Resumo
Este artigo analisa o confronto político entre as argumentações feministas e as fundamentalistas sobre o aborto, no Brasil dos anos dois mil. Está em jogo a disputa por concepções de vida. As feministas defendem a distinção entre “vida vivida” e “vida abstrata”. A noção fundamentalista exclusiva de “vida abstrata” advinda de argumentos religiosos sustenta os direitos absolutos do concepto desde a fecundação. O aborto deveria ser crime (porque pecado) em qualquer circunstância (sem quaisquer permissivos legais). A análise dos depoimentos de deputados e religiosos fundamentalistas revela o confronto com a laicidade do Estado. Capturam e distorcem os discursos jurídico e genético, disfarçam-nos como discurso de direitos humanos e desqualificam as mulheres como menos sujeitos de direitos. O aborto como “crime e pecado” é vinculado ao “lugar (subordinado) da mulher” na “família tradicional”. As forças neoconservadoras mobilizam-se para a imposição moral religiosa sobre as mulheres e vislumbram o retrocesso, não só dos direitos ao aborto, mas dos direitos das mulheres.
Direitos ao aborto; Argumentações feministas; Aborto como crime e pecado; Religiosidade fundamentalista; Imposição moral; Laicidade e secularização; Retrocesso neoconservador
Abstract
This article analyzes the political confrontation between feminist and fundamentalist arguments about abortion in Brazil in the 2000s. The dispute for conceptions of life is at stake. Feminists argue for the distinction between “lived” life and “abstract life.” The exclusive fundamentalist notion of “abstract life” derived from religious arguments supports the absolute rights of the conceptus since fertilization. Abortion should be a crime (because of sin) under all circumstances (without any legal permissive exceptions). The analysis of the testimonies of fundamentalist federal representatives and clergy members reveals the confrontation with the secular nature of the state. They capture and distort legal and genetic discourses, disguise them as a human rights discourse, and disqualify women as less entitled to rights. Abortion as “a crime and a sin” is linked to the “woman’s (subordinate) place” in the “traditional family.” Neoconservative forces are working toward a religious moral imposition on women and seek the setback not only of abortion rights, but of women's rights.
Rights to Abortion; Feminist Arguments; Abortion as crime and sin; Fundamentalist Religiosity; Moral imposition; Secularity and secularization; Neoconservative retraction
Introdução
As manifestações feministas, especialmente a partir dos anos sessenta e setenta do século XX (a chamada segunda onda do feminismo) alcançaram exitosamente a legalização do aborto em inúmeros países europeus e norte-americanos.
Em contraste com os anos setenta, as dificuldades contemporâneas das novas movimentações pela legalização do aborto na segunda década do século XXI parecem ter crescido no Brasil, assim como em muitos dos países latino-americanos.
Enfrentam a movimentação fundamentalista neoconservadora em favor da família e contra o aborto, que, articulada internacionalmente, absorve o crescimento de uma onda conservadora nos Estados Unidos, e, cada vez mais, ganha tons profundamente impositivos moralistas e religiosos.
O qualificativo de forças neoconservadoras deve-se ao fato de que não se trata da permanência de longa duração na contemporaneidade do pensamento conservador e religioso. É mais do que isso. Desde que irromperam os movimentos feministas pela legalização do aborto a partir dos anos setenta, para quaisquer “novas” ou “antigas” forças sociais se manifestarem e se contraporem ao direito ao aborto, foi necessária a organização como movimento social ostensivo, pois confrontam-se a direitos ao aborto legitimados e implementados em inúmeros e diversos países, não somente no ocidente.
As distintas formas de narrativas fundamentalistas a favor da criminalização e contrárias à legalização do aborto cresceram exponencialmente no Brasil a partir de 2005, em reação à elaboração e à apresentação naquele ano pelo Poder Executivo ao Legislativo de minuta de projeto de lei em favor da legalização da interrupção da gravidez. Embora formalmente elaborada por uma Comissão Tripartite (sendo as “três partes” constituídas por seis representantes do poder executivo, seis representantes do poder legislativo e seis representantes da sociedade civil, indicados ou membros do Conselho Nacional de Direitos das Mulheres), a denominada Comissão Tripartite para Revisão da Legislação Punitiva da Interrupção Voluntária da Gravidez foi iniciativa do Poder Executivo por meio da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres. Essa minuta teve por origem a demanda pelos movimentos feministas da revisão da legislação punitiva do aborto, apresentada e aprovada na I Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres em 2004.
O risco de iminente legalização do aborto a partir de iniciativa do Executivo levou à crescente reação das forças sociais contrárias que passaram a se organizar articulando forças parlamentares e religiosas e buscando expansão e adesão social mais ampla.
Denomino retrocesso neoconservador o período que se inicia claramente ao final de 2005 e que se agudiza a partir dos anos 2010, com o crescimento do poder político da movimentação pró-vida no Parlamento brasileiro que reage a um processo de secularização da sociedade e ao crescimento dos movimentos sociais por direitos humanos. Nos anos noventa e início do milênio era legítimo o debate público e político em prol da defesa dos direitos ao aborto. Ainda que tal objetivo não tenha sido jamais atingido, foi conseguido o atendimento no sistema de saúde de casos decorrentes de abortos em situação clandestina, assim como se instituíram serviços de aborto legal aos casos permitidos pela legislação brasileira.
Na campanha à Presidência da República em 2010, os dois candidatos receberam fortes pressões das Frentes Parlamentares Evangélicas e “contra o aborto”, como também da Conferência Nacional de Bispos no Brasil (CNBB). O retrocesso instala o silenciamento sobre a legalização do aborto no debate político do parlamento e do executivo e introduz uma ofensiva contrária que pretende retroceder em relação aos permissivos descriminalizantes já presentes na legislação brasileira.
Meu objetivo é a análise e reconstrução dos argumentos fundamentalistas religiosos. Recorrerei aos depoimentos de deputados e de palestrantes convidados como especialistas(Beck; Giddens; Lasch, 1997) para um “evento crítico” (Das, Veena,1995) em novembro de 2005. Trata-se da audiência pública que antecedeu a sessão da Comissão de Seguridade Social e Família (em novembro de 2005) destinada a discutir a apresentação do Substitutivo do Projeto de Lei n. 1135/91 baseado na minuta elaborada pela Comissão Tripartite de Revisão da Legislação Punitiva do Aborto entregue à relatora, Deputada Jandira Feghali. Como fiz parte da comissão tripartite, observei, presenciei e ouvi pessoalmente os depoimentos que analiso, também por mim considerados objeto de pesquisa.
Para a análise e a reconstrução dos argumentos fundamentalistas na segunda década do milênio (atual), recorrerei às notícias e aos depoimentos de deputados e religiosos, disponíveis em sites e blogs por eles utilizados para divulgar suas propostas entre os anos de 2011 e 2016, assim como em justificativas de projetos de lei e notícias disponibilizados em sites da Câmara dos Deputados.
Não farei aqui a reconstrução das narrativas feministas. Buscarei, no entanto, alguns casos que me permitam inferir modalidades de argumentações feministas produzidas diretamente no embate com a oposição fundamentalista na cena política. Levarei em conta formulações recentes em blogs feministas nas redes sociais, e formulações enunciadas no evento crítico da audiência pública de 2005. Emerge a preeminência da ideia de “vida vivida” pelas mulheres, frente à concepção fundamentalista de “vida abstrata”, que nada mais faz do que deslegitimar absolutamente os direitos das mulheres a interromper a gravidez em qualquer situação. As formulações de “vida vivida”, de “gente em vida” e de “vida em sua concretude”, enriquecem as argumentações feministas.
Fortalecem a defesa do respeito à ética da justiça e do uso da “ponderação” por acesso a direitos em disputa que se opõem, mas que devem ser levados em conta relacionalmente: os direitos do concepto à “vida (abstrata)” e os direitos das mulheres advindos de sua “vida vivida”. A ponderação, ainda que nem sempre esteja formulada nesta terminologia jurídica, está desde há muito presente nas propostas feministas de legalização do aborto que restringem o direito ao aborto ao período das doze primeiras semanas de gravidez e à necessidade de apresentação de razões e riscos graves (à saúde, à vida e à violação sexual).
Um importante argumento feminista no atual embate é a defesa de um Estado laico como antídoto à força e à modalidade das argumentações religiosas recentes no Brasil contrárias aos direitos ao aborto. Apresento o debate sobre Estado laico e religiosidade em duas sessões iniciais do artigo. Meu objetivo é o de não só confirmar a importância do princípio de um Estado laico para se chegar à possibilidade do direito ao aborto como mostrar a complexa e relativa independência entre visões do aborto como direito e diferentes construções e momentos da constituição de estados laicos e de graus e formas de secularização da sociedade.
A reflexão sobre um breve histórico das relações entre Estado laico, secularização, religiosidade e concepções de aborto precede e prepara as análises das argumentações fundamentalistas neoconservadoras na atualidade brasileira dos anos 2000.
Urge assim a produção de reflexões sobre o debate atual entre princípios laicos e fundamentos religiosos.
O caráter laico de um Estado relaciona-se, de início, com a afirmação da legitimação democrática do poder e não em fundamentos religiosos.(...) A determinação da separação institucional entre Estado e Igreja compõe o contexto de proteção constitucional ao principio, mas com ele não se confunde (Zylbersztajn, 2016:207).
As diferentes formas de laicidade dos Estados nacionais que acompanham as revoluções industriais, econômicas e políticas dos séculos XVIII e XIX e as diferentes formas de secularização das respectivas sociedades naqueles séculos tenderam a progressivamente afastar os fundamentos religiosos de suas leis, invocando argumentos de “razão pública” (Rawls, 2000e 2004), e argumentos que implicassem a não imposição de uma crença religiosa sobre outra. Mesmo Estados que não separaram de forma absoluta a Igreja do Estado estabeleceram formas de laicidade, dado o extenso grau de secularização de suas sociedades, como é o caso da Grã-Bretanha.
Apesar da introdução da laicidade nos séculos XVIII e XIX , a condenação do aborto como crime e pecado, postulada pelos entendimentos da Igreja Católica e das Igrejas protestantes ao longo dos séculos de expansão do cristianismo, não encontrou imediata alteração.
Foi somente no decorrer do século XX com a progressiva laicização e separação da Igreja e do Estado, e com a movimentação por direitos, que, antes dos anos sessenta, alguns poucos Estados legislaram a favor da descriminalização do aborto. Antes de 1960, o primeiro país europeu a legalizar o aborto (com restrições) foi a Suécia, em 1938, seguido pela Finlândia (1950) e pelas repúblicas bálticas (1955) – Estônia, Lituânia e Letônia.
Foi necessária a eclosão nos anos sessenta e setenta dos movimentos feministas que denunciaram o aprisionamento, a morte ou morbidade que afligiam as mulheres que abortavam, para serem desvelados e contraditados os fundamentos religiosos da condenação do aborto.
A criminalização do aborto conflita com os direitos fundamentais, civis, políticos e sociais das mulheres, assim como com a definição mínima de sujeito de direito, pessoa nascida tornada social e jurídica a partir do nascimento, em uma sociedade plenamente laica.
Princípios laicos, fundamentos religiosos e secularização
As razões para a laicidade dos séculos XVIII e XIX não ter tido como resultado a descriminalização do aborto, nem o reconhecimento de que a condenação do aborto estava baseada em fundamentos religiosos, no meu entender, deve ser interpretada à luz da absorção pelos Estados Nações do entendimento cristão de longa duração dos valores familiares e conjugais que se centram na autoridade e no poder desigual de homens e mulheres, e da sexualidade (heterossexualidade e procriação obrigatória porque sagradas).
Sobre a secularização a partir de valores religiosos cristãos, também trata Luiz Fernando Duarte (2004). Já Sonia Corrêa (2016)enfatiza a origem secular dos séculos XVIII e XIX das leis que proíbem o aborto. Embora com ela concorde que essas leis foram criadas em momento da secularização das sociedades modernas, discordo sobre sua origem, que entendo religiosa. Os fundamentos do aborto como crime e pecado foram explicitados como sanções religiosas e ao mesmo tempo regras morais.
A prévia longa duração da criminalização do aborto durante a contínua expansão do Cristianismo no mundo ocidental, da Idade Medieval à Moderna, se deu em contexto em que predominava a não separação entre Igreja e Estado. Durante séculos, as legislações dos Estados se articulavam ou se complementavam com o Direito Canônico. E era o Direito Canônico o paradigma do entendimento do aborto como crime e pecado. Contudo, é importante sublinhar que o aborto não era considerado condenável se ocorresse nas primeiras fases da gestação.
Se foi no contexto das nações modernas e laicas que se desenvolveu o ideário do individualismo e da noção de sujeito de direitos, contudo, nelas permanecia a desigualdade de direitos segundo o sexo. A constituição da desigualdade de sexo/gênero se originava em preceitos religiosos cristãos, fundada na naturalização dos dois sexos tal como entendida por tais preceitos. Esses valores de longa duração foram responsáveis pelo duplo contrato sexual do patriarcado moderno (Pateman, 1988e 1996): igualdade de direitos entre cidadãos e desigualdade sexual de direitos. Foram em grande parte legitimados pelas elites políticas da época. Sem querer diminuir a complexidade da questão, a construção dos Estados nacionais modernos trouxe adicionalmente preocupações natalistas. Afirma Correa (2016): “As revoluções e reformas de regimes políticos dos séculos 18 e 19 – pautadas pela laicidade – impuseram restrições à habilidade das mulheres de tomar decisões razoáveis sobre sua vida sexual e reprodutiva”.
Nos séculos XVIII e XIX os Estados Nações nas metrópoles e nas colônias e nações periféricas legislaram criminalizando as práticas do aborto. Até 1960, a grande maioria das legislações do “mundo ocidental” proibia a prática do aborto.
As formas de criminalizar o aborto segundo o Direito canônico que se desenvolveu ao longo dos séculos, a partir da expansão do Cristianismo, foram variadas e sofreram muitas oscilações (Cunha, 2007; Rosado-Nunes, 2012). De acordo com Ranke-Heinemann (1994), a distinção entre feto inanimado e feto animado foi compartilhada por vários representantes da Igreja. Jerônimo, no século IV, entendia que não havia uma doutrina oficial da Igreja sobre o tema da animação do feto de modo que teólogos poderiam assumir posicionamentos diferenciados e mesmo divergentes (Melo, 1994). A prática somente seria reprovável quando o feto passasse de feto inanimado a feto animado. Tomás de Aquino (1225-1275 d.C.), por sua vez, entendia que o aborto não poderia ser considerado homicídio quando dos primeiros estágios, pois o embrião passava por estágios distintos de desenvolvimento, através de etapas sucessivas. Somente num terceiro estágio, o embrião receberia alma humana, racional (anima rationalis) (Wijewickrema, 1996). De 1588 a 1591, o aborto passou a ser considerado condenável em qualquer estágio da gestação. Em 1599, o Papa Gregório XIV reinstaurou o aborto como condenável apenas a partir do “momento em que a mulher grávida sentisse os movimentos do feto pela primeira vez (cerca de 116 dias após a gravidez)”. É, também importante apontar que os atos de aborto inúmeras vezes não chegavam aos tribunais.
O Direito Canônico era o paradigma para o entendimento no Brasil colonial das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas sobre a questão do aborto. Nas Ordenações Filipinas, não há referência ao crime de aborto, mas ele era entendido como homicídio (Mendonça Correia, 2016). No entanto, com a ressalva que o feto fosse considerado já ter “alma”, restringindo consideravelmente seu alcance.
Somente em 1869, o posicionamento da Igreja sobre o aborto foi oficialmente firmado pelo Papa Pio IX, declarando a animação simultânea, segundo a qual o embrião ficaria investido de alma já no momento da concepção (Wijewickrema, 1996); o aborto passa, então, a ser severamente proibido e considerado pecado grave.
É interessante apontar que os entendimentos religiosos sobre a condenação do aborto e o entendimento da animação simultânea desde a concepção já haviam sido absorvidos por grande parte das comunidades médicas e das elites políticas no decorrer da secularização das sociedades e da criação dos novos Estados Nações nascidos das revoluções políticas e econômicas dos séculos XVIII e XIX .
O Código Penal de 1791, pós Revolução Francesa, e o Código Penal de Napoleão (1810) condenavam com a morte o aborto e o infanticídio. As regras de criminalização – adotadas após as revoluções modernas e seculares – estavam gravadas em leis das metrópoles europeias e haviam sido transportadas para as colônias e contextos pós-coloniais, como lembra Corrêa (2016). O Código Napoleônico de 1810, influenciou diretamente as leis penais adotadas pelos países latino-americanos pós independência. O Código Penal inglês, de 1861, atravessou o império britânico na Ásia, África, Caribe e Oceania (Corrêa, 2016).
Em todo o período colonial e imperial brasileiro, além da absorção dos fundamentos religiosos, não havia separação entre Estado e Igreja Católica. Rodrigues (2008)explicita a passagem do período imperial para a República:
Lembramos mais uma vez que no período imperial a participação do clero na política era oficial e ostensiva: o clero votava e era votado, participava diretamente na vida política parlamentar. Entre bispos e padres, 17 ocuparam cadeiras no Senado e mais de 200 passaram pela Câmara dos Deputados. Esse quadro foi alterado com a passagem para a República, com o clero se tornando inelegível. Lembramos mais uma vez que o arcebispo da Bahia, D. Macedo Costa, candidatou-se ao Senado, mas não foi eleito. Assim, em função do zelo secularizante presente na Primeira República, de separação da Igreja e do Estado, houve a emergência de um laicado católico na arena política progressivamente. Essas são questões fundamentais, visto que estamos trabalhando com um tema caro para a Igreja, ou seja, a família. Nesse sentido, mapear o terreno de atuação da Igreja é fundamental (Rodrigues, 2008:39).
A simples leitura desse texto permite supor como a presença da fundamentação religiosa das leis foi sustentada pela presença de autoridades religiosas no Congresso, e como os acordos políticos se faziam entre representantes da Igreja Católica e a Monarquia. Esse texto nos chama a atenção para a necessidade de reflexões que se dirijam para os efeitos da forte presença, no momento atual, de representantes do Congresso que além de simples membros de suas religiões, também são autoridades religiosas.
O Código Criminal do Império de 1830, no Brasil independente, aderiu parcialmente à longa duração do entendimento religioso sobre o aborto como condenável, pois somente tipificou o crime de realizar o aborto em outrem. Não considerou crime o autoaborto. Estavam ali presentes as porosidades e interfaces do pensamento religioso e do pensamento social da ideia de “honra”, modalidade de argumento (em parte secularizado) que poderia, no senso comum da época, fazer entender à elite política porque uma mulher poderia querer abortar.
No período republicano, o Código Penal de 1890, que teve vigência até 1940, criminalizou não só quem provocasse ou auxiliasse o aborto, como a mulher que o cometesse. Em 1890, o aborto provocado por terceiros e o infanticídio tiveram as penas aumentadas – distantes, no entanto, das penas atribuíveis a homicídios. (Corrêa, 2016). Acrescente-se as preocupações sobre a regulação populacional e a inscrição do natalismo. Mesmo considerado crime, quando o aborto era entendido como realizado pela mulher em “defesa da honra” ou derivado de uma “loucura puerperal” podia ser absolvido ou atenuada a pena. Além disso, poucos casos de aborto chegavam aos tribunais (Rohden, 2003; Hentz, 2013). Rohden (2003)afirma que o termo aborto criminoso começou a ser publicamente citado a partir de 1873, enquanto o entendimento médico falava de embriotomia, feticídio terapêutico ou aborto obstétrico. O Código Penal de 1940 criminaliza o aborto, mas não penaliza o aborto decorrente de estupro (preservar a honra) e o aborto que responde à necessidade de salvar a vida da mulher.
Se podemos falar de lógicas seculares de disciplinamento das condutas sexuais e reprodutivas das mulheres, presentes na instauração dos estados laicos, é porque já haviam sido absorvidos os fundamentos religiosos cristãos de longa duração, responsáveis pela introdução do que já denominei em diversos trabalhos anteriores de “código relacional da honra”. A ideia de “honra familiar” presente nas Ordenações Filipinas que distribui desigualmente os poderes, as atribuições , os deveres e os direitos de homens e mulheres, de pais, mães e filhos/filhas, de senhores e agregados e escravos, está assentada (ou adequada) às normas disciplinares cristãs sobre sexualidade (sendo toda a sexualidade que foge à heterossexualidade considerada sob o signo do pecado da sodomia), diferença de sexo e gênero (as mulheres com dever de obediência ao poder masculino e dever diferenciado de fidelidade) e diferença e distância de status social (referente não só à classe social como ao instituto da escravidão). Os princípios do código relacional da honra persistem no Código Civil de 1916 e no Código Penal de 1940, e na memória social (Machado, 2000, 2001, 2010; Correa, M. 1983).
Essas lógicas de desigualdade nomeadas em torno da ideia de honra, embora secularizadas, advinham dos fundamentos religiosos e alimentavam os entendimentos seculares de leigos, mas também os saberes das comunidades médicas e jurídicas que à época, acrescentavam argumentos médicos como a “loucura puerperal” ou jurídicos como a “defesa da honra” (Caulfield, 2005). Formas de “perdoar” porque uma mulher abortaria transformadas em formas absolutórias ou atenuantes.
O momento político da Assembleia Constituinte introduz claramente na Constituição aprovada em 1988 os direitos fundamentais à democracia, à liberdade e à igualdade. Está a Constituição marcada pelo princípio da laicidade e da explicitação dos direitos fundamentais de todos os cidadãos em uma sociedade cada vez mais secularizada. Pela primeira vez está estabelecida a igualdade de gênero e a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Item IV do artigo 3 da Constituição). Apresenta resquícios que fogem aos princípios da laicidade, como analisa Zylbersztajn (2016), mas é um seu forte marco. Ainda que houvesse na Assembleia Constituinte a presença de políticos que defendiam argumentos religiosos, o princípio da laicidade foi incontornável (Pierucci, 1996; Duarte, 2011).
Contudo, já antes, na transição (a chamada “abertura”) do período da ditadura tornava-se progressiva, ainda que relativa, a secularização da sociedade brasileira e a demanda por laicização do Estado brasileiro. Quebras importantes de interdições requeridas pelos valores religiosos foram realizadas. O Estatuto da Mulher casada em 1962 retirou a mulher casada da situação jurídica de cidadã considerada “relativamente incapaz”, subordinada ao marido, situação decorrente de valores tradicionais e religiosos que legitimavam e legalizavam que até então as mulheres casadas deveriam obedecer aos maridos em tudo que fosse “justo e honesto” segundo o Código Civil de 1916. Do casamento indissolúvel que só admitia a difícil anulação ou desquite, passou-se a possibilitar o divórcio (1977). Se, no Brasil, os arranjos familiares foram sempre variados e diversos (Correa, M., 1982; Almeida, 1987), abriam-se as possibilidades de legalizar e intensificar a realização de novos casamentos, de novas formas de união estável. Foram possíveis a visibilidade e as vivências de identidades de gênero e diversidade sexual, de estilos de vida e de comportamentos diversos nos mais variados espaços sociais.
Foi possível nos anos setenta a noventa no Brasil a eclosão dos movimentos negros contra a desigualdade e a discriminação de raça, a eclosão dos movimentos indígenas, dos movimentos quilombolas, dos movimentos da diversidade sexual (LGBTT), dos movimentos de mulheres e movimentos feministas contra a discriminação de sexo e pela igualdade de gênero.
Respostas religiosas do Vaticano contrárias às propostas e reformas legislativas de descriminalização do aborto
No espaço internacional, a resposta do Vaticano em relação à expansão do movimento de secularização nas sociedades ocidentais metropolitanas e periféricas já se havia dado anos antes, logo depois da expansão do desenvolvimento das tecnologias contraceptivas nos anos sessenta.
Os pronunciamentos do Vaticano, em grande parte, antecederam e acompanharam as movimentações feministas, buscando bloquear, sem sucesso, os processos de legalização do aborto que ocorreram em várias sociedades europeias: Reino Unido (1967), Dinamarca (1973), França (1975), Itália (1978) e Holanda (1980) entre outros. Nos Estados Unidos, foi a Suprema Corte que considerou constitucional o aborto em 1973 com o julgamento do caso Roe x Wade.
A doutrina religiosa católica, a partir da força e da visibilidade do Vaticano no mundo ocidental, se tornou o parâmetro para o confronto com os argumentos dos movimentos sociais seculares pela legalização do aborto. Em 1968, foi publicada a Carta Encíclica Humanae Vitae do Papa Paulo VI.
Na Carta Encíclica Humanae Vitae sobre a regulação da natalidade, é explicitada e enfatizada a obrigação dos membros da Igreja Católica de conformarem o seu agir segundo fundamentos religiosos e divinos. São invocadas a natureza do casamento e as leis da fecundidade como naturais, que, tal como interpretadas pela doutrina religiosa, devem ser obedecidas. Assim, deve-se absolutamente excluir o aborto, tanto o “procurado” quanto o de razões terapêuticas.
11. (...) Na missão de transmitir a vida, eles não são, portanto, livres para procederem a seu próprio bel-prazer, como se pudessem determinar, de maneira absolutamente autônoma, as vias honestas a seguir, mas devem, sim, conformar o seu agir com a intenção criadora de Deus, expressa na própria natureza do matrimônio e dos seus atos e manifestada pelo ensino constante da Igreja.
Deus dispôs com sabedoria leis e ritmos naturais de fecundidade, que já por si mesmos distanciam o suceder-se dos nascimentos. Mas, chamando a atenção dos homens para a observância das normas da lei natural, interpretada pela sua doutrina constante, a Igreja ensinaque qualquer ato matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida.
14.Em conformidade com estes pontos essenciais da visão humana e cristã do matrimônio, devemos, uma vez mais, declarar que é absolutamente de excluir, como via legítima para a regulação dos nascimentos, a interrupção direta do processo generativo já iniciado, e, sobretudo, o aborto querido diretamente e procurado, mesmo por razões terapêuticas(Papa Paulo VI, 1968).
Os argumentos religiosos aqui explicitados são disciplinadores e obrigatórios a todos os membros da religião católica, mas se restringem às sanções possíveis relativas à noção de pecado. Ou seja o aborto, dentro dessa concepção doutrinal religiosa de direito absoluto do concepto, que nada pondera, passa a ser uma interdição absoluta, em qualquer circunstância, para toda a comunidade católica. Contudo, seu poder restringe-se exclusivamente às sanções do domínio religioso relativas à noção de “pecado”. Caso visassem regular toda uma sociedade, englobando católicos e integrantes de outras religiões, ateus e agnósticos, não se trataria mais de entendimento exclusivo da noção de pecado, mas a de crime. Estariam sendo ofendidos direitos fundamentais das mulheres à saúde, à integridade física e psíquica, já que a interdição do aborto seria absoluta, diante da qual nada caberia à mulher fazer, a não ser não abortar, fossem quais fossem as consequências, até mesmo a morte.
À Encíclica de 1968, seguiram-se a Declaração sobre o Aborto Provocado, feita pela Congregação para a Doutrina da Fé da Igreja Católica, em 18 de novembro de 1974 e a Carta Encíclica Evangelium Vitae do Sumo Pontífice Joannes Paulus PP. II, dada em Roma, junto a São Pedro, no dia 25 de março de 1995, na solenidade da Anunciação do Senhor (Machado, 2010).
O ditame de 1869 do Código canônico traduzido e renovado pelas Encíclicas Papais de 1968 e 1995 enuncia que o aborto está absolutamente interditado diante do direito absoluto do concepto. O aborto será condenado mesmo diante de “razões terapêuticas”, isto é, por razão de salvar a vida da gestante, preservar a saúde física ou mental da mulher ou dar fim a uma gestação de concepto com problemas congênitos fatais ou associados a enfermidades graves.
Em sentido contrário aos ditames das Igrejas Cristãs, o entendimento dos direitos humanos das mulheres se consolidaram no espaço intergovernamental a partir do Ano Internacional das Mulheres em 1975 e nos anos noventa com o início e desenrolar das grandes Conferências Mundiais sobre direitos humanos (1993), população e desenvolvimento (1994) e direitos das mulheres (1995). Tais conferências consolidaram a noção de direitos reprodutivos, direitos sexuais e direitos das mulheres como prevalecentes diante das práticas tradicionais que impedissem o seu exercício.
O relativo consenso mínimo intergovernamental nesses acordos, apenas oferecia fundamentos que poderiam ou não se transmutar em novas legislações nacionais, a depender das movimentações locais e nacionais.
Se essa concepção religiosa de aborto passasse a reger a sociedade brasileira, o aborto passaria a ser crime sem permitir sequer as exceções de punibilidade previstas atualmente no Brasil: estupro, risco iminente de morte da mulher e anencefalia fetal. Seria a negação não só dos direitos à liberdade religiosa, do desrespeito aos princípios jurídicos da ponderação que regem a modernidade, como a negação dos direitos fundamentais das mulheres.
Anos 2000: a retomada dos movimentos pela legalização do aborto no Brasil e as respostas das forças neoconservadoras
As novas movimentações pela legalização do aborto, no entanto, se sucedem nas primeira e segunda décadas do século XXI em muitos dos países latino-americanos, assim como em países europeus onde não ocorrera a legalização do aborto no século passado. A Assembleia Legislativa da Cidade do México aprovou em 24/04/2007 a descriminalização do aborto na capital, apesar de forte pressão da Igreja Católica e do Partido da Ação Nacional (PAN) (Folha de São Paulo, 24/04/2007). No Uruguai, o aborto foi legalizado em 2012. Em 2015, o Ministério da Saúde daquele país divulgou em seu relatório informações sobre a prática do aborto em 2014: 6.676 interrupções e nenhuma morte. Ou seja, houve redução das mortes maternas. A única morte registrada em decorrência de aborto foi praticada clandestinamente.
Nessas duas últimas décadas, também cresceram mundialmente as movimentações neoconservadoras atingindo países onde já estava legalizado o aborto, assim como tornaram mais vulneráveis os países onde o aborto ainda não fora legalizado. Chamo de forças neoconservadoras fundamentalistas. Neoconservadoras, pois seu objetivo é a reintrodução, em sociedades já bastante secularizadas e prenhes dos debates por direitos humanos e pela igualdade de gênero, do entendimento do aborto como crime e pecado grave, acrescida do entendimento que sua interdição é absoluta, independente das razões. E para tal se organizam como movimento ostensivo social e político. Fundamentalistas, pois seus parâmetros se baseiam em fundamentos religiosos.
No Brasil, a movimentação pela descriminalização e legalização do aborto que tivera início nos anos oitenta e noventa, assim como a movimentação LGBTT ganhou impulso nos anos 2000, pela maior secularização da sociedade brasileira e pela então maior aproximação entre a movimentação feminista e o Executivo.
Em 6 de abril de 2005, foi então criada pelo Executivo a Comissão Tripartite para Revisão da Legislação Punitiva da Interrupção Voluntária da Gravidez, encarregada de elaborar uma Minuta de Projeto de Lei. No entanto, nem o Substitutivo de 2005, nem o texto do projeto original de 1991 foram aprovados (Machado, 2016).
As sucessivas Cartas Encíclicas e Declarações contra o aborto da Igreja Católica foram bem-vindas pelos adeptos das religiões protestantes em suas diversas denominações que no Brasil defendiam ou passaram a defender posições absolutas contra o aborto, dificultando as possibilidades de leis de descriminalização.
Essa maior secularização da sociedade brasileira aponta para os princípios da pluralidade e da diversidade das formas de “vida privada” e das formas de vivências cíveis no espaço público. Afasta-se do entendimento de valores monolíticos de como devem ser os arranjos familiares, as identificações de gênero e da sexualidade e as decisões sobre reprodução.
As movimentações neoconservadoras de forte base religiosa se insurgem contra o progressivo, ainda que relativo, afastamento da sociedade secularizada em relação aos chamados valores familiares tradicionais (com preeminência do poder masculino) e à moralidade tradicional. O crescimento dos movimentos sociais em busca de direitos sexuais e reprodutivos são a “gota d’água” para a reação neoconservadora.
São movimentações que partem diretamente de políticos representantes religiosos no Congresso brasileiro como a Bancada Evangélica, criada em 2003, denominada Frente Parlamentar Evangélica, e as várias frentes que se formaram em resposta à movimentação pela legalização do aborto, a partir de 2005.
Em resposta à proposta de legalização do aborto, foi criada em 2005 a ONG Brasil Sem Aborto que passou a promover anualmente, Marcha pela Vida e participou da elaboração do Estatuto do Nascituro, projeto que está em tramitação na Câmara dos Deputados, e que, segundo seus propositores do movimento “pró-vida”, poderia “blindar o país contra uma possível legalização do aborto” (Jônatas Dias Lima, 2015).
Em outubro de 2005, foi registrada a primeira “Frente Parlamentar em defesa da vida contra o aborto”. A partir da legislatura seguinte, houve a formação de mais uma frente: a Frente Parlamentar a favor da Família. Integram-se assim, em nome da defesa de valores religiosos as temáticas da família tradicional , da oposição ao aborto e da oposição aos direitos dos homossexuais.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2011, reconheceu a equiparação da união homossexual à heterossexual. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que os cartórios brasileiros não poderiam se recusar a converter união estável homoafetiva em casamento.
As frentes de orientação religiosa e a favor dos “valores tradicionais” permanecem no decorrer das legislaturas. Em 2015, estavam registradas a “Frente Parlamentar Mista da família e apoio à vida” e a “Frente Parlamentar em defesa da vida e da família”.
Em 2016, em resposta ao enunciado (recebido com entusiasmo pelas movimentações feministas) do parecer da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal que declara que o aborto nas doze primeiras semanas não deve ser considerado crime, os presidentes da Frente Parlamentar Evangélica, da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família e de uma nova frente, a Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana, assinaram nota em 30 de novembro de 2016 contra decisão da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, que, no dia anterior, teria, pelo parecer do Relator Ministro Luís Roberto Barroso, desprezado a “inviolabilidade do direito à vida”.
Contrariamente aos princípios da laicidade, todas essas frentes são claras ao se posicionarem em nome de motivações e argumentos religiosos, quer sejam seus membros das mais variadas denominações evangélicas, protestantes históricas, espíritas ou católicas.
Por outro lado , a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) continua a participar politicamente como voz a favor da manutenção do aborto como crime a partir do seu próprio espaço institucional na sua relação histórica com o Estado.
Na contemporaneidade brasileira, a ideia do aborto como crime e pecado já sofreu um processo de secularização. Não é um valor considerado imemorial e intocável, nem consensual. Tende a informar mais o pronunciamento de uma opinião em abstrato do que ser o parâmetro da decisão de abortar ou não.
Na vida cotidiana, mulheres confrontam-se de um lado com a ideia de interrupção da gravidez como direito (se não em seu próprio país, em outros), e de outro com a necessidade de refletir o que fazer: levar adiante a gravidez ou interromper a gravidez, uma ação que pode ser considerada desejada, indesejada ou imprescindível, a depender do contexto e da situação específica em que avalia seu querer e sua possibilidade de se tornar mãe. O saber que o aborto é legalmente considerado crime se impõe pela inacessibilidade a formas legais de aborto e a necessidade de recorrer a formas clandestinas mais ou menos seguras, a depender de sua capacidade de custear os procedimentos. Pesquisa no Brasil mostra como é generalizado o conhecimento pela população entrevistada do exercício de aborto por ela mesma ou por alguém que conhece (Faúndes; Leocádio; Andalaft, 2002; Rocha, 2006).
É, pois, diante de uma sociedade heterogênea de situações vividas e conhecidas, em relação às formas familiares, de sexualidade e de valores em relação ao aborto, que se dirigem as movimentações pela interdição da legalização do aborto. Assim não há como chamá-las de forças conservadoras, mas sim de forças neoconservadoras. Seu objetivo é a imposição de valores morais e religiosos para toda a sociedade.
Estratégias e narrativas das movimentações neoconservadoras no Brasil: o púlpito e a cadeira legislativa.
Meu objetivo é mostrar como as movimentações neoconservadoras constituíram no Brasil, a partir de 2003, e especialmente depois de 2005, a estratégia de combinar o púlpito e a cadeira legislativa para condensar em um só poder a autoridade política e a religiosa na focalização dos valores tradicionais das relações familiares que incluem o controle da sexualidade e da reprodução das mulheres. Tal foi a proposta da Frente Parlamentar Evangélica. Seu atual presidente a explicita:
Como igreja do Senhor, não podemos aceitar o conceito distorcido de Estado laico que estão querendo aplicar ao Brasil. Se nos calarmos, chegarão dias em que só poderemos cultuar ao Senhor dentro de nossas casas. Deus nos chamou para confrontarmos o mundoe não nos conformarmos com ele”, finalizou João Campos. Pastor José Wellington agradeceu a presença do presidente da FPE, afirmando que a igreja cresceu com aversão a política, mas hoje, através de pessoas bem preparadas, honradas e capacitadas, precisa que tenham em todas as esferas da nação seus legítimos representantes(Bertulino, 2016).
Cultos realizados nas Salas de Comissões ou em Auditórios do Senado implicam contrariedade ao princípio de laicismo, sem que se possa dizer que atentam ao princípio de laicidade (imparcialidade diante das religiões ) que dele difere. Por laicismo, entenda-se a exclusão da religião da esfera pública de forma enfática, sem qualquer penetração em ambientes estatais (Zylbersztajn, 2016:63). Contudo, no meu entender, seus efeitos atentam de algum modo à laicidade.
Manhã de quarta-feira em Brasília. Um grupo de homens e mulheres se dirige a uma sala para rezar. A cena é comum em milhares de igrejas pelo Brasil, mas, neste caso, seus participantes são deputados – e o local é um dos auditórios do Congresso Nacional. É o culto semanal dos membros da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), um grupo multipartidário que afirma reunir 92 deputados evangélicos. Seus membros são a principal vitrine da mistura de política e religião no Brasil (Struck, 2016).
A contrariedade extrema ao princípio do laicismo tem efeitos que contraditam o princípio da laicidade e o princípio da separação do Estado e da Igreja. A realização do culto na casa do parlamento traduz-se em exposição e visibilização da preeminência dos fundamentos religiosos que, de fato, movem as argumentações e propostas dos projetos de lei dessa frente parlamentar.
São projetos prioritários dessa Frente: a aprovação do “Estatuto da Família”, do “Estatuto do Nascituro” e da PEC 99/2011. Os dois primeiros centram na defesa da chamada “família tradicional” e no combate ao aborto, respectivamente. Das 36 atuais propostas na Câmara, cinco desejam que a interrupção da gestação vire crime hediondo. A defesa desses projetos estão também apoiadas pelas demais frentes pró-vida e pró-família.
Já a PEC 99/2011, se aprovada, permitirá que uma série de igrejas sejam incluídas na lista de entidades com prerrogativa de propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade e Ações Declaratórias de Constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal (STF). Hoje, isso só é prerrogativa de partidos políticos, chefes do Executivo e Legislativo e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre outros. A PEC 99/2011 implicará em enfraquecer sensivelmente a separação entre Estado e instituições religiosas.
Em 2016, a Frente articulou a aprovação do aumento da isenção tributária para Igrejas e permitiu a anistia de multas aplicadas pela Receita contra Igrejas – o valor passava de 300 milhões de reais. Fere-se assim o princípio de que o Estado não subsidie instituições religiosas. Da mesma forma, a concessão de canais de radiodifusão e de televisão proselitistas enfraquece a obediência ao princípio de que o Estado não deva subsidiar instituições religiosas. O proselitismo religioso, além do púlpito e da cadeira legislativa, expande seu lugar no uso dos poderes mediáticos obtidos através de concessões dos poderes públicos. (Zylbersztajn, 2008).
Não pretendo aqui aprofundar-me no escrutínio das atividades e da constituição multipartidária da Bancada Evangélica (como o fazem Duarte, 2011; e Gonçalves, 2011), ou das estratégias das frentes parlamentares pró-vida e pró-família, Apenas registro que o aumento de deputados na Bancada Evangélica tem sido constante nas duas últimas legislaturas. Em setembro de 2016, compunha 87 deputados federais e 3 senadores. Para registrar a Bancada como Frente e poder fazer uso dos recursos da Câmara dos Deputados, foi registrada pelo Ato de Mesa da Câmara, n.69 de 10/12/2005 com número maior que seus membros frequentes, embora assinantes. Para a legislatura 2015-2018 constam 203 signatários1.
Particularmente me interessa desvendar a articulação de diferentes narrativas então produzidas pelas movimentações neoconservadoras que se autodenominam “pró-vida” e “pró-família”, instaladas duplamente no púlpito e na cadeira legislativa: a) a narrativa religiosa que constrói o argumento da legitimidade da maioria religiosa cristã na sociedade brasileira; b) a narrativa jurídica (com base religiosa) do direito absoluto (e não ponderado) da vida do concepto face aos direitos da mulher, reiterando e metaforizando a subordinação da posição da mulher diante da obrigação do sagrado amor materno e diante do papel adjutório de esposa na família tradicional; e c) a narrativa científica (genética) tal como apropriada pela narrativa religiosa sobre o caráter singular e individual do DNA, articulando a descoberta da singularidade individual do DNA à singularidade da alma individual, tal como prescrita na concepção ocidental de indivíduo/pessoa como “corpo e mente”, ou “corpo e alma”.
No meu entender, a identificação do aborto como crime e pecado não é uma proposta isolada que se auto definiria em nome da defesa do “direito à vida desde a concepção”. É uma estratégia e parte integrante da proposta de imposição de um único modelo de família que visa bloquear a pluralidade das formas variadas de arranjos familiares que se desenvolvem no Brasil e no mundo e bloquear as formas diversas de exercer direitos sexuais e reprodutivos. Visa em especial o exercício do controle sobre a reprodução das mulheres, em nome dos valores religiosos.
O argumento da maioria cristã contra a minoria ateísta e o confronto com a laicidade
Para apresentar a conformação das distintas formas de narrativas dos parlamentares a favor da criminalização e contrários à legalização do aborto, recorro aos depoimentos de parlamentares em blogs por eles utilizados e em notícias de 2011 a 2016, aos depoimentos de religiosos integrantes do movimento pró-vida em blogs por eles utilizados, e os articulo com os depoimentos de parlamentares e especialistas na audiência pública de novembro de 2005, na sessão da Comissão de Seguridade Social e Família (em novembro de 2005) destinada a discutir a apresentação do Substitutivo do Projeto de Lei n. 1135/91 baseado na minuta elaborada pela Comissão Tripartite. Essa minuta propunha a legalização da interrupção da gravidez até as 12 semanas e, após, somente por razões de risco à saúde das mulheres, por malformações fetais graves, ou por gravidez decorrente de estupro. Os depoimentos foram gravados e transcritos por minha então orientanda Anna Lucia Cunha (2007).
O Estado deve garantir o que pensa a maioriae acredito que a maioria dos brasileiros acredita no que Deus prega, que é o direito à vida. Não posso separar o deputado do cristão...(Deputado Federal Henrique Afonso, do PT-AC, da bancada evangélica) (Favretto, 2016).
A formação (da bancada) foi uma reação “ao confronto ideológico do PT, que queria promover valores ateístas de esquerda”. Eles buscaram um confronto, e nós respondemos com a defesa dos valores cristãos” (Deputado Federal Sóstenes Cavalcante, do DEM-RJ) (Struck, 2016).
Então, se o país é laico, mas não é um país ateu, e é uma pergunta que eu recebi, porque a maioria da população professa uma fé, assim a legislação desse país está fadada a despersonalizá-lo, caso não leve em conta a religiosidade de seu povo. O que a senhora tem a dizer a respeito disso? (Deputado Federal Osmânio Pereira, do PTB-MG, audiência pública, novembro de 2005).
Concordo quando dizem que o Estado é um Estado laico. E quando dizem que o Estado é laico é porque isso está na legislação: significa que ele não é católico, também não é evangélico, mas também não é ateu. Não é? O ateísmo é a contradição ou a negação de que existe alguma divindade. Portanto é uma contraposição a quem tem uma religiosidade. Portanto, a situação de ateu o Estado também não contempla. E eu não quero uma ditadura do ateísmo aqui. Uma ditadura da minoria.Num país onde se garante um Estado laico, se garante que o Estado não deve legislar nem para aqueles que professam uma religiosidade, mas nem somente para os ateus, também.(...) Ora, e se o Brasil, através de evangélicos, através de tantas outras seitas e do catolicismo, tem 90% das pessoas que expressam alguma religiosidade, isso é um fato a ser considerado na elaboração de leis (Deputado Federal Durval Orlato, do PT-SP, audiência pública, novembro de 2005).
Eu acho que essa visão de defesa da vida, ela se fortalece muito. E a Constituição, no seu preâmbulo, ela de fato colocou que era sob a proteção de Deus que essa Constituição ia ser colocada, ia ser promulgada. O deus que eu conheço ele é o Deus da vida. Imagino, para qualquer um que tenha alguma fé, é o Deus senhor da vida. Então, essa Constituição respeita, a partir do preâmbulo, que todos os seus artigos têm que levar em consideração aquele que é o senhor da vida e que a todos nós ele deu a vida, para que nós possamos proteger a vida, principalmente do indefeso que está no ventre materno(Deputado Federal Nazareno Fonteles, do PT-PI, audiência pública, novembro de 2005).
Entendo que têm três leis. Tem a lei dos homens, que é a Constituição Federal, que é essa aqui que nós aprovamos um dia, dois terços da Casa que aprova; tem o Código Civil, que é a metade mais um; e tem essa aqui, que é a lei de Deus, que é a Bíblia Sagrada. Eu não posso, senhor presidente. Eu queria que a companheira Jandira entendesse. Nós temos a lei de dois terços, a lei de metade mais um e a lei de Deus. Está escrito aqui: “Céus e terras passarão, mas minha palavra não passará”, “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”(Deputado Federal Odair Cunha, do PT-MG, audiência pública, novembro de 2005).
Na última fala, do deputado Odair Cunha (PT-MG), a hierarquia das leis que concebe coloca no seu ápice as leis de Deus presentes na Bíblia, diante das quais devem se submeter as leis constitucionais e abaixo as leis do Congresso.
Todas essas falas acentuam o argumento de que seus projetos de lei se assentam explicitamente em valores religiosos cristãos e que sua legitimidade advém de os cristãos representarem a maioria da população. A minoria de ateus não deve ser atendida. O ateísmo deve ser confrontado.
Levando em conta os entendimentos de Zylbersztajn (2016)e Rawls (2004), todas essas falas se colocam diametralmente opostas ao que se vem entendendo por laicidade. O conceito de pluralismo é essencial sob pena da imposição de valores religiosos pela maioria sobre as minorias. A afirmação de que o ateísmo não deve ser acolhido, mas confrontado, parece esquecer que o princípio da liberdade religiosa, tão caro ao movimento histórico dos protestantismos face à Igreja Católica, peca pela falta de respeito ao mesmo princípio que defende: a liberdade religiosa. O princípio de liberdade religiosa inclui a liberdade de não crer, tanto do ateu como do agnóstico. Cito Coutinho (2011)para sublinhar como a não aderência aos princípios de pluralismo, de liberdade religiosa, e de laicidade, a decisão em nome de uma “maioria” religiosa, não será nada mais que a imposição de uma única moralidade.
O pluralismo, por si só, é incompossível com qualquer forma de união entre o Estado e qualquer religião, pois aquele significa a tolerância e o respeito à multiplicidade de consciências, de crenças, de convicções filosóficas, existenciais, políticas e éticas, em lugar de uma sociedade em que as opções da maioria são impostas a todos, travestidas de “bem comum”, “vontade do povo”, “moral e bons costumes” e outros (Coutinho, 2011).
Pressupõem ainda (num pensamento em cascata no qual as afirmações decorrem umas das outras) que, sendo a maioria da população constituída por membros pertencentes às religiões cristãs, todos creiam “no que Deus prega”: o “direito à vida”; que todos entendam que Deus “é o senhor da vida”, que a todos “ele deu a vida”, e assim, reciprocamente, seja de todos os crentes o dever de “proteger a vida”, principalmente “do indefeso que está no ventre materno”.
Essas falas revelam pressupostos de que bastaria pertencer a uma religião para que todos os membros participassem e aderissem com a mesma intensidade a todos os valores propostos e assim se comportassem uniformemente. Como se eles não pudessem ser flexibilizados, distorcidos ou, seguindo Deleuze (1983), classificados não segundo a mesma regra geral fixa, mas se fazendo como processo de classificar a partir da sua posição individual face a um contexto relacional.
O valor da opinião em abstrato e genérica sobre o comportamento esperado como correto para toda uma coletividade pode ser a de que não se deve abortar. Contudo, em condições concretas, pode-se entender que sim, poderá abortar. Pesquisas feitas com mulheres que abortaram, algumas delas disseram: “não é o certo, mas foi o certo para mim!”. Quando pessoas privam de relações de quem ouvem a necessidade de abortar, tendem a entender e aprovar o ato, pois se colocam em seu lugar. À guisa de exemplo: “como é que você vai parar de trabalhar para ter mais um filho nessa idade, com 43 anos, pressão alta e dependendo do trabalho para sustentar os três filhos que já tem?”. A decisão ou avaliação sobre ato de abortar, ou não, depende da relação social entre quem fala e quem realiza o ato, e da relação de quem aborta face às condições sociais, afetivas, econômicas, psíquicas, de saúde, de todo um nexo relacional. Segundo uma fala feminista em revista online:
A proibição só acontece para uma parte das mulheres: negras e pobres. Legalizar o aborto vai reduzir o número de mortes, principalmente dessas mulheres, porque o aborto só é proibido para quem não tem dinheiro”, afirma Gabriela (Matuoka, 2016).
Nas falas dos deputados aqui apresentadas transparece uma “falsa certeza” ou “pressuposto” de que todos e todas que aderem às religiões cristãs (quase 90% da população) obedeçam aos valores e comportamentos em relação ao aborto por eles postulados.
Pesquisa realizada pela ANIS e veiculada pela Universidade de Brasília (UnB) conclui que 65% das mulheres que abortam seriam católicas e 25% seriam protestantes. Em geral, a mulher que procura o procedimento é religiosa e conhece a maternidade (67% têm filhos). As taxas são maiores entre negras, indígenas, com menor escolaridade, e moradoras do Norte, Nordeste e Centro-Oeste (Diniz, 2016).
A Pesquisa Nacional do Aborto 2106 apresentou números alarmantes sobre a magnitude do aborto no Brasil: uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto – isso significa que 4,7 milhões de mulheres já abortaram. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já interrompeu uma gravidez – prática restrita pela lei e condenada pela opinião pública. Essas brasileiras são, acima de tudo, mulheres comuns. Apenas em 2015, 503 mil mulheres realizaram aborto ilegal. Foram ao menos 1,3 mil abortos por dia, 57 por hora, quase um por minuto, conforme pesquisa nacional inédita (Diniz, 2016).
O direito absoluto do concepto e a metáfora da subordinação da mulher. Travestimento do discurso religioso em jurídico
Como antropóloga, sempre me pergunto sobre a relação de estranhamento e familiaridade com a temática e com os sujeitos sociais objetos de meu estudo. Como feminista e antropóloga (Code,1993; Haraway, 1988), a pergunta que sempre me faço é tentar entender como poderia ser possível a alguém, um outro, desconsiderar, na fala política_ em favor do direito absoluto do concepto à vida_ que são as mulheres quem se situam e estão situadas na mais íntima relação com a gravidez e com o aborto? E, que, “ao menos” por isso, dever-se-ia considerar seus direitos? Como poderia ficar posto o total esvanecimento dos direitos das mulheres à saúde, à vida e à dignidade? Seriam as mulheres menos “gente” diante do valor absoluto do concepto? É o que se interroga uma blogueira feminista.
No que diz respeito ao direito de decisão da mulher, há muito tempo, o movimento feminista vem se atendo a uma ideia radical, isto é, de que mulheres são gente.O que significa ser gente? Grosso modo, poderíamos dizer que ser gente é ser um sujeito biológico, social e político, capaz de elaborar vivências autônomas. O feto não é um ser constituído de forma autônoma tanto biológica quanto social/judicialmente, portanto não constitui um corpo político. Assim sendo, por que sua vida deve ser mais importante do que a da mulher? Por que nós, mulheres, precisamos nos submeter ao privilégio de vida de um ser que ainda não existe de forma independente?Por que muitas mulheres precisam morrer em práticas de verdadeira carnificina? Nada disso deveria ocorrer em um Estado laico, isto é, que desse primazia a decisões racionais e tomasse tanto homens quanto mulheres como seres autônomos(Silva, 2012).
Na pergunta acima está claro o dilema social da busca ética de justiça. Na linguagem jurídica o dilema é traduzido pela necessidade de que as decisões se façam segundo “princípios de ponderação” entre “bens jurídicos”. Na narrativa dos movimentos religiosos contrários ao aborto, nenhuma razão pública é argumentada para não outorgar nenhum direito às mulheres. Sustentam-se apenas os direitos absolutos e exclusivos do concepto em nome da “vida”. Sequer se considera a distinção entre os estágios iniciais de formação do concepto.
Os depoimentos que se seguem não se referem em nenhum momento às mulheres como pessoas concretas e como sujeitos plenos de direitos diante de sua “vida”, sua “dignidade” e suas circunstâncias.
Matar um embrião é o mesmo que matar uma pessoa? Como vimos na questão sobre o aborto, dizer que um zigoto ou um embrião ainda não é uma pessoa é completamente errado, porque a vida humana começa na concepção; o embrião é um ser humano. Ele não poderia ser outra coisa, senão humano. Sua humanidade é inerente. Além disso, embora todo homem um dia vá morrer, ninguém, a não ser Deus, que o criou, pode determinar a hora em que isso deverá acontecer (Malafaia, 24 de junho de 2013).
Se o direito à vida é para todos, então, os fetos que comprovadamente, cientificamente, têm vida, e isso a gente não pode questionar, eles têm que ter o mesmo direito. Se a mulher tem o direito a proteger seu corpo, aquele filho que está lá, pedindo emprestado, porque foi obra da natureza, temporariamente, para poder depois ter autonomia, e não tem como se defendera não ser por obra coletiva da organização da sociedade baseada no Direito, e no respeito igual a todos, ele precisa ser levado em consideração, democraticamente (Deputado Federal Nazareno Fonteles, do PT-PI, audiência pública, novembro de 2005).
Existem muitos meios, já foi colocado aqui, eu não vou entrar no mérito, de não exercer esse direito [da maternidade]. Agora, na medida em que engravidou, iniciou a gestação, deixou de ser direito e é o maior dos deveres. É o maior! É o dever de manter a vida.A vida não é propriedade da mulher (Luiz Bassuma, Deputado Federal, do PT-BA, audiência pública, novembro de 2005).
Mas eu perguntaria: A mãe, quando ela quer retirar o seu neném, ela está se defendendo do que?Do que ela está se defendendo? É um tumor maligno que ela está gerando? Ela quer retirar esse neném em defesa do quê? (Deputado Federal Durval Orlato, do PT-SP, audiência pública, novembro de 2005).
Para aqueles que defendem o aborto com base na alegação de que a mulher tem o direito de pôr fim à gestação de um filho indesejado porque ela é senhora do seu próprio corpo, eu gostaria de lembrar que o feto não é uma extensão da mãe. Embora precise do útero dela e tenha uma relação simbiótica com ela, o feto é um ser independente. Logo, ela não tem o direito de tirar-lhe a vida,diz o pastor (Malafaia, março de 2013).
E não é só isso! Sou contra o aborto, pois trata-se de violência dos poderosos contra os indefesos. Como um embrião ou um feto indefeso pode defender-se de um aborto praticado por uma mulher que não o ama e desejae de um médico que jurou defender a vida, mas pratica a morte? (Malafaia, 5 de maio de 2014).
Advogamos uma harmoniosa relação entre mãe e bebê na defesa do interesse de ambos.Os direitos da mãe não podem suprimir os do bebê e vice-versa. Assim não compactuamos com a agenda ultrafeminista que visa à destruição do nascituro pela "vontade" da mulher (Vieira, 1997).2
As falas pontuam: se zigoto e embrião são de matéria humana, de imediato, deve-se entender zigoto como “pessoa” e como “sujeito pleno de direitos”. Definem o zigoto e o embrião como não sendo extensões das mães, como “independentes” e “indefesos”, mas tal como os filhos “pedem”, os zigotos e os embriões “pedem emprestado o útero dela”. Quando falam sobre o direito absoluto do concepto, sobre as mulheres, nada se fala sobre seu lugar de sujeito pleno de direitos.
Esquece-se a dependência do embrião ao corpo materno, e se o pensa como autônomo. E mais, como a mãe devendo servir ao embrião/feto, sempre, a qualquer custo. Reproduz-se aqui a mais tradicional visão da mulher/mãe. Imposição da reprodução controlada por outros que não ela (Machado, 2010).
Não falam dos direitos das mulheres, mas falam do dever das mulheres. Supõem ou exigem das mulheres que é seu dever desejar, amar e acolher os zigotos como se filhos ou “bebês” fossem. Parecem esquecer que zigotos são apenas possibilidades de vir-a-ser. Esquecem de referir-se à concretude da vivência da mulher, inserida num mundo relacional, onde sua autonomia de levar adiante aquela maternidade possível depende de um intricado conjunto de situações que afetam saúde, emoção e recursos econômicos os mais variados não somente a si, mas a filhos e familiares. As mulheres, uma vez fecundadas, devem ser obrigatoriamente mães.
As falas abaixo trazem acréscimos a esse entendimento, vinculando os deveres das mulheres aos valores religiosos do lugar das mulheres na família tradicional segundo a versão fundamentalista:
Em outubro de 2005, Pe. Lodi impetrou o habeas corpus para impedir que uma gestante levasse adiante o procedimento de aborto autorizado pela Justiçade um feto diagnosticado com a síndrome de Body Stalk. Esta doença é caracterizada pelo cordão umbilical curto e a não possibilidade de fechamento da paredeabdominal, promovendo a exposição dos órgãos.De acordo com o STJ, a mulher já havia tomado medicação para induzir o parto, quando chegou ao hospital a decisão do Tribunal de Justiça de Goiás, que atendeu ao pedido do padre e determinou a interrupção do procedimento. Ela, então, voltou para casa em Morrinhos, na região sul de Goiás. Após oito dias o bebê nasceu, tendo falecido pouco depois. (Tavares, 26 outubro 2016).
A decisão unânime da Terceira Turma do STJ acompanhou o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, considerando que o padre abusou do direito de ação e violou direitos da gestantee de seu marido, provocando-lhe sofrimento inútil. O padre lamentou tal equívoco e garantiu que se “soubesse que Geovana havia sobrevivido e que seus pais estavam em Morrinhos, sem dúvida eu teria idovisitá-los, acompanhá-los durante a gestação, oferecer-lhes assistência durante o parto (como fizemos com tantas outras gestantes)e, em se tratando de uma criança com risco de morte iminente, batizá-la logo após o nascimento. E se ela falecesse, para mim seria uma honra fazer suas cerimônias fúnebres acompanhando a família até o cemitério (Tavares, 26 outubro 2016).
(...), porque o feio agride. Eu recebi fotos de bebês anencéfalos com três dias, com quatro dias, recebi de um mês. É feio de ver, muito feio de ver. Mas muito mais bonito, muito mais bonito, foi o desvelo materno, paterno, a família em torno de uma coisa que se chama solidariedade. (...) (Referindo-se à lei familiar polonesa de 1993 afirma:) Olha só como um Estado sério faz. Educação pró-família, (...) que inclui o planejamento familiar, natural, para jovens de onze aos dezenove anos. (...) (Claudio Fonteles, audiência pública, novembro de 2005).
Silas Malafaia explica: Qual é o papel do homem, e o da mulher no casamento? De um modo geral, podemos afirmar que o homem é mais lógico e racional do que a mulher. O papel social dele, designado por Deus em Gênesis 2.15, é proteger, prover e liderar a família.O Senhor o capacitou para lavrar o jardim do Éden, cuidar dele e guardá-lo. Todas as regras lhe foram dadas pelo Criador. Por isso, após a queda, Deus não cobrou tais responsabilidades diretamente da mulher. Cobrou do homem (Malafaia, 25 de março de 2014).
E quanto ao papel da mulher? Biblicamente falando, compete à mulher ser adjutora, ou seja, auxiliardo marido na missão de proteger, prover e liderar a família. Deus delegou à mulher uma função de extrema importância na família. A mulher foi criada com intuição e sensibilidade mais aguçadas que as do homem, para equilibrar os relacionamentos familiares, agindo como uma sábia mediadora, trazendo harmonia ao lar. Por isso, em Provérbios 14.1, é dito que toda mulher sábia edifica a sua casa. A mulher sábia não inverte os papéis nem age de maneira arrogante, a fim de não humilhar o marido e não minar a liderança dele. Se fizer isso, estará agindo como uma tola, que, em vez de edificar, destrói sua casa com as próprias mãos, e a família toda sofrerá com problemas de ordem espiritual, emocional e até material, podendo desagregar-se com a separação do casal (Malafaia, 25 de março de 2014).
O debruçar-me sobre as falas de defensores do direito absoluto ao concepto exigiu analisar sobre o que e como se referem às mulheres. Permitiu desvelar que foi sobre a categoria da sacralidade da maternidade, seja ela “dolorosa” ou “radiante”, mas sempre “acolhedora” e “cuidadora”, que foi possível que, no enunciado, as mulheres pudessem ter sido desvestidas de seu atributo de sujeitos de direitos. A narrativa do papel secundário/adjutório das mulheres no âmbito tradicional familiar está articulada com a narrativa da sinonímia entre amor materno ao filho e amor materno ao concepto (seja zigoto, mórula, embrião ou feto). Evidencia a inscrição desse discurso a favor da defesa da “moralidade tradicional” e dos valores da “família brasileira”.
Tal narrativa de fato propugna o valor e a volta da mulher ao lugar tradicional de subordinação, obediência e ajuda ao marido/companheiro. Propugna que o Estado regule a criminalização máxima (crime hediondo) de qualquer forma de aborto em qualquer circunstâncias. Visa reinstaurar, engrandecendo-o, o poder masculino familiar e, em seu nome, o controle sobre as mulheres no terreno da sexualidade e da reprodução.
Dada essa concepção sobre o lugar subordinado das mulheres, fica mais fácil entender porque os defensores dos direitos absolutos do concepto nada dizem sobre as mulheres como sujeitos plenos de direitos. Não as percebem como tal.
Propugnam a imposição à sociedade do pressuposto de que o sexo biológico inscrito na corporeidade é a única forma de gênero admissível porque “natural”. E seria a crença no “sexo natural” que faria com que as mulheres viessem a ficar “sábias”? Essa narrativa está atrelada a uma crítica de costumes e a uma imposição de moralidade única. Longe da ideia moderna da diversidade, da pluralidade e da ética.
Vejamos agora como juristas contrários à legalização do aborto se manifestam no debate entre direitos absolutos do concepto e a questão do princípio jurídico da ponderação. Um dos maiores argumentos contra a legalização do aborto é o direito à vida.
Entretanto, esse direito se divide em duas facetas: o direito à vida nos termos constitucionais brasileiros (em que a referência no caput do artigo 5 é a “garantia da inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade aos brasileiros e estrangeiros”, portanto a todos “viventes” no país) e o direito à vida de cunho religioso. Trata-se assim, para os juristas que defendem o direito absoluto do concepto, ou mesmo aqueles que aceitam exclusivamente as exceções já inscritas no Código Penal, como é o caso de Claudio Fonteles, de fazer coincidir esses dois conceitos (o constitucional e o religioso), elidindo suas diferenças.
(…) Eu estou, insisto pela milionésima vez, fazendo construção de natureza estritamente jurídica. No meu parecer eu vou dizer, não é, aqui no item 5, que está aí, eu digo: “a inviolabilidade do direito à vida”... quer dizer, é interpretação constitucional, do que significa o princípio da inviolabilidade. Prestem bem atenção (...) nessa palavra da nossa língua: inviolabilidade. Prestem atenção à carga de significado desta palavra. (...) (Quem disse) foram os deputados. Aí digo eu: ora, (...) compreensão minha jurídica do princípio da inviolabilidade da vida. Ora, se ser humano existe, se o embrião é ser humano, (..) esse é um outro ponto de reflexão – não se pode estabelecer gradação constitucional ao conceito de inviolabilidade da vida.Como é que é inferior? Esse é um tema que os senhores têm que meditar também. E falo: a inviolabilidade da vida concede tutela completa, desde que exista o ser humano(Cláudio Fonteles, audiência pública, novembro de 2005).
A minha intervenção aqui será toda feita no plano estritamente jurídico– e hoje mesmo eu já vi um jornal dizer que eu sou católico fervoroso. E, dentro dessa linha de coerência, de não omissão, eu convoquei o Supremo Tribunal a definir o momento do início da vida, como a Suprema Corte Americana fez. (...) Então é um conceito constitucional de inviolabilidade, ele vai pedir a fixação do termo inicial da vida humana. E a vida humana, com base em estudos científicos, do zigoto, que é totipotente, isso aí está mais destrinchado aqui, não me cabe desenvolver a tese aqui, mas está destrinchado na petição. Com apoio em mim? Não! Em nove cientistas, não é, em nove cientistas brasileiros. Eu mostro que aí já há vida (Cláudio Fonteles, audiência pública, novembro de 2005).
O Direito Constitucional também ocupa-se do tema da vida e em perspectiva diversa, coerente, mas diversa, e fundamental. (…) Este é o grande ponto. O princípio da inviolabilidade da vida está no artigo 5º da Constituição brasileira. A vida em si: prestem bem atenção. Uma coisa é a vida em relação interpessoal, Direito Civil. Outra coisa é vida em si: é um direito constitucional(Cláudio Fonteles, audiência pública, novembro de 2005).
O feto corresponde não apenas a uma pessoa, subjetivada, como apresenta uma outra característica fundamental: a incapacidade de se defender, a não ser pela ação social coletiva. Nesse sentido, falar de aborto é “falar no direito daquele que não tem defensor” (Ives Gandra Martins, audiência pública, novembro de 2005).
A moralidade religiosa pode assim se expressar na discursividade jurídica e invocar o conhecimento científico sem ter que revelar seu profundo suporte religioso. Basta, para isso, não utilizar a terminologia religiosa – recurso já institucionalizado nas Declarações eclesiásticas e nas Encíclicas Papais, em que, ao lado dos “argumentos de fé”, são nomeados “argumentos à luz da razão”.
A narrativa religiosa do direito absoluto do concepto como sinônimo do direito à vida elude seu ponto de partida religioso, pois se traveste de narrativa jurídica e elide os princípios da narrativa jurídica baseados na ponderação entre distintos bens jurídicos. Busca produzir uma nova fundação do conceito de pessoa capaz de esquecer que a pessoa juridicamente tornada “sujeito de direitos” pressupõe o contexto do sujeito em relações sociais. Hierarquiza os supostos direitos das mulheres como subalternos aos aventados direitos do zigoto, da mórula, do embrião e do feto (a qualquer tempo de sua formação e em qualquer circunstância), de tal forma que se esvanecem não só os direitos das mulheres sobre sua reprodução, como seus direitos à vida, à saúde e à vida digna. Ao se apropriar da linguagem dos direitos humanos, a distorce em nome da sacralização de uma vida em abstrato, e não de uma pessoa social em concreto.
Em contraposição, a jurista feminista Miriam Ventura, presente na audiência pública como representante da defesa da legalização do aborto, enunciava uma visão crítica em relação à atribuição dos fundamentos de uma decisão legislativa quer ao campo moral, quer ao religioso ou ao científico:
Então, inicialmente, nós temos que entender que o aborto é um fenômeno social, não é um fenômeno científico. Portanto, devemos absolutamente utilizar o discurso ético e filosófico para justificá-lo.(...) a moral, a ética e o direito, se mostraram campos diferentes. Há muitos séculos nós entendemos perfeitamente que estamos em campos diferentes.(...) Então, devemos observar que a área médica trabalha com evidências científicas; não com verdades científicas. Essa é a primeira limpeza. E nós trabalhamos com argumentos, e nós recorremos, no campo do Direito, à ética, e não à moral,como alguém aí falou. (...) Material biológico é vida (...) O que a gente tem que ir atrás não é do conceito de vida, é do conceito de pessoa.O que caracteriza uma pessoa? A pessoa só se caracteriza com o nascimento com vida, é assim que o Código Civil diz. E isso é um conceito importante. Porque é a partir daí que desenrolam a ética, a moral e o direito. É a partir do conceito de pessoa(Miriam Ventura, audiência pública, novembro de 2005).
A referência jurídica brasileira ao direito à vida é o direito da pessoa a partir do nascimento. Os direitos dos nascituros referentes à herança, somente são considerados efetivos se nascimento houver e depois dele. Para Ventura, a decisão jurídica deve recorrer a princípios éticos para lidar com um fenômeno social e decidir sobre direitos de pessoas, sujeitos relacionais. De tal forma que um “dever ser” não pode resultar de um “ser” (Cunha, 2007).
Travestimento do discurso religioso conservador em discurso genético
A bióloga molecular Lilian Eça foi chamada para a referida audiência pública de novembro de 2005 em nome dos opositores da legalização do aborto. Lilian Eça aponta a diferença do que um leigo não vê e do que a ciência pode ver.
Vamos olhar um pouco aquilo que não enxergamos. (...) Desde a década de 80, que se fala nesse genoma, nós temos que nos preocupar com as moléculas chamadas proteínas. (...) Quando se marca as proteínas no zigoto (visíveis pelo microscópio a laser), nós temos exatamente a forma do futuro embrião em proteínas. As proteínas da coluna vertebral estão situadas aqui, ali a do cérebro e ali a dos membros (Lilian Eça, audiência pública, novembro de 2005).
Nessa fala, não se trata de constituir a identidade entre embrião e bebê, mas mais do que isso: entre o zigoto, o óvulo fecundado que geralmente não está fixado ainda no útero e o bebê. Segundo sua fala, no zigoto já se pode ver, através do microscópio a laser, as proteínas (tornadas fluorescentes) que serão responsáveis pelo desenvolvimento corporal. Assim sendo, na sua argumentação, “ver as proteínas da coluna vertebral, do cérebro e dos membros” é “ver, a coluna vertebral, o cérebro, os membros e cada uma das partes do corpo”, na sua individualidade. Seria sempre o DNA individualizado que, presente nas primeiras células, permitiria deduzir que nelas, está inscrito o desenvolvimento corporal. E, de uma só vez, esse zigoto é posto como se tivesse uma individualidade única de um específico bebê.
Retomo aqui e aprofundo análises que apresentei (Machado, 2010). Sabe-se que 75% dos zigotos se perdem antes da fixação no útero e que não há uma forma única de desenvolvimento, mas esses dados não são levados em conta nos argumentos dos defensores do direito absoluto do concepto. O discurso usa o argumento da verdade científica difundida de um DNA individualizado e afirma que há uma individualidade no zigoto. O microscópio a laser revelaria, ao marcar as proteínas no zigoto, que aquelas primeiras células embrionárias devem ser identificadas exatamente à individualidade de um bebê já formado. A verdade das proteínas afirmaria que o zigoto já é uma pessoa com individualidade própria.
No imaginário ocidental contemporâneo, com o desenvolvimento do individualismo (Dumont, 1985), a ideia de pessoa cada vez mais se constitui pela ênfase na sua individualidade e não na sua posição relacional. Assim, a ideia religiosa cristã da “alma” que originalmente era mais abstrata, como se pudesse congregar entidades do bem, da piedade, da caridade ou do mal e se distribuir entre os humanos, passou a ser percebida como cada vez mais individualizada, ou seja, passou a ser a marca do caráter e das características do indivíduo que a possui. O DNA único de cada ser vivo fundaria cientificamente a verdade da individualidade de cada humano e de cada zigoto.
O discurso religioso conservador produz conexão entre o argumento religioso da “invisibilidade” da verdade religiosa do indivíduo-pessoa que é sua “alma” e o argumento da “invisibilidade” do DNA que é a verdade científica inscrita na individualidade do corpo. “Ver com o laser as proteínas do zigoto” seria revelar a verdade, até então “invisível”, da pessoa única no zigoto, imperceptível a olho nu. A “alma”, segundo a religiosidade cristã, sempre foi considerada “invisível”, mas sempre posta como “a verdade” do indivíduo-pessoa. O discurso religioso conservador se apropria e faz um travestimento da ideia da alma individual para o DNA. O DNA representaria a individualidade da pessoa.
A genética revela a “antiga verdade religiosa” da pessoa-indivíduo. A divulgação no senso comum da ideia do DNA permite dele derivar não só as características físicas do indivíduo, como também as temperamentais. Produz-se assim o efeito encantatório de transformar o invisível em visível e o DNA passa a ser considerado a prova científica da alma individual. É o que “anima” a pessoa humana “corpo/mente” individualizado.
O travestimento do discurso religioso em discurso científico consegue argumentar que a pessoa-indivíduo-alma já existe lá no zigoto, que zigoto e pessoa são o mesmo. E em nome da moral, definem não ser possível fazer o aborto em nenhuma circunstância. Caminham para uma tentativa de refundação da noção de pessoa. Os pontinhos azuis do laser que marcam as proteínas do zigoto valem mais do que as vidas vividas das mulheres grávidas. Contra esse discurso, é preciso lembrar que as proteínas e as primeiras células fecundadas são uma substância humana, mas não uma pessoa, mas potencialidade. Não são sujeitos relacionais.
As forças neoconservadoras brasileiras, em geral, propugnam pelo fim da admissão legal de condições nas quais não é crime realizar o aborto: quando se trata de fecundação derivada de estupro ou de gravidez que coloca em risco a vida da mulher. Manifestam-se contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em abril de 2012 (com acórdão publicado em 30 de abril de 2013), que permitiu a interrupção da gravidez de feto anencefálico. A tecnologia de imagem ultrassonográfica possibilitou a detecção dos casos de malformação fetal e o eletroencefalograma permitiu detectar a falta de atividade cerebral e encefálica tal como nos casos de morte cerebral. Mesmo onde não se detecta a vida humana simbólica, nem a viabilidade extrauterina, as forças neoconservadoras querem fazer valer apenas os direitos dos embriões, sem levar em conta a tragédia vivida pelas mulheres grávidas, nem a tortura ao serem obrigadas a levar a termo tal gravidez.
Manifestam-se contrárias à demanda feminista que chegou ao STF de permitir a interrupção da gravidez para aquelas mulheres cujas gestações tivessem sido atingidas por casos de microcefalia derivados da epidemia do vírus Zika e que assim solicitassem.
A proposta conservadora é a da introdução de um direito absoluto outorgado ao zigoto/embrião/feto, independente do seu estágio de desenvolvimento e em detrimento de qualquer demanda de direitos das mulheres grávidas.O direito absoluto “das proteínas do zigoto” se contrapõe ao reconhecimento dos direitos das mulheres que vivem suas vidas em circunstâncias desiguais e diversas, lutando para manter uma vida digna e responsável.
As forças neoconservadoras em nome de um discurso religioso apelam à uma moralidade única impositiva, usando e interpretando um discurso da ciência e tecnologia. Invocam a ética, mas de fato, não entendem por ética a admissão de pluralidade de visões e de reconhecimento da diversidade, mas propõem uma única moralidade impositiva.
As forças neoconservadoras invocam o discurso jurídico, mas o distorcem ao não admitirem o princípio da ponderação. Não há direitos absolutos sem ponderação entre bens jurídicos. Buscam atribuir direito absoluto à vida dos zigotos/embriões/fetos, buscando assim expulsar do discurso jurídico, em todos os casos de decisão de interrupção da gravidez, o reconhecimento dos direitos das mulheres grávidas. Jamais deveriam ser ouvidas e atendidas, vistas como o são da ótica do lugar subordinado e “adjutório” das mulheres na “família tradicional”.
Pluralidade ética feminista, responsabilidade da escolha e liberdade religiosa
Maria José Rosado-Nunes, socióloga e participante das Católicas pelo Direito de Decidir, sempre faz referência em suas palestras ao direito de escolha pela maternidade não obrigatória. Aponta assim a importância ética de a maternidade não ser obrigatória, mas sim uma escolha.
A noção de escolha é polissêmica. Está sendo entendida pelo movimento conservador como se a “posse” do corpo fosse a “posse” consumista de um objeto qualquer (eu tenho um corpo, faço dele o que eu quero). Não é isso.
As movimentações feministas apresentam o direito de escolha como aquele que se exerce com autonomia e responsabilidade. O direito de escolha referido ao “é meu corpo”, é a inscrição corpórea de um sujeito social relacional.
No meu entender, de base antropológica e feminista, a noção de pessoa não está fundada na noção de “vida abstrata”, mas inscrita no contexto de uma “vida vivida”, na qual se busca dignidade e responsabilidade. O direito de escolha da maternidade não obrigatória pode ser um passo para marcar a noção de pessoa como indivíduos-pessoas em redes de relações sociais, capaz de englobar os direitos de toda e qualquer mulher grávida; onde os indivíduos podem ser autônomos, sem ser considerados equivocadamente mônadas isoladas.
A linguagem dos direitos humanos não cumpre o papel moralista dos mitos ocidentais que identificavam certas práticas sexuais e reprodutivas, umas como pecado e crime e outras como virtudes legítimas, legais ou sacralizadas. Os direitos humanos reforçam uma orientação ética que é universalista apenas enquanto coloca como limite o direito do outro e o crime como ofensa ou afronta ao direito do outro, e, assim, é pluralista.
Enquanto os movimentos neoconservadores contrários aos direitos das mulheres e dos homossexuais alegam a necessidade da ordem social e dos “bons costumes”, as movimentações dos direitos humanos sexuais e contra a violência, não se pautam pela introdução de uma nova moralidade impositiva, mas são contrárias a um Estado de Imposição Moral e sim por uma defesa dos direitos das pessoas, a favor de um Estado laico em nome de uma Pluralidade Ética que permita a vivência da diversidade e o reconhecimento da igualdade.
O Direito tem esse papel, ele não pode só se conformar com a realidade do momento. (...) Qualquer Estado democrático tem compromissos. E os compromissos não são apenas com as maiorias, são também com as minorias (Roberto Lorea, jurista a favor da legalização do aborto na audiência pública, novembro de 2005).
As movimentações feministas buscam assim modificar legislações para a proposta de legalização do aborto como forma de inserção de direitos fundamentais à liberdade e à dignidade das mulheres.
Invocada pelas forças neoconservadoras, a noção de que uma legislação deve corresponder ao que a população “opina”, uma “maioria religiosa”, a movimentação feminista contrapõe a pluralidade e o princípio de laicidade do Estado brasileiro a favor da expansão dos direitos fundamentais e das liberdades religiosas.
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- Zylbersztajn, Joana. A Laicidade do Estado Brasileiro Brasília, Verbena Editora e Edit. Francis, 2016.
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1
Cf. http://www.metodista.br/midiareligiaopolitica/index.php/composicao-bancada-evangelica/– acesso em: 7 mar. 2016.
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2
Humberto L. Vieira foi presidente da Associação Nacional Pró-vida e Pró-Família que sucedeu a Associação Nacional Pró-vida de Brasília criada em 1983. Relata que teve apoio da Human Life International e depois do Cardeal-Arcebispo de Brasília para instalar sede própria na sala da Cúria. Em setembro de 2015, Hermes Rodrigues Nery homenageia o recém-falecido Humberto Vieira. Nery conta que em outubro de 2005, juntos os dois com mais outros membros criaram o “Movimento Legislação e Vida “para que ampliassem os esforços para afirmar a cultura da vida também no difícil campo legislativo”(Nery, 2015).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2017
Histórico
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Recebido
14 Fev 2017 -
Aceito
14 Mar 2017