Resumo
Este artigo é uma homenagem à antropóloga Mariza Corrêa. Com o objetivo principal de realçar a sua contribuição para os estudos de gênero e justiça, o artigo apresenta também seus trabalhos sobre a história antropologia e seu empenho na construção institucional dessa disciplina no Brasil.
Gênero; Justiça; Antropologia; Mariza Corrêa; Unicamp
Abstract
This article is a tribute to the anthropologist Mariza Correa. With the main objective of highlighting her contribution to gender and justice studies, the article also presents her work on the history of anthropology and her efforts towards the institutional construction of this discipline in Brazil.
Gender; Justice; Anthropology; Mariza Corrêa; Unicamp
É muito difícil falar sobre Mariza Corrêa, alguém que tem uma grande importância na minha vida acadêmica e nas minhas funções como professora e pesquisadora desde 1984, época em que comecei a lecionar na Unicamp e a conheci pessoalmente.
Fiquei muito contente com o convite para fazer esta homenagem, pois Mariza, certamente, merece um espaço especial no cadernos pagu. Mas depois da alegria de ver a proposta e a honra de dela poder participar, senti o quanto poderia ser difícil essa missão. Como é difícil – e diria até mesmo penoso –relembrar e refletir sobre os encontros e as lições apreendidas que o tempo afrontosamente vai dissipando e que acabam por serem transformadas em partes de nós mesmas.
Mariza era imbatível nessa tarefa tão peculiar à antropologia de colocar sob suspeita as verdades tidas como indiscutíveis, óbvias, ou com a última palavra do saber competente. Boas perguntas eram muito mais valorizadas por ela do que as certezas prontas e as convicções inabaláveis que cercam a vida acadêmica. Por isso, de cada conversa com Mariza saía sempre renovada, já não era a mesma pessoa, já não era tão segura de muitas das minhas convicções. Saía sempre das nossas conversas com a certeza de que era possível fazer análises mais aguçadas da lógica social, apreciar de maneira mais incisiva o significado das práticas sociais, evitando identificações apressadas e estranhamentos fáceis.
Nesta homenagem me coube falar do impacto do Morte em Família, livro que inspirou o conjunto de pesquisas que fiz sobre justiça e violência contra a mulher e contra o idoso. Mas antes não posso deixar de mencionar a obra de Mariza como um todo. É vasto seu legado como pesquisadora e professora, assim como foi extenso seu empenho na construção institucional das ciências sociais no Brasil, em especial da antropologia brasileira e, mesmo sem ser capaz de dar uma visão completa, é importante falar das coisas que vivi de mais perto.
Formada em jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 1969, ingressou no mestrado em ciências sociais, em 1973,naUniversidade Estadual de Campinas(Unicamp), onde defendeu a dissertação “Os atos e os autos: representações jurídicas de papéis sexuais”, em 1975, da qual vou falar daqui a pouco.
Mariza contava que ela de início não pensou em fazer antropologia, queria fazer letras porque gostava de escrever, escrever ficções, e pensou em fazer um mestrado com Antonio Candido. Comentando esse interesse com um amigo que conhecia Antonio Candido, o amigo disse para Mariza: “esquece o Antonio Candido, ele detesta jornalistas, abomina o jornalismo, jamais vai aceitar orientar uma jornalista”. Que boa foi essa informação! Que ganho para a antropologia!
Quando comentei esse fato com Heloisa Pontes, ela retrucou:
O comentário do Antonio Candido sobre os jornalistas não procede, primeiro porque ele, educado como era, jamais diria que “detesta” alguém ou qualquer coisa. Léxico impensável na sua gramática pública. Mas, mais que isso, Antonio Candido foi um colaborador ativo na impressa, de início como crítico literário, em jornal paulista, onde tinha uma coluna de semana (o rodapé literário, como era chamado na época). Depois porque foi o idealizador do Suplemento Literário do Estadão, dirigido pelo Décio de Almeida Prado, no qual colaborou ativamente.
E com razão concluiu: “Então, se é para usar a frase, tem que registrar que é uma piada que ‘colou’”.
Não sei se foi uma piada. Mas não tenho dúvidas de que foi um ganho para a antropologia. Quando Mariza relatava esse episódio – que está também gravado no vídeo da ANPOCS que registrou sua participação na sessão conversa com o autor –,ela se apressava em dizer que depois dessa triste notícia do Antonio Candido, conversando com Peter Fry, que recentemente tinha chegado da Inglaterra, ele disse “você não precisa fazer literatura para escrever” e lhe deu de presente o livro sobre os Azandes do Evans-Pritchard (1976)Evans-Pritchard-E.-E. Witchcraft, Grades and Magic among the Azande. Londres, Oxford University Press, 1976., “que é um fino cultor da língua inglesa”. E ela então se inscreveu no mestrado de antropologia da Unicamp.
Em março de 1976, Mariza passou a integrar o corpo docente do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, onde desenvolveu extensa carreira, completa em todos os sentidos (da pesquisa à extensão, da docência à administração universitária). De 1978 a 1982,cursou na USP o doutorado em Ciência Política, sob a orientação da Professora Ruth Corrêa Leite Cardoso, com a tese –As ilusões da liberdade – a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil, defendida em 1982.
Vale a pena apresentar, mesmo que rapidamente, os livros por ela publicados. Começando da frente para traz:
Traficantes do Simbólico e outros ensaios sobre a história da Antropologia, lançado em 2013 pela Editora da Unicamp, tem esse nome tão poético para caracterizar o trabalho do antropólogo. Além de artigos sobre a história da antropologia e das reflexões sobre a disciplina no Brasil e no exterior, o livro reúne depoimentos de Donald Pierson, Emílio Willems, Ruth Cardosos e Verena Stolcke.
Vida em Família: uma perspectiva comparativa sobre “crimes de honra”, publicado pelo Pagu/Unicamp em 2006 – disponível na página do Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp também em inglês Family Life: a comparative perspective on “crimes of honour”–, reúne artigos sobre justiça e violência contra a mulher no Brasil e em outros países, particularmente os crimes de honra que, diferentemente do que ocorre no Brasil, nesses países são cometidos por familiares da vítima, particularmente pais e irmãos. O livro foi resultado de um evento realizado no Pagu que contou com pesquisadoras trabalhando na Turquia, Líbano, Costa Rica, Argentina e outros países interessados em discutir os chamados “crimes da honra”. O livro foi organizado em colaboração com Érica Renata de Souza, na época orientanda de doutorado da Mariza e atualmente professora na UFMG.
Em Antropólogas e Antropologia, editado em 2003, pela Editora da UFMG, fazendo uma brincadeira com o título da obra clássica de Adam Kuper (1978)Kuper, Adam. Antropólogos e Antropologia. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978., Mariza chama a atenção para as mulheres antropólogas, que muitas vezes tiveram um papel central na pesquisa e nas etnografias realizadas, mas permanecem desconhecidas. É impressionante a dificuldade que ela teve em localizar Dina Dreyfus, mulher de Lévi-Strauss ,quando ele esteve ano Brasil, na época Dina Lévi-Strauss, e que escreveu um livro intitulado Instruções práticas para pesquisas de antropologia física e cultural, publicado em 1936. É de se supor que ela teve um papel importante na estadia do autor no Brasil, mas quando entrevistada teve dificuldade de lembrar da época em que aqui esteve.
As reuniões brasileiras de antropologia: cinquenta anos (1953-2003) foi lançado pela Editora da Unicamp em conjunto com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 2003, época em que ela presidiu a ABA. O livro é uma comemoração dos 50 anos da realização da 1a Reunião Brasileira de Antropologia.
Mariza foi muito ativa em mostrar que era preciso arquivar e preservar a documentação da ABA, um material tão rico para a história da disciplina. Essa documentação da ABA, assim como o material escrito e audiovisual da sua pesquisa sobre a história da antropologia está abrigada no Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp.
Gênero e Cidadania, editado pelo Pagu em 2002, é resultado de um seminário cujo interesse era focalizar a questão da violência da perspectiva de gênero, mas as razões estruturais da violência na nossa sociedade estavam presentes como pano de fundo de todas as discussões, claro. O livro traz um relato de Luiz Eduardo Soares e o conjunto de textos elaborados por pesquisadores do tema justiça e violência contra a mulher. O seminário abrigou o lançamento do livro Meu Casaco de General, de Luiz Eduardo Soares, e contou com a presença do então Ministro da Justiça, José Gregori, numa sessão reservada, com a presença dos convidados para o evento. Sem que Mariza soubesse, fizemos na ocasião uma comemoração aos 20 anos do livro Morte em Família.
As Ilusões da Liberdade: A Escola Nina Rodrigues e A Antropologia No Brasil, editado pela Editora da Universidade São Francisco em 2001, é uma obra magistral sobre a escola Nina Rodrigues e o impacto que esse conjunto de médicos que compunham a escola teve na vida brasileira e especialmente nas ciências sociais. Infelizmente é uma obra de antropologia da ciência ainda não devidamente explorada. Resultado do doutorado em que Mariza se lança como pioneira numa das áreas que distinguiria sua trajetória: os estudos sobre história da antropologia feita no Brasil e sobre o Brasil. Ela aborda nesse livro, de maneira incisiva, questões raciais.
Roberto Cardoso de Oliveira: homenagem, coletânea organizada em colaboração com Roque Laraia, editada pelo setor de publicações do IFCH em 1992, traz um conjunto de artigos de vários autores discutindo a obra do mestre e colega.
História da Antropologia no Brasil (1930-1960).Testemunhos: Emílio Willems e Donald Pierson, editado em 1987 pela Editora da Unicamp e Editora Vértice, é o primeiro volume da pesquisa de Mariza Corrêa sobre a História da Antropologia.
Antes de tratar do Morte em Família: Representações Jurídicas de Papeis Sexuais, editado em 1983 pela Graal, e de Os crimes da paixão, editado em 1981 pela Brasiliense, é preciso dizer algo sobre o Pagu – um núcleo de estudos gênero interdisciplinar, criado em 1993,na Unicamp,e que contou com a historiadora Leila Algranti como sua primeira coordenadora. Mariza teve uma participação intensa no núcleo. Mesmo depois de ter se aposentado do Departamento de Antropologia, continuou ativa no Pagu, um núcleo que é uma referência nos estudos de gênero no Brasil e no exterior, um espaço importante para a formação de pesquisadores na graduação e com uma relação estreita com a área de gênero do doutorado de ciências sociais. O Pagu tem recebido inúmeros pesquisadores e docentes de outras universidades para fazerem pós-doutorado e participarem das suas atividades. Conta ainda com uma biblioteca especializada, uma das melhores e mais completas, na área de estudos de gênero.
Um dos pontos altos no debate feminista é o cadernos pagu, criados por ela. Vejam a modéstia até no nome da publicação: cadernos, com minúscula e não uma revista, um periódico. Mariza teve um papel central na organização de alguns dos números e dos dossiês dessa publicação, que é um marco nos estudos de gênero no Brasil, na medida em que coloca a produção nacional sobre o tema lado a lado com a produção realizada em outros países, propiciando a tradução de artigos seminais sobre o assunto e, a partir de 2015, passa a ser publicada somente online e parcialmente bilíngue.
Vale a pena mencionar, mesmo que rapidamente, alguns dos dossiês organizados por Mariza para o cadernos pagu.
Em dossiê sobre violência (cadernos pagu no37, 2011), Mariza, com a colaboração de Iara Beleli, convida a outros olhares, para além da violência de gênero, que vão do tráfico de mulheres, situações de guerra até o movimento de mães de filhos assassinados. Gênero e saúde (cadernospaguno24, 2005) apresenta a discussão sobre os intersexos, tema da pesquisa de Mariza no Projeto Temático Gênero e Corporalidades, por ela coordenado com apoio da FAPESP. O projeto tinha sete diferentes áreas voltadas para a temática e a parte da pesquisa realizada por Mariza esteve voltada para as técnicas e modificações corporais e atentaram com densidade para os constrangimentos sociais impostos à plasticidade e à flexibilidade do corpo humano. O objetivo mais geral – especificamente por ela trabalhado – era a questão do intersexo e a mutilação genital. Ela pretendia inicialmente trabalhar com a mutilação genital feminina, mas o trabalho acabou se voltando para a mutilação genital masculina. De início, ela pretendia rever o modo como a questão da mutilação genital feminina era tratada na antropologia e em outros estudos que tendiam a ver essa prática da excisão do clitóris, própria dos países africanos e mulçumanos, como símbolo do seu atraso e primitivismo. Mas ela acabou explorando as práticas de mutilação genital masculina dos bebês que nasciam com micropênis que era amputado nas maternidades. Era uma verdadeira indústria dos médicos norte-americanos que tendiam a levar a frase de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher” ao extremo, e nos casos de bebês em que o sexo era indefinido operava-se a amputação do micropênis, para não ter que dizer para os pais a indefinição do sexo da criança e dada a dificuldade oficial de registrar um nascimento de sexo indefinido.
Posteriormente, ela descobriu que essa prática era cotidiana também nos hospitais e maternidades do Brasil, e atentou para os movimentos das pessoas vítimas que se revoltaram contra esse tipo amputação, que é expressão da força do dimorfismo sexual, da convenção corporal que só admite o binarismo homem X mulher.
Merecem ainda destaque o dossiê sobre relações raciais e feminismo (cadernos pagu no 23, 2004); a ediçãono12 – uma homenagem à Simone de Beauvoir em comemoração aos 50 anos de O segundo sexo; e o no 2, de 1994, sobre sedução, transgressão e sexualidade no debate feminista.
Ser uma das fundadoras do Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu, bem como do cadernos pagu, mostra sua capacidade de liderança e sua sintonia com temas contemporâneos. Seria preciso ainda mencionar que no CV Lattes, que Mariza atualizou pela última vez em 2010, há 26 títulos de artigos publicados em periódicos e 26 capítulos em coletâneas.
Ao leque de seus artigos sobre temas como gênero, família e parentesco, somam-se os artigos sobre relações raciais, com os quais aprendemos a rever convenções, numa área de estudos em que, no Brasil, a radicalização política muitas vezes impede tratamentos mais acurados.
Acredito que nem seja necessário, porém, relembrar sua dedicação à criação de espaços para o encontro e o diálogo entre antropólogos e cientistas sociais e seu empenho na edificação das agências de financiamento à pesquisa que nos fazem compreender melhor sua importância na construção institucional.
Na Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Professora Mariza Corrêa integrara, antes de presidi-la, as diretorias encabeçadas pelos professores Roberto Cardoso de Oliveira (1984-1986), como tesoureira; João Pacheco de Oliveira Filho (1994-1996), como Diretora Regional; e, na gestão do Professor Antonio Augusto Arantes Neto (1988-1990), presidiu a comissão organizadora da XVI Reunião Brasileira de Antropologia. Integrou o Conselho Científico de 1984 a 1988 e foi Presidente da ABA de 1994-1996. Desde 2000, na qualidade de ex-presidente, passou a integrar o conselho vitaliciamente. Foi também através de seu trabalho sobre a história da nossa disciplina e de nossa associação que a documentação da ABA foi acolhida no Arquivo Edgard Leuenroth.
Mariza Corrêa foi Diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp (1989-1993), marcando a história como a primeira mulher a dirigir o instituto, além de todos os outros cargos de chefia e coordenação que exerceu no Departamento de Antropologia e na área de Gênero do Doutorado em Ciências Sociais.
Presidiu a coleção “Gênero e Feminismo” da Editora da Unicamp e foi membro de corpo editorial dos seguintes periódicos: cadernos pagu, Etnográfica (Lisboa), Revista Brasileira de Sociologia das Emoções, Revista Três (...) Pontos, Revista Estudos Feministas, Revista de Antropologia, Estudos Afro-Asiáticos, Anuário Antropológico, Revista Brasileira de Ciências Sociais, entre outros periódicos.
Nas agências de financiamento de pesquisas foi representante da área de antropologia na Coordenação de Ciências Humanas e Sociais da FAPESP, membro da Comissão de Avaliação na Área de Antropologia da CAPES, representante da Antropologia no Conselho Técnico-Científico da CAPES e membro do comitê acadêmico da ANPOCS.
Mariza formou mais de 50 pesquisadores em mestrado e doutorado. Seu primeiro orientando foi o nosso querido Nelson Perlonguer que sob sua orientação concluiu o mestrado em 1986, dissertação que virou o livro O Negocio do Michê –A Relação entre o Prostituto Viril e Seu Cliente, bibliografia básica para a pesquisa sobre sexualidade. Heloisa André Pontes, sua orientanda de mestrado é hoje uma referência básica nos estudos sobre antropologia da cultura, da mesma forma que Adriana Piscitelli, entre seus antigos orientandos, é uma referência nos estudos sobre gênero e prostituição. O mais jovem dos seus orientandos, Marcos Santana de Souza, teve a sua pesquisa de doutorado –“Sou policial, mas sou mulher: gênero e representações sociais na Polícia Militar de São Paulo”–contemplada com o Prêmio Capes de Tese 2015 na área de Sociologia.
A vasta e arguta cultura juntamente com a inteligência sensível e sagaz de Mariza conquistaram seus colegas e também seus alunos e orientandos, que compõem uma geração de brilhantes antropólogos, atuando em diferentes universidades brasileiras e que reconhecem terem dela recebido os maiores estímulos intelectuais e profissionais, como é possível ver nas homenagens que estão sendo a ela prestadas.
Para falar do que me interessa de mais perto, Morte Em Família: Representações Jurídicas de Papeis Sexuais e Os Crimes da Paixão, dissertação de mestrado de Mariza, é preciso fazer uma pequena introdução.
Como já disse, Mariza concluiu graduação em jornalismo em Porto Alegre com 22 anos. Depois de formada trabalhou como repórter num jornal em Porto Alegre e contava que fazia de tudo: desde reportagens sobre casamentos de cigano até assaltos à mão armada. Com o cientista político Plínio Dentzien foi para Minas Gerais e, trabalhando ainda como jornalista, conviveu com os professores do Departamento de Ciência Política na UFMG, em que Plínio atuava como docente. Também ali como jornalista era a única mulher em um jornal dos Diários Associados.
Trabalhou depois em São Paulo na revista Veja, da Editora Abril, que, de início, era uma revista polêmica importante no momento da ditadura, mas por razões políticas, a editora trocou boa parte da equipe de seus jornalistas. Mariza voltou para Porto Alegre e em seguida foi para Michigan, acompanhando Plínio, que fez um estágio naquela universidade.
Isso tudo para dizer que Mariza não foi alguém que saiu da graduação e entrou no mestrado. Ela tinha muita experiência vivida e por isso até hoje estamos falando do seu livro, resultado de pesquisa no mestrado. Imagino que a experiência com o feminismo norte-americano foi fundamental para definir seus interesses de pesquisa no mestrado.
A volta para o Brasil e para a Unicamp, onde Plínio ingressou no Departamento de Ciência Política, era num contexto de indignação das feministas – particularmente com os assassinatos de mulheres, cujos assassinos confessos eram absolvidos. Um dos casos que ganhou mais visibilidade foi o crime de Doca Street, que em 1976 matou sua esposa e foi absolvido. Após os protestos que tinham como bordão “quem ama não mata”, um novo júri foi formado e só então ele foi condenado.
E é sobre esses processos que Mariza vai se debruçar, tema dos livros Morte em Família e Crimes da Paixão, crimes de homicídio e tentativa de homicídio ocorridos em Campinas nas décadas de 1950 e 60. Ficaram conhecidos como “crimes da paixão” por envolverem a morte de um dos cônjuges, em sua maioria mulheres. O que ela mostrava é que esses crimes eram julgados a partir dos valores dominantes que definiam o papel de homens e mulheres na nossa sociedade. Aquilo que em termos legais era um contrato entre indivíduos supostamente iguais, de fato, correspondia a direitos e deveres diferenciados entre os cônjuges. Assim, se um julgamento conseguisse demonstrar que a mulher desviara-se da norma estabelecida, de quem se esperava fidelidade absoluta, seu marido ou companheiro estaria autorizado a matá-la, desde que ele tivesse cumprido sua parte na disposição esperada do casal, que era de provedor da família. Era um tema novo na antropologia, muito diferente do que se fazia até então.
Hoje, investigar o tribunal do júri e a justiça é tão comum que temos até a antropologia do direito, voltada para o estudo da nossa sociedade. À época, a antropologia urbana estava caminhando, Gilberto Velho, no Rio de Janeiro, pesquisando as classes médias, Ruth Cardoso, em São Paulo, pesquisando favelas e a pobreza. Quebrava-se assim a hegemonia dos estudos de populações indígenas, camponesas, ou de pequenas comunidades que tinham exclusividade na disciplina.
A antropologia da Unicamp desafiava a antropologia tradicional estudando clínicas de aborto, SOS mulher, michê, prostituição etc. Pesquisar o tribunal do júri era uma novidade e havia sempre os gatekeepers, empenhados em proteger a antropologia do que é tido como desvios temáticos. É uma pena, mas estão aí até hoje dizendo que o que fazemos não é antropologia. É sociologia, ciência política ou direito.
Antonio Augusto Arantes, Verena Stolcke e Peter Fry, pais fundadores da Antropologia da Unicamp, desafiam essa estreiteza a que se queria reduzir a área. Mariza apontou o interesse do fazer antropológico no estudo de grupos sociais e na análise de documentações outras que não aquelas que de início definiram o que era o trabalho antropológico.
Olhar para os processos não tinha como objetivo descobrir o que de fato ocorreu e levou ao crime – ou definir quem era o culpado ou ainda avaliar se era justa ou injusta a decisão tomada pelo tribunal do júri ou pelos juízes. Mas tinha, sim, o objetivo de analisar como o ocorrido ganhava significado nas etapas processuais. Os processos são construções que devem ser analisadas como tal. O que temos são versões em disputa pelos advogados de defesa e de acusação.
Era um modo de trabalhar com a dimensão significante inspirado no fazer antropológico, mas num contexto em que boa parte das pesquisas em ciências sociais trabalhava com a noção de ideologia e alienação. Nos anos 70 e 80, o esforço reflexivo em boa parte das ciências sociais era identificar e criticar o falso em oposição ao verdadeiro. Essa não é uma questão central na antropologia, não nos interessa saber se o que diz o xamã é falso ou verdadeiro; como antropólogos, queremos entender a eficácia simbólica de determinadas práticas sociais.
O que determinava a absolvição ou a gradação da pena do acusado, mesmo quando confessava que cometera o assassinato, dependia da identificação de seu comportamento com outras normas sociais: mãe prestimosa, esposa fiel, marido provedor da família. O que é julgado não é o crime em si, mas a situação em que ele foi cometido, a biografia de quem o cometeu, o cumprimento ou não dos valores dominantes no plano das relações conjugais.1 1 Cf. Conversa com a autora Mariza Corrêa realizado no 30º Encontro Anual da Anpocs, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3llejOX
O que Mariza mostrava é como nesses casos uma nova figura jurídica passa a ser criada: “a legítima defesa da honra”, que serve para inocentar assassinos confessos. Ou seja, criou-se uma espécie de engenhoca em que se junta a figura da defesa da vida, que é certamente legítima por ser a vida um valor indiscutível na nossa sociedade, substituindo a vida pela honra, com o objetivo expresso de absolver o criminoso. Mariza escreveu um verbete lindo sobre honra publicado no dicionário – uma espécie de enciclopédia da ABA sobre Antropologia e Direito –Antropologia e direito: temas antropológicos para os estudos jurídicos.
A dissertação de Mariza foi o primeiro mestrado defendido na Unicamp, em 1975. Um orgulho para o PPGAS da Unicamp que rendeu dois livros que até hoje são referências obrigatórias para quem pesquisa o tema. Mais do que isso, os livros tiveram uma repercussão fora da antropologia, particularmente na área de direito. Tanto que atualmente essa figura esdrúxula da “legítima defesa da honra” não serve mais para absolver um réu e mesmo quando é utilizada pela defesa, não tem mais eficácia.
O que me parece central aqui é o modo como esses livros colaboram com uma mudança na própria concepção do direito e do judiciário. Ao mostrar a lógica social envolvida nos julgamentos é possível identificar uma mudança na própria forma em que a justiça está sendo concebida. O modo tradicional de operar julgamentos é opor uma vítima a um acusado, é pensar no crime como uma relação entre duas pessoas. Mariza trouxe um novo paradigma para os crimes de gênero. Os crimes são cometidos por causa do papel social que se espera da vítima, dos estereótipos ou dos scripts que se consideram próprios das mulheres. Ou seja, o que era pensado como uma relação entre duas pessoas passa a ser visto como fruto da desigualdade social. Esse é um novo paradigma que orienta a reflexão sobre certos tipos de criminalidade, em que o papel social da vítima é a questão, mesmo quando o crime de estupro envolve duas pessoas, num local escuro onde não há testemunhas. Em termos internacionais, os crimes de gênero passam a ser crimes contra a humanidade, como o estupro, a escravidão sexual, a esterilização. Os crimes de gênero, da mesma forma que o genocídio –crimes contra grupos étnicos específicos –são novos tipos de criminalidade que orientam o que é visto como o direito penal da vítima, do qual a Lei Maria da Penha é uma das expressões mais bem acabadas.
A retidão de seu caráter e a delicadeza de Mariza no tratamento humano deixam um legado não só intelectualmente desafiador, mas que torna cada um de nós herdeiros da construção e aperfeiçoamento de instituições que ampliam os horizontes do trabalho acadêmico nas ciência sociais brasileiras.
Referências bibliográficas
- Corrêa, Mariza. Os crimes da paixão. São Paulo, Brasiliense, 1981.
- Corrêa, Mariza. Morte em família representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro, Graal, 1983.
- Corrêa, Mariza; Laraia, Roque (org.). Roberto Cardoso de Oliveira: homenagem. Campinas, Setor de Publicações do IFCH, Unicamp, 1992.
- Corrêa, Mariza. As ilusões da liberdade – a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragança Paulista, Editora da Universidade São Francisco, 2000.
- Corrêa, Mariza. Gênero e Cidadania. Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2002.
- Corrêa, Mariza. Antropólogas e Antropologia. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003.
- Corrêa, Mariza. As reuniões brasileiras de antropologia: cinquenta anos (1953-2003). Campinas, Editora da Unicamp e Associação Brasileira de Antropologia (ABA), 2003.
- Corrêa, Mariza; Souza, Érica Renata de.Vida em Família: uma perspectiva comparativa sobre “crimes de honra” Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006.
- Corrêa, Mariza. Traficantes do Simbólico e outros ensaios sobre a história da Antropologia. Campinas, Editora da Unicamp, 2013.
- Evans-Pritchard-E.-E. Witchcraft, Grades and Magic among the Azande. Londres, Oxford University Press, 1976.
- Kuper, Adam. Antropólogos e Antropologia. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978.
- Levi-Strauss, Dina. Instruções práticas para pesquisas de antropologia física e cultural Coleção do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, São Paulo, 1936.
- Perlonger, Nestor. O Negocio do Michê – A relação entre o prostituto viril e seu cliente. São Paulo, Editora Brasiliense, 1987.
-
1
Cf. Conversa com a autora Mariza Corrêa realizado no 30º Encontro Anual da Anpocs, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3llejOX
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Nov 2018 -
Data do Fascículo
2018
Histórico
-
Recebido
12 Jan 2018 -
Aceito
14 Ago 2018