Resumo
Este texto trata dos trabalhos de Mariza Corrêa sobre a história da antropologia no Brasil. Nele, abordamos os eixos de interesses mais gerais e persistentes que marcaram sua reflexão, especialmente atenta, de um lado, ao processo de formação e desenvolvimento institucional da disciplina no país e, de outro, às inflexões de gênero na prática e na escrita da história da antropologia brasileira.
Mariza Corrêa; Antropologia; História; Brasil; Estudos de Gênero
Abstract
This paper discusses Mariza Corrêa’s works on the history of anthropology in Brazil. We look at the wider and more persistent areas of interest of her reflections. The paper is especially attentive to the formation and institutional development of the discipline in Brazil and the gender inflections in the practice and writing of the history of Brazilian anthropology
Mariza Corrêa; Anthropology; History; Brazil; Gender Studies
Para mim, biografia sempre foi uma aventura pessoal de busca e exploração, um rastreamento. É incerta no seu início, até mesmo quando o primeiro esboço de um personagem vislumbrado pode se transformar em uma pessoa diferente, ou assumir um papel menor em outra vida, ou simplesmente desaparecer no estrato rasteiro da história. É provocante no seu destino final, quando uma biografia concluída deixa, invariavelmente, muito mais a ser descoberto, às vezes por outros meios. Com frequência, é surpreendente em retrospecto, quando perspectivas e retrospectivas previamente encobertas emergem. Concluo que nenhuma biografia é definitiva, porque não é a natureza de tais jornadas, tampouco do coração humano que é o seu território. Por vezes, tudo que se alcança é um outro ponto de partida [...] Ainda assim, estas incursões que se afastam do caminho principal, estas trilhas sedutoras por outras faces da colina, são frequentemente os espaços onde eu mais aprendi sobre meus personagens e me senti mais livre em sua companhia [...] As trilhas que emergem dessas rotas principais assumem formas diversas e, por vezes, surpreendentes. Pois sou fascinado pelas diferentes maneiras pelas quais uma “história verdadeira” pode ser contada [...] Desviar do caminho é, no final das contas, se deixar levar por uma trilha ou uma ideia, um aroma ou uma melodia; e talvez perder-se para sempre. Mas nenhum verdadeiro biógrafo se importaria, caso ele leve alguns leitores com ele. Para encontrar seu personagem, você deve, em certo sentido, se perder pelo caminho. Este é o meu registro de tais desvios de um rumo certo.1
Richard Holmes, Sidetracks (2000:ix-xi).
Dentre os muitos temas aos quais Mariza Corrêa (1945-2016) se dedicou ao longo de sua trajetória acadêmica, o estudo sobre a história da sua própria disciplina, a antropologia, certamente merece um lugar de destaque no conjunto da sua produção, seja pela originalidade de seus trabalhos, seja pela própria forma como ela fez da história da antropologia uma espécie de laboratório crítico para a conjugação de seus principais interesses analíticos: como raça e gênero, e seus efeitos na construção do conhecimento antropológico. Nesse sentido, talvez não seja aleatório que seu último livro, Traficantes do simbólico & outros ensaios sobre a história da antropologia, lançado em 2013, fosse justamente uma coletânea de quatro de seus mais importantes ensaios publicados sobre o tema nos anos 1980 e 1990, os quais, a despeito do passar dos anos, Mariza julgou indispensável situá-los como partes de uma empreitada intelectual maior e, mais importante, ainda em desenvolvimento. Ensaios, dizia ela logo no prefácio, todos eles “relacionados ao Projeto História da Antropologia no Brasil (PHAB), no qual venho trabalhando intermitentemente nesses anos todos” (Corrêa, 2013:9, ênfase dos autores). Muito provavelmente, o mais intermitente, mas também o mais duradouro e contínuo dos projetos de Mariza. O inacabável work in progress de uma pesquisadora que, por décadas, buscou revolver o passado da disciplina, movida, não pela pressa de quem se crê (inutilmente) capaz de esgotá-lo, mas antes pela obstinação paciente de quem pretendia ver multiplicadas as possibilidades de compreendê-lo.
Fomos, os autores deste artigo, alunos de Mariza no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp, instituição em que ela realizou parte considerável de sua trajetória acadêmica e onde, a partir dos anos 1970, trabalhou como docente e pesquisadora. Os cursos e os trabalhos de Mariza foram diretamente responsáveis pelo desenvolvimento de nossas pesquisas e pela forma como aprendemos a encarar as potencialidades analíticas da antropologia e sua história. Com este artigo, e enquanto seus ex-alunos, não temos qualquer pretensão de apreender a totalidade da trajetória e da produção intelectual de Mariza ou tampouco realizar uma (merecida) análise circunstanciada sobre os contextos de inscrição e produção de seus trabalhos. Trata-se, antes, de um texto de homenagem, no qual procuramos oferecer não mais do que um sobrevoo por algumas das linhas de forças que informaram e organizaram a reflexão de Mariza sobre o desenvolvimento da antropologia no país.
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Tudo teria acontecido “quase por acaso”, quando, em 1984, graças a um auxílio financeiro concedido pela Fapesp, ela começou a desenvolver na Unicamp o projeto História da Antropologia no Brasil: testemunhos (1930-1960).2 Por acaso, ou quase, pois se viu à frente de um projeto inicialmente concebido por Manuela Carneiro da Cunha no ano anterior, mas que, na ocasião da aprovação do auxílio, já havia se transferido da Unicamp para a Universidade de São Paulo (USP). Diante do desfalque da idealizadora, Mariza foi então convidada pelos colegas de departamento para assumir a coordenação da pesquisa, cujos objetivos iniciais, afinal, eram “muito simples”: registrar alguns depoimentos dos pioneiros da antropologia no país. Ou melhor, nas palavras de Mariza (que, por sua vez, evocava as de Manuela na proposta original), se tratava de tentar “recuperar o que [era] possível recuperar, seja em termos de memória dos nativos, seja em termos de material para análise, da trajetória de nossa disciplina no Brasil nos últimos 50 anos” (Corrêa, 2013 [1987b]:16-17).3
Não demorou muito, no entanto, para Mariza e sua equipe perceberem que não havia nada de simples naquela tarefa, a qual, pelo contrário, somente parecia se complicar conforme se avolumavam os materiais decorrentes das entrevistas, ao mesmo tempo em que muitas das pessoas entrevistadas começavam a doar seus acervos para o projeto. Mais significativo ainda, complicava-se a própria inteligibilidade das memórias nativas que, muito frequentemente, desarranjavam periodicidades e esquemas explicativos bem estabelecidos.4 E o que era para ser um projeto aparentemente “modesto” de sua coordenadora, começado “quase por acaso”, foi gradualmente ganhando fôlego e desdobramentos inusitados: em entrevistas realizadas, em volume de materiais reunido, em acervos gerados, em recrutamento de jovens pesquisadores, em orientações de teses e dissertações e, sobretudo, em termos da recalibragem das próprias ambições analíticas de Mariza com relação ao tema da história da antropologia.5
Muito embora não fosse sua primeira experiência no tema, o envolvimento de Mariza com o PHAB acabou se mostrando uma experiência decisiva e cheia de desdobramentos em sua carreira como pesquisadora, na medida em que, voluntária e involuntariamente, passaria a assumir o papel de uma espécie de escriba privilegiada de sua própria disciplina.6 Uma escriba, é verdade, desprovida de qualquer viés factualista da história ou tampouco satisfeita em tão somente documentá-la. Pelo contrário. Valendo-se de uma linguagem não muito distinta da forma como os antropólogos – e lógico, as antropólogas – conceberam o trabalho etnográfico, Mariza Corrêa veria no recurso à história um instrumento reflexivo privilegiado da antropologia com relação às práticas de sua própria tribo para, desse modo, repensar também as práticas das tribos dos outros. O resultado dessa longa e “intermitente” empreitada de quase trinta anos de pesquisa seria um conjunto notável de ensaios nos quais Mariza, não somente mapeou praticamente meio século de desenvolvimento profissional e institucional da antropologia brasileira, como também, desse “mapa”, desdobrou suas análises arrojadas sobre as “linhagens femininas” e a natureza imaginária do gênero na história da antropologia.7
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Muito embora Mariza Corrêa invocasse um certo golpe do acaso, pode-se dizer que havia pouco ou quase nada de aleatório no convite que lhe foi feito por seus colegas de departamento para coordenar o PHAB. Afinal, apenas dois anos antes ela havia acabado uma tese de doutorado, cujo tema e, obviamente, qualidade, faziam de Mariza uma escolha certeira para substituir Manuela Carneiro da Cunha. Defendida em 1982, na USP, sob a orientação de Ruth Cardoso, As Ilusões da liberdade: a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil, como o próprio título diz, já trazia em alto relevo o interesse de Mariza pela história da disciplina ao analisar a constituição de uma arena de pesquisas que, ao lado da etnologia indígena, seria decisiva para o movimento de arranque da institucionalização da antropologia brasileira, a saber: a arena dos estudos sobre raça na virada do século XIX para o XX.
As ilusões da liberdade lançava luz às práticas científicas de uma elite profissional que, com o fim da escravidão, se viu às voltas com o “imperativo político de definir mais claramente os critérios de inclusão/exclusão ao estatuto de cidadão nacional” (Corrêa, 2001a:24). A partir da recuperação minuciosa da trajetória intelectual do médico-legista Nina Rodrigues e de seus autodenominados discípulos – a exemplo de Oscar Freire, Afrânio Peixoto e Arthur Ramos –, Mariza nos reconduzia aos seus laboratórios psiquiátricos para ali desvelar o surgimento de um saber médico-antropológico empenhado em contestar as “ilusões” políticas da igualdade republicana, no momento mesmo em que ela era juridicamente formalizada no país. Para esses “homens de ciência”, dizia a autora, nada soaria mais ingênuo do que os clamores de igualdade em países como o Brasil, cuja composição étnica da população tornava impossível ou virtualmente interminável o trabalho social de cura da natural desigualdade de suas raças e de seus grupos inferiores. De modo inovador, Mariza evidenciava os incômodos, porém indissociáveis, laços de nossa história antropológica com o racismo científico e a eugenia de finais do século XIX. Ou melhor dizendo, em As ilusões da liberdade, como nos lembra Sergio Carrara, Mariza enfrentava “os fantasmas do passado [da] própria disciplina”; destacava seus efeitos na constituição dos sujeitos, transformados objetos; iluminava seus nexos de sentido com a organização do Estado, da política e do poder na sociedade brasileira; demonstrava, enfim, como por essas plagas, diferente das antropologias metropolitanas, a brasileira nascia do comprometimento com um projeto de
colonização interna” de suas raças e corpos (in)submissos, situando “no âmbito de um mesmo afã civilizador e disciplinar o conhecimento e a intervenção não só sobre os ‘primitivos’ ou as ‘raças inferiores’, mas também sobre os loucos, as crianças, os criminosos, as mulheres, os homossexuais... (Carrara, 1999:200).
Parte substantiva da força heurística do trabalho derivava justamente das perspectivas analíticas adotadas por Mariza em seu esforço de plasmar uma “leitura antropológica” da própria história da antropologia e das ciências sociais no país. E com isso queria dizer uma leitura disposta a colocar em permanente estado de suspeição
as demarcações institucionais e teóricas que definem as fronteiras dos vários campos científicos tais como os conhecemos hoje [para, desse modo,] tentar recuperar o sentido que estes autores davam aos conceitos que utilizavam em seu próprio momento histórico (Corrêa, 2001a:21).
Daí que, diferente de muito do que se escrevera a respeito até então, ao invés de simplesmente denunciar o racismo nas ideias de Nina Rodrigues e seus discípulos (ou tratá-las como meros equívocos de uma etapa “pré-científica” da antropologia), As ilusões da liberdade vinha justamente problematizar a importância de se entender as lógicas a partir das quais essas ideias de inferioridade racial se tornaram efetivas e significativas, uma causa socialmente relevante quanto aos modos como as pessoas de um certo grupo, tempo e contexto implicavam o mundo em que viviam.
Méritos de um trabalho que se destacava duplamente, de um lado, ao abordar antropologicamente as fontes históricas de nossa vida intelectual e, de outro, ao conferir densidade analítica e historicidade ao desenvolvimento da antropologia brasileira. Razão pela qual não surpreende que Mariza acabasse sendo convidada para coordenar o PHAB.
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Certa vez, instigada a falar sobre os caminhos que a conduziram até Ilusões da liberdade, Mariza Corrêa fez questão de mencionar o impacto exercido pelos trabalhos de Michel Foucault, não somente sobre sua formação, mas também na própria “descoberta” da história da antropologia como um campo de reflexão. Um tema que, ao menos na forma como ela entendia, lhe chegara no esteio de seus interesses pela história dos saberes médicos e suas implicações na prática jurídica: questões caras à dissertação de mestrado que havia desenvolvido sobre os chamados “crimes de honra” contra mulheres no Brasil.8 Em suas próprias palavras:
Isso foi influência do Foucault, porque eu tinha acabado de defender minha dissertação de mestrado [...]. Estava lendo coisas que sempre me interessavam muito ler [...], e eu continuava ainda ligada no Direito, por causa da dissertação. Coisa como um pouco a história do Direito, sobre a loucura, porque vários desses caras eram especialistas em casos de loucura, as pessoas matam pela paixão. Caiu-me nas mãos, em um sebo de Porto Alegre, um livro muito interessante do Arthur Ramos, Loucura e Crime, daí eu disse: ‘Bom, isso é pra mim, vou ler’ [...] Quando eu comecei a ler um dos artigos do Arthur Ramos que conta a história da Escola Nina Rodrigues eu pensei: “Gente, mas é o Foucault escrito!”. Era a genealogia perfeita e eu tinha de entender esse caso [...] A partir daí eu acabei descobrindo que isso era bastante a história da antropologia também (Corrêa, 2003b:114, ênfases dos autores).
Mas se é verdade que estava começando a “descobrir” a história da antropologia, fato é que ela certamente não estava só nessa descoberta. Em que pese os trabalhos pioneiros escritos por George Stocking Jr. (1968) e Adam Kuper (1978 [1973]) ainda nos anos 1960 e 1970, pode-se dizer que a década de 1980 foi um momento catalisador de uma espécie de exame de consciência dos praticantes da disciplina, para o qual foram decisivas as críticas elaboradas no âmbito dos debates feministas e das perspectivas pós-modernas e pós-coloniais. Críticas que acabariam por colocar sob forte condição de suspeição não somente a história da antropologia e suas chagas coloniais, mas também a “autoridade” e a “escrita” etnográficas.9 No Brasil, coetaneamente, também começaram a surgir preocupações similares, muito embora, como bem observa Mariza Peirano, aqui não fora tanto “pela retórica que a antropologia [seria] questionada” (1988:185), mas sim por meio de trabalhos atinados com a compreensão de seus eixos formativos, dentre os quais pode-se destacar: a própria tese de Mariza Peirano, Anthropology of anthropology: the Brazilian case (1981); “roteiros”, como o de Júlio Cezar Melatti, Antropologia no Brasil: um roteiro (1984); estudos mais propriamente historiográficos, como os de Mariza Corrêa, Ilusões da liberdade (1982) e a leva de seus ensaios decorrentes do PHAB; mais ainda Roberto Cardoso de Oliveira e seus estudos sobre os diversos “dialetos” do idioma antropológico, a exemplo de seu Sobre o pensamento antropológico (1988).10
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Não saberíamos dizer exatamente em que momento de 1984 Mariza Corrêa deu início às atividades do PHAB. O que parece certo, no entanto, é que em meados daquele ano o trabalho de entrevistar “seus velhinhos” da antropologia brasileira já corria em ritmo intenso. E foi por meio de um deles, Thales de Azevedo – autor do, hoje, clássico As elites de cor: um estudo de ascensão social (1955) –, que Mariza acabou entrando em contato com uma figura que se mostrou de singular importância para o desenvolvimento do PHAB: Donald Pierson, sociólogo norte-americano que se destacou por suas pesquisas sobre relações raciais na Bahia na década de 1930 e que, mais tarde, nos anos 1940 e 1950, foi um personagem chave no desenvolvimento das ciências sociais brasileiras como professor, em São Paulo, na Escola Livre de Sociologia e Política. Com Donald Pierson, Mariza trocaria farta correspondência, encontrando nele não apenas um de seus colaboradores mais constantes e entusiasmados, como também uma sincera amizade: dois “kindred spirits”, expressão usada pelo próprio Pierson para se referir à relação entre eles e à disposição de ambos em revolver tempos, eventos, instituições e personagens do passado de nossas ciências sociais.11 Expressiva dos rumos do PHAB, essa correspondência, ademais, constitui um material dos mais elucidativos quanto ao artesanato da pesquisa e aos interesses que foram animando as buscas de Mariza.
Prezado professor Pierson,
Fiquei extremamente feliz ao receber sua carta de 20 de junho, tantas e tão boas são as informações que o senhor generosamente nos oferece para complementar o projeto sobre a história da antropologia no Brasil [...] Sua sugestão a respeito de preparar uma gravação para o projeto é excelente, seria uma forma de podermos incluir seu depoimento, juntamente com o dos outros antropólogos que estamos ouvindo [...] Neste semestre gravamos os depoimentos de Thales de Azevedo, Egon Schaden, Florestan Fernandes, Robbo-Muller e Nunes Pereira e, no próximo, esperamos ter conosco Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Castro Faria, Oracy Nogueira, Octavio da Costa Eduardo, Cardoso de Oliveira, René Ribeiro, Fernando Altenfelder Silva e, hopeffuly, Lévi-Strauss [...] Em seu próprio depoimento, gostaríamos que o senhor fizesse uma revisão do período que passou no Brasil, dando ênfase ao seu trabalho na formação de antropólogos e analisando a influência das teorias produzidas nos Estados Unidos sobre os trabalhos aqui realizados. Este aspecto é importante porque, ao mencionar seus orientandos e colaboradores, o senhor poderá nos ajudar a redescobrir pesquisadores injustamente esquecidos apenas porque alguns deles não estão ligados, atualmente, à pesquisa ou ao ensino. E é importante, também, para nós, dada a ênfase que é sempre atribuída à influência francesa na formação dos pesquisadores em ciências sociais no Brasil, contar com uma avaliação da contribuição dos professores visitantes norte-americanos e das leituras que os nossos primeiros antropólogos fizeram da literatura norte-americana nessa disciplina.12
Embora longo, o trecho vale como um registro sintético das qualidades mais notáveis que marcaram os trabalhos de Mariza Corrêa: a escuta sensível aos informantes; a busca exaustiva por biografias expressivas, misturando em pé de igualdade e importância analíticas nomes consagrados com aqueles considerados menores; a atenção aos laços internacionais no desenvolvimento da nossa antropologia; a varredura das redes de formação e reprodução da disciplina e dos seus praticantes; e, por fim, quase que uma obsessão pelos “esquecimentos”, pelos personagens virtualmente ausentes e pelos elementos aparentemente fora de lugar na antropologia brasileira (ou pelos lugares onde aparentemente não se esperaria encontrá-la).
Assim, não é preciso muito esforço para encontrarmos no trecho acima as linhas de força de ao menos dois dos principais textos que Mariza publicaria logo na década de 1980: “Traficantes do excêntrico: os antropólogos no Brasil dos anos 30 até os 60” (2013 [1988b]) e “A revolução dos normalistas” (2013 [1988a]).13 O primeiro, uma abordagem sobre os grupos e os espaços implicados na construção da antropologia no país, atenta às “ironias”, ou melhor, às questões sempre “ilusórias” da nacionalidade no desenvolvimento da nossa disciplina, para o qual a presença de pesquisadores estrangeiros, mais do que exceção, foi a regra e mesmo sua condição (como atestaram os itinerários de Donald Pierson, Ruth Landes, Charles Wagley, Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide e de muitos outros que por aqui passaram). Já o segundo deles, “A revolução dos normalistas” – um artigo que Mariza dizia gostar bastante – armava uma leitura a contrapelo da história da disciplina, problematizada justamente a partir daquilo que acabou se constituindo como ausência e esquecimento. No caso, Mariza tratava ali da “estranha amnésia” nas “genealogias nativas” com relação à antropologia da década de 1950 e, em particular, à participação dos antropólogos nas iniciativas institucionais tocadas pelos educadores egressos do “movimento pela escola nova”, no âmbito das quais um grande estímulo fora dado à pesquisa de campo no país. Uma amnésia, concluía Mariza, provocada, não pela mera “descrença” na antropologia produzida naquela década, mas sim pelo próprio olhar anacrônico sobre o passado, pelo de que se tentava buscar a antropologia “onde [afinal] ela não podia estar, num ‘campo antropológico’ ainda em constituição, ao invés de tentar encontrá-la onde era [efetivamente] praticada” (Corrêa, 2013 [1988a]:76).14
A verdade, porém, é que no âmbito do PHAB Mariza se viu instada a pensar muitos passados da disciplina, uns mais distantes, outros menos, como foi o caso do ensaio “Antropologia no Brasil (1960-1980)” (Corrêa, 2013 [1995d]).15 Nele, ao se voltar para a criação dos programas de pós-graduação em antropologia no país, Mariza já deixava de ser tão somente a observadora de passados alheios para se transformar, ela mesma, em parte e protagonista das histórias que pretendia contar. E talvez por isso mesmo, pelo fato de que memória pessoal e institucional já se tornavam por demais sobrepostas, a década de 1980 tenha sido uma espécie de marcador-limite do amplo arco cronológico que Mariza buscou apreender em sua história da antropologia brasileira. Afinal, se até um certo momento parecia haver suficiente distância temporal ou espacial para que todos pudessem ser “tratados como personagens, num momento seguinte eles são pessoas – e pessoas muito próximas”; a pesquisadora “sempre sabe demais”, o que também significa que muito já não pode ser dito, sob “o risco de trair a confiança nela depositada pelos que lhe contaram [...] histórias, lhe deram cartas para ler ou viveram aqueles episódios num cenário privado” (Corrêa, 2013 [1995d]:108-109, ênfases no original).
Quais fossem, no entanto, as temporalidades em foco, pensar o passado ou o presente da disciplina constituíram movimentos indissociáveis na história da antropologia praticada por Mariza. Revolver essa história era também – e necessariamente – uma forma de nos interpelar quanto aos modos como concebemos e praticamos a antropologia contemporaneamente: interpelações que ganharam feições particularmente provocativas em suas análises sobre as relações de gênero e suas inflexões na trajetória histórica da antropologia brasileira.
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Desde o início da troca epistolar que realizou com Donald Pierson, Mariza Corrêa logo tomou conhecimento da inestimável contribuição de “Dona Helen”, esposa de Pierson, para as atividades acadêmicas do marido desenvolvidas nas duas décadas em que viveram no Brasil. Tal colaboração, ainda perceptível naqueles anos de aposentadoria na pequena cidade de Fruitland Park, na Flórida, se materializava na ajuda que ela prestava na produção das cartas e também do longo relato da trajetória do marido.16 Mariza, animada com o esforço do casal em lhe fornecer tal depoimento, encorajou Helen a também escrever um texto com suas próprias memórias, de forma a não estarem subsumidas nas narrativas do marido que, a despeito do carinho e reconhecimento para com a “querida esposa (e secretária, e colaboradora em pesquisas durante muitos anos)”, não havia feito muito mais do que citar suas publicações em que Helen era referida, bem como mencionar as atividades em que ela o havia assistido de alguma forma.17
Essa era uma história, afirmou Mariza, que era importante de ser contada e que permanecia basicamente desconhecida. O convite foi feito após alguns anos do início da troca de correspondência, ao responder uma carta em que Donald Pierson lhe informava da inestimável ajuda de Helen para a preparação do material a ser enviado para o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), na Unicamp.18 Entretanto, Mariza já havia sugerido ao casal Pierson, alguns anos antes e em algumas ocasiões, que seria uma boa ideia saber mais sobre o trabalho da “muié do jipe”.19
Helen Pierson chegou a enviar um primeiro esboço de um depoimento. Entretanto, logo sua saúde frágil a impediu de continuar a colaboração com Mariza, que de fato nunca publicou o relato na íntegra, como gostaria. Não obstante considerar que não tinha material suficiente para publicar o texto na forma de um relato pormenorizado dessa experiência no Brasil, já era possível entrever naquelas breves trocas epistolares a ideia, que tomava corpo, de refletir sobre o gênero na história da antropologia.
Mariza já havia mencionado para Donald Pierson, quando explicava a importância de se contar as histórias das esposas dos antropólogos, como era o caso de "Dona Helen", que essa era uma análise que deveria ser feita, e dava como exemplo o “esquecimento” da presença de Dina Dreyfus na antropologia brasileira: pesquisadora e então esposa de Claude Lévi-Strauss na década de 1930, quando ambos vieram para o Brasil como parte da “missão francesa” de professores estrangeiros, crucial para a formação da USP. A despeito da importância que teve no desenvolvimento do primeiro manual de antropologia física no Brasil, bem como nas atividades da Sociedade de Etnografia e Folclore, em colaboração com Mário de Andrade, Dina parecia fundamentalmente apagada da historiografia da disciplina.20 Fora algumas menções breves, em Tristes Trópicos e em De Perto e de Longe, lembrava Mariza (2003 [1995b]), o próprio Lévi-Strauss pouco destacava sua presença nos anos em que estiveram juntos no Brasil. Ainda segundo Mariza, com exceção de observações pontuais sobre sua atuação na Sociedade de Etnografia e Folclore, pouco havia sido dito sobre Dina até a década de 1990. Mesmo as cartas de Mário de Andrade, ou de outros intelectuais daquele período, pouco faziam menção à sua presença; e quando era lembrada, geralmente era caracterizada como a “esposa de Lévi-Strauss”. Mais do que isso, Mariza saberia anos depois, quando Dina foi localizada e entrevistada, que ela própria parecia não ter lembranças de seu trabalho no Brasil: uma espécie de extensão do silêncio historiográfico na própria narrativa da memória pessoal.21
Mariza iria desenvolver uma análise cuidadosa sobre o gênero no fazer antropológico. De certa maneira, suas perspectivas feministas, já por demais evidentes desde a época em que trabalhava como jornalista, nas décadas de 1960 e 1970, retornavam agora em chaves renovadas e indelevelmente articuladas com a própria história da disciplina que elegeu como profissão. Para Mariza, pensar a produção do conhecimento em antropologia significava lançar luz aos constrangimentos associados às marcas da experiência social. A invisibilidade da questão de gênero na história da antropologia – ou, o que viria a levar a conclusões semelhantes, uma reflexão desencarnada dos posicionamentos sociais de seus produtores –, tornava ainda mais necessária a tarefa de povoar essa historiografia com contra-narrativas, sobretudo, em relação aos discursos canônicos que raramente admitiam algum protagonismo das antropólogas ou das companheiras dos antropólogos. A imagem-ideia que parecia condensar a força desse apagamento foi sugerida pela própria Helen Pierson quando, ao aceitar o convite de Mariza para recordar seu trabalho junto ao marido na Escola Livre de Sociologia e Política, pensou seu papel no Brasil como o de uma Girl Friday: expressão, declinada no feminino, que faz alusão ao personagem Sexta-Feira (Friday), alteridade e servo nativo indispensáveis ao naufrago Robinson Crusoé, criado por Daniel Defoe.22
A expressão foi lembrada por Mariza em “A natureza imaginária do gênero na história da antropologia”, texto introdutório de seu livro Antropólogas e Antropologia, de 2003, mas publicado primeiramente ainda em 1995, no periódico que ajudou a criar, cadernos pagu. Muito embora breve e discreta, a menção ao depoimento de Helen Pierson serviu como um mote para situar os problemas mais gerais concernentes aos constrangimentos de gênero investidos nas trajetórias de mulheres na antropologia, cujas contribuições como produtoras de conhecimento ficaram quase que invariavelmente subsumidas às de seus maridos pesquisadores. Destituídas de renome próprio, “no duplo sentido de nome famoso e de segundo nome” (pois, com muita frequência, ao se casarem, tomavam os sobrenomes de seus maridos), essas personagens “tornam-se então esposas em primeiro lugar”: como se, “sendo apenas esposas”, suas atividades nas parcerias etnográficas fossem por demais secundárias para merecer qualquer reconhecimento que extrapolassem as notas afetivas nos agradecimentos das monografias de seus maridos (Corrêa, 2003 [1995b]:22-23).
Menos do que um caso isolado, a Girl Friday invocada por Helen Pierson formulava uma imagem das mais ressonantes de experiências similares, ainda que desenvolvidas em contextos diversos, de muitas outras mulheres na antropologia, conectadas, no entanto, pela constância de uma estrutura cientificista que invisibilizava a constituição, interseccional, das origens sociais no campo acadêmico, em nome de uma presumida neutralidade na produção das memórias da disciplina. As Girl Fridays da história da antropologia pareciam acentuar ainda mais o risco percebido sobre a construtividade de uma identidade, a qual, no campo acadêmico (assim como em outras esferas da vida social), era ressaltada em sua frágil virtualidade, na angustiante descontinuidade do próprio nome, suprimido no casamento: e, junto com o nome, a possibilidade de memória. Afinal, nessa “nossa história [da antropologia], ao perdermos um nome, perdemos também um personagem”. De modo que
todas essas esposas, todas essas Girl Fridays, estão de certa forma sujeitas à desaparição, já que seu nome próprio é o nome de outrem e, para elas, é impossível sequer manter a ilusão de uma ‘identidade social constante e duradoura’, da qual esse nome é o fundamento (Corrêa, 2013 [1995b]:25, ênfases no original).
O depoimento de Helen Pierson parecia ocupar um discreto, porém crucial espaço no amadurecimento de certo viés analítico adotado por Mariza Corrêa, contribuindo, assim, para apontar a existência de uma questão transversal, a qual lhe permitiu pensar a importância do trabalho de antropólogas no desenvolvimento da disciplina: não apenas no Brasil, mas em outras tradições antropológicas. É possível refletir sobre o tipo de arquivo que Mariza formou, que, no limite, era também o acervo de sua própria trajetória, bem como de sua reflexão sobre as diversas formas de se fazer antropologia. Arquivos que só puderam ser gerados por alguém que estava atenta não somente à história das práticas antropológicas e científicas aqui praticadas, mas também às dificuldades que se impunham para mulheres que de alguma forma conseguiram reunir recursos suficientes para garantir suas formações acadêmicas.
Na realidade, essas dificuldades mostram-se heranças de uma estrutura antiga do fazer científico no Brasil, desde a fase em que, na virada do século XIX para o XX, o conhecimento acadêmico, inclusive, o antropológico, era feito em museus, em perspectiva naturalista. Caso das intelectuais não exatamente formadas em antropologia, mas que atuaram nos espaços em que a disciplina se desenvolveu, como Emília Snethlage, ornitóloga alemã que veio ao Brasil à convite do diretor suíço do Museu Paraense, Emílio Goeldi, e que, lembra Mariza, desde cedo tinha uma perspectiva de inserção desalentadora: aqui chegando “teria a sua frente anos de trabalho como assistente e poucas possibilidades de pesquisa própria” (Corrêa, 2003 [1995c]:93). O que parece ter se confirmado na frágil inserção institucional que marcou sua trajetória, a qual apenas parcialmente era compensada por certa legitimidade que seu status de estrangeira conferia, mas ainda assim insuficiente para neutralizar acusações, veladas ou não, de que era temeroso que uma mulher ocupasse um importante cargo público, como o de Diretora do Museu Paraense (e que fosse, ainda, solteira e arriscasse a ser sertanista). Casos como o de Snethlage não apenas permitiram a Mariza recuperar, em perspectivas outras e inusitadas, momentos fundamentais da história da antropologia, geralmente pouco reconhecidos, mas também descentrar certas genealogias tão canônicas quanto fundacionais, nas quais as experiências dessas personagens foram sonegadas.
Para Mariza, no entanto, não se tratava simplesmente de denunciar as narrativas generificadas da história da antropologia, mas, antes, pensar os efeitos mais abrangentes das marcas da experiência social e, em especial, as de gênero, na prática e na própria escrita da disciplina antropológica do país. Daí o interesse pela biografia de mulheres excepcionais, como as da ornitóloga Emília Snethlage, da diretora do Museu Nacional, Heloisa Alberto Torres, e da sertanista Leolinda Daltro, cujas atividades na primeira metade do século XX expressavam vigorosamente os modos como gênero provocava uma espécie de “ponto de fratura” em suas respectivas carreiras e trajetórias, à medida que parecia neutralizar os potenciais efeitos distintivos de seus capitais sociais e simbólicos. Ou melhor dizendo, tudo se passava como se “as determinações por assim dizer clássicas – como classe social (Heloísa), educação (Emília), relações de compadrio (Leolinda)”, de pronto, se esvaíssem quando rebatidas pelo prisma do gênero, sugerindo, assim, que “elas têm o valor que lhes é atribuído apenas quando os personagens são masculinos: quando se trata de personagens femininas, a história muda de figura, literalmente” (Corrêa, 2003:16). E é justamente porque as inflexões de gênero faziam (e continuam a fazer) a história mudar de figura para as personagens femininas da antropologia (aqui e alhures) que Mariza também mudou e nos provocou a mudar as formas de se contar suas histórias.
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Combinando crítica antropológica e feminista, Mariza encontrou nos arquivos e na história da antropologia territórios privilegiados de um empreendimento reflexivo e analítico, mas também político, quanto às possibilidades teóricas e metodológicas de sua própria disciplina. Afinal, é de política e de políticas de representação de presente que também se tratam nossas disposições a revolver passados e disputar, nos arquivos, as batalhas que sempre estamos travando pelos sentidos das histórias e das memórias da antropologia. Disposições que, já observou Olívia Gomes da Cunha, podem “tanto reinscrever e reproduzir fatos, pessoas, coisas e lugares numa outra cartografia quanto alterar radicalmente o nosso olhar informado por narrativas consagradas” (Cunha, 2005:8). De fato, a passagem não poderia ser mais pertinente para se referir ao trabalho de uma antropóloga, cuja obsessão são somente com a consulta, mas sobretudo com a criação de arquivos, foi a mais eloquente expressão de um projeto intelectual que alterou e ampliou decisivamente as fronteiras, as temporalidades e os personagens dos mapas que utilizamos para revisitar a história da antropologia no Brasil: seja reinscrevendo seus antigos marcos de referência em cartografias outras, seja produzindo marcos outros, novos e inusitados, transformando, então, nosso entendimento daquelas suas cartografias já por demais consagradas e conhecidas.
Pensar sobre aquilo que é possível acessar nesses rebeldes arquivos – produzidos, por vezes, para além do que eles se dispõem a nos contar – nos fornece pistas para refletir sobre as próprias lógicas que organizam as histórias que eles nos contam, ou seja: um verdadeiro procedimento etnográfico. Olivia Gomes da Cunha (2004; 2005) propôs uma etnografia dos arquivos de Ruth Landes para analisar o processo de constituição de um acervo, cujo início esteve associado ao convite recebido pela antropóloga norte-americana para contar suas experiências pessoais e de pesquisas, na já mencionada coletânea organizada por Peggy Golde (1986 [1970]) sobre mulheres em campo. A reflexão sobre os sentidos investidos pela própria Ruth Landes na organização e na ordenação de suas memórias e de seus documentos pessoais permitiu a produção de novos olhares à trajetória de Landes, muito mais ricos para a antropologia do que simplesmente uma mera recuperação factual.23
Ann Laura Stoler (2002) igualmente defendeu a ideia de que uma etnografia dos arquivos pudesse chamar atenção para a complexidade do ato de lembrar, sobretudo no tocante ao papel das tramas de poder implicado na produção da história. Se de fato fazer um arquivo é criar uma narrativa de si, mas também uma potencial ferramenta para a tessitura de identidades (ou melhor, identificações), a tarefa crítica e política empreendida por essa história da antropologia praticada por Mariza Corrêa revela de fato lições importantes, para historiadores e historiadoras da antropologia, bem como para seus praticantes. A partir da objetivação das memórias construídas nas relações que estabeleceu com seus “velhinhos”, Mariza construiu uma história social e intelectual multiplicada de sentidos, personagens e temporalidades, ampliando, assim, a geografia imaginária da antropologia brasileira. Enfim, nos mostrou o quanto a história da antropologia podia ser tão “emocionante” quanto delicada, jamais nos deixando esquecer que essa história é feita tanto por aquilo que não sabemos e é preciso descortinar quanto por aquilo que não se conta, mas é preciso perseguir e preservar:
A história da antropologia era, enfim, uma história emocionante: quanto mais sabíamos, mais queríamos saber. Ao mesmo tempo, percebíamos, ou intuíamos, que boa parte das histórias que íamos ouvindo eram, paradoxalmente, histórias para não serem contadas: algumas histórias de amor e morte, outras histórias de pequenas intrigas de bastidores. [...] [M]as é preciso muita paciência para estabelecer as redes sociais que levem às referências bibliográficas, ou vice-versa. Como me disse uma colega de métier uma vez: “E isso importa?” Importa, creio que importa saber o quanto as pessoas que são parte de nossa história não são personagens descarnados, mas são pessoas como nós, sujeitas às mesmas pressões de seu tempo, envolvidas nas mesmas teias de amizade-parentesco-dívidas acadêmicas nas quais nós nos envolvemos. Ainda que boa parte de nossas histórias não possa ser contada, elas ajudam os pesquisadores a emprestar significado às histórias contadas, a entender melhor certos movimentos dos personagens (Corrêa, 2006:35).
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Mariza Corrêa costumava nos encorajar, os autores deste texto, a buscar suas próprias aventuras “na caça”, na perseguição pelas histórias da antropologia. Metáforas detetivescas, ou de exploração, eram frequentemente usadas por Mariza ao dar sugestões sobre os possíveis caminhos a seguir com nossas pesquisas: sempre uma arguta fornecedora de pistas, sinais e trilhas inusitadas, geralmente relacionadas a personagens pouco conhecidos ou mesmo romanticamente esquecidos, a espera de serem recuperados, quase que contra a vontade do tempo. Personagens, por exemplo, como Buell Quain, parte da missão norte-americana de antropólogos vindos da Universidade de Columbia ao Brasil e que teve um melancólico desfecho pouco depois de sua chegada na década de 1930. Essa é uma história que, inclusive, se tornou romance (Carvalho, 2002), na pena de um escritor que mergulhou em investigações que nunca chegaram a ganhar um corpo de pesquisa mais consistente por parte de Mariza, mas que foram suficientemente fascinantes para atiçar a imaginação de Bernardo de Carvalho, que completou com ficção o pouco que se sabia sobre o destino do antropólogo norte-americano, que misteriosamente se matou na floresta amazônica em 1939 (Pécora, 2003).24
Entretanto, a história da antropologia que Mariza propunha, mesmo quando tornada acadêmica e menos pervasiva às licenças criativas da ficção, também parecia ser produzida com uma boa dose de imaginação: imaginação histórica e etnográfica, atenta às contrações (e expansões) dos sentidos possíveis do narrado. Como boas histórias de detetive, as pesquisas de Mariza sobre a antropologia no Brasil, feitas a partir de fragmentos iniciais e, depois, tornadas mais robustas, por meio de um paciente trabalho de seguir pistas, traços e pegadas, revelam muito de uma investigadora de rara perspicácia para descobrir novas trilhas. Afinal, o desvio dos caminhos estabelecidos, como bem o sabe um de seus biógrafos preferidos, Richard Holmes, frequentemente resultam nas melhores narrativas. As sidetracks, título de um livro de Holmes (2000), que costumam ser imprevisíveis, guardam a riqueza da indefinição e da multiplicidade dos percursos para acessar uma história, mesmo que eventualmente partes dela permaneçam impublicáveis. É por essa mesma razão, por ser algo produzido com extremo esmero, que as histórias que Mariza contou (e as que torcia para serem contadas por outras pessoas) dizem muito sobre sua esperança por uma antropologia mais crítica e, sobretudo, feita com paixão.
Referências bibliográficas
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“For me biography has always been a personal adventure of exploration and pursuit, a tracking. It is uncertain in its beginning, when even the first outline of a glimpsed subject may change into someone else, or become a minor role in another life, or simply fade away into the historical undergrowth. It is tantalizing in its final destination, when a completed biography invariably leaves so much else to be discovered, sometimes by other means. It is often surprising in retrospect, when previously hidden perspectives and retrospectives emerge. I conclude that no biography is ever definitive, because that is not the nature of such journeys, nor of the human heart which is their territory. Sometimes all one achieves is another point of departure. […] Yet these wandering from the main path, these seductive sidetracks over another part of the hill, are often the places where I have learned most about my subjects and have felt most free in their company […] The sidetracks that arose from these main expeditions take several, perhaps surprising forms. For I am fascinated by the many different ways in which a ‘true story’ can be told […] To be sidetracked is, after all, to be led astray by a path or an idea, a scent or a tune, and maybe lost forever. But no true biographer would mind that, if he can take a few readers with him. To find your subject, you must in some sense lose yourself along the way. This is my record of such departures from the straight and narrow”.
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“Esta pesquisa, eu comecei quase por acaso”, diria Mariza em depoimento na ANPOCS, em 2003, no âmbito do evento “Conversa com a autora”. O vídeo do depoimento está disponível no canal da ANPOCS, no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=3llejOXalD0. Acesso em 26 jun. 2018.
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Sobre o início do PHAB, ver também de Mariza Corrêa, o texto “Homenagem da antropologia da Unicamp a ABA: o Projeto História da Antropologia no Brasil” (2006) e “História da antropologia no Brasil: projeto da Unicamp” (1995a).
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Embora não mencione todos os estudantes que participaram da equipe de pesquisa, Mariza destaca os seguintes nomes como os que mais de perto trabalharam com o material reunido nos primeiros anos do PHAB: Adriana Piscitelli, Andréa Milesi, Carlos James dos Santos, Emilia Pietrafesa de Godoi, João Batista Cortez e José Augusto Laranjeiras Sampaio (Corrêa, 2013 [1987b]:16).
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Atualmente, como resultado da PHAB, encontram-se depositados no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL-Unicamp), os acervos profissionais de Donald Pierson, Herbert Baldus e Roberto Cardoso de Oliveira, mais ainda o acervo institucional da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
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Assim como as representações de Mariza na cena antropológica nacional passariam a existir de modo quase que indissociáveis desse seu papel. Daí talvez o elogio ou a ironia (ou os dois ao mesmo tempo) que, durante uma entrevista, Mariza ouve de suas entrevistadoras, ao mencionarem uma palestra do antropólogo Sílvio Coelho na USP na qual ele teria feito o seguinte comentário: “Vocês querem saber da história da antropologia no Brasil? A antropologia do Brasil está hoje nas mãos de Mariza Corrêa” (Corrêa, 2003b:115, ênfases dos autores).
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“O verbo que lembro de termos utilizado com mais frequência durante os dois semestres em que trabalhamos com o material que começamos a publicar agora era mapear” (Corrêa, 2013[1987b]:17). Dentre os resultados do PHAB, seria importante mencionar as teses e as dissertações que, na Unicamp, Mariza orientou e que versaram sobre diferentes aspectos da história da antropologia e dos intelectuais no Brasil. Dissertações de mestrado: João Baptista Cintra Ribas, O Brasil é dos brasilianos: medicina, antropologia e educação na figura de Roquette Pinto (1990); Fernanda Peixoto Massi, Estrangeiros no Brasil: a missão francesa na Universidade de São Paulo (1991); Francisco Tadeu Ribas Santos Rosa, A aliança e a diferença: uma leitura do itinerário intelectual de Charles Wagley (1993); Maurício Érnica, Batucada de bamba, cadência do samba – a formação de uma brasilidade crítica e conservadora (1999); Héctor Segura-Ramirez, Revista Estudos Afro-Asiáticos (1978-1997) e relações raciais no Brasil (2000); Leslye Bombonatto Ursini, A revista “O Cruzeiro” na virada da década de 1930 (2000); Luiz Henrique Passador, Herbert Baldus e a antropologia no Brasil (2002); Iara Rolim, O olho do rei: imagens de Pierre Verger (2002); Regina Érika Domingos de Figueiredo, Cuidando da saúde do vizinho: as atividades de antropólogos norte-americanos no Brasil (2004). Teses de doutorado: Christina de Rezende Rubin, Antropólogos Brasileiros e A Antropologia No Brasil: A Era da Pós-Graduação (1996); Mônica Angela de Azevedo Meyer, Ser-tão natureza: a natureza de Guimarães Rosa (1998); Raquel Miranda Lopes, Etnografia de um saber disciplinar: um olhar sobre a sociologia e a antropologia do campesinato (1999); Hector Fernando Segura Ramirez, Tiro no pé – biopolítica, relações racializadas, academia e poder no Brasil 1823-1955/1997-2006 (2006); Regina Érika Domingos de Figueiredo, História de uma antropologia da “boa vizinhança”: um estudo sobre o papel dos antropólogos nos programas interamericanos de assistência técnica e saúde no Brasil e no México (1942-1960) (2009).
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Mariza Corrêa. “Os atos e os autos”: representações jurídicas de papéis sexuais". Dissertação de Mestrado, Antropologia Social. Universidade Estadual de Campinas, 1975. O trabalho orientado por Verena Stolcke (então Martinez-Alier) resultou em publicações sobre o universo jurídico sob uma perspectiva de análise atenta às desigualdades sexuais, entre as quais é importante citar os livros Os Crimes da Paixão (1981) e Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais (1983).
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Não cabe aqui recuperar o amplo e heterogêneo debate que, naquela década, proporcionou uma certa “virada reflexiva” quanto à história da antropologia e aos modos de atuação de seus praticantes, mas tão somente apontar a formação de um certo ambiente de discussões que, em maior ou menor medida, informaram o horizonte de reflexões de Mariza Corrêa, como foram os casos, por exemplo: tanto das proposições pós-modernas, para as quais o volume Writing culture (1986), organizado por James Clifford e George Marcus, pode ser lido como seu livro-manifesto, quanto das discussões feministas que, sobretudo, nos Estados Unidos, já começavam a apontar para as operações de apagamento das mulheres da história da antropologia, como bem representam os trabalhos Women in the field (1986 [1970]), organizado por Peggy Golde, e ainda Women writing culture (1995), organizado por Ruth Behar e Deborah A. Gordon.
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Aliás, no que diz respeito a Roberto Cardoso de Oliveira, não deixa de ser curioso notar que é justamente após ser entrevistado, em 1984, por Mariza Corrêa para o PHAB, que ele recebeu e aceitou o convite para lecionar no departamento de antropologia da Unicamp: “ao terminar a entrevista, ela e o então diretor do IFCH (Instituto de Filosofia e Ciências Humanas), professor André Villa-Lobos, me convidaram para trabalhar na Unicamp, sabendo que eu já estava interessado em sair eventualmente da UnB [...]. Então, não deixa de ser interessante dizer que o meu relacionamento com a Unicamp começou com um registro desse tipo” (Cardoso de Oliveira, 2000:187).
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Cópia dessa correspondência foi cedida aos autores pela própria Mariza Corrêa ainda no ano de 2014, que preparava o material para enviar para o AEL. Dessa correspondência resultou, além de um rico depoimento de Donald Pierson sobre seu período de trabalho no Brasil, a organização e doação de seu acervo pessoal e profissional relativo àquele período. O depoimento de Pierson foi publicado em História da antropologia no Brasil (1930-1960): testemunhos: Emílio Willems e Donald Pierson (1987a). Foi republicado, em 2013, na já mencionada coletânea de ensaios de Mariza, Traficantes do simbólico e outros ensaios sobre a história da antropologia.
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Carta de Mariza Corrêa para Donald Pierson, 27 de julho de 1987 (acervo particular de Mariza Corrêa).
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Salvo engano, o primeiro texto publicado por Mariza como resultado do PHAB foi o obituário de Manuel Nunes Pereira, falecido no ano de 1985, pouco tempo depois dele ter sido entrevistado para o projeto (cf. Corrêa, 1986).
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Originalmente, “Traficantes do excêntrico: os antropólogos no Brasil dos anos 30 até os 60” foi publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 3, n 6, 1988. Já “A revolução dos normalistas” apareceu primeiro na revista Cadernos de Pesquisa, n 66, 1988. Sobre o interesse de Mariza em pensar o esquecimento (de pessoas, eventos, práticas etc.), além de sua reflexão sobre gênero na história da antropologia (como veremos abaixo), ver ainda seu artigo “Os livros esquecidos de Nina Rodrigues” (2004).
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“Antropologia no Brasil (1960-1980)” foi originalmente publicado em Sergio Miceli (org.), História das ciências sociais no Brasil, vol. 2, São Paulo, FAPESP/Ed. Sumaré, 1995, resultado da participação de Mariza no âmbito do projeto sobre a história das ciências sociais no Brasil, coordenado por Sergio Miceli, no Idesp, em São Paulo, nos anos 1990.
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16
Na realidade, Mariza considerava a participação de Helen Pierson fundamental para o PHAB. Em carta de 9 de junho de 1985 para Donald Pierson, a antropóloga destaca que a produção de um depoimento das memórias do sociólogo era de fato um procedimento colaborativo, com um tempo de maturação que consistia em constantes correções e complementações: “O senhor percebeu que seu depoimento está sendo ampliado a medida que o senhor relê esta correspondência?”. Certamente a colaboração de Helen Pierson não ficou restrita apenas à tarefa de datilografar as lembranças. Consistiu também na nada banal tentativa de conferir precisão àquelas memórias: sobre as pessoas, datas e instituições consideradas relevantes na história da contribuição norte-americana para a consolidação das ciências sociais no Brasil em meados do século passado. Obsessivo com os detalhes quanto aos anos que passou no Brasil, Donald Pierson certamente não conseguiria escrever o depoimento que escreveu, não fosse a contribuição de Helen.
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Carta de Donald Pierson para Mariza Corrêa, 20 de junho de 1984 (acervo particular de Mariza Corrêa). Mariza estava convencida de que uma história sobre o papel da academia norte-americana nas ciências sociais no Brasil poderia ser ainda melhor explorada. Acreditava que as cartas com Pierson (bem como a correspondência de Pierson com intelectuais como Thales de Azevedo, Arthur Ramos e Anísio Teixeira) revelavam, por exemplo, as condições e os convênios internacionais que tornaram possíveis suas pesquisas de maior fôlego, como a que realizou no Vale do São Francisco. Entretanto, o material epistolar também abria as portas para a reflexão sobre um tipo de informação de outra ordem e que dizia respeito à forma como as experiências pessoais de Pierson davam concretude e forneciam uma via de acesso privilegiada para se compreender as estruturas transnacionais da ciência social praticada naquele momento.
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18
Carta de Mariza Corrêa para Donald Pierson, 23 de janeiro de 1989 (Acervo particular de Mariza Corrêa).
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19
Donald Pierson lembrou em seu depoimento para Mariza que Helen era a motorista do “jeep da Smithsonian”, no qual levava alunos da “Escola” (Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo) para terem uma experiência in loco sobre metodologia e técnicas de pesquisa, em Cruz das Almas, no município de Araçariguama, interior de São Paulo. Lá se estabeleceram em uma “vila” que serviu como uma espécie de base e de laboratório para o trabalho de campo conjunto, sob supervisão de pesquisadores mais experientes. Através de Julian Steward, havia sido firmado um acordo de colaboração entre a Escola e o Smithsonian Institution para essa iniciativa, que se desenvolveu principalmente em meados da década de 1940 e da qual resultou a publicação do livro colaborativo, Cruz das Almas: a Brazilian village, de 1951. Cf. (Pierson, 2013 [1987]). A importância das cooperações do Instituto de Antropologia do Smithsonian Institution na ciência social brasileira foi analisada por Érika Figueiredo, em uma tese orientada por Mariza, intitulada “História de uma antropologia da “boa vizinhança”: um estudo sobre o papel dos antropólogos nos programas interamericanos de assistência técnica e saúde no Brasil e no México (1942-1960)”, defendida em 2009.
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20
Sobre a “missão francesa” na Universidade de São Paulo, Fernanda Peixoto (então, Massi) trabalhou sobre o tema em sua dissertação de mestrado, orientada por Mariza (cf. Massi, 1991). Quanto a um estudo sobre a Sociedade de Etnografia e Folclore, em São Paulo, e a atuação de Dina Dreyfus, vale destacar o livro de Luísa Valentini (2013).
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21
Quando encontrada, em Paris, e entrevistada pela antropóloga Anne Marie Pessis, Dina Dreyfus “reiteradamente negava nossas lembranças do seu passado. Como vemos no vídeo, ela não lembra ter filmado ou escrito sobre os Bororo [...], e só depois de muita insistência da entrevistadora que relembrará trechos de sua vida aqui [no Brasil]” (Corrêa, 2003 [1995b]:20, ênfases no original).
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22
Em seu uso corrente as expressões “Man Friday”, bem como “Girl Friday”, descrevem assistentes pessoais particularmente leais.
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23
Neste texto, estamos longe de esgotar todas as frentes abertas por Mariza em suas análises sobre gênero na história da antropologia. Contudo, cabe destacar que a própria Mariza nutriu um enorme interesse pela vida e obra de Ruth Landes, belamente analisadas em seu ensaio sobre as intersecções sobre raça e gênero no campo dos estudos afro-brasileiros das décadas de 1930 e 1940 (cf. Corrêa, 2003 [2000]).
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24
O artigo em questão, que inspirou o escritor Bernardo de Carvalho, no romance Nove Noites, foi uma resenha escrita por Mariza sobre o livro Cartas do Sertão: de Curt Nimuendajú para Carlos Estevão de Oliveira (cf. Corrêa, 2001b).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Nov 2018 -
Data do Fascículo
2018
Histórico
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Recebido
12 Jan 2018 -
Aceito
14 Ago 2018