vindo de uma cultura em que as relações sexuais se baseiam supostamente em sentimentos recíprocos de amor e em esforços mútuos para a geração de renda e para a manutenção da casa, poderia ver facilmente no relato e na prática das travestis [que dizem manter seus companheiros por vontade própria] fantasias de poder que elas colocariam em ação para mascarar a dura realidade de estarem sendo exploradas por gigolôs interesseiros e manipuladores (Kulick, 1998:112, grifo nosso).
Embora as relações que as travestis mantêm com seus namorados e os significados atribuídos a tais relações sejam interessantes para a discussão sobre o caráter da dominação em relações estruturalmente assimétricas, o que mais chama a atenção nesse trecho é a comparação explícita da "cultura" do observador estrangeiro e o "estrangeiro" aqui é sem dúvida o próprio etnógrafo e a do observado. Ao falar da reciprocidade e igualitarismo da sua "cultura", Kulick estaria referindo-se um tanto frouxamente a determinados valores das classes médias urbanas européias (nesse caso, suecas) ou a uma cultura ocidental, individualista e moderna, da qual as travestis estariam excluídas? É difícil saber ao certo. Mas como, quando se trata do universo das relações homossexuais ou homoeróticas, o Brasil em particular e a América Latina em geral têm sido sistematicamente descritos nesse tipo de literatura como não pertencentes ao mundo ocidental, a segunda hipótese nos parece a mais provável.
Se a brasilidade vem sendo construída há mais de um século com referência privilegiada à sexualidade1, não deve causar espanto que as vicissitudes do processo de construção e reconstrução de uma identidade nacional se espelhem também nos estudos sobre a homossexualidade. Não pretendemos aqui proceder a uma análise exaustiva do conjunto de etnografias sobre homossexualidade masculina ou sobre o universo das travestis no país. Nosso objetivo é explorar o modo muito particular pelo qual o "jeito" supostamente brasileiro de organizar as categorias ou identidades sócio-sexuais vem sendo tematizado desde finais dos anos 1970, transformando-se, em certos casos, em eixo para a construção de uma identidade nacional que, caracterizada como não-ocidental, aparece freqüentemente marcada pelo exotismo e/ou pelo atraso. E antes de prosseguir ressaltamos que, mesmo reconhecendo os efeitos "orientalizantes" dessa operação, não se trata aqui apenas de reclamar para o Brasil o estatuto de "ocidental", mas sim de apontar os problemas que a negação de tal estatuto acarreta para a compreensão da sociedade brasileira e também daquelas sociedades às quais se costuma outorgá-lo incondicionalmente.
Os inúmeros trabalhos sobre gênero e homossexualidade realizados no Brasil nas últimas décadas são bastante díspares e não iremos aqui abordá-los em conjunto. Em relação a tal produção, destacaremos os trabalhos do antropólogo Peter Fry, elaborados em grande parte ao longo da década de 1970 e publicados no começo da década seguinte. Analisaremos muito particularmente o artigo "Da hierarquia à igualdade: A construção histórica da homossexualidade no Brasil"2, texto crucial para a configuração dessa área de estudos e referência quase obrigatória para todos os que nela se aventuram. Interessa-nos, sobretudo, explorar o modo como essa produção foi incorporada por alguns trabalhos subseqüentes.3
Acompanhar esse diálogo nos levará ao esforço complementar de situar dois momentos distintos da reflexão sobre as relações entre sexualidade, cultura e política. Em especial, procuraremos reavaliar retrospectivamente o alcance de um conjunto de autores e estudos importantes para a elaboração da reflexão de Fry. Nela, é possível rastrear as bases de alguns dos problemas e conceituações centrais dos atuais estudos sobre sexualidade que, influenciados pelas vertentes pós-estruturalistas e pelos estudos queer, enfatizam a instabilidade/fluidez das identidades sexuais e a imbricação da sexualidade em relações de poder e hierarquias sociais dinâmicas e contextuais.
Homossexualidade entre a tradição e a modernidade
Em seu artigo sobre a construção histórica da homossexualidade no Brasil, Fry descreve três sistemas taxonômicos que estariam diferencialmente disseminados no país segundo as distintas classes sociais. No primeiro deles, a hierarquia de gênero, articulada a partir da oposição masculinidade/atividade sexual vs. feminilidade/passividade sexual, englobaria de forma sistemática todas as identidades sexuais. A categoria "homem", nesse caso, abarcaria todos os indivíduos do sexo masculino que supostamente mantivessem posição "ativa" em relações sexuais com mulheres ou homens, indiferentemente. Homens sexualmente "passivos", tratados como "bichas", "viados" etc., seriam percebidos como uma espécie de híbridos, nos quais atributos anatômicos masculinos se misturariam a características de gênero femininas (as famosas almas femininas em corpos masculinos).4 O segundo modelo teria sido formulado, sobretudo, por médicos e psiquiatras e, nele, orientação sexual e gênero se desarticulam progressivamente.5 Nos seus termos, os homens que mantivessem relações sexuais com outros homens seriam considerados "homossexuais", não importando mais a posição "ativa" ou "passiva" que assumissem no coito. Aqui, uma certa hierarquia se manteria, mas com base na oposição normalidade/anormalidade-doença, sendo a homossexualidade um desvio doentio ou anômalo em relação à heterossexualidade, instituída em norma. Por fim, historicamente derivado do segundo modelo, o terceiro representaria uma espécie de reação a ele. Mantendo a disjunção entre orientação sexual e gênero e apoiando-se no dualismo hetero/homossexualidade, apenas alteraria o valor dos termos, contestando o estigma de anormalidade ou doença atribuído à homossexualidade. Assim, teríamos um modelo hierárquico (o primeiro) e um modelo igualitário (o último) de construção das identidades e categorias sócio-sexuais, mediados pelo modelo médico-psicológico.
A gênese do modelo igualitário é, assim, localizada no pensamento médico da passagem do século, presente tanto na Europa quanto no Brasil. Essa formulação estaria na base dos movimentos gays surgidos na Europa e nos EUA nos anos 1960 que, invertendo o valor atribuído à homossexualidade, fariam, segundo Fry, com que tal taxonomia adquirisse uma "legitimidade avassaladora". Como escreve ele, "De vez, o modelo médico é consagrado pela sua própria criação, a subcultura homossexual" (Fry, 1982:104).
Depois de descrever tal processo de um ponto de vista geral, Fry continua: "E assim se deu no Brasil também" (Id. ib., grifo nosso). A conjunção aditiva "e" é aqui fundamental porque, sem descartar diferenças sociais e culturais, Fry é explícito em sua recusa em ver a difusão de uma identidade homossexual ou gay apenas como mais um exemplo de "dependência cultural":
Quero crer que uma interpretação satisfatória da história que esbocei terá que passar por aquilo que é comum a toda sociedade moderna e capitalista e pelo que é específico de cada uma (Id. ib.:109).
Com suas singularidades, o Brasil faria assim fundamentalmente parte de um processo mais amplo pelo qual passavam diferentes países no chamado mundo ocidental. A emergência do modelo igualitário estaria, segundo o autor, relacionada "com toda uma transformação social das classes médias e altas das grandes metrópoles do país, se não com a própria constituição dessas classes".6 Assim, para Fry, tal modelo não estaria apenas mais disseminado nas classes superiores da sociedade brasileira, mas seria um elemento importante na própria construção cultural da identidade de tais classes.
Fry é cuidadoso em sua proposição de articular sistemas de representação de identidades sexuais a determinadas classes e regiões. Ele observa que as classificações conforme o modelo hierárquico, embora "hegemônicas" nas áreas e populações mencionadas, de certa maneira aparecem "em toda sociedade brasileira, coexistindo e às vezes competindo com outros sistemas" (Id. ib.:91). Mais do que o reconhecimento de várias compreensões da sexualidade masculina, que variariam conforme regiões, classes sociais e situações históricas, o que Fry divisa é a imbricação de sistemas de conhecimento da sexualidade com cosmologias religiosas e ideologias sobre raça, idade e outros marcadores sociais; especialmente a força da linguagem do sexo para expressar concepções de hierarquia e igualdade que remetiam a um contexto mais amplo de disputas políticas.
Embora Fry não o diga claramente, é possível afirmar que o modelo hierárquico não aponta para qualquer traço singular e, menos ainda, não-ocidental da sociedade brasileira. Ao contrário, é ele que nos ancora firmemente nessa mesma tradição. Esse modo de organização de práticas e identidades sexuais estava presente nos países europeus desde a Antiguidade7, e historiadores puderam identificá-lo até bem recentemente na América do Norte e Europa.8 Como diz Dennis Altman, para quem, aliás, o Brasil é definitivamente não-ocidental:
Nos cem anos que precederam o nascimento do movimento gay contemporâneo, a compreensão dominante da homossexualidade era caracterizada pela confusão entre sexualidade e gênero. Em outras palavras, a visão "tradicional" era a de que o homossexual "de verdade" é o homem que se comporta como uma mulher. Algo dessa confusão permanece nas percepções populares (Altman, 1996:82, grifos nossos).
Mesmo sem conseguir apreender a lógica subjacente ao modelo hierárquico, percebida como "confusão", Altman atesta sua presença nos EUA até pelo menos os anos 1950 e, depois disso, sua permanência entre as classes populares. Nesse sentido, identifica, nos EUA, um processo muito semelhante ao que, no mesmo momento, Fry identificava no Brasil. Antes, porém, de seguir adiante, é importante explorar algumas das características daquele "momento", do contexto social, político e intelectual em que o texto de Fry foi produzido.
Uma grande inquietação...
No Brasil, a virada dos anos 1970 para os anos 1980 não se caracterizou somente pelas discussões que opunham os que consideravam que a questão das "minorias" (negros, índios, mulheres, homossexuais) deveria estar subordinada (ao menos em uma primeira etapa) à questão mais ampla da democratização do país e da revolução social. Como registrou claramente Edward MacRae (1990), em seu trabalho sobre o grupo Somos/SP, o primeiro movimento homossexual brasileiro esteve também profundamente dilacerado quanto a se constituir ou não em torno de uma identidade homossexual. Havia naquele momento uma grande inquietação quanto à possibilidade de essencialização (ou "reificação", para usar uma expressão mais comum à época) da oposição hetero/homossexualidade e da conseqüente instituição de novas formas de rotulação, estigmatização e marginalização. Conforme aponta MacRae, o dilema entre "ser" ou "estar" homossexual foi uma das causas para a fragmentação do grupo Somos/SP (Id. ib.:59). Se inicialmente o grupo "partia do princípio de que a humanidade estaria dividida em heterossexuais e homossexuais (e talvez alguns bissexuais)" (Id. ib.:40), acabaria por incorporar posições mais "relativistas", como as que eram mantidas pelo próprio pesquisador e por alguns militantes. De fato, o trabalho de MacRae é inteiramente transpassado pelo dilaceramento de um pesquisador que sabe que está trabalhando com pressupostos analíticos que podiam enfraquecer os princípios sobre os quais o movimento se organizava naquele momento. A certa altura de seu livro ele corajosamente assume:
Confesso ter sentido perplexidade e desconforto várias vezes em que colegas do mundo acadêmico me incentivaram a discutir o conceito de papel social, pois sentia estar simplesmente emprestando mais um pouco de prestígio (conseguido por mim através da ajuda e confiança dos integrantes do Somos) para uma idéia que só tendia a enfraquecer a sua solidariedade grupal (Id. ib.:41).
O próprio trabalho de Fry não pode deixar de ser lido senão nesse contexto de valorização da ambigüidade, de crítica ao essencialismo e de profunda suspeita quanto ao impacto social dos sistemas dualistas de classificação (ou daquilo que atualmente é chamado de "binarismo"). Como se explicita claramente no final do livro de divulgação O que é homossexualidade, escrito com MacRae em 1983:
Tem muita gente que preferiria não ter que se submeter a estas novas categorias sociais que tendem a empurrá-los para "guetos" estanques. Prefeririam que estas categorias sociais fossem elas mesmas combatidas e acabam entrando em choque não só com a ciência médica mas também com alguns "homossexuais conscientes" que, por razões várias, têm interesse na manutenção das distinções. Afinal, negar a inevitabilidade da fronteira que separa os "homossexuais" dos "heterossexuais" colocaria em questão a própria noção de uma identidade homossexual que, para muitas pessoas, representa um modo de dar ordem às suas vidas, cheio de possibilidades de gratificação e muitas vezes "assumido" a duras penas (Fry e MacRae, 1983:120).
A preocupação de autores como Fry, MacRae e, na sua esteira, de Guimarães, Perlongher, Costa e Heilborn9, entre outros, não parecia ser apenas com os aprisionamentos identitários, mas com o modo muito particular pelo qual as diferenças de classe podiam agora ser formuladas em termos da adesão mais ou menos completa a um modelo hierárquico ou a um modelo igualitário de compreensão da homossexualidade. Ou seja, o que estava em jogo era a relação "hierárquica" que se estabelecia entre os próprios modelos, convertidos em signos de distinção de classe. Tal "hierarquia" mantinha não apenas intocado o estigma e a reprovação social de que já eram objeto privilegiado homens "afeminados" e travestis, mas o aprofundava, marcando todos eles com a pecha de "atrasados", politicamente incorretos, retrógrados etc.
Ufanismo nacionalista à parte, parece-nos surpreendente como a muito mais recente orientação de se tratar articuladamente diferentes marcadores sociais (de gênero, orientação sexual, raça, classe) já era seguida de modo tão sofisticado no Brasil desde o final dos anos 1970. É também muito interessante notar como inquietações contemporâneas em relação a processos de naturalização das diferenças e a fechamentos identitários, associadas no debate atual ao influente pensamento de autoras pós-estruturalistas, como Judith Butler, já estavam presentes no campo intelectual brasileiro desde o final dos anos 1970. Do mesmo modo, é claramente enunciada e empreendida nesse momento a perspectiva de que o estudo da sexualidade, e especificamente da produção social do dualismo hetero/ homossexualidade (o que hoje se poderia considerar como outro "grande divisor"), mais do que um meio de revelar experiências silenciadas, oprimidas e marginalizadas, era uma chave para o entendimento das convenções culturais e das estruturas de poder mais amplas ponto esse que hoje se costuma conceder aos revolucionários trabalhos de Eve Sedgwick, entrecruzando teoria literária e sociologia na promoção de uma virada teórica e epistemológica de grande repercussão em várias disciplinas nas humanidades e nas ciências sociais.10
Estas observações não pretendem, é claro, ofuscar o brilho do pensamento destas e de outras autoras e autores recentes para o entendimento renovado de questões sociais, políticas e culturais candentes associadas à sexualidade, assim como para a crítica dos nossos próprios regimes de conhecimento. Acreditamos, porém, que uma genealogia menos comprometida a pagar tributos à produção intelectual dos centros metropolitanos deveria seguramente reconhecer a importância do pensamento socioantropológico brasileiro em torno da homossexualidade, seu caráter original e precursor do pensamento crítico que mais tarde viria a ser batizado de teoria queer.11 Nosso ponto aqui não é disputar precedências, mas realçar as afinidades entre certas preocupações analíticas e políticas daquele contexto e do momento atual. Isso requer uma breve consideração do conjunto de referências com as quais dialogavam os antropólogos brasileiros ou aqui aclimatados interessados pela sexualidade e homossexualidade, tendo em vista as contribuições teóricas que marcam atualmente os estudos de sexualidade.
Inventariando antigos diálogos
No âmbito acadêmico, a discussão sobre homossexualidade nos anos 1970 e 1980 era acompanhada por uma crítica ao próprio conceito de identidade através do diálogo dos antropólogos brasileiros com uma variedade de referências teóricas. Ao leitor contemporâneo, provavelmente saltam à vista as afinidades das idéias e preocupações aqui apresentadas com o pensamento de Michel Foucault. Tal pensamento foi certamente de grande impacto na formatação de uma visão desnaturalizante da sexualidade, ao sublinhar o papel dos saberes médicos na conformação das modernas identidades sexuais e, sobretudo, por oferecer um poderoso enquadramento conceitual para caracterizar o processo mais amplo de constituição e disseminação de uma modalidade capilar e disciplinar de operação do poder e de exercício do controle social, produtora de novos personagens sociais e novos desafios políticos. O impacto de Foucault se torna mais evidente e intenso a partir da segunda metade dos anos 1970, quando o autor visita o Brasil e obras como Vigiar e punir e História da sexualidade: A vontade de saber12 são lidas, traduzidas e passam a freqüentar o debate universitário, coincidindo com a intensificação dos movimentos de oposição à ditadura militar e com a politização crescente das questões ligadas a raça, gênero e sexualidade. Referindo-se ao contexto político e acadêmico brasileiro da época, Fry e MacRae escreveram em 1983:
Até mais ou menos 1975, os partidos políticos de oposição consideraram que os movimentos feminista, negro e homossexual eram irrelevantes à luta geral, ou seja, a questão das desigualdades entre classes sociais. O que marca os anos mais recentes destas áreas ditas minoritárias é o fato de elas terem chegado a ser reconhecidas também como "políticas", a partir de uma visão da sociedade que enxerga o poder não apenas no Estado, mas também na rua, no escritório, no hospital, dentro de casa e na cama [...]. É justamente nesta época que Michel Foucault compete com os velhos heróis para o primeiro lugar das bibliografias dos cursos de ciências humanas nas universidades (Fry e MacRae, 1983:117).13
Se não pode deixar de ser reconhecido, Foucault precisa, porém, ser situado dentre as várias referências que estimulavam a pesquisa e a reflexão sobre sexualidade entre os antropólogos no Brasil nessa época.14 Foucault não faz parte da bibliografia do primeiro artigo elaborado por Fry sobre homossexualidade e cultos afro-brasileiros, que apresenta a primeira discussão do sistema de classificação sexual que configura o modelo hierárquico e formula uma interpretação para a significância das categorias sexuais nas definições do que é socialmente considerado "central" ou "normal" e do que é considerado "marginal" ou "desviante". A discussão de Fry aqui evocava em parte as formulações do interacionismo simbólico, mais especificamente na versão da "teoria da rotulação" de Howard Becker (1973) e de suas aplicações etnográficas no estudo da homossexualidade masculina, notadamente o pioneiro e controvertido trabalho de Laud Humphreys, Tearoom trade. Publicado em 1970, esse estudo tratava da organização social do sexo impessoal entre homens em espaços públicos, descrevendo meticulosamente formas de classificação e interação dos praticantes de encontros sexuais nos banheiros públicos (Humphreys, 1970).15 Surpreendente produto de seu tempo, a etnografia de Humphreys dissolvia pressupostos convencionais acerca do vínculo estável entre práticas e identidades, ao mostrar a cena do mictório público não como um ponto de encontro de "homossexuais" por excelência, mas como um "caleidoscópio de fluidez sexual"16, e assim antecipando muitas das ênfases atuais nas performances e na desestabilização de categorias sexuais.17
O próprio trabalho de Humphreys era desaguadouro de uma série de tendências na sociologia norte-americana dos anos 1960 que incluíam, além da reconceituação do "desvio" feita por Becker, a abordagem dramatúrgica de Goffman, a etnometodologia de Garfinkel e a abordagem pragmática, desnaturalizante e antipsiquiátrica da sexualidade desenvolvida por John Gagnon e William Simon, que concebiam o "sexual" como realizações sociais ordinárias, fruto de um complexo de negociações e definições sociais que se davam em diferentes nichos da vida cotidiana. Os trabalhos desses autores ficaram marcados pelo esforço de compreender os modos processuais e contingentes pelos quais as pessoas assimilavam estilos de vida e os punham em prática, assim produzindo e modificando a própria percepção e apresentação de si. Esse estilo de abordagem se expressa no uso da metáfora da "carreira", que desempenha papel importante na reflexão de vários deles.18
Embora esses autores não compartilhassem inteiramente as mesmas formações e filiações teóricas, tinham em comum a visão de que qualquer comportamento humano, inclusive sexual, era sempre submetido à avaliação moral, sendo portanto uma realização social. Isso se afastava tanto da abordagem psicanalítica como da visão de Alfred Kinsey, que, mesmo percebendo a gênese social de categorias como homo e heterossexualidade, divisava o cerne da sexualidade em comportamentos corporais individuais objetivamente mensuráveis, ligados à excitação e ao orgasmo. Aqueles sociólogos, em contraste, não apenas distinguiam práticas e identidades, mas procuravam compreender os modos pelos quais a sexualidade era regulada e reinventada na dinâmica da interação social por meio de operação de categorias estruturantes o que, no jargão mais afinado com a sociologia clássica francesa, poderíamos chamar de "representações".
Em seu artigo sobre a construção histórica da homossexualidade masculina no Brasil, Fry propõe uma abordagem bem semelhante, porém com mais ênfase nas "representações" do que nas sutilezas do comportamento cotidiano. Para tanto, ele se voltava para a interrogação pioneiramente formulada por Mary McIntosh (1968) sobre as condições sociais que tornaram possível pensar a "homossexualidade" como uma condição humana singular e o "homossexual" como uma categoria capaz de expressar um atributo identitário fundamental e uma conduta adequada correspondente. McIntosh reuniu evidências sociológicas e históricas disponíveis em 1968 para sugerir que, embora desejos e comportamentos homossexuais pudessem existir em diferentes épocas e sociedades, somente em algumas se produzia uma identidade homossexual específica, conforme preocupações com as definições e os limites do que é aceitável em termos de conduta sexual. É o que teria ocorrido na Inglaterra, desde o final do século XVII. O passo seguinte de McIntosh foi reexaminar os dados de Kinsey relativos à escala de gradação entre comportamentos homossexuais e heterossexuais, para sugerir que a maior concentração de homens no grau de comportamento homossexual exclusivo se devia ao efeito coercitivo da existência histórica de um papel homossexual mais desenvolvido para os homens nas sociedades anglo-americanas. Como comenta Fry:
McIntosh argumenta que a existência de um rótulo fortemente desenvolvido constrange o comportamento no sentido de fazê-lo conformar-se às expectativas sociais e sexuais geradas por esse rótulo. Assim, de certa forma, as taxinomias são profecias que se cumprem. Postula-se, por exemplo, a existência de um tipo natural, o homossexual com sua essência e especificidade, e ele logo passa a existir (Fry, 1982:89).
A reflexão de Fry passa daí a incorporar o trabalho de historiadores sociais britânicos como Jeffrey Weeks e John Marshall que, na esteira dos insights de McIntosh, ressaltam o papel dos discursos científicos na produção da "condição homossexual", reunindo evidências da preocupação social com o controle da libido masculina, que as teorias médicas da época acreditavam estar tanto na raiz da homossexualidade quanto nas relações sexuais fora do casamento em geral, incluindo a prostituição, representando uma ameaça à integridade da família e à saúde física e moral da própria nação.19 Esses autores foram uma inspiração importante para a compreensão das especificidades do processo semelhante em curso no Brasil do início da República, envolvendo as mesmas conexões entre homossexualidade, loucura e crime. Eles ofereciam mais evidências de que sistemas classificatórios da sexualidade masculina equivalentes ao "modelo hierárquico", segundo idéias rígidas de "masculinidade" e "feminilidade" associadas à dicotomia ativo/passivo, vigoravam no mundo ocidental industrializado ainda no início do século XX.20
É preciso reservar um lugar especial neste breve inventário de antigos diálogos para a antropóloga Mary Douglas, notadamente sua preocupação com o papel das categorias relacionadas a ambigüidades e anomalias na organização da experiência social, pelo desafio que propõem ao controle e à coerência dos princípios classificatórios.21 Na reflexão de Douglas, as sociedades expressam uma estrutura formal com idéias e áreas bem definidas de separação entre ordem e desordem, bem como de punição das transgressões. As ambigüidades e anomalias situadas nos interstícios e fronteiras dos sistemas classificatórios trazem a desordem que destrói os padrões, mas também fornecem a matéria-prima da padronização. A própria desordem tem, portanto, um estatuto ambíguo, na medida em que representa não somente a ameaça de destruição, mas também o potencial criativo: simbolizando poder e perigo, não pode ser simplesmente expurgada sem conduzir à derrocada todo senso de ordem social e simbólica (Douglas, 1976:117). Essas idéias haviam sido exploradas por Fry para interpretar a correlação entre homossexualidade e cultos afro-brasileiros, ambos sendo classificados como "marginais", perigosos e, portanto, dotados de poderes especiais. Na discussão sobre a construção histórica da homossexualidade masculina, elas reaparecem para corroborar a concepção segundo a qual os sistemas de classificação dualistas seja a oposição hetero/homossexual, ou homem/bicha são meios para uma "supersistematização expressiva" voltada para controlar uma experiência "inerentemente desordenada" (Id. ib.:15). e, assim, reduzir a ambigüidade e a anomalia, "fontes de poder e poesia que pela sua própria natureza habitam os espaços dos limites do 'normal' e do cotidiano" (Fry, 1982:109).22
É interessante notar como essas idéias de Douglas reaparecem nas teorias de Judith Butler sobre corporalidade e performatividade de gênero, de grande repercussão nos estudos atuais de sexualidade dentro de uma perspectiva queer. Para Butler, as categorias de gênero operam como tabus sociais que exageram a diferença sexual, visando naturalizá-la e assegurar a heterossexualidade por meio da instituição ritual e reiterada das fronteiras do corpo (Butler, 2003, 1993). A reflexão de Butler num primeiro momento se apóia fortemente nas observações de Douglas, de que as fronteiras do corpo (orifícios e superfícies), simbolizando os limites do social, são regiões perigosas de permeabilidade que requerem policiamento e regulação constantes, daí decorrendo observações sobre a homossexualidade (sobretudo masculina) como lugar de perigo e poluição. Butler reconhece em Douglas a sugestão de que a própria noção da integridade do corpo como algo distinto e naturalizado23 é produto dessas regulações. "Além disso", acrescenta Butler:
os ritos de passagem que governam os vários orifícios corporais pressupõem uma construção heterossexual da troca, das posições e das possibilidades eróticas marcadas pelo gênero. A desregulação dessas trocas rompe, conseqüentemente, as próprias fronteiras que determinam o que deve ser um corpo. Aliás, a investigação crítica que levanta as práticas reguladoras no âmbito das quais os contornos corporais são construídos constitui precisamente a genealogia do "corpo" em sua singularidade, capaz de radicalizar a teoria de Foucault (Butler, 2003:190).
Não é possível irmos mais longe nesta digressão.24 Acreditamos que o exposto é suficiente para evidenciar a riqueza e a fertilidade dos diálogos e discussões travadas no ambiente acadêmico do Brasil nas décadas de 1970 e 1980 então engajado no estudo da homossexualidade e nos esforços de desvendar a articulação da sexualidade a outras hierarquias sociais. A avaliação retrospectiva não apenas mostra o paralelo dessas preocupações com parte importante da produção intelectual nos centros metropolitanos inclusive no prenúncio de vertentes contemporâneas do pensamento feminista e dos chamados estudos queer como também sugere até algumas vantagens para a produção "nativa". Com efeito, se mesmo os mais compreensivos resenhadores das tradições socioantropológicas anglo-americanas de estudo da sexualidade nos anos 1960 e 1970 criticam nelas a pouca atenção conferida às estruturas institucionais e a ausência de uma análise abrangente sobre poder e desigualdade25, não se pode dizer que tais temas e questões estivessem fora do horizonte da reflexão que vimos focalizando.
Identidade homossexual, identidade nacional
A reflexão desenvolvida nos anos 1970 e divulgada no início dos anos 1980 será revisitada por muitos antropólogos e antropólogas nos anos 1990. Nesse contexto, inaugurado pelo advento da AIDS, multiplicam-se os estudos sobre a homossexualidade masculina no Brasil, conduzidos tanto por brasileiros quanto por estrangeiros. Nessa produção, destaca-se a reflexão de Richard Parker que, em seu livro Abaixo do Equador, busca abordar sistematicamente a interação da "subcultura" homossexual que se consolida pós-AIDS no Brasil com a trajetória de comunidades semelhantes nos países "centrais".26
Em muitos aspectos Parker acompanha a argumentação de Fry, contribuindo de modo significativo para a manutenção, ao longo dos anos 1990, de uma perspectiva anti-essencialista, atenta às possíveis dissonâncias entre práticas sexuais, identidades e categorias classificatórias. Parker faz, entretanto, um deslocamento significativo em relação à posição ocupada pelo modelo hierárquico. O que era antes atribuído por Fry às classes populares passa a ser a tradição, ou seja, signo distintivo e singular da cultura e da sociedade brasileiras em relação a um mundo que Parker designa, sem maiores qualificações, como "anglo-europeu". O modelo baseado na hierarquia de gênero e na oposição atividade/passividade sexual estaria, para o autor, enraizado no sistema cultural e social formado "em torno de um modo concreto de produção, a economia rural de plantation", que teria dominado a vida brasileira por quase quatro séculos, desaparecendo apenas parcialmente em um período mais recente da história do país (Parker, 2003:54).27 Embora mais antiga, essa gramática cultural continuaria a influenciar fortemente a experiência sexual no Brasil, fazendo recair o estigma geralmente sobre os sexualmente passivos e socialmente femininos.
Para Parker, a noção de homossexualidade como uma categoria sexual distinta seria relativamente nova e as idéias relacionadas à identidade gay teriam emergido nas últimas décadas do século XX, no confronto da tradição brasileira com um "conjunto mais amplo de símbolos culturais e significados sexuais em um sistema mundial cada vez mais globalizado" (Id. ib.:53). Como se vê, processos que antes apareciam como desenvolvimentos paralelos e nos quais se poderiam encontrar algumas características comuns e outras singulares, surgem agora sob o modelo da "influência", da "importação" e "exportação" cultural. Isso fica explícito quando o autor diz ser sua intenção contribuir para preencher uma lacuna no campo dos estudos sobre a homossexualidade, pois, embora a invenção das categorias relacionadas à nova ênfase na orientação sexual no discurso médico e científico ocidental já tenha sido descrita em detalhe por inúmeros autores, "a exportação e importação dessas categorias fora do mundo anglo-europeu quase não receberam atenção nenhuma". (Id. ib.:66, grifos nossos)
Parker também relaciona o aparecimento de uma identidade sexual baseada na orientação sexual à urbanização, à emergência das classes médias e sua profissionalização. Mas não haveria aqui qualquer conexão interna entre a constituição das classes médias ou da burguesia e o sistema homo/ heterossexualidade articulado inicialmente pelo pensamento médico.28 Para Parker, na passagem do século XIX para o século XX, os emergentes profissionais especializados brasileiros (acadêmicos, advogados e médicos) estariam sendo educados nos grandes centros europeus e, por meio deles, teria havido "a importação e incorporação crescentes na realidade brasileira" de todo um novo conjunto de disciplinas científicas, racionalidades e novos modos de conceituação da experiência sexual:
Em especial, um novo modelo médico-científico de classificação sexual introduzido na cultura brasileira, pelo menos inicialmente, por meio dos textos de médicos, psiquiatras e psicanalistas, e traduzidos gradualmente para o discurso mais amplo da cultura popular parece ter marcado uma mudança fundamental na atenção cultural, passando da distinção entre os papéis ativo e passivo, como suporte da hierarquia de gênero, para a importância, de acordo com as linhas anglo-européias, do desejo sexual e, em particular, da escolha do objeto sexual como básica para a própria definição do sujeito sexual (Id. ib.:65-66, grifos nossos).
No Brasil, até os anos 1960 e 1970, tais categorias teriam ficado restritas a uma elite altamente educada, em contato com a cultura "anglo-européia" e influenciada por ela. Depois disso, a confluência de certos processos econômicos, como a emergência de um pink market29 no país, e sócio-políticos, como a atuação dos grupos anti-AIDS30 e, embora menos crucial, também de grupos compondo um "movimento gay" "novamente", afirma Parker, "baseado em aspectos importantes nos modelos anglo-europeus" (Id. ib.:71) levaria, a partir dos anos 1990, à constituição de uma exuberante comunidade gay nacional.
Segundo Parker, além de um ritmo mais lento de emergência (explicado pela teoria do desenvolvimento dependente que teria "atrasado" a estruturação do pink market nacional), o que marca a comunidade gay brasileira seria, sobretudo, a permanência de distinções hierárquicas "tradicionais" (ativo/passivo), explicada pelo fato de o modelo econômico vigente manter e aprofundar as desigualdades sociais, reforçando, portanto, segundo o autor, o próprio caráter hierárquico da sociedade brasileira. Tal permanência do "velho", articulada às novas categorias "importadas", determinaria uma profusão de categorias e de tipos sexuais (Id. ib.:82) que, com a chamada globalização, estariam agora sendo "exportados" (sobretudo nas figuras de michês e travestis) para os países europeus e os EUA. É principalmente aqui, na glamorosa figura das travestis, que o autor localiza o impacto das elaborações culturais brasileiras sobre a cena gay internacional.31
Conclusões
O trabalho de Richard Parker é sem dúvida instigante, mas, do nosso ponto de vista, revela ainda a manutenção de um esquema analítico problemático. Em primeiro lugar, a transformação do popular em nacional é tão temerária quanto o enraizamento da "tradição brasileira" em um modo de produção particular, a plantation. Como a oposição ativo/passivo e as categorias sexuais que organizava estavam presentes em lugares em que não havia plantation, como os países europeus, a maior parte dos EUA e vários outros da própria América Latina, a afirmação se reduz a uma espécie de fantasia economicista.
Em segundo lugar, o recurso a uma tradição peculiar, em cujos termos as novidades importadas são incorporadas e transformadas, faz com que a cultura brasileira e latino-americana apareçam como essencialmente diferentes das culturas do Norte (ou, ao menos, parte-se de uma diferença essencial).32 A sociedade brasileira "se defronta" e "interage" com o Ocidente como se não tivesse sido parte dele desde sempre. O esforço de Parker em ultrapassar uma abordagem simplista da relação "norte"/"sul" ou "centro"/"periferia" deve ser reconhecido, mas, em seu modelo de análise, as culturas periféricas somente seriam "ativas" dentro dos limites impostos por uma "passividade" englobante ou estrutural. O movimento inicial que acontece no "centro" independe delas. Elas o incorporam, processam e, dadas certas circunstâncias especialíssimas, conseguem exportá-lo reelaborado. O movimento tem sua origem sempre em seu "exterior".
Do nosso ponto de vista, a atuação das "periferias" é bastante mais complexa. "Ativas" ou "passivas" são sempre co-produtoras do que acontece nas metrópoles, mesmo que seu papel nesse sentido quase nunca seja reconhecido. São co-produtoras não apenas por aquilo que "exportam" (e não "exportam" apenas categorias sexuais, mas também elaborações teóricas), mas pelo que através delas, ou em seu nome, é mantido no "centro". Basta imaginar como os países "centrais" seriam diferentes sem a rede de pesquisadores, financiadores, agentes governamentais e não-governamentais etc. que dentro deles se constitui e se justifica pela existência desse "Rest", que precisa ser estudado, compreendido e socorrido.
Além disso, ao não destacar a descontinuidade e o conflito no seio do movimento homossexual brasileiro, Parker acaba não explorando o impasse que, em um primeiro momento, girou em torno da identidade homossexual e a recusa em tratá-la como identidade quase-étnica.33 Obscurece-se assim a importância de intelectuais, como Fry, MacRae, Guimarães e Perlongher, e de vários ativistas que souberam evitar que a legitimidade das novas categorias se tornasse realmente avassaladora. Sua atuação não nos parece menos importante do que a dos determinantes econômicos para entender porque travestis e michês não foram completamente demonizados pelo chamado"movimento gay" nascente. Vale a pena nos determos um pouco mais neste ponto.
Em que pese o rastro de morte e violência que acompanhou seu avanço, a Aids mudou dramaticamente as normas da discussão pública sobre a sexualidade ao deixar também como legado uma ampliação sem precedentes da visibilidade e do reconhecimento da presença socialmente disseminada dos desejos e das práticas homossexuais. A mobilização de prevenção e combate à Aids no Brasil organizou-se concomitantemente sobre o pano de fundo da recusa às identidades sexuais fechadas, em que organizações como a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids ABIA (da qual Parker foi diretor-executivo) tiveram um papel fundamental na crítica à idéia de grupos de risco e na promoção da aliança entre ativistas homossexuais e hemofílicos de modo a construir a Aids como um problema de todos. Nesse processo, a experiência da primeira onda de militância homossexual no final dos 1970, que convivia com a crítica de acadêmicos e ativistas que problematizavam a questão da identidade homossexual, foi tão importante quanto o estabelecimento de parcerias e alianças com agências governamentais e organizações internacionais.
Deve-se ressaltar ainda que o movimento homossexual que emerge nos anos 1990 apresenta uma configuração polimorfa, abrangendo, além de grupos de orientação mais comunitarista, setores de partidos políticos, ONGs, associações estudantis e até grupos religiosos.34 Se, nesse contexto, as conexões intensificadas do movimento com as agências estatais e o mercado segmentado contribuem para reforçar a adesão a um sistema classificatório baseado na distinção de orientação sexual, vemos também que a multiplicação de categorias destinadas a nomear o sujeito político do movimento, manifesta na atual sigla GLBT ("gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais"), é proposta em diálogo crítico com outras, como GLS ("gays, lésbicas e simpatizantes"), do mercado segmentado, que reelaborava a ambigüidade classificatória para ampliar o potencial de inclusão; ou HSH ("homens que fazem sexo com homens"), das políticas de saúde, que, talvez equivocadamente, buscavam contornar o problema da falta de coincidência entre comportamentos e identidades sexuais.35 Importa salientar, de todo modo, que a tensão entre as aspirações inclusivas e pluralistas, de um lado, e a adesão compulsória à lista de identidades reconhecidas como alvo da ação do movimento, de outro, não tem levado somente a conflitos amargos e autodestrutivos, mas também a iniciativas bem-sucedidas como as "Paradas do Orgulho GLBT", expressões de um espaço inclusivo de atuação política por meio de uma peculiar celebração das possibilidades de convivência com a diversidade sexual.36
Finalmente, parece-nos ainda que os problemas apontados aqui em abordagens como a de Parker estão ligados à dificuldade que demonstram em acessar a dimensão propriamente cultural da construção das identidades sexuais no Brasil e sua transformação ao longo do período analisado. No final do artigo "Da hierarquia à igualdade", Fry se perguntava em tom quase melancólico se enfim estaríamos fadados a permanecer em sociedades dualistas (homem/bicha, hetero/homo etc.). Porém, o que provavelmente não estava muito claro para ele naquele momento era que a recusa do dualismo não era apenas affair universitário, encontrava ressonância na própria sociedade brasileira, pois o que talvez venha realmente marcando a singularidade brasileira seja menos a ênfase na oposição ativo/passivo ou em outros binarismos hierárquicos e mais a recusa em operar com dualismos e identidades essencializadas, incomensuráveis e intransitivas.37 E, ressalte-se, mesmo essa recusa não pode ser compreendida como parte de nossa tradição não-ocidental, mas sim como o modo particular pelo qual elaboramos tal tradição.
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Recebido para publicação em abril de 2007, aceito em maio de 2007.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Jul 2007 -
Data do Fascículo
Jun 2007
Histórico
-
Aceito
Maio 2007 -
Recebido
Abr 2007