Resumos
Em minhas pesquisas sobre o tema da memória política privilegiando os participantes da resistência armada no Brasil, foi possível detectar diferenças marcantes nas narrativas autobiográficas sobre os anos de militância política. Não obstante as dificuldades das generalizações para experiências tão extremas, três questões se mostraram decisivas. A primeira delas refere-se às diferenças de gênero; a segunda ao grau de violência sofrida a terceira e, talvez mais importante, à posição subjetiva de sujeito ativo versus a posição da vítima. Portanto, o que é possível lembrar depende muito das condições e posições subjetivas do sujeito.¹
Memória Política; Autobiografia; Diferenças de Gênero; Posição Subjetiva
In my research on the topic of political memory, particularly those participating in the armed resistance in Brazil, it was possible to detect significant differences in autobiographical narratives about the years of political activism. Despite the difficulties of generalizations about traumatic experiences, three issues proved to be decisive. The first refers to gender differences, the second to the degree of violence suffered and the third, and perhaps most important, the subjective position of the active subject versus the position of the victim. So what you can remember depends very much on the subject and subjective positions.
Memory Political Autobiography; Gender Differences; Subjective Position
ARTIGOS
Maria Lygia Quartim de Moraes
Professora titular de Sociologia e pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu, da Universidade Estadual de Campinas. maria_quartim@uol.com.br
RESUMO
Em minhas pesquisas sobre o tema da memória política privilegiando os participantes da resistência armada no Brasil, foi possível detectar diferenças marcantes nas narrativas autobiográficas sobre os anos de militância política. Não obstante as dificuldades das generalizações para experiências tão extremas, três questões se mostraram decisivas. A primeira delas refere-se às diferenças de gênero; a segunda ao grau de violência sofrida a terceira e, talvez mais importante, à posição subjetiva de sujeito ativo versus a posição da vítima. Portanto, o que é possível lembrar depende muito das condições e posições subjetivas do sujeito.1 1 Este texto apresenta resultados de pesquisas que realizo sobre o tema da memória política, em particular sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985), com o inestimável apoio do Conselho Nacional de Pesquisa - CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo - FAPESP.
Palavras-chave: Memória Política, Autobiografia, Diferenças de Gênero, Posição Subjetiva.
ABSTRACT
In my research on the topic of political memory, particularly those participating in the armed resistance in Brazil, it was possible to detect significant differences in autobiographical narratives about the years of political activism. Despite the difficulties of generalizations about traumatic experiences, three issues proved to be decisive. The first refers to gender differences, the second to the degree of violence suffered and the third, and perhaps most important, the subjective position of the active subject versus the position of the victim. So what you can remember depends very much on the subject and subjective positions.
Key Words: Memory Political Autobiography, Gender Differences, Subjective Position.
Apresentação
O passado só se reconhece no presente. Ele só existe no presente, pelas lembranças de quem os rememora. O passado está inevitavelmente ligado às pessoas, à linguagem, à sua narração, à sua compreensão por quem o recupera, seja por lembrança, seja por objetos que vêm dele (Jaffe, 2012:204)
O objetivo deste texto é apresentar alguns dos resultados de pesquisas que realizo sobre o tema da memória política, tendo como foco principal a ditadura militar brasileira (1964/85). Dada a conexão geográfica e política com a Argentina e o Uruguai, minhas pesquisas também incluíram entrevistas com ex-militantes da luta armada em ambos os países. Uma dimensão importante foi compreender a similitude entre as lembranças de fatos ocorridos nessas três realidades distintas sob ditaduras militares terroristas e, mais ainda, encontrar tantos pontos em comum com a experiência concentracionária sob o nazismo.
A questão da forma de apresentação dos depoimentos também exigiu uma escolha. Na verdade, após ter analisado um número bastante expressivo de relatos autobiográficos e ter escutado tantos depoimentos, ficou evidente que a força expressiva de um texto bem escrito constitui a melhor maneira de transmitir uma experiência traumática.
Finalmente, a comparação entre os depoimentos de ambas as experiências levou-me a privilegiar a perspectiva de gênero, dado que, via de regra, são poucos os testemunhos autobiográficos escritos por mulheres. Evidentemente existem muitos testemunhos, recolhidos pelos tribunais ou por pesquisadores, mas a autobiografia ainda é rara.
O testemunho
Em um campo de concentração, uma das razões da sobrevivência é a possibilidade do testemunho. Esta é uma das razões declaradas. Outros dirão que se tratava do desejo de viver, a qualquer preço; outros se sentiam animados pela ânsia de vingança. Primo Levi (1990) comenta que muitos dos seus amigos jamais falaram, enquanto que ele falou muito, sem parar. Giorgio Agamben (2003) considera que Primo Levi é a testemunha por excelência, inspiração de muitos outros testemunhos como o de Jorge Semprun (1994), que só conseguiu testemunhar duas décadas depois de sua libertação, pois, para o jovem que era, o relembrar era igual a morrer, a permanecer no campo de extermínio.
Essa impossibilidade constitui um dos maiores problemas do registro histórico: não são somente os torturadores que querem apagar o passado para escapar do julgamento público; também as vítimas se calam pelo extremo sofrimento do testemunhar. A tortura causa um dano irreparável e é por isso que as políticas de reparação não podem, de fato, apagar o passado, possibilitar um novo começo.
Frente aos relatos e às imagens de violência a que somos submetidos cotidianamente, não há como não se perguntar sobre os limites humanos ao sofrimento. A questão se apresentou conforme as entrevistas iam revelando não tanto respostas sobre os limites, mas, principalmente, as razões da sobrevivência. Na verdade, trata-se de diferentes dimensões da mesma experiência do encontro com o mal radical, tal como o define Jorge Semprun (1995) em Mal et Modernité. A experiência mortífera permanece como uma bomba que pode ser acionada a qualquer momento; é preciso saber desarmá-la. Para algumas pessoas, foi importante testemunhar, pois na escrita reside a possibilidade de salvação na medida em que permite a elaboração dos acontecimentos traumáticos.
Primo Levi (1990) recorda o cinismo dos oficiais nazistas nos campos de concentração quando diziam aos presos que, qualquer que fosse o resultado da guerra, o mundo nunca saberia o que tinha se passado, pois todos os traços e, principalmente, todas as testemunhas, teriam desaparecido: "Destruiremos as provas junto com vocês (...). Nós é que ditaremos a história dos Lager (campos de concentração)" (id.ib.:1). Como resultado dessa política de apagar os vestígios do extermínio, pouco restou de escritos in loco, no próprio campo de concentração.
A experiência concentracionária foi estudada e analisada sob diversos prismas e enfoques disciplinares; o anti-semitismo nazista dissecado a partir de várias perspectivas analíticas e uma profusão de obras e memórias foram escritas. Em todas elas, aparece uma das consequências mais cruéis do tratamento infringido nos campos de concentração: a negação da humanidade às vítimas, submetidas às mais degradadas condições de (não)existência.
Em obra pioneira, o psicanalista Bruno Bettelheim (1988) trata do tema dos danos psicológicos sofridos pelos prisioneiros nos campos de concentração, que ele mesmo conhecera de perto em Dachau e Buchenwald nos anos 1938-39. Uma das observações importantes que faz é de como situações extremas levam a mudanças de personalidade, dependendo da intensidade e do grau de violência sofridos. Assim, para a maior parte dos prisioneiros, o primeiro choque ocorre ao serem presos. Essa primeira experiência traumática causa grande angústia e sofrimento, mas é ainda equacionável. Já a iniciação ao campo, que se realizava ao longo dos quatro ou cinco dias de viagem, de pé, em trens de carga, amontoados, constituía uma violência tão desproporcional que os afetava definitivamente.
Muitos prisioneiros transformavam-se em mortos-vivos, fantasmas desnutridos, aparentemente vazios de identidade, reduzidos à vida nua. Bettelheim (ib.) é o primeiro a observar esse fenômeno de aniquilação subjetiva, concluindo que prisioneiros muçulmanos e crianças autistas vivem, cada qual à sua maneira, uma experiência análoga de realidade. Aquilo que para o prisioneiro era a realidade externa é para a criança autista sua realidade interna. Em outras palavras, as crianças autistas vivem imersas na sua própria realidade interna, alheias à realidade ao seu redor, enquanto que os prisioneiros muçulmanos não prestavam mais atenção às relações reais de causa e efeito e as substituíam por ideias delirantes. Outra observação importante concerne ao peso da militância política e da força ideológica dos grupos que melhor enfrentaram as agruras dos Lager. Bettelheim reconhece a importância de cada personalidade individual ao mesmo tempo em que afirma ser possível analisar as reações dos prisioneiros baseados em sua classe socioeconômica e sua sofisticação política (Bettelheim, 1988:12).
Finalmente, o fator essencial era a experiência anterior e o fato de ser preso político ou por convicção religiosa. A conclusão a que chega (semelhante à de Jorge Semprun, em Buchenwald) é que comunistas e testemunhas de Jeová constituíam os dois grupos mais resistentes. O primeiro, por suas convicções políticas e pela experiência de perseguição política; o segundo, por sua fé, pela qual se recusavam a servir no exército. De qualquer maneira, sobreviventes e afogados permaneceriam fixados para sempre no cotidiano dantesco; o trabalho infindável, a fome, o cansaço, os maus tratos permanentes eram agravados pela fumaça humana, suas cinzas e seu odor.
A transmissão do vivido: quem fala, quem ouve e quando é possível narrar
A experiência traumática pode exigir muito tempo para ser rememorada e essa impossibilidade temporária decorre de diferentes motivos. Os sentimentos de humilhação e vergonha são um forte impedimento. E, como sabemos, o cotidiano dos campos de concentração nazistas, e dos locais de tortura nas ditaduras militares, era marcado pelas práticas de degradação dos prisioneiros. Também o sentimento de culpabilidade é um poderoso impedimento. Ter delatado um companheiro, sentir-se responsável pela morte de alguém, por exemplo. A escolha de não lembrar pode ser explicada pelo dano que a recordação implica, não obstante a psicanálise alertar para o fato de que, quando não colocamos em palavras nosso mal estar, nosso corpo fala, através dos tiques, da insônia, das dores de estômago e tantos outros sintomas físicos.
Do ponto de vista da teoria do inconsciente, nada do vivido se perde. No buraco negro da mente toda a emoção deixa um rastro. A porta de entrada pode ser o sonho, o ato falho, a associação livre.
O tema da memória tem na obra de Proust sua mais refinada expressão literária. E a sua madaleine da infância, cujo sabor e odor puderam ser a chave de entrada para o retorno à infância e adolescência passadas, pode corresponder para outros à canção que marcou um certo dia ou ao calor de uma noite de verão que remete a uma outra lembrança. Como todo grande escritor, Proust transmite a partir de sua experiência subjetiva dimensões universais compartilhadas pelo mais comum dos mortais. E foi essa busca do sentido em comum das experiências traumáticas que levou Michel Pollak (2000) a apresentar seu livro sobre a experiência nos campos de concentração sob a categoria de "crimes contra a humanidade". Nas suas palavras: "A partir de então devemos pensar a singularidade e a universalidade não em termos de antagonismo, mas sim de condicionamento recíproco" (id.ib.:22).
Partindo do fato concreto de que só podemos analisar aquilo que foi dito, e que toda a rememoração é seletiva, a primeira parte deste texto vai tratar das dificuldades em testemunhar, em recordar experiências traumáticas. Nesse sentido, o mais interessante foi perceber que muitas vezes a dificuldade foi conseguir ser ouvido. Em outras palavras, mesmo quando era possível falar não era fácil encontrar quem se dispusesse a escutar. (Ruth Kluger, 2005, e Simone Veil, 2007). Em seguida, trataremos a questão dos avatares da sobrevivência tendo em vista as marcas que permanecem (Charlote Delbo, 2007, e Tunuma Mercado, 2008).
Uma segunda dimensão concerne aos impedimentos de ordem política, quando não há interesse na divulgação dos acontecimentos traumáticos. São muitos os relatos de sobreviventes judeus com respeito ao mal estar de parentes que os tinham acolhido nos Estados Unidos e mesmo daqueles que foram para Israel. Ou então a censura norte-americana com respeito aos relatos dos horrores sofridos pelos seus soldados prisioneiros dos japoneses. Finalmente, a terceira questão da memória pode ser provisoriamente definida como as memórias "positivas": aquilo que se recorda com orgulho (enfrentar a ditadura militar de seu país) e aquilo que se recorda com emoção. Tanto nos relatos de Germaine Tillon (2005), como nos depoimentos de ex-presas políticas uruguaias, argentinas e brasileiras, a solidariedade e o acolhimento de suas companheiras de infortúnio constituem a dimensão positiva por excelência.
Entre a escrita e a vida
Inicialmente, tratemos das dificuldades em testemunhar, em recordar, em se aproximar de novo da experiência limite da dor, da privação, do medo, do horror. Não é à toa que um dos títulos das obras de testemunho de Jorge Semprun seja "A escrita ou a vida". Diferentemente do que se supõe, para que um jovem de 20 anos escrevesse sobre sua experiência no campo de concentração era preciso, antes, viver, interpor realizações, vínculos afetivos e experiências de vida. Assim, Jorge Semprun (1994) explica porque demorou tantos anos para escrever sua experiência e porque jamais retornou a Buchenwald, a partir de um dia de abril de 1945, quando o campo foi liberado por soldados americanos.
As razões dessa recusa são claras e precisas, fáceis de determinar. Em primeiro lugar, durante um longo período, elas decorrem de minha decisão de esquecer esta experiência mortífera, para conseguir sobreviver. No outono de 1945, com vinte e dois anos, comecei a elaborar literariamente esta experiência: esta memória da morte. Mas isso se tornou impossível. Entendam mas seria impossível sobreviver à escrita. A única solução possível para a aventura de testemunhar seria a minha própria morte (id.ib.:92-3).
Para outros, no entanto, a palavra foi o instrumento da sobrevivência e de resistência, como no caso da etnóloga francesa Germaiane Tillion (2005). Após sua prisão, foi enviada ao campo de Ravensbrück, um campo de concentração para mulheres. Cerca de metade delas, eram presas por razões políticas e usavam um triângulo vermelho que as distinguia das judias (que usavam um triângulo amarelo) e presas comuns. Aproximadamente sete mil prisioneiras passaram por Ravensbrück. Germaine organizou atividades culturais e escreveu uma ópera cômica sobre a terrível rotina do campo. Le Verfüggbas aux Enfers. Une opéretttte à Ravensbrück, além de ser um dos poucos textos escritos dentro dos campos de concentração, é também um texto escrito por uma mulher. Segundo Todorov:
convencida que a lucidez é uma arma contra a barbárie, e afetada profundamente pelos sofrimentos que a cercam, ela ajuda suas companheiras oferecendo-lhes esse quadro - ao mesmo tempo preciso e distanciado - de sua existência, permitindo-lhes enxergá-la de fora e melhor compreender suas razões e consequências, ao invés de simplesmente lamentá-la (Bromdeberger e Todorov, 2002:30).
Logo após sua libertação, Germaine empenha-se em uma ampla e corajosa análise dos diversos mecanismos de poder e subpoderes que circulavam no campo. É a primeira a falar da zona cinza (zone grise), criada por um sistema de recompensas nazistas que garantia a alguns a sobrevivência, e a outros alguns meses de vida. Germaine mostra também como o campo foi lugar de uma extraordinária solidariedade, um espaço da resistência, do humor e das sabotagens. A primeira edição de Ravensbrück data de 1946 e contém principalmente relatos e observações da(o)s prisioneira(o)s; o segundo Ravensbrück, publicado em 1972, confronta as observações das prisioneiras às declarações dos nazistas, especialmente os dois comandantes desse campo de concentração; e, finalmente, o terceiro, editado em 1988, inclui uma vasta documentação dos arquivos da Segunda Guerra. Por ocasião da guerra de libertação da Argélia, Germaine militou contra os atentados da direita em Paris e contra a tortura empregada pelas tropas francesas de ocupação. Segundo Todorov, "a presença da violência nos comportamentos humanos sempre foi um dos principais motores por trás das interrogações desta antiga resistente e deportada" (id.ib.).
O diário de Lili Jaffe, jovem sérvia judia que passou onze meses em Auschwitz (maio de 1944 a abril de 1945) constitui um esforço em sobreviver aos horrores do campo e, ao mesmo tempo, um registro do cotidiano do campo de concentração. O diário está depositado no Museu do Holocausto em Jerusalém. Em comparação com os demais diários que narram a experiência concentracionária, o texto de Lili descreve os mesmos tormentos (a viagem interminável de trem, o frio, a fome e a violência dos guardas) sem grandes comentários, sem drama, como bem apontou Jeanne Marie Gagnebin que escreveu a orelha do livro.
Talvez o tom ameno do diário se deva ao fato de que Lili fosse jovem e apaixonada, pois no campo conheceu um jovem com o qual viria a se casar, e porque escreveu num momento em que estava a salvo. Ou, também, porque o esquecimento tornou-se uma forma de ser. Lili e o marido vieram para o Brasil logo após seu casamento e tiveram três filhas. Noemi conta que, em 1970, o apartamento em que a família morava, na cidade de São Paulo, pegou fogo. Um vizinho ajudou a apagar o incêndio, mas os aposentos ficaram cheios de água. Lili deixou pai e filha tentando tirar a água e foi jogar buraco com as vizinhas. O pai desesperado perguntava "mas como ela pode ir jogar buraco?" A filha pondera:
A resposta inevitável é que ela tem necessidade de esquecer as tragédias instantaneamente. É difícil lidar com esta interpretação. Aceitar que ela é o esquecimento. Que o esquecimento é o eixo constitutivo de sua personalidade. É difícil que tudo se justifique pela guerra. Mas, por outro lado, tudo se justifica sim. Como alguém pode penetrar na moralidade de quem passou pelo campo? (Jaffe, 2012:123).
O sentimento de culpa
Ruth Kluger (2005),que escreveu sobre o mal estar do sobrevivente, citado abaixo, é professora nos Estados Unidos e uma das poucas crianças que sobreviveram em um campo de concentração, tendo escapado da câmara de gás graças a subterfúgio materno. Sua autobiografia une uma escrita apurada a uma reflexão aprofundada sobre os anos que passou no campo de concentração e o exílio para os Estados Unidos.
e não se sabe como. A vontade é a de tirar dos algozes, e não se sabe como. A sensação é a de ser, ao mesmo, credor e devedor, e se praticam ações compensatórias dando e exigindo, que não fazem sentido à luz da razão. Os sentimentos de culpa dos sobreviventes não giravam em torno do fato de que não acreditávamos não ter direito à vida. Eu, pelo menos, nunca acreditei que deveria morrer porque outros haviam sido assassinados. Não tinha feito nada de mal, por que deveria pagar? O termo deveria ser sentimento de "dívida". Fica-se empenhado de uma maneira estranha, não se sabe a quem. A vontade é tirar dos algozes para dar aos mortos (Kluger, 2005:165).
Sabemos que a história é construída por memórias e que o último recurso dos vencidos é tentar deixar seu ponto de vista. A vitória dos Aliados permitiu que a versão dos nazistas não prevalecesse. Mas nem por isso facilitou a divulgação dos horrores sofridos pelos prisioneiros norte-americanos nas mãos dos japoneses. Um dos mais importantes depoimentos, o do psicanalista Sidney Stewart, foi boicotado nos EUA, pois o Japão não era mais o inimigo e sua narrativa era politicamente incômoda. Sua divulgação só foi possível muitos anos depois, quando o autor já era um psicanalista conhecido e por influência de sua mulher, Joyce MacDougall, que escreveu o prefácio de seu livro:
Psicanalista, membro da Société psychanalytique de Paris, Sidney Stewart (1919-1998) foi, em 1942, um dos jovens combatentes americanos na guerra do Pacífico. Durante quatro anos, de um campo a outro, das Filipinas ao Japão e à Coréia, ele conheceu as atrocidades das privações e humilhações e o desencadeamento de uma selvageria que conduziu à animalidade (MacDougall, 2009:contracapa).
O livro foi escrito para "homenagear seus companheiros de sofrimento" e também, como pontua Joyce MacDougall, "para tentar compreender e explicar como os seres humanos se esforçam para sobreviver em situações extremamente inumanas" (id.ib.:contracapa). Na primeira parte do livro, Stewart descreve os terríveis quatro anos que permaneceu prisioneiro dos japoneses. Na segunda, narra sua experiência psicanalítica e um dos casos em que o esquecimento traumático explicava e alimentava os sintomas de sua paciente Ester. Ela tinha então 41 anos e era a mais velha de duas meninas filhas de judeus poloneses que viviam em Strasbourg. Soldados invadiram o apartamento da família, jogaram o pai pela janela do quinto andar e enviaram as meninas e a mãe para um dos terríveis trens cargueiros com destino a um campo de concentração. Ester lembrava-se de tudo nos mínimos detalhes, mas era atormentada pela perda da memória na vida quotidiana. Na verdade, essa perda traumática da memória relaciona-se a uma tentativa de esquecer uma decisão fatal, quando ela saiu de seu lugar na fila que conduzia à câmara de gás, deixando em seu lugar sua irmã que caminhou lado a lado com sua mãe para a câmara de gás, ficando ela para trás e viva. Foi essa lembrança que abriu as comportas e deixou escapar tudo aquilo que ela tentava reprimir (Stewart, 2008:238).
Assim como a negação e a repressão de acontecimentos traumáticos deixam marcas profundas no indivíduo, também a censura exercida pelo Estado cria uma amnésia pública que não pode deixar de ter consequências sociais. A evidência de que os vencedores escrevem a História, omitindo ou desqualificando o sofrimento dos vencidos, pode ser facilmente constatada no terrível episódio de Hiroshima e Nagasaki. Em um tempo recorde milhares de civis foram mortos, nos dias 7 e 9 de agosto de 1945. Na verdade, ambas as cidades serviram de laboratório para que os cientistas norte-americanos estudassem os efeitos da radiação atômica, ao mesmo tempo em que negavam a informação aos médicos japoneses. Kenzaburo Oe, um dos mais conhecidos romancistas japoneses, fez um dos relatos mais pungentes sobre "as vítimas do primeiro ataque nuclear sofrido pela humanidade e os sobreviventes que sofrem até hoje de distúrbios provenientes da radioatividade" (Ôé, 1995:18). Mas também sobre essa tragédia paira um silêncio oficial, especialmente por parte daqueles que foram responsáveis por essa violência sem par.
A dificuldade em escutar e a impossibilidade de esquecer
Simone Veil é uma conhecida personalidade francesa, ministra por diversas vezes, deputada, ganhadora de centenas de prêmios, de doutorados honoris causae, entre outras honrarias. Aos 16 anos, Simone, cujo sobrenome de solteira é Jacob, foi presa e deportada para um campo de concentração. Isso ocorreu em março de 1944. Seu pai e seu irmão,deportados para a Lituânia na mesma ocasião, nunca mais voltaram e a família não conseguiu saber em que circunstância morreram. Simone, sua mãe e sua irmã mais velha foram enviadas para o campo de Birkenau. Sua mãe morreu de tifo e sua irmã escapou da morte pela ação dos Aliados que libertaram os prisioneiros em março de 1945. Em 2007, Simone Veil publica sua autobiografia que leva o sugestivo nome de Une Vie.
Analisando a questão da dificuldade em se fazer ouvir, Simone conta que seu próprio marido não gosta de conversar sobre livros que tratam da experiência concentracionária e que, no começo de seu casamento, quando ela e sua irmã se referiam a uma lembrança comum, ele mudava de assunto. E mesmo sabendo que essa era a maneira que ele encontrava para se proteger, para ela tal reação era, muitas vezes, difícil de suportar (Veil, 2007:101-2).
Referindo-se a sua experiência no campo de concentração, no capítulo intitulado Enfer, ela, fazendo eco a centenas de outros depoimentos de sobreviventes, afirma que:
Nada desaparece: os comboios, o trabalho, o aprisionamento, os barracos, a doença, o frio, a falta de sono, as humilhações e o aviltamento, os golpes, os gritos... não, nada pode nem deve ser esquecido. Mas, para além desses horrores, só os mortos importam. A câmara de gás para as crianças, para as mulheres, para os velhos, para aqueles que estão estropiados, que têm uma cara doentia; e, para os outros, a morte lenta. Dois mil e quinhentos sobreviventes dos setenta e oito mil judeus franceses que foram deportados (id.ib.:103).
Não é possível esquecer. Eis uma conclusão comum a todos e todas as sobreviventes. Razão pela qual a sobrevivência pode se revelar tão difícil. Charlotte Delbo, jovem resistente francesa, é uma das 230 mulheres que partiram de Compiegne, em 1944, com destino a Auschwitz. Em 1970, ela publica uma trilogia sob o título Auschwitz et apres. O primeiro volume, Aucun de nous ne reviendra, descreve os horrores do cotidiano do campo, da fome, da sede terrível e da morte de muitos. No segundo volume, Une connaissance inutile, o tema é a dor da perda do homem amado, guilhotinado pelos nazistas, a solidariedade de suas companheiras de desgraça, sem as quais dificilmente teria sobrevivido. Finalmente, o terceiro volume tem como tema justamente a questão de como sobreviver e viver após Auschwitz. A autora encontra-se com suas antigas companheiras e ouve seus depoimentos. Assim Ida fala sobre a súbita depressão: "e, de repente, sem saber porque, sem saber como e por que neste momento e não em outro, eu sinto subir essa angústia" (Delbo, 1970:121). Também Marceline lamenta sua lassitude, sua dificuldade em executar os pequenos gestos do cotidiano, tal como pentear o cabelo:
Minha mão caía como se ela fosse de chumbo, a escova escapava. Como eu me sentia fatigada... Eu permanecia lá, deitada no sofá da sala de jantar e tinha a impressão que jamais conseguiria ficar de pé (id.ib.:180).
A mesma narrativa de depressão é descrita em outra língua, por uma sobrevivente argentina. A escritora Turuna Mercado (1990) conta seu desvalimento após ter fugido da Argentina, em decorrência da prisão, tortura e morte de amigos queridos.
Lo que yo tenia que exponerle a un psiquiatra o, en un nivel diferente a un psicoanalista, era una serie de núcleos que no lograba disolverse. Era, o son, estados de desvalimiento, fragilidades que me impedían enfrentarme con naturalidad a los hechos de cada día; tenia que explicarle a ese analista que cualquier situación de competencia provocaba en mi una necesidad imperiosa de huir de no dar batalla (Mercado, 1990:24).
Ruth Kluger (2005) evoca a lembrança do medo de morrer enquanto estava no campo de concentração, ainda menina, e a dificuldade em querer viver após a libertação e sua ida para Nova York. Ela comenta que, em criança, sua pior doença infantil não tinha sido a varíola, mas o medo da morte. Já em Nova York, o medo de viver, a depressão. Em suas palavras:
A pior doença infantil que tive, no entanto, não foi a catapora, e sim o pavor da morte, de estar numa jaula que se transformou, em Nova York, na tentação mortal da depressão. Pois então o passado ressurgiu de verdade e se alastrou como um deserto às minhas costas (Kluger, 2005:211).
Testemunhos femininos: mulheres na luta armada e as ditaduras sul-americanas
A militância política das mulheres na luta armada implicava em radical rompimento com o padrão da moça bem comportada, virgem, futura mãe de família. O moralismo imperante fazia com que a sexualidade também fosse colocada em suspeição. No Brasil, encontrar pílulas anticoncepcionais na bolsa de alguém tinha o valor de "prova documental", como é fácil recuperar pelas primeiras páginas dos jornais que mostravam as provas da subversão entre os estudantes da USP que se alojavam no Conjunto Residencial (CRUSP). O pano de fundo da participação política das jovens estudantes residia na diversificação do capitalismo, na ampliação da presença feminina no mercado de trabalho e nas transformações dos valores e instituições. O acesso à instrução superior constituiu uma das vias preferenciais da emergência do ativismo político das jovens de classe média.
Essa é uma dimensão de gênero na questão do comportamento político e na relação com a própria experiência. O levantamento da literatura de testemunho revela um fato interessante: são raríssimos os livros escritos por mulheres, não obstante a significativa participação feminina na luta armada e as torturas, mortes e desaparecimentos de seus corpos. Muitas das que sobreviveram à tortura e à prisão são jornalistas, professoras universitárias e intelectuais acostumadas a escrever. Por que há tão poucos relatos de mulheres na primeira pessoa?
O registro da experiência das mulheres deverá ser procurado, assim, nos inúmeros livros construídos a partir de depoimentos ou de reconstrução histórica. O primeiro deles foi organizado por quatro mulheres muito próximas ao tema do exílio, dentre as quais Albertina de Oliveira Costa, presa e torturada pela equipe do famigerado delegado Fleury. O livro Memória (das Mulheres) do Exílio foi editado em 1980. Outro livro pioneiro foi Iara: Reportagem Biográfica, escrito por Judith Patarra e publicado em 1992. Neste caso, a autora busca recuperar a biografia da jovem psicóloga Iara Iavelberg, companheira de Carlos Lamarca, morta ao ser presa. Aluna da USP e personagem da Rua Maria Antonia, Iara simboliza a mistura de romantismo, idealismo e inexperiência desses rapazes e moças que fizeram a opção radical da luta armada. Iara também foi homenageada pela professora de literatura da USP, Walnice Galvão que, numa das primeiras homenagens públicas às guerrilheiras, lhe dedicou o texto "Frequentação da Donzela-Guerreira". A transgressão feminina constitui uma dupla transgressão (Galvão, 1979:19-31). A mulher que extrapolou seu universo doméstico e feminino para "agir como homem" recebe uma estigmatização adicional por desafiar o "código de gênero de sua época", tal como sucedeu com as mulheres que participaram da resistência armada. Em Tiradentes, um presídio da ditadura (Freire, 1997), a ex-presa política Dulce Maia relata o seguinte:
Tendo sido a primeira mulher sequestrada com envolvimento direto em ações de luta armada, era-me concedido um tratamento duplamente "especial". O primeiro, aquele mesmo tratamento que dispensavam a meus companheiros homens por haverem ousado pegar em armas contra o arbítrio e intolerância do regime ilegítimo dos militares. O segundo, pela minha condição de mulher, atrevimento duplo. Tanto na linguagem como nos maus tratos, os verdugos faziam questão de demonstrar seu ódio por mim (id.ib.:99).
Enquanto temos uma extensa bibliografia brasileira de relatos biográficos masculinos, como o pungente Memórias do Esquecimento, de Flávio Tavares (2005), os best-sellers de Fernando Gabeira, os Tirando o capuz, de Álvaro Caldas (1981), O Baú do Guerrilheiro, de Otoniel Fernandes Junior (2004), e muitos outros, os relatos femininos só aparecem na forma de depoimentos concedidos a jornalistas, como no caso de As Mulheres que foram à luta armada (1998) ou pequenos textos publicados na coletânea sobre o presídio Carandiru. No Corpo e na Alma, de Derley Catarino de Luca, publicado em 2002, constitui uma exceção à regra: é o primeiro livro escrito por uma mulher, tendo como tema sua história política. Essa é realmente uma marca de gênero.
Este livro foi uma catarse. Também foi uma necessidade. Cada pessoa que me conhece pergunta como foi a clandestinidade, quer saber da prisão e da experiência da nossa luta. Uns questionam se valeu a pena... Se não foi em vão, tantos mortos e desaparecidos. Mas os heróis da Pátria não morrem. Desaparecem fisicamente (Luca, 2002:21).
O depoimento de Derley é uma denúncia radical do terrorismo de Estado, do sadismo dos torturadores e do horror à mercê de psicopatas. Mas é também uma crítica severa ao machismo de sua então organização revolucionária, composta por católicos de esquerda e conhecida como AP - Ação Popular. Tendo escapado de ser presa por usar um nome falso e não ter sido identificada pelos policiais, Derley foge com seu bebê de três meses após a prisão de seu companheiro. Seu maior medo é que o filho caia nas mãos da polícia e que sofra os mesmos maus tratos que outras crianças de prisioneiras políticas. "Zé, no meu colo, está quieto. Lembro de Igor, na Bahia; da filha de Hilda no DOPS de São Paulo, e fico alucinada de medo que aconteça algo com meu filho" (id.ib.:272).
Após quase um ano fugindo de um lado para o outro, é enviada pela organização para São Paulo. Lá, um dirigente propõe sua ida para o Araguaia, com o seguinte argumento: "Você não tem alternativa. Não pode renegar sua militância, não tem mais futuro legalmente. Não pode ser presa agora. Mas pode morrer heroicamente no Araguaia." Mas Derley não quer morrer no Araguaia. Diz ela:
Deixei profissão, vida legal, futuro, sonhos, energias, entreguei todo meu entusiasmo, minha juventude. Perdi o marido, abandonei meu filho, perdi tudo para ver a AP desintegrar-se desta maneira? (...) Dei tudo o que podia dar, fiz tudo o que podia fazer. Agora quero criar meu filho. Não quero morrer heroicamente no Araguaia (id.ib.:275).
Derley consegue sair do Brasil e se refugia no Chile. Poucos meses depois, com o golpe de Estado de Pinochet, é obrigada a se refugiar na embaixada do Panamá e, depois de algum tempo, para um campo de refugiados nesse país. É lá que se inteira da prisão e morte de companheiros queridos de militância nas mãos da ditadura brasileira. Apesar de seu desespero, Derley decide que vai sobreviver. "Ódio é também uma razão de viver quando não existe mais nada. Vou sobreviver. Vou criar meu filho, vou contar essa história" (id.ib.:301).
Outras muitas militantes e ex-presas políticas, como as irmãs Criméia Grabois e Amélia Telles, ao sair das prisões denunciaram corajosamente seus torturadores. Foram elas, conjuntamente com Eleonora Menecucci, as primeiras testemunhas no processo contra o coronel Brilhante Ustra que as torturou repetidas vezes. Este militar, em plena sessão do tribunal, chamou-as de vadias, putas e mentirosas.
Pode-se mesmo estabelecer uma certa lógica entre aquelas que foram presas por serem militantes e as que terminaram sendo presas e torturadas por serem "simpatizantes", vale dizer, terem dado abrigo ou serem muito próximas de militantes procurados. Foram especialmente estas últimas as que preferiram se calar, enterrar o passado, com o risco do seu presente se tornar "um volume cheio de esquecimento" (Jaffe, 2012:165).
No Uruguai, a iniciativa de publicar depoimentos surgiu de um grupo de ex-presas políticas do Taller de Género y Memoria que realizou um chamado público e, após uma seleção, publicou cerca de 150 textos. Eis o depoimento de Gianela Peroni:
Yo no fui una excepción. Los días de interrogatorio y tortura fueron muy duros, tanto que mi mente ha borrado gran parte de estos días (¿meses?). Sin embargo las huellas que tuve en el cuerpo tardaron en borrarse (¿Se borraron?)
A pesar de tener todas se ensañaran igual: pasé por lo que pasaban casi todos los presos: picana, submarino, golpes, plantón y, también, como a otras mujeres, me desnudaron, me humillaron y desgarrar las partes más íntimas de mi cuerpo. Lo hicieron con n palo de escoba, mientras se burlaban a gritos (Taller de Presas Politicas, tomo 2:34).
Memórias da solidariedade
Assim, pode-se dizer que todas as ditaduras latino-americanas utilizaram em larga escala as práticas de violência física e psicológica que se iniciavam com o sequestro dos militantes e tinham como desfecho a morte provocada pelos inimagináveis sofrimentos e humilhações a que foram submetidos milhares de militantes de ambos os sexos, em sua maior parte jovens. Passar da etapa da clandestinidade dos porões da ditadura para a fase legal correspondia a uma espécie de garantia de vida. Nessa fase, existia um mínimo de aparência legal e foi o momento em que, mesmo com todos os riscos que tal atitude implicava, muitos denunciaram as sevícias sofridas e a morte de militantes que haviam testemunhado.
Em muitos aspectos, as prisões brasileiras ofereciam condições melhores de sobrevivência. Os presos se comunicavam, ficavam juntos, podiam exercer atividades culturais. Na Argentina e no Uruguai as práticas eram concentracionárias: no Uruguai, com imobilidade forçada, capuz na cabeça, proibição de ginástica e uma disciplina militar. As visitas eram outro motivo de terror, dada a brutalidade com que eram tratados os visitantes.
Retornemos aos mais acurados testemunhos das condições carcerárias brasileiras: o já citado Tiradentes, um presídio da ditadura. Memórias de presos políticos. (Freire, 1977). Nele, 35 ex-presos políticos, dos quais 10 mulheres, dão seu depoimento. Uma delas, Eleonora Menecucci de Oliveira (ministra de Política para Mulheres no governo Dilma), depois das torturas sofridas, do medo de ser assassinada e se tornar mais uma "desaparecida", relembra sua chegada ao presídio e a importância do acolhimento de outras presas:
quando cheguei, recebi de Joana e Dilma [Roussef, atual Presidente do Brasil], duas antigas amigas de militância em Belo Horizonte, um imenso afeto e carinho, que me ajudaram a segurar as "barras emocionais". Aos poucos, fui, verdadeiramente, encontrando meu lugar afetivo no grande coletivo de mulheres que por muito tempo fizeram parte de nosso "mundinho" na Torre (N.A dado o fato de que a ala feminina do presídio Tiradentes localizava-se numa torre, o local ficou conhecido com a Torre das Donzelas) (Freire, 1977:294).
Maria de Oliveira, sua filha, cuja infância decorreu com visitas ao presídio, onde seus pais se encontravam presos, assim descreve sua primeira infância:
Tenho praticamente a mesma idade que as memórias deste livro. Seus autores tinham esta mesma idade quando estiveram no Tiradentes. Comecei a viver toda essa história dentro da barriga de minha mãe: importância é vital. O mundo não existiria para mim sem esses fatos. Vi nascer a base da dignidade e da solidariedade, de certa forma, no Tiradentes. Aprendi a andar, a falar e a ler durante esse tempo. Foi um pouco minha casa (id.ib.:contracapa).
A referência à solidariedade das companheiras de prisão constitui um importante ponto em comum nos relatos de brasileiras, uruguaias e argentinas. São muitas as referências ao contraste entre a desumanização imposta pela repressão e a humanização da solidariedade. Quando se comparam tais relatos aos testemunhos dos campos de concentração, evidencia-se a importância do sentido de solidariedade trazido pela militância, como foi o caso, nos campos de concentração, dos coletivos de comunistas e os dos Testemunhas de Jeová.
Subjetividade e violência de gênero
Retomando o tema da posição subjetiva a partir da experiência das militantes políticas latino-americanas, não obstante aos diferentes tipos de violências a que foram submetidas, as militantes fizeram uma escolha e sabiam dos riscos decorrentes de tal escolha. E nesse sentido que foram sujeitos do seu desejo. É por isso também que testemunharam e narraram suas experiências. No caso brasileiro, a maioria das narrativas das militantes sobre as violências sofridas - espancamentos, choques elétricos, afogamentos e outras formas de tortura - não se diferenciava dos relatos das sevícias sofridas pelos homens. Mas o fato é que os torturadores são do sexo masculino o que implica em uma dimensão de gênero. Poucos são os relatos de violência sexual, mas todas se referem aos xingamentos, às ameaças sofridas pelas crianças, às solitárias repletas de baratas e outras pequenas crueldades.
No entanto, quando se trata de guerras ou perseguições a minorias étnicas ou grupos indígenas, a violência de gênero pode assumir dupla conotação. Há situações em que o ódio político alimenta-se do nacionalismo exacerbado, religioso ou não, e de preconceitos étnicos demonstrados com o extermínio dos homens e o estupro das mulheres, como foi o caso da Bósnia e das populações camponesas no Peru. Mas, como bem observa a antropóloga Kimberly Theidon, que escutou o testemunho das mulheres quéchuas, a violência de gênero tem de ser analisada incluindo outras dimensões além da violência sexual. "La verdade y la memoria se encuentran, de hecho, atravessadas por el género, pero no necesariamente del modo en que lo entende el sentido común" (Theidon, 2011:45).
Os relatos das quéchuas referem-se à repressão militar de que foram vítimas as povoações quéchuas suspeitas de alguma simpatia pela guerrilha, no período 1980-2000, e enfatizam a injustiça sistemática sofrida em suas vidas e de suas famílias. Quando narram as longas caminhadas para pegar água no rio e catar lenha para o fogão; o choro das crianças famintas, "cuando recuerdam los insultos étnicos en las calles de las mismas ciudades en las que buscaban refugio, están hablando sobre ellas y sobre las dimensiones de género de la guerra" (id.ib.:51).
O interesse das reflexões de Kimberley é que ela não somente leva em conta essas outras dimensões de gênero nas guerras, como também a importância do silenciar sobre certas experiências da violação sexual. Nem tudo precisa ser dito se o preço desse dizer é reviver a violência sofrida. Ela defende o direito à opacidade e critica "la obsessión de lo confessional" e a "tiranía de la transparencia" (id.ib.:75). Para muitas mulheres, após as humilhações e violações sofridas, a recuperação do sentido de autoestima se dá pela preservação da esfera da intimidade, da privacidade. Porque a palavra recuperação tem vários sentidos: "es restablecimiento, pero también significa recobrar algo que ha sido perdido, y en última instancia, recuperarse es también recobrarse a sí mismo" (id.ib.:50).
A necessidade de fugir do estigma da "vítima" e de poder levar uma vida normal, amar e ser amada, eventualmente ter filhos e criar uma família, é muito bem retratada no filme/documentário de Lúcia Murat, Que bom de ver viva, de 1989. O filme traz o depoimento de brasileiras presas e torturadas pela ditadura militar e, ao mesmo tempo, uma ficção em que a atriz Irene Ravache representa o papel de uma militante que não deseja mais dar entrevistas, pois quer voltar a namorar e ir em festas sem ser tratada como uma coitada. Pois, se por um lado, não é possível esquecer a violência sofrida, por outro, é preciso restabelecer os vínculos com a vida. E o maior vínculo à vida é a capacidade de amar.
A Memória como compromisso ético
É na história da Grécia Antiga que encontramos duas situações distintas com respeito à memória e ao esquecimento. Ambas relacionadas à guerra do Peloponeso. A primeira delas, concerne ao massacre não documentado de cerca de 2 mil ilotas pelo governo de Esparta. Isso porque, estando em guerra com Atenas, os espartanos queriam evitar quaisquer distúrbios internos, e como eram os ilotas os que mais se revoltavam, por um subterfúgio cruel (prometendo recompensa àqueles que consideravam ter se comportado com bravura diante do inimigo) conseguiram que 2 mil ilotas se apresentassem. Os cidadãos de Esparta participam da grande fraude, segundo narra Tucídides. Ao invés de libertá-los ou matá-los, seus senhores os libertam e os matam. Em uma cerimônia pública, são coroados e devem fazer a volta do templo, assim como costumavam todos os jovens guerreiros. E, a um dado momento, são eliminados, não se sabe exatamente como. E sobre esse massacre existe um silêncio oficial.
Comentando o episódio, o historiador Pierre Vidal-Naquet (1987:136) o compara à história do nazismo. Poderíamos atualizar esses dados, lembrando a história recente da América do Sul e os seus milhares de mortos e desparecidos. Sumir com os corpos para apagar o crime equivale ao duplo assassinato: matar o vivo e tentar matar sua lembrança. É o ato insano de matar a morte.
O segundo episódio, como nos relata Nicole Loraux (2005), ocorre após a derrota de Atenas, quando a oligarquia ateniense que tomou o poder, governando Atenas no período chamado de "os 30 Tiranos". Os democratas atenienses conseguem retomar o poder. E, em seguida à vitória, propuseram aos vencidos um pacto: Não lembrar os males do passado. Esse seria, segundo os estudiosos da Grécia Antiga, o primeiro exemplo da figura de uma anistia.
Ora, como sabemos, anistia em grego significa exatamente esquecimento. Assim, a grande questão é saber exatamente o que devemos esquecer e quando não devemos nem podemos esquecer. Como bem observa Loraux (ib.:206) assim como cada pessoa, também a coletividade tem de fazer o trabalho do luto, que significa a elaboração e a incorporação de um fato traumático e não sua negação, pois luto não é esquecimento.
Mas a História comprova que o problema não reside exclusivamente em lembrar ou apagar a memória. Existe também a questão daquilo que passa a ser lembrado e aquilo que é deixado de lado. Nesse sentido, a memória da resistência armada da geração 1968 não pode ser separada de seus projetos e lutas. Diferentemente de outras revoluções, a de 1968 tinha como objetivo mudar o mundo e não tomar o poder, no sentido de apropriar-se do poder de Estado. Em certo sentido, fomos a geração do contra-poder - contra o poder da Igreja, do Estado, da Família, do Homem Branco, etc.
Relembrando o elogio de Arendt (1970:14-5) aos jovens de 1968 por sua determinação para agir, alegria em agir e certeza de poder mudar as coisas pelos seus próprios esforços, vemos como essas características desaparecem quando o sujeito da reivindicação torna-se o sujeito dependente da caridade e de políticas compensatórias. De fato, do ponto de vista subjetivo, a característica mais forte do movimento de 1968 foi a afirmação de desejo de toda uma geração. Como sujeitos de seus desejos, sofreram as consequências de seus atos e os riscos que deles decorriam. Não o fizeram por um impulso suicida, mas porque se opunham, moral e eticamente, a um regime que instaurou o terrorismo de Estado. A grande maioria dos militantes políticos da luta armada reconhece os equívocos e erros cometidos, mas tem orgulho de seu passado. A denúncia do terrorismo de Estado e dos crimes cometidos pelas ditaduras militares não implica no vitimismo. Porque é preciso distinguir a existência de vítimas do terrorismo de Estado do vitimismo como ideologia política.
Enzo Traverso (2011) analisou de maneira contundente a época contemporânea, em que as utopias parecem não mais ter lugar. E a visão do passado também acompanha essa desaparição, como se observa nas novas dimensões assumidas pela questão da memória. Diferentemente do que previu Walter Benjamim, o tempo presente não parece estar interessado em reativar os projetos dos vencidos. A memória do Goulag apagou aquela das revoluções, a memória do Shoah substituiu a da luta antifascista, a memória da escravidão eclipsou a memória do anticolonialismo. "Tudo se passa como se a lembrança das vítimas não pudesse coexistir com essa de suas lutas, de suas conquistas e de suas derrotas" (id.ib.:265).
Referências bibliográficas
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Recebido para publicação em 18 de setembro de 2012
Aceito em 3 de dezembro de 2012.
Versão ampliada do paper De quoi pouvons-nous nous souvenir?
Apresentado na 12ª EASA Biennial Conference, Nanterre, França, 10-13 de julho de 2012.
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O que é possível lembrar?
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jul 2013 -
Data do Fascículo
Jun 2013
Histórico
-
Recebido
18 Set 2012 -
Aceito
03 Dez 2012