Resumo
Neste artigo, discutimos, a partir da noção de fronteira, como relações de afeto e confiança tecidas em nossas trajetórias de pesquisa permitem pensar os atravessamentos entre prisão, gênero e nossas inserções como pesquisadoras. Para tanto, partimos de pesquisas cartográficas realizadas por nós em unidades prisionais femininas e masculinas da cidade do Rio de Janeiro. Pensando gênero como categoria de análise e também como elemento constitutivo da gestão cotidiana e dos corpos no contexto prisional, nos debruçamos sobre as moralidades e forças que produzem feminilidades, masculinidades e relações nesse contexto, assim como abordamos os desafios e possibilidades para a construção de uma cartografia feminista na/da prisão.
Cartografia; Prisão; Gênero; Fronteira; Feminismo
Abstract
In this article, we discuss the notion of borders and how affection and trust-based relationships woven into our research trajectories allow us to debate the crossings between prison, gender and our insertions as researchers. The analysis is conducted by our cartographic researches in female and male prison units in the city of Rio de Janeiro. By thinking about gender as an analytical category and also as a constitutive element of daily management and of bodies in the prison context, we discuss the moralities and forces that produce femininity, masculinity and relationships in this context, and address the challenges and possibilities for a feminist cartography in/of prison.
Cartography; Prison; Gender; Frontier; Feminism
Para situar nossas cartografias
As ideias aqui propostas decorrem de nossas trajetórias de pesquisa e supervisão de estágio em diversas unidades prisionais. Trata-se de prisões de regime fechado e semiaberto, masculinas e femininas, na cidade do Rio de Janeiro. Nossos trabalhos e nossa relação com a prisão partem do campo da Psicologia Social e tiveram início no ano de 2010, sendo desde 2015 discutidos os desafios e perspectivas da cartografia nesse campo. Cabe destacar, ainda, que gênero e sexualidade têm sido eixos centrais na tarefa de acompanhar processos de subjetivação produzidos na/através da prisão. Nossos trajetos por entre prisões se desenrolaram por meio de diferentes caminhos: desde pesquisas que adentraram o sistema pela burocracia específica de avaliação e aprovação de projetos realizada pelo Centro de Estudos e Pesquisas1 , até experiências construídas através de parcerias com a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP), especificamente por meio do “Projeto Vida”.2
Buscando inserir nossas discussões no campo que se debruça sobre as porosidades da prisão ( Cunha, 1994 ; 2003 ; 2008 ; Padovani, 2015 ; Godoi, 2010 ; 2015 ), propomos a construção de cartografias da/na prisão que acompanhem seus movimentos de transbordamento para além de suas estruturas físicas. Dessa forma, nossas incursões pela prisão se dão dentro das unidades, mas também buscamos acompanhar o que acontece fora delas: as comunicações entre “dentro” e “fora” materializadas nas visitas familiares e íntimas; as experiências narradas por pessoas que já cumpriram pena e, hoje, encontram-se, como é costumeiro dizer, “em liberdade” (ainda que liberdades e aprisionamentos sejam constantemente produzidos e evanescidos dentro e fora da prisão); a construção de laços e redes militantes produzidos por pessoas que já estiveram presas, familiares e tantas outras pessoas cujas vidas foram, de uma forma ou de outra, atravessadas pela prisão – as nossas, inclusive. Na tentativa de acompanhar a prisão e aquilo que a ela se enreda por dentro, por fora e por entre seus muros, buscamos, também, pôr em pauta as formas pelas quais gênero opera como elemento fundamental para fazer ver os movimentos e as relações que se tecem nas fronteiras da prisão e através delas, pensando “dentro” e “fora” a partir de seu caráter coextensivo ( Silva, 2004 ).
Assim, a ideia de fronteira nos parece fundamental para entender não somente os fluxos por entre e através das prisões, mas também nossas posições frente a ela enquanto pesquisadoras. A leitura de “fronteira” produzida por feministas chicanas (migrantes ou descendentes de migrantes mexicanas ou latinas nos Estados Unidos) como Gloria Anzaldúa (1987), nesse sentido, nos é cara. Anzaldúa discorre sobre territórios fronteiriços, sobre o estado de transição entre um mundo e outro e sobre como não se trata de pensar os territórios como espaços simplesmente apartados, uma vez que há entres que deixam de operar na chave “um ou outro” para criar um novo lugar que os intersecciona. Escrevendo em um idioma que não é inglês, nem espanhol, mas um pouco dos dois, ela expressa que, enquanto mestiça:
Continuamente caminho de uma cultura a outra, porque estou em todas as culturas ao mesmo tempo, alma entre dois mundos, três, quatro, me zune a cabeça com o contraditório. Estou confusa por todas as vozes que me falam simultaneamente [...] Como mestiça eu não tenho país, minha pátria me jogou fora, mas sou todos os países porque sou a irmã ou a amante potencial de qualquer mulher. (Como lésbica não tenho raça, minha própria gente desistiu de mim, mas sou todas as raças porque tem um queer como eu em todas as raças). Não tenho cultura porque, como feminista, desafio as crenças culturais/religiosas derivadas dos homens nas culturas hispânicas e anglos, mas tenho uma cultura porque estou participando da criação de outra cultura, uma nova história para explicar o mundo e a nossa participação nele, um novo sistema de valores com imagens e símbolos que nos conectam entre nós e com o planeta. Sou um amassamento, um ato de unir e juntar que não só tem produzido uma criatura da escuridão e uma criatura da luz, mas também uma criatura que questiona as definições de luz e escuridão e que lhes dá novos significados (Anzaldúa, 1987:103: tradução nossa).
A fronteira como ponto de contato, como entre, nos serve aqui como aposta metodológica. Se, como nos indica Vera Telles (2013: 444), acompanhar os movimentos que se dão nesses entres nos permite “flagrar as fricções engendradas nas passagens dessas fronteiras porosas” é exatamente a inclinação por identificar essas fricções e os processos que as constituem/desconstituem/ reconstituem que nos convoca, aqui, a pensar a prisão a partir daquilo que há de permeável entre seus muros, elementos que são discursivamente acionados como a materialização da divisão de dois “mundos”. Uma cartografia das/nas fronteiras seria, nesse sentido, uma cartografia dos territórios existenciais fronteiriços, e a fronteira é aqui acionada como dispositivo, engrenagem que produz sujeitos, práticas, discursos, ditos e não ditos ( Foucault, 1999 ), na medida em que nos permite olhar para as continuidades e descontinuidades que articulam dentro-fora, prisão-rua, pesquisadora-pesquisada/o, viabilizando o acompanhamento dos processos, afetos e relações tramados por entre e através da prisão.
Gênero, sexualidade, afeto, família, relações interpessoais, experiências próprias e com o mundo, processos de gestão de corpos e processos de Estado permitem pensar no duplo duro/flexível que atravessa processos de subjetivação e singularização em contato com a prisão e que torna possível pensar prisão a partir do que separa, mas também do que se perpetua; do que é proibido, mas pode vir a ser possível; do que já é estabelecido, mas pode sofrer alterações; do que não era, mas pode tornar-se.
Aqui, comporemos uma cartografia das nossas cartografias, que não pretende ser totalizante, totalizada nem totalizadora. Pelos caminhos que percorremos, encontramos barreiras, possibilidades, potencialidades, surpresas, tensões… Tentamos, aqui, convocá-las e acompanhá-las.
Cartografar em ethos feminista: buscando por coalizões, comuns e transversalidades
“Não se resiste sozinha à colonialidade do gênero”
María Lugones (2014: 949)
Discutindo os caminhos possíveis para a construção de um feminismo descolonial e os modos como a colonialidade e a modernidade compõem e atravessam as relações de gênero, Lugones (2014) argumenta que a tarefa feminista descolonial implica em, primeiramente, identificar a diferença colonial e resistir, enfaticamente, ao hábito epistemológico de ignorá-la ou apagá-la. Com isso, ela chama a atenção para a necessidade ética e política de forçar os limites do que se entende por “sujeito” e “objeto” na dinâmica das produções sociocientíficas. Em nossas pesquisas, buscamos a produção do que Lugones chama de “lógica de coalizão”, ou seja, o acionamento de estratégias e dispositivos de pesquisa que façam frente à lógica dicotômica e dicotomizante do colonialismo (e de certa tradição sociocientífica).
Natália Padovani (2017) , ao escavar as produções feministas de Simone de Beauvoir a Lélia Gonzáles, passando por sua própria experiência como latina branca de cabelo enrolado em um evento em uma universidade no sul dos Estados Unidos, aponta para como a discussão sobre “nós” e “eles/as” embasam as discussões do campo das ciências sociais – ainda que, muitas vezes, as produções sobre prisões tomem as discussões de gênero como adendos, ignorando que
categorizações de nós e eles foram e são feitas por meio de dispositivos de poder que produzem diferenças e assimetrias entre sujeitos localizados nas relações como “nós” e “aqueles” (muitas vezes indesejados) “outros” ( Padovani, 2017: 7).
Segundo a autora, ignorar os processos que forjam essas categorizações seria manter e reproduzir as assimetrias que dividem “nós” – aqui, pesquisadoras – dos “outros” – aqui, “pesquisados/as”. Se nos remetemos às discussões dessas duas autoras é porque as reflexões e proposições por elas propostas caminham próximas daquilo que a cartografia defende epistemológica e metodologicamente – e a postura cartográfica está comprometida com um senso de responsabilidade máximo ( Lugones, 2014 ), no qual os jogos de poder e as disputas que aproximam e distanciam “nós” e “eles/as” se evidenciam como parte essencial ao próprio exercício do pensamento e da produção de conhecimento.
Assim sendo, cartografar a prisão implica em, ao invés de circunscrever e especificizar ações, expandi-las e buscar dar conta de distintos processos e movimentos. Apesar das nossas pesquisas e atividades estarem majoritariamente focadas nas pessoas presas, as/os profissionais das unidades prisionais ocupam um lugar importante no campo de análise/intervenção, o que traz implicações às forças e fluxos dos nossos percursos. Isso porque entendemos que para cartografar a prisão é preciso acompanhar os diferentes grupos que são por ela atravessados. Trata-se, assim, de um constante exercício de desorganizar as oposições entre “nós” e “eles”, buscando pontos de contato que permitam, inclusive, enxergar distâncias mais claramente. Dessa forma, nossas relações com profissionais de diversos segmentos, as deles/as como as/os presos/as, as relações entre presos/as, e deles/as com familiares compõem a trama que se tece no cotidiano institucional e na qual nos inserimos de certas formas em nossas incursões nas unidades.
A partir de nosso referencial teórico-político-pedagógico, arriscamos provocar a noção de interseccionalidade utilizando o conceito da dobra de Gilles Deleuze (1991) , entendida como força que cria percursos de produção de territórios de subjetividade. Rosane Neves da Silva (2004) sinaliza que
O conceito deleuziano da dobra permite problematizar tanto a produção da subjetividade – no sentido da constituição de determinados territórios existenciais – quanto os modos de subjetivação, entendidos aqui como o processo pelo qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação de forças que resultam na criação de determinados territórios existenciais em uma formação histórica específica. A dobra exprime a invenção de diferentes formas de relação consigo e com o mundo ao longo do tempo [...] Cada formação histórica irá “dobrar” diferentemente a composição de forças que a atravessa, dando-lhe um sentido particular ( Silva, 2004: 55).
Essa leitura tem nos possibilitado (se) pensar nos processos, nos “meios” entre os pontos/inflexões, na variabilidade das linhas que vão além dos parâmetros constantes ( Deleuze, 1991 ). Assim, observamos/participamos de fluxos que se dobram em diferentes superfícies de intensidade, a partir de diversos atravessamentos simultâneos, históricos e móveis.
Rosi Braidotti (1996 ; 2005), discutindo as contribuições de Deleuze de uma perspectiva feminista, aponta que é necessário produzir uma “geografia relacional alternativa” que pense como ponto de partida “a identidade diaspórica de sujeitos multilocalizados e não uma posição subjetiva identitária”, construindo, assim, uma “nova geografia das relações de poder” ( Braidotti, 2005: 10). A dobra, nesse sentido, nos ajuda a pensar quais geografias são possíveis, quais arranjos são viáveis e potentes, quais forças e atravessamentos (se) produzem nas/com as linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga.
Em uma das nossas pesquisas, entrevistamos pessoas em unidades femininas cujos corpos e trajetórias poderiam, de certa forma, ser considerados como estando dentro do campo das transexualidades. Isto é, as pessoas não necessariamente se identificavam enquanto pessoas trans, mas suas performatividades de gênero eram dissidentes no que tange à matriz normativa sexo-gênero-sexualidade, o que produzia diferenças nas formas como essas pessoas atravessavam e eram atravessadas pelas organizações e estabelecimentos “criminais”, policiais e prisionais.
Apesar das terríveis violências sofridas por essas pessoas nas prisões, em especial decorrentes da falta de reconhecimento dos seus direitos, de sua dignidade e de sua identidade de gênero, elas também expressaram algumas das suas táticas para reivindicar suas existências na privação de liberdade, afirmando suas vidas através de negociações de substâncias, de dinheiro, de afetos, de desejos. Tais negociações tinham contornos e intensidades específicas dentro da prisão e, muitas vezes, eram vividas e narradas de formas distintas ao que os enquadramentos médico-sanitários-psicológicos estabelecem no que se refere à delimitação (fronteiras) de quais são e como são os corpos trans.
Se, para algumas dessas pessoas, “sapatão” era o termo que designava suas experiências, para outras tal termo não dava conta de suas experiências e de seus corpos, mas tampouco o termo “trans” era acionado como aquele que melhor descreve e narra esses corpos. As condições de possibilidade para a construção dessas estratégias e narrativas de si são dobradas pelas articulações de gênero, classe, raça, condição econômica na prisão, performatividade, tempo de cadeia, enfim, inúmeras linhas que constantemente se atravessam e se modificam uma a outra. Arranjos e geografias múltiplos são mais ou menos possíveis para a criação dessas estratégias e, nesse sentido, a noção de dobra parece ser potente para pensarmos como esses arranjos se fazem e se refazem constantemente. Se, por um lado, a prisão opera violências que fragilizam, quando não invisibilizam, as experiências de corpos dissidentes, sejam eles sapatões, trans ou qualquer outra designação, por outro, esses mesmos corpos encontram arranjos e acordos que tornam (às vezes minimamente) possível ser e viver como são.
A dificuldade ou a impossibilidade de dar forma e nome a certas práticas, corpos e desejos no sistema prisional imprime resistências, recalcitrâncias, não apenas embates. Tanto que obriga a diretora, a psicóloga ou a agente penitenciária, e talvez esta última de forma mais orgânica e mais acurada, a nos convocar para tentar dar alguma consistência, através do encaminhamento para nossas entrevistas, para aquilo que estranham e sequer conseguem nomear. Vêm para as entrevistas as pessoas que são reconhecidas pelos pares como trans ou homossexuais, no caso de existência de coletivos LGBT, e aquelas que escapam da norma de gênero, muitas vezes único reconhecimento possível.
Desse modo, com essas experimentações de formas de ser, torna-se possível pensar as dobras entre as linhas duras da prisão que serializam, classificam, esquadrinham sujeitos, afetos e relações, e linhas mais flexíveis, que encontram brechas nas durezas institucionais, produzindo, assim, uma trama de normas, mecanismos, subversões, potências – articulações entre políticas de morte, violência e sofrimento, e políticas afetivas, de prazeres e de intimidades.
Da proposta de Lugones para a construção de metodologias comprometidas com a situacionalidade dos saberes, dois pontos parecem ser relevantes para as reflexões que fazemos aqui: 1) a necessidade de criar e acionar metodologias que permitam que a produção da diferença esteja em/seja seu campo problemático; e 2) a potência de um trabalho metodológico pensado a partir da multiplicidade, que parta de paradigmas que não o da separação entre “nós” e “eles/as”, mas que se comprometa, ao mesmo tempo, em desvelar os nós que produzem assimetrias e transformam diferença em desigualdade, identificando que forças e disputas configuram determinadas condições de possibilidade para ser sujeito, ser pesquisadora, ser presa/o, ser profissional do sistema prisional. Assim, não era nossa a tarefa de estabelecer que as pessoas entrevistadas deveriam se reconhecer ou identificar como pessoas trans – o que cercearia a multiplicidade de experiências que elas expressavam e significaria seguir uma classificação nossa, sequer produzida por elas. Mas no momento em que a performatividade de gênero dessas pessoas era desenhada por nós enquanto um campo problemático no contexto prisional e se tornava um objeto de pesquisa, nos víamos interpeladas a pensar, também, em nossas próprias performatividades de gênero, bem como nos atravessamentos de raça, de classe, até de nacionalidade que se articulam nesses estabelecimentos e em suas fronteiras, nas nossas trajetórias e nas relações com essas pessoas.
Se, conforme aponta Deleuze (2004) , mesmo nas tarefas que aparentam ser solitárias, como a escrita de um texto ou mesmo uma pesquisa, somos “desertos povoados”, e se a ética de coalizão que propõe Lugones se estende e se entretece, como ela indica, à sua “base povoada”, não faz sentido pensar a produção acadêmica e os percursos metodológicos de uma pesquisa em termos que não o do múltiplo, da produção colaborativa. Para nós, isso implica tanto em traçar planos comuns ( Kastrup; Passos, 2013 ) com aquelas(es) que compõem/decompõem/recompõem nossa pesquisa e nosso campo, quanto em apostar nas trocas e produções coletivas entre pesquisadoras/as. Quanto ao último ponto, a produção coletiva de pesquisas e os textos que delas se desdobram são mais do que mero acaso, mas aposta política na construção de uma política de pesquisa que se considera essencialmente trabalho coletivo. Um dispositivo que tem sido essencial para a operacionalização de análises e trajetórias coletivas é a elaboração conjunta de formas de habitar as fronteiras da prisão, ou seja, a discussão permanente de quais ferramentas usar nas nossas ações, bem como o uso compartilhado de diários de campo, visando apostar na polifonia como caminho de produção de conhecimento.
Ainda sobre a polifonia, a cartografia, mobilizada pelo paradigma ético-estético-político ( Rolnik, 1993 ), tem como objetivo investigar processos sem lançar mão nem da verticalidade que divide pesquisador/a-detentor/a-de-conhecimento e entrevistado/a-objeto-de pesquisa, nem da horizontalidade que pressupõe falsas simetrias e igualdades. Vemos, aqui, uma dobra potente entre as propostas metodológicas feministas e a cartografia. A partir da noção de transversalidade ( Guattari, 2004 ), é possível construir um ethos cartográfico ( Kastrup; Passos, 2013 ) comprometido com a construção de estratégias que, no acompanhar dos processos, potencializem a coexistência das diferenças entre pesquisador/a e pesquisado/a para a construção de um comum. Esse plano comum, ao contrário de ser homogêneo, fala da coabitação de heterogeneidades de posição, raça, classe, gênero, geração, localidade. Fosse esse comum homogêneo, estaríamos escondendo as relações desiguais e assimétricas de poder e, como aponta Lugones (2014: 945), apagando “a própria possibilidade de sentir – ler – o tenso habitar da diferença social”. A transversalidade nos aponta para como se dão certas leituras sobre/no jogo entre diferença, desigualdade e igualdade que atravessa pesquisadoras e “pesquisados/as”, de modo que, na prisão, é preciso operacionalizar arranjos que permitam tensionar “nós” e “eles/as” para a construção e a potencialização da heterogeneidade dos encontros.
Cartografar a prisão, na prisão, através da prisão
Se trabalhar com a cartografia é andar sobre o “limite instável entre o que comuna e o que difere” ( Kastrup; Passos, 2013: 267), cartografar é acompanhar as forças, os movimentos e os fluxos, ou seja, as tensões que se atravessam no campo, e é nos entres e nos nós das tramas criadas por essas tensões que a vida e a pesquisa acontecem. Bicalho, Rossotti e Reishoffer (2016) partem da ideia de “instituições de preservação da Ordem” para discutir os desafios dessa proposta metodológica. Sendo a Ordem “invenção recente enquanto estratégia de governo” ( Bicalho; Rossotti; Reishoffer, 2016: 87), as prisões podem ser pensadas enquanto dispositivos que funcionam e atuam em nome da Ordem, encarcerando aqueles/as que representam uma ameaça ao instituído. Nesse sentido, se perguntam: “há possibilidade de construção de um comum – capaz de promover relações de confiança – em instituições cuja proposta é produzir uma sociedade ‘coesa’ (leia-se assujeitada)?” ( Bicalho; Rossotti; Reishoffer, 2016: 90). Se, por um lado, conforme aponta Maynar Leite (2014) , “relações de poder/saber predominantemente enrijecidas e verticais tendem a colocar a comunicação a serviço do controle, a propiciar atravessamentos e a prescrever modos de subjetivação mais cristalizados e individualizados”, por outro lado, é preciso encontrar as brechas possíveis. A cartografia aposta nessas brechas para a criação de laços de confiança que permitam uma co-construção da pesquisa, apostando também em outra concepção de subjetividade, que faça surgir forças que singularizem em face à serialização, que multipliquem em face à homogeneização.
Mas como encontrá-las, ou melhor, como produzi-las? Se são elas que irão permitir a criação de confiança e afeto, é também somente pela confiança e pelo afeto que elas poderão ser produzidas. Há que se considerar, no entanto, que, apesar das possibilidades de produzir tais brechas e aberturas, é difícil produzir continuidades, e os efeitos no próprio campo são difíceis de rastrear, pois eles são rapidamente afogados na trama violenta que produz prisão e que a prisão produz. Nossos trajetos pela prisão nos dão algumas pistas a respeito de como fissuras podem ser abertas, e aqui acompanhamos alguns dos processos de produção de confiança e afeto que permitiram que fossem produzidos alguns tensionamentos importantes, uns mais provisórios, outros mais intensamente sustentados. Nossas diferentes entradas na prisão, assim como os caminhos que percorremos por fora de seus muros junto a pessoas que já foram presas, familiares e redes de militância antiprisional e/ou pelos direitos de pessoas privadas de liberdade, foram criando e expandindo um emaranhado de relações envolvendo nós, presas, presos e suas irmãs, tios, namoradas, ex-namoradas e também uma série de instituições e órgãos públicos de defesa e garantia de direitos. A criação de vínculos afetivos com pessoas dentro da prisão foi acionando e demandando a criação de vínculos outros, com outras pessoas, dentro e fora de unidades prisionais. Os efeitos da produção dessas brechas e afetos se expandem, mesmo que timidamente, em encaminhamentos, conexões, articulações de afirmação de vida, como quando a relação que se estabelece com um preso e a direção de uma unidade permite a construção de um projeto cultural dentro da prisão; quando uma presa vê em nós a articulação possível entre sua demanda de saúde e um equipamento da saúde mental. E ainda, quando tramamos afetos e amizades com egressos, egressas e familiares que nos permitem construir, com eles/as, cartilhas sobre direitos dos/as presos/as e familiares, que deem ferramentas para que eles/as possam exigir seus direitos; quando é através de nós que um preso consegue, pela primeira vez na vida, ter em mãos sua certidão de nascimento e descobrir que nasceu em casa, e não em um hospital. Também quando somos nós que encontramos uma antiga namorada e conseguimos, com ela, fotos da filha de quem há anos não tinha notícias.
As relações de confiança e intimidade que são produzidas na/através da/apesar da prisão e que permitem acompanhar/construir processos e afetos colocam-se não somente como questão epistemológica, mas como uma questão ética para a cartografia. Quando Sade, Ferraz e Rocha (2013) discorrem sobre a pista da confiança nas pesquisas cartográficas, apontam para a confiança enquanto um ethos a ser cultivado ao longo do processo, baseado em um campo de indeterminação no qual as pessoas podem (ou não) se engajar. Para isso, os autores propõem superar a prática de contrato no estabelecimento de vínculos, como acontece com o Termo Livre de Consentimento Esclarecido (TCLE), e apostar em um regime de contratação, em que esses vínculos são produzidos em articulação com a dimensão processual e coletiva da pesquisa. Na prisão e nas suas fronteiras, pensar nos acordos comumente estipulados em um documento como esse tem nos instigado. Quais condições de possibilidade permitem que se engaje ou não no campo de indeterminação que pode produzir confiança? Como garantir sigilo, quando as dinâmicas de segurança dessas instituições geralmente não permitem intimidade? Como garantir consentimento quando, em muitas ocasiões, as pessoas chegam até nós, pesquisadoras, sem terem sido consultadas sobre a natureza e objetivos dos nossos encontros? Não é que deixamos de usar o TCLE necessariamente em nossas pesquisas. Em algumas, o usamos. Em outras, optamos por dispensá-lo, inclusive via pedido formal ao Comitê de Ética em Pesquisa para prescindir do uso do termo. Seja qual for a situação, o que nos interessa é discutir de que formas a ética se coloca em uma relação de pesquisa necessariamente assimétrica, mas preocupada com a coprodução de conhecimento e de um plano comum.
Um outro elemento geralmente naturalizado em acordos de pesquisa é o anonimato. Vinciane Despret (2011) problematiza o apagamento da complexidade da dimensão ética na discussão sobre o anonimato, que se encerra facilmente quando ele é decretado, interrogando como as formas de omitir o nome das pessoas nas pesquisas acabam omitindo também a capacidade de se afirmarem enquanto produtoras de conhecimento sobre si e sobre o mundo e serem reconhecidas por isso. Para Despret, esse processo garante certa autoridade do/a pesquisador/a enquanto autor/a do que está sendo elaborado intelectualmente, (re)produzindo assimetrias.
A escrita, nesse sentido, mesmo através de uma assinatura, evoca e deixa ver a discussão sobre confiança, não somente a partir do TCLE, mas de toda produção de papéis que se movimentam entre celas, pátios, unidades, ruas e pessoas e que materializam os fluxos de comunicações, relações e afetos produzidos na/através da prisão. Duas interlocutoras de nossas caminhadas de pesquisa nos ajudam a pensar sobre esse tema. Lóri, em uma conversa sobre os 9 anos em que esteve presa, dá algumas pistas sobre isso quando, assinando o TCLE, diz que “entende” que isso “faz parte da pesquisa” – ela fez graduação em ciências sociais, o que fez com que já estivesse familiarizada com o termo e com a discussão de ética em pesquisa –, mas que, por ela, não precisaria assinar. Em outro momento, ela diz que gostaria de ler o texto final da pesquisa, não porque não confia no que estará escrito, mas porque quer ver se pode contribuir com mais alguma coisa. Ou seja, ela diz que o papel e aquilo que nele está escrito, ainda que façam “parte da pesquisa”, não contêm em si mesmos e nem delimitam a qualidade da relação de confiança estabelecida – e é por isso que, para ela, a leitura do “texto final da pesquisa” não tem como objetivo escrutinar o texto em busca de equívocos ou más interpretações do que ela pode ter dito.
Já Raquel, ex-advogada, mulher, de 67 anos, egressa do sistema prisional após ter cumprido quase 13 anos de pena e já há mais de 10 anos em liberdade, fala especificamente sobre o nome pelo qual ela será apresentada na pesquisa, trazendo à tona a discussão de Vinciane Despret sobre o anonimato. Quando ela recebe um exemplar de um texto elaborado para uma banca de qualificação e dá seu feedback através de uma carta, em que assina como “Raquel”, o nome através do qual ela (se) narra naquele texto, e não com seu nome “real”, ela fala não só do engajamento dela na/para com a pesquisa, mas também de como ela própria produz cotidianamente a pesquisa. Ela tem clareza de que se, por um lado, a pesquisa não existe sem ela e seu nome “real”, ela também não existe sem Raquel, pois é somente através de Raquel que, naquela pesquisa, ela narra a si mesma, a prisão e sua experiência.
Assim, se, por um lado, a discussão sobre os sentidos de assinar termos de consentimento no contexto prisional deve considerar como as relações das pessoas acusadas e/ou presas com a Justiça, com a equipe técnica, com a administração penitenciária são mediadas pelos papéis, sendo necessário recolocar a confiança para além deles, por outro lado, pode ser através da assinatura de um papel que se reitera e dá sentido à experiência de ser/estar/ter estado presa/o. O papel pode ser o que atesta sua relação com o judiciário e a administração penitenciária, podendo ser ele, também, o responsável por uma transferência, uma anotação de falta ou um parecer que nega a progressão de regime, e ainda o instrumento através do qual se fala de si e se atesta e materializa a experiência da prisão. Raquel mostra o jogo que faz entre se fazer ver e se fazer esconder através do nome “real” ou “fictício” – jogo que fala das forças e das condições que permitem (ou não) que se narre uma experiência, uma experimentação, uma vida. Nessa carta, assinando com o nome que lhe dá um lugar dentro da pesquisa, ela aciona uma potência de agir, movimentando o que é compartilhado: o encontro entre ela e a pesquisadora.
Por outro lado, como não só de encontros vive a prisão, recuperamos aqui um momento amargo de desencontro que até hoje nos é lembrado por presas quando visitamos uma determinada unidade. Durante uma atividade no Projeto Vida, tentando ir além do encarceramento para provocar o pensamento sobre outros tipos de cerceamento da liberdade nas suas trajetórias de vida e nas suas relações com família, tráfico, igreja, escola, levamos imagens de cadeados como disparadores. As participantes do grupo ficaram profundamente incomodadas com os pequenos cadeados de papel, apontando que havíamos levado apenas cadeados fechados, não havendo nenhuma imagem de um cadeado aberto e nem chaves para abri-los. A partir de sua resistência, entendida aqui como recalcitrância ( Latour, 2000 ), ou seja, “a capacidade que os objetos têm de discordar a respeito daquilo que é dito deles, levantando novas questões, tensionando os saberes e as práticas” ( Sade, Ferraz e Rocha, 2013: 289), percebemos como foi insensível a preparação da atividade: cadeados, elas veem todos os dias; é só o que veem, como disseram. A atividade, que tinha por finalidade ser, de algum modo, libertária, tornou-se um espaço de reprodução de aprisionamentos, ainda que não intencionalmente. Para nós, os cadeados permitiriam discutir inúmeras outras questões para além da prisão; para elas, eles apenas reiteravam e reafirmavam a prisão. O horror delas nos surpreendeu! Em que aquele choque nos deslocava? Em que medida, na intensidade daquele encontro, fazíamos operar os “conhecimentos situados” de que fala Donna Haraway? Exercitamos “a contestação, a desconstrução, a construção apaixonada, as conexões em rede” ( Haraway, 1995: 585) aos quais ela se refere? Olhar para esses deslocamentos e afirmá-los como parte da pesquisa é também afirmar um ethos feminista a partir do qual reconhecemos as assimetrias e diferenças, e partimos desse reconhecimento para entender as relações de poder.
Nós nas fronteiras: amassamentos entre pesquisadoras, psicólogas, palestrantes, visitantes
Recuperando a discussão de Glória Anzaldúa sobre ser na fronteira, em nossos caminhos migrantes (de migrações não forçadas) também uma série de amassamentos foram sendo produzidos em nós, por nós e sobre nós, formando, assim, nós, pontos de contato e de atravessamentos entre diversas formas/leituras/meios para habitar a prisão. Maynar Leite (2014) relata que para cartografar (n)a prisão, construiu/foi construído o dispositivo “estrangeira-camaleoa”, através do qual ela se constituiu enquanto pesquisadora naquele campo. Relata que, num mesmo dia, foi identificada como “presa” por uma interna e “funcionária” por um trabalhador da instituição. Foi movendo-se entre esses territórios existenciais que ela conseguiu construir um plano comum e “criar dispositivos ou acompanhar o fluxo daquilo que se dispositiva durante o processo” ( Leite, 2014: 802).
As múltiplas entradas que tivemos na prisão informam diferencialmente quem somos e que lugares ocupamos, o que necessariamente implica em diferentes possibilidades relacionais e demanda também a construção de estratégias e dispositivos que nos enunciem e nos constituam. Nas portarias das prisões, ser pesquisadora ou ser “do Projeto Vida” implica em diferentes recepções e relações, com exigências de diferentes papéis. Os comunicados internos (CIs) através dos quais se encaminham os pedidos implicam em olhares e análises distintas por parte dos(as) agentes: quando se trata de autorização de pesquisa, os olhares são mais atentos e percorrem as inúmeras páginas nas quais constam diferentes assinaturas, autorizações, datas, e declarações de não oposição à realização da pesquisa; para o Projeto Vida, a menor quantidade de páginas faz com que, frequentemente, apenas os nomes das pessoas presentes seja checado. Vale ressaltar, no entanto, que não se tratam de regras inescapáveis, e é possível que ocorra um procedimento exatamente oposto ao habitual. Em ambos os casos, os documentos são entregues junto dos documentos de identificação e, então, as portas se fecham, para somente se abrirem depois de algum tempo, quando então podemos entrar pelo primeiro portão.
Já na portaria, as primeiras visitas às unidades prisionais implicam que um/a agente nos acompanhe até o local onde realizaremos a pesquisa. Notamos, algumas vezes, que há certas dinâmicas que nos convocam a dizer aos/às agentes se conhecemos o sistema prisional, se sabemos o que é prisão – essas dinâmicas se enfraquecem, pelo menos no tom, quando de alguma forma mostramos que conhecemos a unidade, que já estivemos em outros presídios, enfim, que há legitimidade em nossa presença ali e temos (algum) conhecimento sobre as dinâmicas do sistema. Mas, mesmo assim, o fato de sermos pesquisadoras (e psicólogas) também nos amarra em determinados lugares, como de “mãe de preso”, que “passam a mão na cabeça”, quer dizer, um pouco desprezíveis, um pouco ingênuas. Ainda, outros processos de hierarquização também ocorrem nas portarias quando nos apresentamos ou adentramos uma unidade já conhecida. Durante a pesquisa com pessoas trans e pessoas com performatividades de gênero dissidentes, em uma unidade masculina3 , estávamos duas de nós com um professor da UERJ, os três integrantes da equipe de pesquisa, e os agentes perguntaram a nós, mulheres, jovens, que entramos antes do outro pesquisador na portaria, se não aguardaríamos “o professor” para entrar. Nós, que já havíamos ido à unidade inúmeras vezes antes, inclusive mais vezes do que o outro pesquisador, fomos automaticamente lidas como “estudantes”, “subordinadas” ao homem que nos acompanhava. Ao agente, respondemos apenas que não, que seguiríamos na frente, pois já conhecíamos a unidade. Como palestrantes do Projeto Vida, em uma unidade masculina diferente, outro episódio se destaca. Estávamos as três, orientadora e orientandas de mestrado e doutorado, junto de outras pesquisadoras, todas mulheres, entrando na unidade para a realização de oficina do projeto, quando um agente pergunta “quem é o coordenador de vocês?”. Atordoada, a professora presente disse: “não, não, a gente é que se coordena”.
Nossa identificação como psicólogas é uma legenda que nos faz familiar, muito diferente de pesquisadoras/es de outras áreas, tal como narra Natália Padovani (2015) , antropóloga, sobre como sua presença provocava certo estranhamento por não ser a figura da/o antropóloga/o parte das equipes das unidades, de modo que não era claro para todos/as qual era, efetivamente, o trabalho de um/a antropólogo/a ali. Com a psicologia, no entanto, havia menos um estranhamento ao fato de sermos psicólogas do que uma dificuldade em diferenciar nossa presença como pesquisadoras das atribuições cotidianas de psicólogas/os das equipes técnicas – funções essas fortemente relacionadas às demandas do judiciário no que diz respeito à produção de documentos com importância significativa no cumprimento da pena, na progressão de regime e na relação estabelecida entre preso/a e Justiça. Marisa Rocha e Anna Uziel (2008) apontam que a/o psicóloga/o já chega ao campo com demandas circunscritas, sempre com foco na dimensão individual, nunca política ou institucional. A psicologia, em sua composição enquanto instituição de profissionalização de especialistas do sujeito/indivíduo, se afirma como área de conhecimento e atuação edificada sobre elementos marcadamente generificados e se institui enquanto uma ciência dos cuidados, sendo majoritariamente exercida por mulheres. Isso também aciona e produz expectativas de certas práticas de escuta e cuidado – práticas que, historicamente, marcam a relação produtora de gênero, entre outros atravessamentos, entre a psicologia e a prisão.
Dessa forma, tanto profissionais do sistema quanto presos/as se posicionavam frente a nós com a expectativa de que nossas leituras e práticas fossem pautadas por saberes (e poderes) de uma psicologia hegemônica, individualista e normatizadora, inclusive tendo reagido com espanto, algumas vezes, pois “não parecíamos psicólogas”, uma vez que pautávamos nossa relação com as pessoas a partir de outros paradigmas, expectativas e leituras. Como apontamos, é comum, por exemplo, que, quando pedimos que um/a preso/a seja chamado para participar de uma atividade de pesquisa, seja entrevista ou grupo, ele/a chegue até nós sem ter sido informado/a sobre a razão pela qual foi chamado/a. Foi o que aconteceu com Inês e Carolina, mãe e filha que, ao serem chamadas para participar de uma entrevista, e não tendo sido informadas sobre as razões pelas quais tinham que sair de sua cela e se dirigir até a sala da segurança, onde a entrevista ocorreria, acreditavam estar indo conversar com seu advogado. A frustração por não estar ali seu advogado, com quem elas precisam muito falar sobre seus processos e suas situações na unidade, teve que ser aos poucos dissolvida para que elas pudessem aproveitar daquele espaço como um espaço possível para falarem sobre suas experiências. Ao final da conversa, com ambas já contentes pelo papo, apesar de não terem encontrado o esperado advogado, Carolina diz que “foi muito melhor conversar aqui do que com a psicóloga”. Quando soube que era com uma psicóloga que ela estava conversando, ficou muito surpresa, dizendo que aquela conversa e aquelas perguntas não se pareciam de nenhuma forma com as conversas e perguntas que usualmente ocorriam em encontros com a psicóloga. Aqui, é importante apontar para como as atribuições da(o) profissional de psicologia no âmbito do sistema prisional, muitas vezes marcado e atravessado pela necessidade constante de produção de relatórios, pareceres e pela elaboração de exames criminológicos, delimitam e estreitam as possibilidades de atuação profissional, de modo que, mesmo que seja desejo da(o) profissional ir além dessas atribuições, se vê atropelada(o) por demandas do judiciário e pela precarização das condições de trabalho.
Como se vê, psicólogas e pesquisadoras eram duas posições que tinham suas fronteiras borradas em muitos momentos, seja no sentido de criar demandas e expectativas relacionadas a um atendimento psicológico ou psicossocial, seja no sentido de nossas ações e atividades serem comparadas àquelas promovidas por profissionais da psicologia integrantes das equipes técnicas. Assim, foi preciso jogar com essas posições e acompanhar os movimentos que nos faziam ora psicólogas, ora pesquisadoras, ora palestrantes do Projeto Vida. Com o tempo, e conforme os trabalhos iam sendo desenvolvidos nas diferentes unidades, outras relações foram sendo tecidas com presos(as) e funcionários(as), e outras formas, que não contemplam nem compõem ser pesquisadora, nem ser do Projeto Vida , se tornaram possíveis para adentrar as prisões. Em uma unidade masculina, a partir das relações de amizade tecidas durante o processo de escrita e lançamento, em 2017, do livro de crônicas de um preso que conhecemos em 2016 em uma oficina do Projeto Vida, foi possível também para uma de nós entrar na prisão como visita especial , como editora do livro 4 , sem mesmo a necessidade de qualquer tipo de outra identificação.
Como visita especial , um papel era entregue pela direção à portaria, indicando o nome da pessoa visitante e da pessoa a ser visitada, bem como a cela em que se encontrava, e deveria ser em seguida entregue à equipe de segurança, o que muitas vezes significava entregá-lo a um faxina 5 da segurança. Esse procedimento permitia a produção da senha 6 que iria até a entrada das galerias e, de lá, pelas mãos de um agente ou faxina , chegaria até o destino. Esses encontros por meio da visita especial aconteciam na sala de atendimento da Defensoria Pública, quando desocupada, ou na antessala da equipe técnica da unidade.
Gwenola Ricordeau (2012) fala sobre como o termo visita diz, ao mesmo tempo, do ato de visitar e da classificação daquele ou daquela cujo corpo atravessa os portões da prisão como parente ou amigo(a) de preso(a). Ser visita , nesse caso, não implicava no escrutínio do corpo através de revistas vexatórias, pois o especial informava que, ali, não se tratava efetivamente de uma visita . Não havia uma carteirinha, não se tratava de uma familiar, nem de uma amiga cuja relação de amizade fora tecida antes da prisão. Se, para Natália Padovani (2015 ; 2017) foi informado que ela deveria ser ou pesquisadora ou visita ou agente pastoral, ali acontecia a junção visita especial-pesquisadora-palestrante-editora. E não havia, dessa forma, a mesma suspeita sobre esse corpo. Era visitante, mas não visita.
No entanto, ser mulher, amiga de um preso e visitante, a partir de diferentes entradas, ainda implicava em alguns atravessamentos importantes marcados pelo gênero. Tanto o visitado quanto os funcionários já se preocuparam em perguntar se “seu marido não se importa de você vir aqui, não?”, mesmo sem saber se existia um marido. Se para o autor do livro, em suas palavras, a pergunta falava do respeito que ele tinha, o agente, por sua vez, questionava a legitimidade dessa relação cujo cumprimento era um abraço, falando jocosamente sobre o fato de um preso estar, na prisão masculina, abraçando uma mulher.
Há, portanto, uma série de fiscalizações e escrutínios do corpo de uma mulher jovem que entra em um presídio masculino e mantém relações de amizade com um homem jovem preso, o que a permitia a entrada nas galerias. Era comum ouvir gritos de “mulher na galeria!” – grito ao qual os presos reagiam cobrindo seus corpos sem camisas, às vezes colocando as mãos para trás e prestando cumprimentos.
Nessa mesma unidade masculina, diversas vezes também fomos interpeladas, especialmente por agentes penitenciários, em relação às roupas usadas em nossas visitas. Cores, alças e tamanhos específicos deveriam ser evitados, para nossa segurança . Um dia, quando estávamos em uma unidade junto com um colega, um jovem pesquisador graduando em psicologia na UERJ integrante de nosso grupo de pesquisa, ele foi chamado por um grupo de agentes que lhe disseram que, por estar com roupas pretas, poderia ser confundido com um agente pelos presos caso houvesse confusão ou rebelião, o que poderia fazer com que ele fosse de alguma forma agredido por eles. Da mesma forma, ele não deveria usar roupas brancas (usadas pelos/as presos/as) ou verdes (que designam os/as faxinas ), pois, em situação semelhante, poderia ser confundido com um preso e, assim, “ia ter que correr muito”. Elementos como geração e performatividade de gênero – ser ele jovem e performar uma masculinidade que não atende aos padrões mais comuns – se cruzaram ali para fazer dele o receptor das mensagens de aviso e chacota dos agentes.
Se para nós, mulheres, as indicações quanto às vestimentas tinham como objetivo nos proteger , especialmente naquela prisão, na qual cumprem pena muitos homens condenados por crimes sexuais, o alerta para um homem tinha como objetivo ameaçar , colocá-lo na disputa acirrada de masculinidades que acontece naquele estabelecimento . Vemos assim como o dispositivo de gênero no território fronteiriço dentro/fora, preso/pesquisador(a)/ aluno(a)/agente se dobra de formas complexas na trama relacional de poder, de forma articulada com raça, classe, geração, orientação sexual. Na superfície prisional, essas dobras são também produzidas por linhas discursivas e práticas bastante duras, que buscam docilizar corpos e subjetividades.
Os amassamentos pesquisadoras-psicólogas-palestrantes-visitantes configuravam diferentes demandas, disputas e barreiras: se pesquisadoras, havia disputas por sermos “de fora”, alheias ao trabalho cotidiano dos/as funcionários/as das unidades; se psicólogas, ora éramos destacadas das psicólogas daquelas unidades prisionais, ora víamos surgir demandas de uma relação terapêutica com os diversos atores; se palestrantes, a psicóloga da unidade nos abria a porta, visto o Projeto Vida estar vinculado à Coordenação de Psicologia da SEAP; se visitantes, era possível, por um lado, acessar outros espaços da prisão, mas por outro, a relação com um preso era lida como alvo de certo tipo de controle específico.
O acionamento da Segurança como dispositivo para a gestão do cotidiano institucional e como elemento que atravessa as possibilidades de construir laços e caminhar pela prisão se dá de maneiras diferenciadas de acordo com como somos, em cada circunstância, lidas. Da mesma forma como o dispositivo fronteira, o dispositivo segurança opera como uma engrenagem que delineia certas práticas e possibilidades a partir e de acordo com os vínculos produzidos na própria pesquisa-intervenção, enquanto mulheres, brancas, pesquisadoras, psicólogas, palestrantes, visitantes, não presas, não familiares, amigas, colegas de profissão. Inúmeras dobraduras formam e reformam quem somos e quem nos fazemos ser, flexionando diferencialmente a Segurança.
Nesse sentido, se as relações de amizade e confiança produzidas na prisão propiciam que a segurança seja elemento secundário, são essas mesmas relações que levaram agentes de portaria, ao sairmos de uma festa de encerramento do Projeto Vida carregando vasinhos de flores que nos foram dados de presente pelos/as presos/as, a comentários como “vocês são doidas de levar coisas daqui de dentro pra casa de vocês, eu que não levaria nada daqui pra minha casa”.
É, por outro lado, a desconfiança que delimita, por exemplo, que uma pesquisa seja restringida a ocorrer dentro da sala de segurança de uma unidade feminina, e que a escolha de quem será entrevistada, feita pelas agentes, leve em consideração “as presas mais tranquilas”, para que a gente “não fique assustada”; tudo para “nossa segurança”. Certo tom de deboche presente na fala, articulado ao acionamento da noção de Segurança, cria condições específicas de possibilidade para a produção de uma pesquisa que se pauta na ideia de encontro ( Sales, 2014 ), de modo que a Segurança, como dispositivo, produz certos modos de fazer pesquisa na prisão ( Leite, 2014 ) – mas é a própria inclinação cartográfica que deixa ver que, se é dessa forma que o campo se delineia, são esses os processos que devemos acompanhar e destrinchar suas dinâmicas.
A Segurança, dessa forma, fala também de políticas de controle e gestão dos corpos, incidindo violentamente sobre determinados corpos em determinados territórios, articulando-se às racionalidades que produzem certas políticas de vida e de morte – muito mais de morte do que de vida – na cidade. A prisão, como mecanismo que, na engrenagem punitiva e punitivista, transforma-se em lócus privilegiado para produção e manutenção do racismo e da necropolítica ( Mbembe, 2016 ) que faz matar os corpos negros, pobres e periféricos, aciona a Segurança como parte de um projeto de política colonial, endossando problemas sociais que pretensamente quer solucionar ( Davis, Dent, 2003 ). A desnaturalização desse paradigma, nesse sentido, deve ser feita a partir de nossos feminismos comprometidos com a luta antirracista. Aqui, a inspiração vem de Angela Davis, em conversa com Gina Dent, segundo quem a prisão pode ser pensada como “uma instituição histórica contingente” que “nos permite pensar hoje sobre as intersecções entre punição, gênero e raça, dentro e além das fronteiras” ( Davis, Dent, 2003: 526). Ainda segundo as autoras, a prisão é ela própria uma instituição colonizadora – e é preciso partir daí para entender a criação de novos modelos de aprisionamento e de determinadas políticas de segurança, e como eles são facilmente difundidos, considerando sempre “o caráter profundamente influenciado pelo gênero da punição [que] ao mesmo tempo reflete e consolida ainda mais a estrutura de gênero na sociedade como um todo” (Davis, 2017:66).
O que propomos aqui é uma política de pesquisa em prisão comprometida com a geração de formas coletivas de produção de conhecimento que têm nas relações de amizade e confiança o suporte para pesquisas-intervenção que, mais do que transformar a realidade, pretendem criá-la, co-criá-la, inventá-la; pensar o campo a partir dos processos generificados, racializados e territorializados que produzem diferença, desigualdade, proximidade e afeto, e que busque pelas brechas possíveis que fazem com que, apesar/através/ao redor da prisão, se viva e se resista sem apagar os processos de violência e violação que estruturam a instituição prisão. Habitamos a prisão de diferentes formas e em diferentes intensidades, a partir de múltiplos amassamentos, retomando Anzaldúa, que dizem respeito não a diferentes “identidades”, mas a um amalgamado não homogêneo de leituras de nós mesmas que agrupam-se e dobram-se de maneira plural, inesgotada e imprevisível. Amassamentos produtores de laços, amizades e intimidades que mudam, atravessam e afetam vidas e fronteiras. Nosso compromisso, enquanto um compromisso feminista, aposta na construção de sentidos compartilhados, combate ao racismo e outras violências, na luta pela desterritorialização das instituições que nos dividem e nos afastam da potência da vida.
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1
A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do estado do Rio de Janeiro (SEAP-RJ) conta com um Centro de Estudos de Pesquisas (CEP) que administra os processos de pedido, autorização, sistematização e acompanhamento de pesquisas no âmbito do sistema prisional do estado. Para obter a autorização que permite a entrada nas unidades, os/as pesquisadores/as devem entregar uma série de documentos pessoais e sobre o projeto que serão analisados pelo CEP, que, por sua vez, os encaminhará à(s) unidade(s) prisional(ais) e ao secretário para que todos deem sua declaração de que não se opõem à pesquisa. Após esse trâmite, o pedido também deve ser enviado à Vara de Execuções Penais para sua anuência e autorização.
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2
O Projeto Vida é vinculado à e coordenado pela Coordenação de Psicologia da SEAP. Seu objetivo é discutir saúde e cidadania através da realização de palestras de parceiros/as externos e internos à SEAP sobre diversos temas. O projeto acontece em diferentes unidades, masculinas e femininas, e a cada ano são criadas turmas nas quais os/as presos/as podem se inscrever; alcançando a frequência mínima exigida, recebem um certificado de participação que, apesar de não ter validade para remição de pena, garante uma anotação positiva em seus registros. No ano seguinte, os/as formados/as podem, se assim o desejarem, ser monitores/as das atividades da turma seguinte. Nossa participação junto ao projeto buscou levar a discussão sobre diversidade sexual e de gênero, e sobre parentalidades e famílias, em formatos distintos das palestras, privilegiando a criação de rodas de conversa e oficinas sobre os temas escolhidos.
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3
No Rio de Janeiro, mulheres transexuais e travestis presas são encaminhadas para unidades masculinas, ainda que a Resolução nº 558, de 29 de maio de 2015, da SEAP, permita que sejam transferidas para unidades femininas, caso seja esse o desejo delas. No entanto, atualmente, não há nenhum caso de mulher trans ou travesti cumprindo pena em unidade feminina no estado. Essa discussão é hoje atravessada pela complicada decisão do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, de junho de 2019, na qual o ministro obriga a transferência de mulheres transexuais, negando seu direito de escolha, e exclui as travestis da possibilidade de aguardarem condenação/cumprirem pena em estabelecimento feminino. A decisão, ainda, baseia-se em definições ultrapassadas do campo biomédico a respeito do que delimitaria corpos trans e travestis, baseando-se na realização ou não de cirurgia de transgenitalização. Sobre a temática de mulheres trans e travestis em unidades masculinas do Rio de Janeiro, sugerimos a leitura da dissertação de mestrado de Vanessa Pereira de Lima (2018), intitulada “O que Papai do Céu não deu, a ciência vende: feminilidades de mulheres trans e travestis em privação de liberdade”, na qual a autora problematiza e politiza a discussão sobre unidades mistas, tratando dessa forma unidades prisionais ditas masculinas nas quais se encontram mulheres trans e travestis.
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4
O livro foi escrito durante o cumprimento da pena privativa de liberdade e, a partir de nosso encontro, nos tornamos a ligação entre ele e a editora que aceitou publicá-lo. Para a publicação, foi realizado um crowdfunding que arrecadou o valor necessário para a edição, produção e publicação do livro, bem como para a compra de exemplares que foram distribuídos em todas as 52 unidades prisionais do Rio de Janeiro. O livro também foi lançado na Bienal do Livro de 2016, mas sem a presença do autor, que não obteve autorização da Vara de Execuções Penais para a saída do presídio. O livro também foi lançado dentro da unidade prisional, posteriormente, num evento em que o grupo de teatro da unidade apresentou esquetes retiradas do livro, dessa vez com a participação do autor.
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5
Faxina é como é chamado o(a) preso(a) que trabalha na unidade prisional.
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6
A senha é gerada pela equipe de segurança e contém o nome, a foto e a cela do(a) preso(a), bem como a razão pela qual está sendo chamado(a) (visita, atendimento técnico, advogado(a), defensor(a) público(a)). É com a senha que o(a) preso(a) pode sair da cela e se deslocar pela unidade, exceto no caso dos/as faxinas , que têm mais condições de circulação.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Dez 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
14 Ago 2019 -
Aceito
26 Ago 2019