Museu Nacional, Rio de Janeiro, Novembro de 2003
Seminário História da Antropologia no Brasil
4a sessão - As reuniões da ABA e o pensamento antropológico no Brasil
Pós-escrito a As reuniões brasileiras de antropologia. Cinqüenta anos.
Os comentários que gostaria de fazer aqui são uma espécie de pós-escrito à publicação que preparei para o aniversário de nossas reuniões. O mais importante é dizer, de saída, que o livro está muito incompleto e que o que espero com essa edição é animar nossos colegas e estudantes a corrigir o que precisa ser corrigido. Ontem mesmo, abrindo a página da ABA, vi que há dois nomes identificados lá, na fotografia oficial da I Reunião, que não estão aqui, no livro. Em compensação, há dois outros que estão aqui e não estão lá. Não é uma questão de detalhe: acho que isto reflete a dispersão de nossos arquivos e informações. Gostaria de sugerir que a ABA marcasse essa comemoração criando uma comissão permanente para cuidar do registro de nossa história, já tão volumosa que não pode ser abordada por uma só pesquisadora. Essa comissão poderia começar seu trabalho recolhendo os registros de nossas reuniões – fotos, programas, etc. – tarefa que apenas começou a ser feita aqui, bem como apoiando a recuperação de arquivos pessoais importantes para a nossa história – como o arquivo de Thales de Azevedo, por exemplo, cujo centenário de nascimento será no próximo ano, e que sei que já está na agenda de preocupações da atual diretoria.
A leitura desse material em conjunto, assim mesmo incompleto, propicia uma série de reflexões – vou levantar algumas delas, só para começar o debate.
O primeiro ponto, óbvio, que se nota nesses cinqüenta anos é a diversificação do campo antropológico: basta comparar os primeiros programas das reuniões com os programas dos últimos anos. Não se trata apenas de uma diversificação de temas, cuja ampliação é notável, mas também de uma enorme pluralidade institucional, geracional e de orientações teóricas e metodológicas. No entanto, parece que essa diversificação é ilusória e que a primeira leitura dela resulta mais de um efeito do crescimento de nossa comunidade do que de uma real diferenciação interna. Num trabalho muito interessante, apresentado no encontro da ANPOCS deste ano, Lilia Schwarcz apontou para a incrível coincidência de temas nos cursos dos programas de pós-graduação do país, sugerindo que a antropologia é, dentre as ciências sociais no Brasil, a disciplina mais coerente e homogênea em termos de formação de seus estudantes – isto é, que de fato criamos um campo de ensino de antropologia no qual há muito mais concordâncias do que dissonâncias. Ela se pergunta, creio que com razão, como uma disciplina na qual a ênfase na diferença é tão importante, pôde constituir um campo de formação tão igual , quase o que ela chama de uma camisa de força para pensar a realidade brasileira, que parece ser o nosso principal objetivo.
Pois o que também se pode ler nos nossos programas, ao longo dos anos, é não apenas a trajetória de um pensamento antropológico , mas, e talvez principalmente, as questões que ocuparam a nossa sociedade ao longo desses anos: direitos humanos, racismo, movimentos sociais, a mobilização pela redemocratização do país, etcetera. Certamente os programas expressam também as flutuações das modas teóricas internacionais – tivemos nossos momentos lévistraussianos, foucaultianos, geertzianos, etcetera – mas isso foi compartilhado com nossos colegas de outros lugares, e creio que expressam mais a curiosidade intelectual dos antropólogos brasileiros do que uma suposta subordinação a essas modas. Mas é como se usássemos essas modas ao nosso bel-prazer, de nossa ótica, para entender a nossa realidade. Não sei se isso é bom ou ruim, mas parece ser, em todo caso, uma característica da antropologia que temos construído nos últimos cinqüenta anos: uma antropologia da sociedade nacional a partir de uma ótica antropológica multinacional.
O segundo ponto, talvez não tão óbvio, e que remete a essa preocupação com as questões mais amplas da sociedade brasileira, é que embora a etnologia seja o sub-campo mais desenvolvido do pensamento antropológico brasileiro, ela talvez ainda não seja vista como tal pelos integrantes da ABA – ou pelos antropólogos em geral.
Digo que essa observação remete ao primeiro ponto porque as questões suscitadas pelas nossas relações com as sociedades indígenas – nossas , enquanto antropólogo, e nossas, enquanto parte da sociedade brasileira – continuam a ser dominantes na nossa apresentação pública. Veja-se o programa desta reunião: temos uma sessão com o título A ABA e os assuntos indígenas , mas na nossa sessão não tem assento nenhum etnólogo. Isto é, é como se o pensamento etnológico – se se pode dizer assim – não fizesse parte do pensamento antropológico que estamos discutindo aqui e fosse relevante apenas quando se trata de assuntos indígenas .
Acho que este ponto merece uma certa reflexão, já que o índio – talvez um índio genérico – tem sido sempre a face mais visível das preocupações políticas de nossa associação. Lembro que quando assumi a presidência da ABA, e depois de fazer um rápido levantamento dos boletins até então publicados, brinquei com nosso secretário, o etnólogo Marcio Silva, dizendo que íamos inovar, não pondo nenhum índio na capa do Boletim (não lembro se houve alguma vez uma índia ). Apesar de termos incluído outras imagens na série que editamos do Boletim , mesmo assim não escapamos à imagem que é a nossa marca visual e quando publicamos uma capa em homenagem a Berta Ribeiro, escolhemos uma linda foto dela com uma pintura indígena no rosto.
Creio que o primeiro símbolo escolhido para uma reunião da ABA foi um distintivo com um machado de âncora Jê que Herbert Baldus mandou cunhar para a VI Reunião em São Paulo, em 1963. [Não lembro mais o que havia na flâmula que só o professor Castro Faria tem da primeira reunião e que nunca fotografamos.]
Assim, não parece descabido falar de uma certa dissonância entre a imagem que ostentamos em nossa face pública e as reflexões internas que fazemos sobre nossa trajetória histórica. Grifo nossa trajetória porque não estou falando aqui num dos desenvolvimentos mais espetaculares do campo antropológico no Brasil, o do campo da história indígena, no qual, aliás, se expressa, muito bem, a também enorme incorporação de recursos áudio visuais ao campo da antropologia contemporânea – que era a ‘novidade’ anunciada por Herbert Baldus como parte das atividades da VI Reunião. Estou, sim, pensando em voz alta sobre a ausência de influência do pensamento etnológico, também espetacularmente desenvolvido nos últimos trinta anos, sobre a reflexão teórica em outros campos da antropologia no Brasil. Creio que esta Casa é o lugar adequado para lembrar essa lacuna, já que é o berço dos estudos etnológicos contemporâneos e já que aqui foram cunhados tantos conceitos novos que expressam a maturidade de um pensamento etnológico , também expressa na sua circulação internacional.
Costumo dizer aos meus amigos etnólogos que essa ausência de antropofagia dos antropólogos em geral em relação à etnologia é culpa deles, por terem constituído um campo tão auto-referido. Mas é também culpa nossa, por nos fecharmos nos nossos próprios campos temáticos. Muitos anos atrás, para uma reunião regional da ANPOCS, escrevi uma breve nota sobre isso, intitulada, rural, urbano, tribal , na qual dizia que o campo dos estudos da família só teria a se beneficiar se pudéssemos trocar, comparar, os resultados nessas três áreas de pesquisa. A observação caiu em ouvidos moucos e só recentemente, com o advento de outra moda teórica, a dos estudos de gênero, essas trocas tem começado a ser feitas, mais por iniciativa das etnólogas do que nossa, que estudamos outros grupos sociais de uma perspectiva feminista.
O terceiro e último ponto que quero levantar aqui expressa tanto o desejo de puxar a brasa para a minha sardinha quanto é expressão de uma auto-crítica. Se é verdade que a história da antropologia é uma área que se desenvolveu muito nos últimos vinte anos – para verificar isso, basta comparar a bibliografia disponível sobre esse tema hoje e em 1984, quando foi publicado o Roteiro de Julio César Melatti (1984) – é também verdade que temos estado, até agora, tão preocupados em registrar a nossa história, preocupação justa, já que ainda resta tanto a fazer nesta direção, que temos deixado de lado uma leitura mais crítica dessa história, que deveria abordar aspectos cruciais dela como, por exemplo, a participação de antropólogos em projetos de desenvolvimento nacional ou em aparatos do Estado; seu financiamentos e suas relações com agências financiadoras, nacionais e internacionais; o papel dos lobbies políticos dos antropólogos em várias injunções de nossa história recente; ou a presença de vieses, tantas vezes apontados quando se trata de analisar a sociedade mais ampla (racismo, autoritarismo, machismo, clientelismo), também nas instituições nas quais trabalhamos e com as quais colaboramos. Uma história da FUNAI, por exemplo, certamente seria instrutiva a respeito de muitos desses aspectos. Esses poucos exemplos podem e devem ser ampliados e sei que muitos colegas aqui presentes têm sua própria lista crítica de nossa história.
Paro por aqui pois acho que a idéia desta sessão é mais começar a levantar pontos para pensar a questão proposta do que a de apresentar propostas bem acabadas.
Referências bibliográficas
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Nota das editoras: a lista de referências bibliográficas não compõe o texto original, que é uma conferência. Ela foi acrescentada por imposição da Scielo, como condição para publicá-lo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2023