Resumo
O artigo desdobra-se de uma tese de doutorado (Klein, 2010) que analisou uma política pública voltada para a promoção de uma Primeira Infância Melhor (PIM/RS, Brasil), tomando-a como uma instância pedagógica que pretende educar e regular mulheres e homens como mães e pais de determinados tipos. De forma específica, focalizam-se, aqui, na perspectiva dos estudos de gênero e dos estudos foucaultianos, os sentidos articulados ao uso do termo conhecimento e seus efeitos sobre a produção de três posições de sujeito (mulheres-visitadoras, mulheres-voluntárias, mulheres da comunidade) que tal política promove.
Palavras-chave: Conhecimento; Gênero; Políticas públicas
Abstract
The article unfolds from a doctoral thesis that examined a public policy for the promotion of a Better First Childhood (PIM/RS, Brazil), taking it as a pedagogical instance that pursues to educate and regulate women and men as mothers and fathers of certain types. Specifically, the focus, from the perspective of gender studies and Foucauldian studies, is on the senses articulated to the use of the term knowledge and to its effects on the production of three subject positions (visiting women, voluntary women, community women) promoted by such policy.
Key Words: Knowledge; Gender; Public Policies
O artigo - do que trata e do seu argumento
Este artigo1 desdobra-se de uma tese de doutorado em que se analisa uma política pública do Governo do Estado do Rio Grande do Sul/Brasil2, voltada para a promoção de uma Primeira Infância Melhor (PIM)3, para problematizá-la como uma instância pedagógica que se propõe a educar e regular mulheres e homens para o exercício de determinadas formas de parentalidade. A pesquisa realizada se inscreve nos campos dos estudos de gênero e dos estudos foucaultianos, e o material empírico, examinado na perspectiva da análise de discurso, foi produzido em um trabalho de campo de caráter etnográfico, realizado no município de Canoas/RS.4 Tal material resultou do cruzamento de informações de diferentes fontes: documentos oficiais referentes ao PIM, descrição das atividades que integram a política, registradas em diário de campo e entrevistas com técnicos/as e mulheres-visitadoras.
No contexto da análise assim delineada, gênero foi tomado como uma ferramenta analítica que permite examinar os múltiplos processos (sociais, culturais e linguísticos) e as relações de força que diferenciam homens e mulheres, uns dos outros e entre si, o que implica assumir que "o corpo funciona como território de inscrição de identidades de gênero [...] e como operador de sistemas de classificação e hierarquização social" (Meyer, 2009:90). Demanda considerar, também, que reconhecer-se como homem/mulher, pai/mãe (técnico/a ou mulher-visitadora) é consequência de múltiplos processos educativos que se instauram em nosso tempo histórico e que, por serem plurais, indicam as disputas, as divergências e o caráter relacional com que se constituem essas posições de sujeitos.
O acompanhamento sistemático de atividades realizado com técnicos/as do PIM em um lócus específico - especificamente no bairro Mathias Velho, na cidade de Canoas - permitiu observar, dentre vários outros aspectos importantes, o uso recorrente da palavra conhecimento, que para eles/as parecia funcionar como uma espécie de ferramenta de trabalho capaz de operar transformações 5 em aspectos centrais da vida das famílias atendidas. O conhecimento poderia/deveria garantir-lhes vários ganhos ligados a promoção da saúde, autonomia, autoestima e reconhecimento da família, a serem operacionalizados nela sobretudo pela intermediação das mulheres-mães. Fazia sentido, então, indagar-se sobre como aquilo que se significava e se divulgava como sendo conhecimento, ali estava relacionado com a produção de posições de sujeitos e de diferenças de gênero. Ou seja, como técnicos/as, visitadoras, mulheres e homens das famílias atendidas eram posicionados/as e se posicionavam em meio ao que era tomado como conhecimento voltado à promoção do desenvolvimento infantil.
Da forma como foi conduzida, a análise realizada a partir dessa indagação permite argumentar que os sentidos relacionados ao termo conhecimento (vinculado à promoção do desenvolvimento infantil) se articulavam explicitamente à produção de três posições de sujeito de gênero - hierárquicas e relacionalmente situadas - que são muito importantes para que a pedagogia delineada por essa política se efetive, quais sejam: mulheres-visitadoras6, mulheres-voluntárias e mulheres da comunidade. E é a análise que sustenta esse argumento que passamos a apresentar aqui.
O conhecimento em ação no desenvolvimento do PIM
De acordo com a formulação da política em análise, os/as técnicos/as responsáveis por suas implantação e implementação pertenciam ao Grupo Técnico Municipal (GTM) que estava subordinado ao Grupo Técnico Estadual (GTE). As atribuições desse grupo referiam-se principalmente à capacitação das mulheres-visitadoras, selecionadas na própria comunidade7, responsáveis pelo desenvolvimento das ações com as famílias cadastradas.
A concretização da política ocorria/ocorre principalmente através das visitas domiciliares e deve privilegiar o acompanhamento e a intervenção direta às famílias. O trabalho acontece, semanalmente, através das Modalidades de Atenção Individual (que ocorrem nos domicílios, com crianças de zero a três anos) e Grupal (que geralmente ocorrem em locais cedidos pela comunidade, como escolas, igrejas ou associações, com crianças de três a seis anos). As visitadoras - elos entre os técnicos e as famílias pobres - necessitam cadastrar, planejar, orientar, desenvolver atividades, elaborar materiais, acompanhar e controlar a qualidade das ações educativas que as famílias devem realizar, promovendo a estimulação "adequada" e visando ao desenvolvimento integral das crianças de zero a seis anos, desde a gestação.
Durante a permanência no campo, acompanhamos especialmente o GTM que se envolveu no trabalho de vincular as famílias às tarefas de educação, cuidado e estímulo ao desenvolvimento das crianças daquelas comunidades.8 Nesse acompanhamento sistemático, foi possível perceber como se demarcava o foco central (e aparentemente homogêneo) que deveria nortear as ações voltadas à promoção do desenvolvimento infantil - o conhecimento. Na entrevista de uma das técnicas integrantes do GTM, pode-se "visualizar" isso:
Nas políticas públicas, nós temos ainda uma visão assistencialista, onde eu recebo alguma coisa. E o PIM é totalmente avesso a isso, ele leva o conhecimento. Então, as famílias começam a entender a importância do trabalho, que vai proporcionar uma mudança de paradigma, porque gera uma transformação (Joana,9 15/12/2007).
A transformação almejada pelo PIM, de acordo com a sua interlocutora, decorria de um conhecimento (dado) organizado e difundido a partir de regras universais e aplicáveis a todos os indivíduos. Assim, o desenvolvimento infantil e a família, mediados pela maternidade, estariam "naturalmente" em correspondência, tornando-se desnecessário refletir sobre o caráter de produção desses termos e dessas relações.
O acompanhamento do trabalho organizado pelos/as técnicos/as evidenciava muitas vezes que, para realizar as atividades de educação e(m) saúde, ou seja, para "levar" o conhecimento à comunidade, eles/as contavam e encenavam histórias, utilizavam recursos variados a fim de ampliar a atenção e o interesse do grupo, confeccionavam brinquedos e mostravam-se didáticos em suas explicações. Os/as técnicos/as buscavam diferenciar sua ação pedagógica de ações escolarizadas mais rígidas, geralmente difundidas pelos/as profissionais da educação e da saúde. Essa característica foi expressa da seguinte forma na fala de outro técnico do GTM:
A minha decisão por permanecer no PIM foi por entender o indivíduo como um todo, não fragmentado, como sempre e tradicionalmente ocorre na saúde e na educação, onde se criam caixinhas para cada coisa. Eu não acredito nisso. Acho que o PIM veio contemplar uma forma mais lúdica, mais alegre de trabalhar... E na saúde isso acaba não funcionando (Marcelo, 17/12/2007).
Considerando que essa fala é de um médico que coordenava o PIM, pode-se pensar que o desenvolvimento infantil, assim como as normas familiares que devem corresponder a ele, estariam articuladas ao enunciado de "entender o indivíduo como um todo", posicionando técnicos/as, familiares e mães como responsáveis legítimos - mas diferencialmente situados - no processo de promover, de forma integral, a saúde e a educação das crianças. Esse entendimento acaba funcionando como uma espécie de norma que atua na produção de determinados significados para o desenvolvimento infantil e o que está em seu entorno: cuidado, educação e saúde, indicando formas de intervenção e responsabilização tanto dos/as técnicos/as e das visitadoras quanto dos membros de famílias pobres.
Na fala do técnico também se estabelece uma hierarquia entre um tipo de conhecimento que entende a pessoa como um todo e, na contramão, outro, mais "tradicional", que vê a pessoa de forma fragmentada, "em caixinhas". A discussão que importa não reside em pensar se o conhecimento que rege as ações técnicas e institucionais é tradicional ou transformador, globalizado ou fragmentado. A questão está em considerar que "todo saber assegura o exercício de um poder" (Machado, 1993:XXII), tornando-se importante entender o conhecimento em sua materialidade, isto é, investigar a formação de determinados domínios de saber-poder, especialmente nas ciências sociais e humanas, e como atuam na constituição dos sujeitos sociais.
Para frequentar as reuniões semanais organizadas pelos/as integrantes do GTM, geralmente passávamos no centro da cidade para darmos carona a alguns de seus/suas técnicos/as. Nessas idas e vindas, discutíamos muito sobre as atividades desenvolvidas, os sentimentos que envolviam a todos/as e algumas de nossas impressões sobre as mulheres e crianças que participavam dos encontros. Falávamos, por exemplo, de Elena, uma mãe que frequentava as reuniões e que se tornou um dos principais focos de discussão no grupo. Numa dessas idas, contávamos ao coordenador, que ela não havia estado presente no último encontro, sobre a filha de Elena - Daniela, de seis anos - que se mostrara muito abatida, antes e após ter vomitado:
A técnica disse que havia olhado para o vômito, e era só água e uns grãozinhos, parecendo se referir à má (ou a falta de) alimentação. Eu disse que não podia nem olhar, para não vomitar junto. Então, o coordenador comentou entre nós que a técnica olhou como era o vômito devido ao seu instinto materno (Diário de campo, 1º/8/2007).
Examinar o vômito e "ver" o que há nele passava a ser entendido como um cuidado diretamente ligado à existência de um suposto instinto materno (mesmo que a mãe da criança e a pesquisadora não tenham dado atenção ao fato). Nesse contexto, o cuidado tornava-se um conceito generificado, um atributo essencial de todas as mulheres, naturalizando-as e posicionando-as como cuidadoras e protetoras, inclusive as técnicas e as visitadoras. O coordenador, como médico, devido à sua vinculação ao discurso biomédico, tornava-se alguém legítimo para falar sobre a função de cuidar, bem como para intervir e responsabilizar. Com isso, como indica o excerto, contribuía na produção de um raciocínio generificado.10 Interessava-nos, pois, refletir sobre a forma como o conhecimento (acionado para falar do cuidado) era significado naquele contexto e sobre o efeito que ele produzia, tornando-se referência capaz de dirigir e orientar práticas institucionalizadas e familiares e posicionando homens e mulheres em lugares distintos.
Sentidos de conhecimento e produção de posições de sujeito: mulheres-visitadoras, mulheres-voluntárias, mulheres da comunidade
Para aproximar-nos das formas de manejar os sentidos dados ao conhecimento quando se ensinavam as famílias sobre a educação e o cuidado das crianças de zero a seis anos, foi importante interagir com aquele que foi/é considerado um dos principais elos do PIM com as famílias cadastradas - suas visitadoras.
O primeiro contato com as visitadoras foi em uma reunião de avaliação que contou com a presença do GTM e das sete visitadoras que permaneciam contratadas. A pauta principal seria avaliar as atividades e o passeio realizados no Dia Internacional da Mulher, mas o que ficou em evidência na reunião foi a avaliação das posições que as mulheres-visitadoras vinham ocupando na sua relação com as famílias, além de discutir algumas ações e planejamentos futuros, como a participação das visitadoras na natação11 e nas atividades do Diário de Canoas no Seu Bairro12, a preparação para a realização do Chá dos Bebês13 e orientações para a realização das atividades da modalidade grupal de três a seis anos.
Por meio da avaliação do trabalho realizado pelas visitadoras, eram colocados em jogo interpretações e entendimentos que técnicos/as e visitadoras tinham daquela função, abrindo um campo de disputa e de negociação de sentidos em torno da ocupação de posições de sujeitos distintas: mulheres-visitadoras do PIM, mulheres-voluntárias e mulheres da comunidade.
Sem dirigir muito o olhar para a equipe de técnicos/as, uma das visitadoras fez a sua avaliação do passeio. Abaixo, as observações registradas no diário de campo:
O passeio foi um "desastre", pois o dia estava muito quente, o ônibus atrasou e as atividades oferecidas não eram adequadas. Falou-se sobre a dificuldade no acesso à sala da palestra, distante, muitos degraus, dificultando o acesso de pessoas obesas ou com mais idade; as crianças não deveriam entrar na sala, logo, as mães também não. Após os comentários, o coordenador tentou analisar a função das visitadoras; segundo ele, elas não haviam se "diferenciado das mães" e durante o passeio deveriam ter assumido "um lugar diferente: desafiador, educador e animador". Ele admitia os problemas, mas que elas, enquanto visitadoras, deveriam ter se "diferenciado", assumindo a posição de "representantes do PIM" (Diário de campo, 16/3/2007).
No que se refere à constituição dessas relações, aquelas discussões começavam a trazer importantes indicativos de análise: que posições as mulheres precisariam ocupar como visitadoras para materializar as propostas do PIM? O "lugar diferente" a que o coordenador se referia fazia parte, implícita ou explicitamente, de um conteúdo mais amplo que deveria ser praticado e desenvolvido com as mulheres-mães, e para isso era preciso desafiá-las, educá-las, animá-las. Nesse momento, as mulheres da comunidade precisavam deslocar-se de uma posição de sujeito para ocupar outra, como mulheres-visitadoras. Como já indicamos, de acordo com o que é preconizado na metodologia, as visitadoras deveriam servir de "elo" entre o PIM e a comunidade, isto é, tornar-se as agentes fundamentais de educação, mas também de mudança das mulheres-mães. Nos discursos que o PIM incorporava e nos quais tratava de posicionar os sujeitos, as mulheres-visitadoras precisavam algumas vezes se assemelhar e em outras vezes se "diferenciar" das mulheres da comunidade, posições de sujeito entre as quais, naquela ocasião, elas demonstraram oscilar. As falas tratavam de expor alguns conflitos referentes a essa negociação e às configurações de conhecimento e poder que lhes eram inerentes:
A avaliação causou um mal-estar no grupo, principalmente entre as visitadoras. Após o comentário do coordenador, uma delas verbalizou: "parece que a gente faz tudo errado". Então, os/as integrantes do GTM retomaram a importância da avaliação, de cada um assumir o seu lugar e as suas funções no grupo, da necessidade de intervir, crescer e de refletir sobre a seriedade do trabalho (Diário de campo, 16/3/2007).
Ao oscilar, as mulheres reiteravam a ocupação dessa dupla posição de sujeito: mulheres da comunidade e mulheres-visitadoras. Para educar e atingir os objetivos e as propostas formuladas pelo PIM, elas precisavam deslocar-se, mesmo que temporariamente, de uma posição a fim de assumir outra. Naquele momento, "fazer tudo errado" significava não conseguir realizar essa tarefa. Avaliar-se incluía, então, uma função específica: a de rever-se, julgar-se, apropriar-se, deslocar-se de um lugar a outro, incorporar a diferença necessária para exercer aquela função. Foi também ao avaliar o evento Diário de Canoas no Seu Bairro que o coordenador voltou a marcar a diferença necessária entre as visitadoras e as famílias atendidas:
Vocês [as visitadoras] realizam atividades muito importantes para o desenvolvimento das crianças, e, na hora das fotos, fica o registro [no jornal] de vocês, em pé ou sentadas... Precisamos deixar o registro do trabalho do PIM, vocês com a mão na massa, realizando as atividades com as crianças e as famílias (Diário de campo, 16/3/2007).
Era possível captar os olhares e os silêncios das profissionais em relação ao que era tratado pelo GTM. A negociação de sentidos que ali se efetivava indicava relações diferenciadas de saber e poder e a marcação de lugares distintos. Os silêncios poderiam estar diretamente relacionados à fragilidade e à provisoriedade dos vínculos de trabalho das mulheres-visitadoras com o PIM, evidenciando diferenças econômicas, sociais e de escolaridade. Tais situações iam revelando a construção de uma "tessitura da vida social" que tornava possível comparar comportamentos, descrever emoções e apreender o contexto em que elas se inscreviam (Fonseca, 1999).
Uma das visitadoras relatou, na entrevista, que foi escolhida para a função porque já realizava, através da culinária, um trabalho voluntário com outras mulheres daquela comunidade. Nos discursos que circulam reiteradamente nas políticas de educação e(m) saúde e de inclusão social - e não foi diferente no contexto desta investigação -, realizar um trabalho comunitário era equivalente a ser um/a voluntário/a, termo usado com o sentido de doar-se, cumprir uma espécie de "missão" social. Ficava evidente, inclusive nos critérios de escolha para exercer a função, a positividade em indicar, no currículo da mulher da comunidade que pretendia se candidatar à função de mulher-visitadora, a ocupação anterior como mulher-voluntária.
A reflexão sobre os "sentidos da solidariedade" - e, acrescentaríamos, da difusão de uma cultura do voluntariado nos espaços políticos e da assistência - é discutida por Francisco Pereira Neto (2006:111), que, em seu campo de observação, buscou "compreender alguns processos sociais por onde passa a construção dos sentidos da solidariedade em nossa sociedade". Para esse autor, é a partir da construção de uma determinada ordem social que espaços políticos, assistenciais e, de nosso ponto de vista, também da educação e(m) saúde buscam estabelecer interfaces, a fim de suscitar o desenvolvimento de "estruturas de sociabilidade" importantes para a definição de uma determinada sociedade.
Voltando às visitadoras, foi através das conversas com elas que pudemos conhecer um pouco das diferentes motivações que as levavam a justificar seu engajamento com as propostas do PIM. Entre os relatos, era recorrente a fala sobre a procura e a necessidade de emprego, o gostar de crianças, o compromisso com a comunidade e, como já abordamos, a aproximação com o trabalho voluntário. A palavra "voluntária" era recorrente naquele meio e servia como uma espécie de passaporte para uma futura contratação no PIM.
Prevalecia, entre elas, um modo de narrar-se que destacava ações, comportamentos e sentimentos comuns vinculadas com atividades tomadas como marcadamente femininas, fazendo circular sentidos e a necessidade de agregar-se a outras posições: da mulher-visitadora abnegada, engajada, voluntária, comprometida, criativa, afetuosa, atenciosa, que educa. A invisibilidade ou a ausência dos homens nesse contexto não indicava apenas um distanciamento deles das funções relacionadas ao desenvolvimento infantil e ao cuidado, mas a própria condição em que se estruturavam as relações (que incluíam as formas de ensinar e de conhecer) em torno da constituição do PIM (Klein e Meyer, 2008).
O status de verdade adquirido por discursos médicos, biológicos, pedagógicos, assistenciais e governamentais funciona na direção de legitimar a significação da execução de determinadas funções como destinos naturais de mulheres e homens, tornando quase impensável o seu questionamento. Talvez por isso o argumento sobre o desejo de renovar a contratação e ocupar a posição de mulher-visitadora venha marcado, principalmente, pela necessidade de "ajudar a comunidade carente" e pela relevância social desse trabalho (relacionado à educação, mas também à paciência, ao vínculo sentimental e à doação) para as crianças e famílias, mais do que pelas necessidades concretas e imediatas de trabalho e remuneração. Trata-se de uma espécie de vocação ou messianismo, seguidamente associado ao trabalho feminino. Este último, ao mesmo tempo em que é valorizado como voluntário, é desvalorizado por não ser pago ou proporcionar baixíssima remuneração (no caso das visitadoras contratadas) - provavelmente, por ser um trabalho considerado como extensão da esfera doméstica e/ou ligado às responsabilidades das mulheres como mães.
Ao atribuir à mulher-visitadora as funções de ensinar, monitorar, verificar, corrigir e acompanhar as mulheres-mães, o PIM constitui formas de controle e regulação social que, supostamente, são invocadas sem nenhum elemento de coerção. Nessa perspectiva, pode-se dizer que é através de processos educativos que circulam no âmbito de políticas sociais que o Estado organiza suas ações junto às famílias pobres e/ou vulneráveis, buscando conhecê-las, obtendo delas informações; enfim, constituindo certa racionalidade que permite traçar medidas de prevenção, produzir indicadores de desenvolvimento infantil e de redução da morbimortalidade e da violência, nesses contextos sociais. Nesse sentido, passa a constituir saberes específicos que possibilitam formas de controle e de regulação de um determinado segmento da população. São ações eminentemente políticas, uma vez que buscam educar para produzir, por meio da ordem técnica, "medidas comuns", bem como formas de acompanhamento, descrição, planejamento, índices de comparação, cálculos, avaliações, intervenções, ou seja, uma série de variáveis que passam a reger códigos de comportamento e conduta (Ewald, 1993).
Isso pode ser discutido tomando-se como referência, por exemplo, o direito à educação formal. Segundo Sandra Andrade (2008:149), a educação formal passou a se constituir como um pressuposto fundamental para o desenvolvimento de qualquer nação nas sociedades ocidentais modernas, nas quais "a educação passa a ser mensurada como um valor de cidadania e dignidade da pessoa humana, itens fundamentais ao Estado Democrático de Direito". Para a autora, a "educação como um direito fundamental" tornou-se cada vez mais visibilizada tanto na esfera internacional, através de tratados, acordos, cartas de princípios, pactos e declarações, quanto em âmbito nacional, incidindo na implantação e na organização de projetos, políticas e programas a serem elaborados como meio de atender ao princípio de educação como direito de todos e universalização do ensino. Em decorrência disso, ao buscar-se a crescente inserção de todos os indivíduos nos processos de escolarização (formais ou não), multiplicam-se as disposições curriculares, as formas de avaliação e as propostas de ensino, e, com isso, intensificam-se também as possibilidades de acesso e de adesão à educação escolar, deslocando-a da condição de um direito adquirido para a condição de uma obrigação a ser cumprida, uma necessidade a ser satisfeita, um imperativo contemporâneo (Andrade, 2008).
Assim, escolarizar-se (e educar-se) responde a um imperativo que produz pertencimentos, condições, acessos, direitos, obrigações e enquadramentos capazes de produzir efeitos muito concretos nas nossas formas de viver. No que se refere ao tema em foco neste artigo, é importante refletir sobre como políticas governamentais (por exemplo, o PIM) passam a incorporar pressupostos da educação escolarizada e da educação como direito, instituindo quem deve ensinar e quem necessita aprender, além de um currículo que propõe estruturas, metodologias e avaliações que pedagogizam a maternidade e as relações familiares, disseminando capacitações, cartilhas, guias, cadernetas de acompanhamento, conceitos, normas, medidas e valorações.
Como mais uma forma de governamentalidade, própria do sistema neoliberal, a educação passa a ser amplamente divulgada, principalmente na mídia, como uma tarefa de todos, ocorrendo o "deslocamento de uma ênfase na dimensão pública estatal para a dimensão pública não estatal" (Klaus, 2004:141). Uma vez que a educação deixa de ser responsabilidade exclusiva do Estado, são as famílias, a comunidade e os/as voluntários/as que necessitam se tornar parceiros/as estratégicos/as, cuja função passa a ser fundamental para a configuração de uma nova "espacialização do governo" (Klaus, 2004:141). Pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que as políticas de inclusão reiteram a importância da escolaridade das mulheres como fator de diminuição da vulnerabilidade social, elas tratam de afirmar o investimento na mulher enquanto mãe que, diante de um contexto de extrema pobreza e desigualdade social, necessita permanecer em casa, ocupada com a educação dos/as filhos/as.
Nessa direção, posicionar as mulheres-visitadoras (assim como as famílias, por meio das mulheres-mães) como indivíduos responsáveis, competentes e capacitados que se doam funciona como uma estratégia capaz de multiplicar os enunciados de que a educação é tarefa de todos para que, ao fim e ao cabo, a educação seja um direito de todos - mesmo quando a educação é definida como não formal, como a que é proposta pelo PIM.
Entendemos que é nessa direção que as mulheres-visitadoras mobilizavam as noções de "trabalho voluntário" e de "compromisso com a comunidade", envolvendo-se na tarefa de educar proposta pelo PIM:
Acho importante o compromisso e, como eu já faço trabalho voluntário, direcionado às famílias carentes, eu já tinha toda uma capacitação e trabalho com a comunidade. E também, a necessidade de um trabalho, né? Talvez se eu tivesse outro ganho e fosse um trabalho voluntário, eu faria da mesma forma (Sônia, 13/7/2007).
Eu não sabia o que era o PIM, eu estava levando minha vidinha de dona de casa, fazia de vez em quando uma faxininha aqui, outra faxininha ali, mas desde que vim pra Canoas, atuei na comunidade. Um dia, tinha um movimento na igreja e eles estavam fazendo as primeiras palestras, fizeram inscrição, coisa e tal. Eu trabalhei 20 anos na Pastoral da Criança, fui voluntária (Goreti, 10/10/2007).
Assim, para justificar a aproximação e o interesse em trabalhar como mulheres-visitadoras, as candidatas precisavam marcar sua diferença das mulheres da comunidade. Primeiro, segundo Sônia, fazendo referência a "toda uma capacitação" que expressa a aquisição de um conhecimento diferenciado ou maior do que o das demais mulheres; segundo, através da realização de um "trabalho voluntário, direcionado às famílias carentes", mostrando também que a diferença está em possuir uma experiência voluntária por se tratar de "famílias carentes". Já Goreti, ao dizer que vinha levando sua "vidinha de dona de casa, fazia de vez em quando uma faxininha aqui, outra ali", demonstra o quanto se aproxima da forma de viver das mulheres da comunidade, inclusive social e economicamente. Entretanto, para mostrar o seu interesse em trabalhar no PIM, marca a diferença acionando seus 20 anos de trabalho voluntário, deixando também subentendido que trabalhou com famílias pobres. Para se tornarem educadoras das mulheres da comunidade, Sônia e Goreti apontam que precisam se tornar sujeitos de um discurso preconizado no âmbito das políticas de inclusão social, alternando posições de sujeito em suas falas, ora falando das suas necessidades e experiências cotidianas como mulheres da comunidade, ora falando das suas aproximações com o trabalho que uma visitadora deve cumprir: ter compromisso com a comunidade, aprender para ensinar outras mulheres e gostar de crianças.
No contexto das falas dessas mulheres, assim como no das mulheres-visitadoras, tornava-se possível também apreender que um dos sentidos atribuídos ao conhecimento se aproximava de "informações simplificadas" que eram acionadas na tarefa de ensinar as outras mulheres. Nesse sentido, para a realização desse trabalho com as mulheres-mães, as mulheres-visitadoras precisavam capacitar-se. Na comunidade investigada, esse processo de capacitação se iniciou com a realização de um curso de 40 horas, organizado pelo GTM, além dos encontros semanais que visavam à realização de (in)formação, planejamento e avaliação das ações desenvolvidas com as famílias - atividades previstas na metodologia. Por meio dos relatos das mulheres-visitadoras e do acompanhamento das modalidades de atenção, pudemos visibilizar mais alguns sentidos atribuídos ao conhecimento veiculado pelo PIM que, mais uma vez, eram acionados para diferenciá-las das mulheres da comunidade, legitimando-as a realizar o acompanhamento das gestantes e a ensinar as famílias sobre o desenvolvimento infantil, bem como a intervir na rotina familiar. Ao perguntarmos à visitadora Sônia sobre o que faltava às famílias para cuidarem melhor de suas crianças, ela respondeu: "Ah, falta capacitação, falta estudo, falta muita coisa [...]" (Sônia, 13/7/2007), o que converge com a demarcação de lugares específicos, provenientes de um processo dinâmico entre quem deve se tornar legítimo para ensinar e quem necessita aprender.
Ao participar dos treinamentos às parteiras, na cidade de Melgaço/PA, Soraya Fleischer (2006:2) analisou como os cursos preparatórios atuavam "como importante ritual iniciático às mulheres inexperientes e como ritual confirmatório às mulheres já atuantes". Nessa incursão, as mulheres demonstravam compreender que os cursos funcionavam como uma espécie de "senha" capaz de lhes abrir possibilidades, respaldo e reconhecimento frente à insatisfação por parte de algumas famílias atendidas. Através desses encontros, compartilhavam não apenas viagens, conhecimentos, experiências e técnicas de trabalho, mas também um mesmo conjunto de materiais - bolsas, camisetas, livros, certificados - que simbolicamente expressavam tanto o uso de uma linguagem "oficial" quanto o "prestígio" conferido pelos cursos, além de demarcar e consolidar um pertencimento à função.
Na mesma direção, ao perguntarmos à visitadora June sobre como as mulheres-mães a acolhiam nas propostas desenvolvidas, ela contou que a maioria a recebia bem, mas que muitas vezes chegavam a lhe dizer: "[...] tu não tens experiência, eu tenho três filhos, tenho 30 anos, e tu és uma guria novinha, não tem filhos, como é que tu vais vir aqui [para me ensinar]?". June demonstrava compreender que a fala dessa mulher-mãe punha sob tensão a lógica e os lugares propostos pelo PIM e explicitava que, para ensinar outras mulheres a cuidar dos/as filhos/as, a visitadora precisaria ter mais idade. Isso, naquele contexto, assumia o sentido de experiência, sobretudo no que dizia respeito a conhecimentos e atividades relacionados à maternidade. Para tentar contornar sua "falta de experiência" (ali significada como conhecimento), a visitadora dizia às mulheres: "Eu não tenho filhos, mas estou sendo capacitada para isso, eu tenho profissionais que me ensinam, tenho o coordenador, que é pediatra, e hoje eu tenho 'outro' conhecimento" (June, 23/7/2007). Se, para a mãe de três filhos, era a experiência que contava como conhecimento, para a visitadora, ele assumia um valor científico, neutro e atemporal, capaz de suplantar a experiência e o número de filhos/as das mulheres ali atendidas, além de inseri-la num campo de apropriações cujos desdobramentos apresentavam implicações técnicas, mas principalmente políticas. Uma suposta incorporação desse conhecimento permitia e justificava que as visitadoras pudessem entrar nas casas das famílias cadastradas, indagar e orientar acerca da organização familiar, de comportamentos e práticas dos sujeitos envolvidos. Esse conhecimento lhes conferia autoridade para educar, intervir e atuar na mediação entre as famílias e os serviços públicos.
Com a observação no campo e a realização das entrevistas, o contato com as visitadoras foi se ampliando, e isso permitiu conhecer um pouco melhor suas histórias: vinculações de trabalho, pertencimentos sociais e econômicos. Assim, nos encontros desenvolvidos, tanto com as gestantes e mulheres-mães quanto nos eventos festivos realizados em diferentes ocasiões, foi possível registrar a frequente presença das ex-visitadoras nos espaços do PIM:
As ex-visitadoras Goreti e Keli vão até a Associação e cumprimentam o pessoal, ficam um pouco e parecem sondar se o PIM realizará novas contratações (Diário de campo, 29/8/2007).
Participo da festa do Dia das Crianças. Sento-me um pouco ao lado da ex-visitadora Janete, que me apresenta uma mãe, com uma criança no colo, e disse: "esta é uma família PIM". [...] Vejo que o pessoal precisa de auxílio para a preparação e distribuição dos lanches, então me uno ao trabalho com a ex-monitora e Renata, outra ex-visitadora, que chega mais tarde para ajudar. Ela nos conta que saiu às 14 horas do serviço que conseguiu na prefeitura devido à campanha que fez para um vereador. Mais tarde, vejo Luísa, também ex-visitadora, grávida de sete meses (Diário de campo, 10/10/2007).
As ex-visitadoras (assim como a pesquisadora) não apenas pareciam buscar reconstruir seus vínculos de trabalho com o PIM, como também demonstravam corporificar os ensinamentos desenvolvidos através das muitas lições. Naqueles momentos de festa ou mesmo nas reuniões com os grupos de mulheres-mães, gestantes e crianças, todos/as precisavam participar, aprender, ajudar, doar-se e identificar-se com objetivos comuns. "Colocar a mão na massa", como dizia o coordenador, também passava a corresponder a um processo de diferenciação e responsabilização dos indivíduos, tanto das mulheres-mães com a saúde e a educação das crianças, quanto das mulheres-visitadoras, que eram autorizadas a ensinar conhecimentos legitimados naquele contexto. Pode-se, então, dizer que, nessa relação, alguns/algumas selecionam, organizam e estabelecem quem vai "colocar a mão na massa" e de que forma vai fazê-lo. Assim, em um determinado momento, quem vive e é parte daquela comunidade, como as visitadoras, se posiciona do lado de fora dela, com autoridade para, nas visitas domiciliares, dizer como as coisas devem ser. Talvez fosse nesse sentido que a apresentação de "uma família PIM" pela visitadora pudesse imprimir sentidos específicos para aquela mulher-mãe (e criança): a de incorporar uma linguagem própria que deveria ser aprendida e experienciada através do PIM.
Ema, uma das ex-visitadoras mais antigas, nos foi apresentada após um encontro para o qual fomos convidadas pelo coordenador, para discutir políticas públicas e relações de gênero com um grupo de professores/as de Educação Infantil, ex-visitadoras de Canoas e profissionais do PIM de outros municípios. No término desse encontro, Ema perguntou sobre as novas contratações, pois ela e seu marido estavam desempregados e precisavam trabalhar. Contou que, antes de ser contratada pela primeira vez, em 2003, havia ficado por um período de oito meses trabalhando como voluntária no PIM e que chegou até a vender coisas de dentro de casa para sobreviver. Mesmo apresentada ao grupo na condição de doutoranda e pesquisadora, uma das autoras deste artigo, com frequência era abordada pelas mães e pelas visitadoras como se fizesse parte do GTM, o que evidenciava o quanto a mulher-pesquisadora era interpelada e também passava a incorporar as noções proferidas nos discursos das políticas públicas, desdobrando-se entre outras posições: de mulher como técnica e educadora.
Durante a realização da entrevista com Renata em sua casa, chegou Keli, com todos os seus contracheques do tempo de visitadora. Elas conversaram sobre o pagamento, que, segundo elas, não estava correto. Também falaram que não foram bem atendidas pelas funcionárias da prefeitura - "parece que a gente está esmolando", disse Renata. Elas comentaram que não entrariam na Justiça para "não se sujar" e, pelo que ficou subentendido, por ser uma quantia que elas consideravam pequena. Interrompemos a entrevista, mas foi possível seguir ouvindo a conversa, que indicou mais um pouco da vida daquelas mulheres.
Keli diz que há uma vaga em um supermercado e Renata fala que é para limpeza e que "faxina ela não quer". Keli diz que é para serviços gerais e que parada não dá para ficar; diz que vai sair dali e pegar o telefone de uma mulher que lhe indicará um trabalho numa casa de família, e Renata conclui: "Que Deus não me castigue, mas faxina eu não faço". E Keli finaliza: "Pagando bem, que mal tem?" (Diário de campo, 4/7/2007).
Os relatos de experiências pessoais mostravam o quanto as mulheres-visitadoras se aproximavam das mulheres da comunidade nas linguagens, carências e experiências. Para elas, assim como para muitas famílias pobres, não bastava dar e receber o conhecimento (ou capacitação), e a mudança de paradigma proposta pelo PIM para alcançar o desenvolvimento infantil saudável indicava a necessidade de que algo mais se concretizasse. Por vezes, algumas falas e atitudes das visitadoras conduziam a caminhos inesperados, nos quais também se podiam visualizar faces da pobreza em lugares ou em interlocutores onde não se esperava encontrá-las. As falas sobre as necessidades de se empregar, de fugir de fazer faxina, de trabalhar como voluntária para talvez, mais tarde, receber um salário e exercer uma função que assumiria a conotação de emprego permitiam refletir sobre as microrrelações que se estabeleciam naquele cotidiano.
Ao perguntar para Renata e Goreti sobre as características que consideravam importantes para a realização do trabalho com as famílias cadastradas, elas responderam:
Gostar de criança, do que faz e saber como fazer. Como a gente trabalhava hábitos de higiene, tem que ter um jeitinho de chegar na família "Oh, tu tens que dar banho e cuidar do teu filho". Tem que ter um jogo de cintura, saber como falar para que a família não se ofenda e acabe prejudicando o trabalho (Renata, 4/7/2007).
A principal é conhecer a comunidade, para dar um apoio para a família, mas tu tens que estar no mesmo nível, tu tens que falar a mesma língua. Mesmo que tu entres lá para mudar a cara da família, tu tens que te comportar que nem um deles, tu tens que fazer eles te entenderem (Goreti, 10/10/2007).
A fala de Renata tornava evidente a multiplicação e a incorporação de um discurso em que o investimento no desenvolvimento infantil passava necessariamente pela educação das famílias - tornando-as "famílias PIM". Em vários momentos, o exercício dessa prática educativa elucidava os objetivos da política através de suas visitadoras, ou seja, realizar a transmissão, para a mulher-mãe, de uma cultura de afeto, cuidado, educação e organização familiar. Nessa perspectiva, o desenvolvimento infantil e a saúde passavam a ser objetivos a conquistar, quase exclusivamente, através da demonstração de amor, de conhecimentos sobre cuidado e hábitos de higiene e da adesão integral das famílias aos ensinamentos do PIM. Os investimentos na produção de determinadas posições de sujeito cuja ação estava centrada no amor e na aquisição de um conhecimento específico contribuíam para colocar a resolução de problemáticas vinculadas à infância pobre ou vulnerável na educação e na responsabilização das famílias, por meio das mulheres pobres das comunidades atendidas, além de evidenciarem a definição de maternidade que estava no bojo das ações ali propostas.
"Educar as famílias" e "falar a mesma língua" também eram enunciados recorrentes nas falas das visitadoras, articulando fragmentos de discursos médicos com noções do senso comum que circundam presentemente as políticas voltadas às famílias, em especial quando o foco são a infância e a inclusão social. Nesse sentido, analisar os excertos aqui apresentados permite argumentar que aquilo que as visitadoras indicavam como sendo pressupostos importantes para a sua atuação estava diretamente relacionado a uma forma de conhecer enquanto norma a ser seguida, relacionada ainda com uma norma de família, cuidado, comportamento e feminilidade.
As análises das falas das visitadoras foram ampliando nosso entendimento sobre como elas se posicionavam nesse processo de diferenciação e/ou de aproximação com as famílias cadastradas. Ao mesmo tempo em que Goreti precisava se diferenciar das mulheres da comunidade por meio das suas experiências comunitárias e da aquisição de um conhecimento específico, dizia que era preciso ficar no "mesmo nível" para ser aceita e "mudar a cara" das famílias, o que só se tornava possível ao mostrar que compartilhava as mesmas experiências da comunidade, "falando a mesma língua". Já Renata demonstrava isso quando dizia que, para trabalhar hábitos de higiene ou cuidados com as crianças, por exemplo, precisava ter "jogo de cintura" para não prejudicar o trabalho, sugerindo que, para realizar essas "mudanças" no âmbito familiar, precisava ir devagar e com cautela. O mais interessante talvez seja pensar o quanto as falas sugeriam negociações em torno das significações de cuidado, organização, família e maternidade entre os integrantes do PIM, parecendo indicar distâncias, diferenciações e, às vezes, impossibilidades de realizar alguns acordos.
Além do trabalho sistemático realizado na comunidade, as visitadoras também necessitavam cumprir exigências burocráticas, como o cadastramento das famílias, o planejamento semanal das atividades e a elaboração de relatórios sobre o trabalho realizado, que incluíam a avaliação dos ganhos do desenvolvimento das crianças e do acompanhamento das famílias, a fim de se dar continuidade às propostas educativas do PIM. Novamente, era possível observar o quanto aquelas ações giravam em torno de um foco expresso pela palavra conhecimento, que compreendia e significava, no âmbito da política, o alicerce para a educação das famílias, a base para a formação integral das crianças e o investimento necessário para a realização de um projeto de futuro. O PIM, ao tomar como base uma representação de infância desprotegida e universal, desassociava-a quase totalmente de pertencimento social, econômico ou cultural. O conhecimento, adotado como neutro e imparcial, aliava-se aos objetivos descritos há pouco e precisava funcionar como o principal benefício levado às famílias pobres, ecoando fortemente nas falas das visitadoras:
Certa vez, o coordenador me encaminhou uma família que foi até o PIM pedir visitadora porque ela achou que ia ganhar algo. Ela disse para mim: "Tem trabalho? Roupa?" [Referindo-se à família]. Eu disse: "Olha, o que a gente traz é conhecimento e, dependendo da necessidade, a gente encaminha para os atendimentos" (Sônia, 13/7/2007).
Refletir novamente sobre os significados referentes às noções de dar e receber tornou-se importante, uma vez que os sentidos associados ao PIM desdobravam-se na fala de seus interlocutores. A impressão que ficava em alguns momentos era a de que as propostas educativas, assim como o conhecimento ali difundido, se aproximavam de sentidos regeneradores, ligados a comportamentos generosos e altruístas; a transformação parecia depender quase exclusivamente das ações dos/as técnicos/as e visitadoras e, principalmente, da adesão das mulheres-mães.
Nos argumentos das visitadoras, as propostas seguiam a direção de defender a substituição de alguma coisa por outra, ou seja, em vez de receber roupas ou alimentos, as famílias receberiam do PIM conhecimentos que, na prática, responsabilizavam as mulheres-mães pela promoção do desenvolvimento integral das crianças. Com isso, os significados do que vinha a ser compreendido como carência ou necessidade de receber também se tornavam o foco de um processo educativo em que comportamentos, crenças e formas de viver deveriam ser negociadas entre seus interlocutores.
Desse modo, argumentos e ações propostas por meio do PIM, assim como em outras políticas, indicavam um eficiente mecanismo de viabilização da minimização do Estado, na medida em que responsabilizam e ensinam indivíduos a educarem(-se) e cuidarem(-se) corretamente, a tornarem-se competentes e independentes, principalmente diante da falta de condições e estruturas públicas adequadas. Isso ocorria mediante uma espécie de conhecimento, que ali tomava o sentido de algo pronto, de informação a ser transmitida, e não de algo produzido na interação.
Contando sobre a sua área de atuação e como viviam algumas famílias, Sônia traz algumas pistas da ênfase do trabalho na mulher-mãe:
Aquela área era bem carente, necessitada e a mortalidade infantil alta. Tinha crianças de cinco anos sem registro; as gestantes, a maioria não fazia pré-natal, se criando sem valores, sem objetivo de melhorar. Depois que o PIM e os agentes de saúde entraram lá, mudaram muitas coisas. Elas se habituaram a ir mais ao posto, a querer o PIM para melhorar. Acho que já melhorou uns 50%. (Sônia, 13/7/2007).
A fala de Sônia, assim como as de outras visitadoras, expressa a construção de um entendimento de que alguns/ algumas eram capacitados para avaliar os/as outros/as e de que a carência ou a pobreza se referia, na maior parte das vezes, a um sentido negativo. O PIM, na fala da visitadora, ocupa um lugar redentor, capaz de identificar e abordar quem cuida, se omite, abandona, nega, bate ou negligencia. A entrada da família no PIM (e do PIM na família, juntamente com os agentes de saúde) deveria mais uma vez significar a mudança, agora das mulheres-mães, e isso envolveria uma série de compromissos: participar de reuniões, receber as visitadoras em casa, incorporar os ensinamentos propostos, mudar comportamentos, assimilar outra organização familiar, além de frequentar, sistematicamente, o posto de saúde. Uma suposta "correção dos desvios" colocava as profissionais num lugar privilegiado que as capacitava e autorizava a realizar a "conversão social, rumo à reinstalação da harmonia, através da conversão moral dos indivíduos 'desajustados' ou 'desvinculados'" (Schuch, 2009:268).
Considerações finais
Tomar como pressuposto o entendimento de que as políticas são formulações datadas, constituídas e constituintes do social nos permitiu focalizar o PIM como um importante elemento de exame. Contudo o propósito desse exame não foi avaliar a eficácia da política, tampouco negar o seu impacto no que se refere à diminuição da mortalidade infantil, à ampliação dos níveis de permanência na escola e escolaridade de crianças e jovens ou, ainda, à ampliação de acesso a alguns equipamentos públicos e de participação social. Interessou-nos, aqui, problematizar algumas das formas por meio das quais o conhecimento (acionado para falar do desenvolvimento infantil e do cuidado) era significado naquele contexto e sobre alguns dos efeitos que essa cadeia de significação produzia, tornando-se referência capaz de dirigir e orientar práticas institucionalizadas e familiares e posicionando homens e mulheres, mas sobretudo mulheres, em lugares hierarquicamente diferenciados.
Com isso, argumentamos no sentido de que as formas de educar e de atingir os objetivos formulados pelo PIM operam no sentido de posicionar de diferentes modos as mulheres-visitadoras, "elos" de operacionalização da política. Os/as técnicos/as, legitimados/as pelo conhecimento científico, precisam atuar na produção de determinados significados para o desenvolvimento infantil e o que está em seu entorno - cuidado, educação e saúde -, indicando e regulando formas para atuação, intervenção e responsabilização tanto das visitadoras quanto dos membros de famílias pobres, que, em muitos momentos, através de suas necessidades e vivências, colocam os pressupostos da política sob tensão. As mulheres-visitadoras precisavam incorporar o "conhecimento" à sua função, significando-o como uma norma a ser seguida. Prevalecia, entre elas, um modo de narrar-se que destaca ações, comportamentos e sentimentos comuns, relacionando-os com atividades tomadas como marcadamente femininas e fazendo circular sentidos e a necessidade de agregar-se a outras posições: da "mulher-visitadora abnegada", "engajada", "voluntária", "comprometida", "criativa", "afetuosa", "atenciosa", "que educa". A mulher-mãe deve estar aberta a ser ensinada, avaliada, regulada e monitorada, capaz de aprender a organizar-se, propor desafios às crianças, seguir regras de conduta com o propósito de suprir a ausência de uma educação infantil de qualidade que não está ao alcance de muitas famílias pobres brasileiras. A invisibilidade ou a ausência dos homens e da paternidade nesse contexto não indica apenas um distanciamento deles das funções relacionadas ao desenvolvimento infantil e ao cuidado, mas a própria condição em que se estruturam as relações (que incluem as formas de ensinar e de conhecer) em torno da constituição do PIM.
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Uma versão reduzida deste trabalho foi apresentada na 35ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (Anped), que ocorreu de 21 a 24 de outubro de 2012, em Recife/PE.
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No dia 7 de abril de 2003, Dia Mundial da Saúde, o PIM/RS foi lançado pelo então governador Germano Rigotto. Embasado na experiência teórico-metodológica do programa cubano Educa Tu Hijo, tornou-se política pública em 3 de julho de 2006, através da Lei Estadual nº 12.544/2006.
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O PIM tem como objetivo central "[... ] orientar as famílias e gestantes, a partir de sua cultura e experiências, para que promovam o desenvolvimento integral de suas crianças" (Rio Grande do Sul, 2007b:7). Entre os critérios de seleção das áreas beneficiadas pelo PIM, está o número de famílias cadastradas no Programa Bolsa Família (PBF), menor número de crianças assistidas em escolas infantis, maior taxa de mortalidade infantil e maior vulnerabilidade social, estabelecendo-se, assim, pertencimento ou não.
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O estudo ocorreu ao longo de onze meses - de março de 2007 a janeiro de 2008 - através da observação e do registro do trabalho desenvolvido pelas visitadoras e pelos/as técnicos/as, com as mulheres-mães. Durante esse período, realizei entrevistas com seis mães, sete visitadoras e com os/as três técnicos/as. Cada participante assinou um termo de consentimento livre e esclarecido.
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5
Estes três termos em itálico são centrais para o processo de significação e de produção de posições de sujeito que analisamos no artigo. Apesar dessa centralidade, a partir daqui não serão mais destacados para evitar a "poluição" do texto.
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6
Utilizaremos, ao longo da escrita, a palavra visitadora para referir-nos à atividade desempenhada, na sua grande maioria, por mulheres. Durante a atividade de pesquisa, não havia visitadores homens nessa equipe.
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De acordo com as entrevistas realizadas com as visitadoras e com uma das integrantes do GTM, durante a pesquisa, os primeiros processos de seleção de visitadoras de Canoas levaram em conta alguns critérios do tipo: residir na comunidade, possuir primeiro grau completo e ter alguma vinculação com trabalhos comunitários naquela localidade.
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Em março de 2007, período em que se iniciou o trabalho de campo, havia sete visitadoras e uma monitora contratada. Esses contratos foram gradativamente sendo encerrados até junho daquele ano; enquanto ocorria o trabalho de campo, mês a mês, aguardávamos junto com os/as outros/as profissionais as novas contratações de visitadoras. Pela ausência das contratações, a previsibilidade da política se rompia, e a equipe de técnicos/as precisava lançar mão de modalidades de atendimento que não estavam delineadas nas orientações e na metodologia. Pelo que acompanhamos no município, a não contratação estava diretamente associada a tensões político-partidárias. Naquele momento, o PIM Canoas deixava de cumprir as chamadas Modalidades de Atenção (Klein, 2010).
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Esclarecemos que todos os nomes citados são fictícios e que as/os participantes da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.
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"A estimulação em meio aquático", título do projeto na época, contava com a parceria da empresa de ônibus SOGAL (responsável pelo transporte das crianças e seus responsáveis) e da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA-Canoas), responsável pela realização técnica do trabalho.
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Essas atividades eram promovidas pelo jornal Diário de Canoas e ocorriam nos bairros da cidade, mensalmente e aos sábados.
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13
Modalidade de trabalho que passou a ser planejada devido ao grande número de mulheres gestantes.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
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Recebido
29 Maio 2013 -
Aceito
01 Abr 2015