Open-access Gênero, corpos e desejos nas ruínas de O Rei de Havana

Resumo

Este artigo propõe uma leitura d'O Rei de Havana (1999), romance de Pedro Juan Gutiérrez, considerando a imbricação entre o texto, o projeto político do Homem Novo, implantado pelo Governo Socialista de Fidel Castro, e a crise econômica vivida em Cuba, na década de 1990, durante o Período Especial em Tempos de Paz. Além das fraturas do projeto econômico e social cubano, a narrativa explora processos de produção de corpos e a instabilidade das categorias sexo, gênero e desejo, de forma a contestar a matriz da heterossexualidade compulsória (Butler, 2003).

Cuba; Período especial; Relações de gênero; Performatividade

Abstract

This article proposes a reading of The King of Havana (1999), a novel by Pedro Juan Gutiérrez, keeping in mind the connection between the text, the political project of the New Man, implemented by the Socialist Government of Fidel Castro, and the economic crisis in Cuba, in the 1990s, during the Special Period in Times of Peace. In addition to the fractures of the Cuban economic and social project, the narrative explores processes of production of bodies and the instability of the categories sex, gender and desire in order to contest the hegemonic heterosexual matrix (Butler, 2003).

Cuba; Special period; Gender relations; Performativity

Introdução

Este trabalho analisa o romance O Rei de Havana (1999), de Pedro Juan Gutiérrez, a partir da perspectiva dos Estudos de Gênero. Identifico que a narrativa apresenta elementos que contribuem para a compreensão do gênero como construído socialmente a partir de atos performáticos, atos estilizados repetidos em todos os instantes da vida e subordinados a um controle social rígido – a heterossexualidade compulsória (Butler, 2003). Os marcadores sociais presentes na construção do texto delimitam o masculino por um conjunto de regras que devem ser seguidas – “homem não chora”; “homem não pode afrouxar”; “homem tem de ser durão ou morrer”; “homem bebe rum” – e associam a masculinidade ao cumprimento de tais regras e à expressão da violência presente nos locais em que a personagem Reynaldo circula.

O romance explora o período da adolescência de Reynaldo. Esse momento é marcado pela morte de sua mãe, de sua avó e de seu irmão. Em função de suspeitas de seu envolvimento nessas mortes, ele foi internado em um centro de detenção juvenil. Após alguns meses de detenção, ele consegue fugir e, sem familiares a quem recorrer, vira um andarilho sobrevivendo de esmolas, pequenos trabalhos e alguns golpes. Ele se relaciona com Magdalena, Sandra e outras personagens, enquanto caminha por diferentes cidades próximas a Havana e pelas ruas da capital cubana.

Uma das marcas da obra de Gutiérrez é a centralidade da sexualidade durante a construção do texto. Essa característica está presente de forma intensa em vários livros do autor. No romance em destaque, junto à narração de relações sexuais, aparecem cenas de roubos, assassinatos, tráfico de drogas e prostituição, que sugerem uma decadência moral que está associada à decadência da cidade de Havana e seus prédios em ruínas, sem energia elétrica, habitada por uma população faminta, cercada de lixo. A cidade descrita em O Rei de Havana representa o “apocalíptico ambiente citadino de final de milênio” (Gutiérrez, 2001:117), marcado pela intensa crise econômica, política e social que atingiu a ilha na década de 1990.

Em geral, as leituras sobre a obra dão atenção aos aspectos políticos e econômicos que produziram a crise humanitária na Cuba de fins do século XX. Tanto o narrador onisciente como o próprio autor trabalham para que o texto seja lido segundo esses interesses. Em entrevistas, Gutiérrez afirma que as pessoas que serviram de inspiração para suas personagens podem ser vistas circulando pelas ruas próximas à sua casa, no centro da cidade de Havana. Os interesses dessa proposta parecem coadunar-se a um desejo do público em identificar no texto algo além do ficcional. Em entrevista a Stephen Clark (2000), Gutierrez afirma:

Eu caminho pela rua e vejo constantemente pessoas que poderiam perfeitamente ser o Rei de Havana, pessoas vendendo amendoins ou pedindo esmolas. É como um símbolo do pobre, o verdadeiro pobre que não tem futuro e simplesmente se esquece do seu futuro porque sabe que não há futuro1.

Afirmações como essas reforçam a proposta de ler o texto como um registro do momento histórico em que o romance foi escrito. Os trabalhos de Punales-Aloizar (2012) e de Viana e Umbach (2016) são alguns dos exemplos de análise que corroboram uma visão metonímica entre O Rei de Havana e a sociedade cubana da década de 1990. A atenção ao contexto de crise econômica e social desse período permite identificar que a narração de Gutiérrez pode ser lida como perpassada por diferentes discursos políticos críticos ao governo cubano de Fidel Castro e também é influenciada por discursos históricos que identificam a região dos trópicos e sua população, marcadamente não-branca, como o local onde é possível experimentar liberdades sexuais que não podem ser desfrutadas em outros locais, sobretudo em uma Europa regulada por normas diferentes das vigentes nos trópicos. O conto de Miguel Mejides, The Tropics (1999), é um dos muitos textos que exploram essa liberdade sexual, afirmando que “não há lugar melhor que os trópicos para estimular os sentidos2” (Mejides, 1999:98) ou que “no Trópico de Câncer, tudo muda3” (Mejides, 1999:103). No romance Animal Tropical (2000), Gutiérrez também atualiza a ideia de liberdade, sobretudo sexual, que é o tema central de O Rei de Havana.

O texto de Gutiérrez retoma um discurso sobre as regiões tropicais como locais livres de pecado, em que todos os desejos poderiam ser saciados. Chico Buarque e Ruy Guerra, em 1973, compuseram uma canção que retomava esse tema. Não existe pecado ao sul do Equador é uma canção inspirada na frase “Ultra aequinoxialem non peccari”, expressão registrada pelo cronista Caspar Barlaeus, em 1641 (Pesciotta, 2014). A canção resgata a ideia do século XVII de que virtude e vício perdiam suas distinções quando se cruzava a Linha do Equador. Na literatura e em diversas formas de expressões artísticas, como o cinema, essa ideia é retomada continuamente e refere-se a toda a região tropical das Américas. Por essa perspectiva, a possibilidade de sublimação do pecado sexual seria uma das fortes marcas das culturas desta região e será uma das muitas fontes em que Gutiérrez vai beber para escrever seu livro.

Além de reconhecer a imbricação entre o texto e vários elementos históricos da década de 1990, considero importante destacar que o livro também parece voltado para atender a expectativas de um possível leitor. Tais expectativas não tratam apenas das liberdades sexuais que podem ser desfrutadas nos trópicos; elas também se relacionam com o papel representado pela ilha socialista e as tensões decorrentes dessa posição em um mundo, majoritariamente, capitalista.

Em vez de pensar o romance como um registro do momento histórico, este artigo propõe pensá-lo como uma imagem produzida a partir de um recorte parcial e arbitrário da sociedade cubana. Nessa fotografia, o foco é orientado para um ponto em que essa sociedade pode ser vista como hipersexualizada, embrutecida e animalizada, exibindo o caráter hiperbólico da narrativa. Esse exagero funciona como uma lente de aumento que explora a sexualidade, os corpos e os desejos de suas personagens, tornando possível discutir sobre os elementos mobilizados no processo social de construção do gênero.

Uma literatura para o leitor estrangeiro

No romance, a abordagem da sexualidade sugere um ambiente de decadência, que está fortemente conectado ao período de grave crise econômica enfrentada por Cuba durante a década de 1990, o Período Especial em Tempos de Paz. Esse contexto merece uma discussão que, apesar de sintética, pretende expor as relações políticas que resultaram em um momento de intensa crise econômica e social e que, possivelmente, potencializaram o sucesso de O Rei de Havana, bem como de obras de escritoras(es) cubanas(os) que elaboraram registros literários dessa época.

A década de 1990 marca um momento de profunda crise em Cuba após a fragmentação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991. Com a falência do seu maior parceiro político e econômico, Cuba viu 80% das suas divisas advindas das relações comerciais com a URSS desaparecerem (Hernandez-Reguant, 2009). Os embargos impostos pelos Estados Unidos às atividades econômicas cubanas, como retaliação ao regime socialista estabelecido na ilha, também colaboraram para o agravamento do cenário de crise humanitária. Em 1994, Cuba ganhou as telas do noticiário internacional com a Crise dos Balseiros, período em que milhares de cubanos tentaram cruzar os 150 km que separam Cuba dos Estados Unidos. A precariedade da situação e o desespero da população que fazia a travessia eram visíveis na qualidade dos instrumentos que eram usados: pequenos barcos, botes infláveis, balsas improvisadas, carcaças de geladeiras, automóveis transformados em flutuantes. Essas embarcações, em muitos casos, conseguiram concluir a travessia; outras vezes, a jornada acabou em naufrágio e mortes. A travessia era uma aposta desesperada em relação às opções disponíveis em Cuba. Frente ao severo racionamento de alimentos, itens de limpeza, medicamentos e combustíveis, a chegada ao estado da Flórida, nos Estados Unidos, garantia o direito de asilo político aos exitosos. Tal direito assegurava o acesso dos cubanos ao “sonho americano”, no qual abundaria o que em Cuba era racionado4.

Politicamente, esse período sugeria o fim próximo dos sistemas de governo socialista. Os críticos consideravam que o socialismo5, vigente em países como Cuba, Vietnã, Coreia do Norte e China, representava uma face do socialismo tardio, etapa próxima ao momento de colapso que levou a URSS ao fim. O período representava um momento em que as utopias capitalistas e socialistas não respondiam mais às questões sociais que eram propostas (Buck-Morss, 2018). Naquele momento, o fim da polarização simbolizada pelo encerramento da Guerra Fria, vigente desde o final da Segunda Guerra Mundial, parecia consagrar a vitória final ao Bloco Capitalista, liderado por Estados Unidos, Inglaterra, França e algumas outras potências econômicas.

O cenário de crise política e econômica do Período Especial desencadeou diferentes expectativas. Para alguns, a crise no governo de Fidel Castro despertava as esperanças de que a abertura política do regime era iminente. Cubanos exilados, muitos deles perseguidos e expulsos da ilha pelo regime Castrista, desejavam uma abertura política para que pudessem retornar e para que a população cubana tivesse seus direitos respeitados.

A tentativa de superação dessa crise resultou na decretação do Período Especial em Tempos de Paz. Diante da grande escassez de comida, foi implantada uma política de racionamento, que garantia o acesso da população a uma cota mínima de alimentos que possibilitasse a sua sobrevivência. Além disso, ocorreram reformas econômicas que permitiram o desenvolvimento do turismo e a entrada de empresas de capital aberto na ilha (Hernandez-Reguant, 2009). No fim da década de 1990, o governo cubano reconquistou certa estabilidade, e os analistas perceberam que as mudanças realizadas na economia não representavam uma ameaça ao regime político. Hoje, Cuba ainda resiste como um país socialista. Contrariando várias previsões, o regime sobreviveu ao Período Especial e à morte de Fidel Castro.

No campo das artes, durante o Período Especial, ocorreu uma grande busca e divulgação da música, do cinema e da literatura cubana. Após 1959, ano da Revolução Cubana, a ilha tornou-se um país fechado, que selecionava seus visitantes de forma minuciosa. Com a abertura pontual da economia, empresários do ramo cultural começaram uma busca pelos tesouros culturais da ilha (Hernandez-Reguant, 2009). No campo da literatura, escritoras(es) como Zoé Valdés, Antonio José Ponte e Pedro Juan Gutiérrez conseguiram negociar a publicação de suas obras com editoras estrangeiras, algumas vezes, burlando a severa censura política Cubana.

No caso de Gutiérrez, apesar do grande sucesso de suas obras de estreia – Trilogia suja de Havana (1998) e O Rei de Havana (1999) –, é interessante observar como tal sucesso ocorreu distante de Cuba. Trilogia suja de Havana ainda não recebeu uma edição cubana (apesar de já ter sido publicada em mais de vinte países), e O Rei de Havana só foi impresso pelas Ediciones Unión em 2009 (este livro já teve edições em outros doze países). Enquanto os cubanos tinham dificuldade para ler os textos de Gutiérrez e de demais autores do Período Especial, nós, brasileiros, tivemos acesso a edições nacionais um ano após as primeiras edições serem publicadas na Espanha.

O Rei de Havana é o primeiro romance de Pedro Juan Gutiérrez. Seu protagonista, Reynaldo, é um adolescente que, após a morte de sua família, é encaminhado para um reformatório. A pobreza da família, marcada pela degradação do cômodo em que moravam e pela escassa alimentação a que tinham acesso, denunciava as péssimas condições de vida de grande parte da população. Além disso, a formação escolar precária que Reynaldo e seu irmão Nelson receberam contestavam os resultados dos projetos educacionais desenvolvidos em Cuba.

A degradação da família denunciava que o ideal do Homem Novo, proposto por Ernesto Che Guevara em El socialismo y el hombre en Cuba (1965), não alcançara a todos, nem garantira a qualidade de vida, nem a elevação moral que seria forjada em um ambiente não capitalista. Reynaldo aparece como a negação do Homem Novo. Ele é desprovido de tudo: sem casa, sem família, sem perspectivas, sem sonhos; ele apenas sobrevive. Sua rotina se resume às atividades que saciam instintos básicos: comer, trepar, dormir. Nos poucos momentos de reflexão do personagem, marcados pela simplicidade de suas construções, aparecem os questionamentos sobre os motivos que levam as pessoas a tanto sofrimento: “Para que a gente nasce? Para morrer depois?” (Gutiérrez, 2001:23).

A falta de expectativa de Reynaldo se confunde com a desilusão da população, que, na época, após mais de 30 anos de implantação do regime socialista, antevia a derrocada do projeto político que, diante da crise do Período Especial, despedaçava-se ante os olhos da população, levando-a a pensar em fugir a qualquer custo – “a loucura de ir embora do país” (Gutiérrez, 2001:10).

O desejo de fugir, manifestado pelas personagens que não vislumbram nenhuma possibilidade de vida digna no país, é mais uma crítica ao regime, que havia forjado uma identidade cubana, após a Revolução de 1959, assentada na oposição de que o cubano não era ianque nem capitalista (Minero, 2006). Enquanto todos os jovens sonham em fugir para os Estados Unidos ou para algum país da Europa, apenas os velhos e miseráveis como Reynaldo resistem, em parte por presumirem que nesse outro lugar também não há espaço para eles.

Como analisa Lisenby (2014), a literatura do Período Especial se constitui como um produto para o leitor estrangeiro – um leitor que, em oposição ao leitor crítico, deseja consumir a exótica, estereotipada, objetificada, violenta e hipersexualizada imagem divulgada por O Rei de Havana e alguns outros romances do período. Entretanto, a liberdade sexual dos trópicos também parece encobrir a crítica política que é explorada, se não exatamente pelos autores do período, pelas editoras que os divulgaram. Tal literatura, mais que tratar sobre um povo que busca por melhores condições de vida, parece ser divulgada como símbolo do fracasso do projeto socialista, mostrando que o sistema havia falhado em todas as dimensões da vida cubana. O destaque sobre a pobreza do Período Especial sugere que as possíveis conquistas durante os 30 anos de revolução haviam desaparecido, deixando a população sem nenhuma garantia – era a queda do Estado socialista. Os grandes projetos econômicos, educacionais e culturais haviam falhado na produção do Homem Novo idealizado por Che Guevara. Esse fracasso, identificado nessa literatura, parece corroborar um discurso que confirmaria a vitória do capitalismo.

A atenção à perspectiva político-governamental do texto de Pedro Juan Gutiérrez marca de forma intensa a recepção da obra, de modo que outras possibilidades de análise do romance, sobre elementos que recebem grande atenção do narrador, sejam silenciadas, como as técnicas utilizadas para a produção de corpos; a expressão dos desejos; ou os aspectos sociais que perpassam a construção de masculinidades, feminilidades e travestilidades.

Ao apresentar fraturas nas hierarquias de gênero, o romance aciona elementos que se aproximam do conceito de ‘democracia sexual’, de Éric Fassin (Pelúcio, 2019). Para o autor, ao sair da esfera privada, a discussão sobre questões sexuais tem sido politizada e torna-se tema para a conquista de direitos sexuais - sua democratização. No entanto, esse cenário também abriu espaço para a organização de grupos conservadores que atuam com propostas repressivas. Essa tensão está presente na construção da narrativa, que sugere uma liberdade para expressão do gênero e da sexualidade relacionada à decadência de um regime político.

Gênero, Corpos e Desejos

Mais que inspiradas em pessoas que podem ser vistas da janela do escritor, as personagens de O Rei de Havana constituem-se como um conjunto de invisíveis, uma assemblage (formados por trapos humanos descartáveis), que, durante o tempo do romance, ganham corpo e, antes mesmo que o romance acabe, desaparecem como se nunca tivessem existido. Reynaldo, o indigente vivendo à base de bebida, cigarros e sexo, é a figura que atrai outros invisíveis. Magdalena, a mulher que sobrevive dos trocados angariados com a venda de amendoins e com a prestação de serviços sexuais, e Sandra, a travesti que se prostitui e fornece drogas em bares exclusivos para turistas em busca da exótica experiência de visitar aquele país, são algumas das várias personagens que representam as mulheres e as travestis como objeto sexual disponível aos moradores e aos visitantes da ilha. Mais que personagens que poderiam ser encontradas nas ruas de Havana, elas são alegorias, figuras que, no romance, concentram as imagens de decadência, corrupção e perversidade com que o autor carrega as tintas da narrativa. O objeto de trabalho de Gutiérrez são esses seres marginais; aqueles que vivem e morrem sem serem percebidos; corpos que não importam; aqueles que, para Judith Butler (2014), ainda precisam emergir como sujeitos que demandam preocupação, cujas vidas não importam.

Nessa narrativa em que o cheiro dos fluidos corporais e dos excrementos desempenham um papel importante na construção do cenário e das personagens, o narrador apresenta um texto em que as experiências de gêneros, desejos e práticas sexuais são constituídas a partir de referências à heterossexualidade compulsória. Tais experiências informam os processos de aproximação e rejeição a expressões de gênero que representam masculino e feminino. As personagens destacadas para esta análise expõem como o gênero se constitui a partir de modelos idealizados, os quais precisam ser continuamente retomados para que essas personagens possam ser identificadas enquanto gêneros inteligíveis6 (Butler, 2003).

A afirmação constante de valores/qualidades/atitudes que se relacionam a determinado gênero, na busca por um reconhecimento dentro de perspectivas de masculinidade ou feminilidade, atualiza e borra expectativas sobre corpos, desejos e práticas sexuais ao longo do romance. As diversas experiências das personagens, com destaque para suas experiências sexuais, colaboram para a identificação de elementos que permitem pensar a arbitrariedade com que a heterossexualidade compulsória é atualizada. Ao mesmo tempo, o texto apresenta elementos que denunciam o machismo, o racismo e a transfobia presentes naquela sociedade.

Ao dedicar atenção às personagens Reynaldo, Magda e Sandra, destaco suas experiências e conhecimentos os quais indicam como sujeitos podem deslocar-se em meio a um conjunto de normas e como eles se constituem a partir de conhecimentos e técnicas que são mobilizados para a construção do gênero. O processo de construção dos corpos, a instabilidade do desejo e a associação a expressões de gênero podem ser reconhecidos a partir de atos performativos (Butler, 2003) que os envolvem. Esses atos, repetidos continuamente e impelidos pela convivência em sociedade, atualizam a paródia estabelecida para que essas personagens possam ser lidas a partir de gêneros inteligíveis. A compreensão desses sujeitos apresenta-se ligada à identificação de corpos e genitálias a um conjunto de comportamentos e práticas que atualizam e reificam o que seriam expressões de masculinidade, feminilidade ou travestilidade. Nesse sentido, o termo ‘paródia’ caracteriza a tentativa de representar valores/comportamentos como se existisse uma forma original de expressão de um determinado gênero. No entanto, as práticas utilizadas como referência nesses processos também são reproduções idealizadas sobre como um sujeito deveria performar determinado gênero. Nos termos de Butler (2003), a repetição representa uma cópia da cópia e “revela que o original nada mais é do que uma paródia da ideia do natural e do original” (Butler, 2003:57).

As primeiras páginas do romance são ricas em passagens com características que indicam como a masculinidade de Reynaldo é forjada a partir do cumprimento de regras que são repetidas em diferentes momentos. A primeira referência ocorre quando os irmãos, de 13 e 14 anos, “consideravam-se homens […]. Eram homens e já sustentavam todos em casa” (Gutiérrez, 2001:11). Depois, para escapar dos estupros que ocorriam no reformatório em que a personagem foi internada, ele observa que “a gente tem de ser muito durão para ninguém comer seu cu, mas sem o cara perceber” (Gutiérrez, 2001:17). Quando volta para casa e sente que vai chorar ao perceber todos os infortúnios que ocorreram em sua vida, o narrador registra que Reynaldo “não podia chorar e amolecer como um menino. Ele era homem e homem não pode afrouxar. Homem tem de ser durão ou morrer” (Gutiérrez, 2001:36).

Essas, dentre outras passagens, constituem um repertório que delineia aspectos importantes da masculinidade que será representada. Segundo elas, o homem é o sujeito que sustenta a casa, que não expõe sentimentos e que não permite ser comido por outros homens. Outros valores que são reforçados ao longo do livro associam a imagem do homem a uma resistência física relacionada ao consumo de bebidas alcoólicas. Enquanto esmolava nas ruas da cidade de Regla, ele ouviu: “homem bebe rum. Não se pede dinheiro para comer. Tem que beber, beber e beber...” (Gutiérrez, 2001:29). O entorpecimento era a fuga para os que não tinham para onde fugir.

A construção dessa masculinidade também passa pelo reconhecimento e uso do pênis como elemento que extrapola significados simbólicos. Quando conhece Magdalena, a habilidade sexual, representada no uso e nas dimensões do pênis de Reynaldo, leva-a a conceder-lhe o título de ‘Rei de Havana’. Entretanto, no final da narrativa, além das habilidades sexuais, da resistência às bebidas ou do controle das emoções, outro elemento que deveria constituir a masculinidade descrita pelo romance é requisitado por Magda e provoca o desfecho da história: o homem deveria ser o mantenedor, aquele que sustenta a família, mas essa é uma habilidade que Reynaldo perde após a morte de sua família.

Um dos direitos que a representação da masculinidade oferece, dentro da matriz da heterossexualidade, é a submissão das mulheres. A assimetria de poder entre os sujeitos a partir das distinções de gênero se apresenta como um dos elementos que regulam as relações entre homens e mulheres. No momento em que Reynaldo percebe que Magda não será mais submissa a ele, quando ela exige competências que ele não possui, como oferecer o mínimo para a sobrevivência da companheira, o uso da violência é apresentado como a alternativa para restabelecer a relação de poder entre as personagens. Para manter a posição de dominador, ele acaba assassinando-a. A morte de Magda retoma a posição vulnerável das mulheres nas sociedades que se constituem a partir de delimitações rígidas sobre o que seriam homens ou mulheres e, além disso, destaca como essa hierarquia é mantida através da violência – expressão do sexismo que permeia a narrativa.

Todavia, o processo de produção do gênero, no romance, extrapola a dimensão performativa e aborda também como os corpos são produzidos com o intuito de confirmar o gênero performado. Nesse sentido, as doses de anticoncepcional que Sandra usa para produzir seus seios ou as “pérolas” introduzidas abaixo da glande de Reynaldo são alguns dos elementos que expõem os corpos como socialmente construídos a partir da incorporação de técnicas que se apropriam de saberes para a reprodução de ideais que confirmem possibilidades de masculino ou feminino dos sujeitos.

Os seios de Sandra, travesti com quem Reynaldo se relaciona, revelam uma dessas técnicas: “Nada de silicone. Tinha conseguido os peitinhos com Medrone, um comprimido anticoncepcional e regulador da menstruação, à base de hormônios femininos” (Gutiérrez, 2001:64). O uso de anticoncepcionais para a produção de corpos que se aproximam ao que seria esperado de corpos femininos, no caso, corpos com seios, é uma prática altamente difundida entre as travestis, as quais fazem uso de um conjunto de conhecimentos biomédicos muitas vezes marginalizados, acessados por sujeitos que não têm recursos para serem atendidas por programas de saúde que lhes ajudem a conquistar/construir corpos que se aproximem de modelos de feminilidade que elas desejam atingir. A construção de um corpo que representa um ideal feminino é tema central no processo de construção de travestis e mulheres trans, como registra Amara Moira: “Não importa o que ela diga, nada será tão eloquente quanto o seu corpo em transmitir a mensagem do que ela é, do que ela não pode deixar de ser (Rodovalho, 2017:370).

O trabalho de Larissa Pelúcio (2005) é um dos que discutem sobre a produção dos corpos de travestis com o uso de anticoncepcionais ou de silicone. Essas intervenções são produzidas para que as travestis sejam lidas a partir de referências que as associam a corpos femininos. Nesse contexto, a presença de seios faz com que elas confirmem expectativas sobre o que deve ou pode ser um corpo de mulher.

A análise de Pelúcio (2005:98) considera que

não se pode tornar travesti sem que se entre em uma rede de relações já estabelecidas. Pois é ali que elas aprendem a se maquiar e a se depilar com eficiência; a andar e gesticular como mulher; a mudar a voz e o nome; a tomar hormônios; e onde e com quem colocar silicone. Só assim pode-se iniciar a construção da pessoa travesti.

Todas essas técnicas são mobilizadas para a apresentação de um corpo e de um comportamento que remetem a um ideal, sobre como uma travesti deveria ser. No caso de Sandra, a maquiagem, a depilação, as roupas e a peruca loira que ela utiliza inserem-na em uma dimensão de vida compreendida como feminina. Mas, para atingir esse local, é necessária uma rotina de cuidados corporais que indicam o quanto o gênero precisa ser continuamente confirmado para que a inscrição de um sujeito em determinado gênero possa ser conquistada.

Sandra, de calcinhas e com os peitinhos nus, começou a se maquiar. Primeiro, raspou bem o rosto, as axilas, as pernas. Cremes hidratantes, bases, pós, pintura de lábios, peruca loira, sombra nos olhos, cílios postiços, unhas postiças. Levou mais de uma hora. Aquele mulato bonito, andrógino, belo, foi se transformando lentamente numa mulata especialmente atraente, com um forte magnetismo sexual. Rey se limitou a olhar sem falar. Gostava dela (Gutiérrez, 2001:77-78).

A passagem de um “mulato bonito” para uma “mulata especialmente atraente” sintetiza o ritual, no qual os elementos que remetem a um universo feminino são incorporados à personagem. A importância de pensar como o gênero se constitui como paródia (Butler, 2003), como uma ação que busca inscrever o sujeito em uma esfera de masculino ou feminino, emerge ao percebermos que o feminino buscado por Sandra não é algo inerente a determinado sujeito. Travestis, mulheres e outras possibilidades de expressão de gênero podem fazer uso dos mesmos elementos para chegarem ao ponto que Sandra atinge durante sua preparação para sair de casa.

Sobre a dimensão simbólica desse processo que dá forma a um projeto pessoal, é interessante observar a reprodução do processo vivenciado por Sandra no relato da pesquisadora Viviane Vergueiro ao discutir sobre sua vivência como travesti.

Depois de tomar banho e depilar algumas partes do corpo com uma lâmina dita 'feminina', visto calcinha e sutiã, e chego ao armário onde deixo minhas roupas, também ditas 'femininas'. [...] fico tranquila para calçar o sapato de salto alto preto e fino, vestir o vestido curto e em listras de dois tons de verde, e fazer uma maquiagem que, à época, avaliei como razoável, e em alguma meia hora estava quase pronta para sair (Vergueiro, 2015:16-17).

Depilação, roupas e maquiagem indicam o ritual para atingir a aparência desejada. No caso da pesquisadora, anticoncepcionais e repositores hormonais também ajudam nesse processo, pois travestis conseguem comprá-los em qualquer farmácia (Vergueiro, 2015).

Além da produção do corpo idealizado, a inserção de Sandra nesse espaço do feminino envolve mais um elemento quando ela passa a considerar Reynaldo como seu marido. O reconhecimento de um relacionamento informa como a personagem pensa as relações entre homens e mulheres: para ela, o marido era um homem que merecia ser cuidado, alguém para quem ela devia cozinhar, lavar e manter-se bela. Seu projeto de relacionamento também é baseado na perspectiva de que as esposas devem ser submissas ao marido: quando é espancada pelo parceiro, a violência de Reynaldo confirma suas expectativas sobre os elementos que o marido ideal deveria possuir. Embora trabalhe e costume dar dinheiro para os seus parceiros, Sandra procura um trabalho para Reynaldo, com a intenção de torná-lo o homem provedor que ela idealiza. Outro elemento retomado para tratar da associação de Sandra a esse ideal feminino é a maternidade, e suas preces são dirigidas para atingi-lo: “Se Deus fosse melhor comigo e me deixasse parir para o meu marido... ai... que lindo... eu de mãe, de dona-de-casa, com alguém pra cuidar de mim” (Gutiérrez, 2001:77).

No caso da produção corporal de Reynaldo, um elemento se destaca: o processo de inserção das “pérolas”. A descrição do procedimento é uma passagem na qual o narrador dedica muita atenção, talvez por ser uma prática estranha ao possível público-alvo do livro – leitores estrangeiros em busca do exotismo tropical. A inserção das “pérolas” destaca como a masculinidade é valorizada no espaço prisional e como o pênis ocupa centralidade na construção da masculinidade das personagens.

interessou-se pelas pérolas na glande. Na enfermaria, havia sempre alguém com a ferida infeccionada. Esses tinham azar: tratavam da infecção deles, depois os operavam e extraíam as pérolas. Mas muitos saravam bem e ninguém ficava sabendo. Alguns punham até três pérolas. Não eram exatamente pérolas, eram bolinhas de aço, de rolamento de bicicleta. Dois caras faziam aquilo. Uma tarde de domingo, viu como eles faziam, pegavam o pênis do “paciente” desinfetavam com álcool e faziam uma incisão por cima, na pele, perto da cabeça. Puxavam essa pele, faziam a incisão, punham uma, duas ou três bolinhas. Punham a pele de novo no lugar e fechavam tudo com esparadrapo para cicatrizar. Limpavam o ferimento diariamente com álcool. Usavam uma lâmina plástica, de escova de dentes. Em uma semana estava pronto: curado ou infeccionado (Gutiérrez, 2001:19-20).

A precariedade do processo se evidencia na forma como a palavra paciente é grafada entre aspas. Paciente seria o termo mais apropriado aos procedimentos realizados pela medicina formal. Em vez de um bisturi, a lâmina construída com uma escova de dentes é mais um elemento que denuncia o local onde o procedimento é realizado: o reformatório/a prisão. No lugar de médicos ou enfermeiros, “dois caras” realizam o procedimento, e vários interessados negociam o pagamento pelo serviço. O resultado, “curado ou infeccionado”, também reforça a pouca segurança que envolvia o evento. A forma de pagamento remete à lógica de ambientes carcerários, em que o dinheiro não circula com a mesma facilidade que nas ruas. No caso de Reynaldo, a mudança corporal foi realizada na base do escambo. Ele dominava outra técnica de produção corporal (era um tatuador) e pagou as “pérolas” com uma tatuagem de Santa Bárbara, que ocuparia toda a costa do “cirurgião”.

Em ambos os casos, a ingestão de hormônios para o crescimento de seios ou a inserção de pérolas no pênis são ações que buscam um melhor posicionamento em relação às expectativas de gênero que os sujeitos desejam performar. Quanto mais atributos relacionados ao masculino ou ao feminino forem conquistados, maiores as chances de as personagens terem sucesso em relacionamentos. Ao colocar as pérolas, Reynaldo deseja atrair a atenção das mulheres. Ao longo da narrativa, é repetido que as mulheres sentem atração por homens que possuem “pérolas” e como esse elemento pode proporcionar prazer às mulheres durante as relações sexuais, ainda que denunciem que os homens que as possuem, possivelmente, tiveram alguma passagem pela prisão. Por outro lado, as transformações de Sandra, ao aproximá-la das formas que ela identifica como apropriadas para uma mulher, também agregam elementos que podem ajudá-la a conquistar um marido estrangeiro, alguém que possa tirá-la da ilha.

Nesse processo de construção de corpos que confirmem determinado gênero, também há passagens que informam como o desejo se constitui, a partir também de regras que produzem a inteligibilidade do gênero dentro de uma sociedade orientada pela heterossexualidade compulsória.

A experiência no reformatório é um importante momento, que indica como a construção da masculinidade é processada, informando os elementos que a sustentam. Simbolicamente, a “macheza” se localizaria na integridade do ânus, e esse é um dos primeiros aprendizados de Reynaldo: “aqui a gente tem de ser muito durão para ninguém comer seu cu, mas sem o cara perceber” (Gutiérrez, 2001:17). Ser durão sem que percebam se associa a outra regra que interdita partes do corpo aos carinhos durante a relação sexual, tanto dentro do reformatório como nas relações que a personagem terá fora desse ambiente. Em um dos encontros com Sandra, ele lembra à parceira: “Eu sou homem, não me toque as nádegas” (Gutiérrez, 2001:90). Essa interdição também é exposta a Magda, em um dos seus encontros.

Se o corpo e a masculinidade são descritos como elementos conquistados/construídos, no texto, o desejo vai ser apresentado como um sentimento que desliza, que pode ser experimentado de várias maneiras. Enquanto o corpo é produzido a partir de um projeto de associação a determinado gênero, o desejo é descrito como resultado de diferentes combinações de cheiros, fluidos e sabores corporais que podem ser combinados de diferentes formas a cada relação. Quando Reynaldo se relaciona como Magda,

nenhum dos dois se incomodava com a sujeira do outro. Ela tinha uma xota um pouco ácida e a bunda cheirando a merda. Ele tinha uma nata branca e fedida entre a cabeça do pau e a pele que a rodeava. Ambos cheiravam a bodum nas axilas, a rato morto nos pés, e suavam. Tudo isso os excitava (Gutiérrez, 2001:55).

A construção desse encontro é precedida pela descrição do local em que Magda morava, um casarão em ruínas que desaba durante uma tempestade. O quarto, sem luz elétrica, sem acesso a água e sem banheiro, com um colchão velho e manchado no chão, em que as baratas circulavam livremente. Nesse cenário miserável, a relação sexual espelha as condições da moradia e o acesso limitado de seus moradores a práticas como tomar banho diariamente.

Em outros momentos, as relações sexuais são subordinadas a regras corporais em que o banho é elemento indispensável. Quando conhece Sandra, algumas regras são estabelecidas. Apesar de morar no mesmo prédio em ruínas, o quarto em que Sandra vivia parece um “paraíso”, com luz elétrica, água, móveis e eletrodomésticos; um “luxo” que espanta Reynaldo ao entrar no quarto. Uma importante diferença entre Sandra e Magda aparece resumida no trecho a seguir: “Sandra tinha um cheiro diferente. Uma suave fragrância de limpeza. Magda sempre cheirava a sujeira” (Gutiérrez, 2001:67). Para frequentar o quarto de Sandra, ele tinha que se submeter às regras dela: banhos e fiscalização sobre piolhos e chatos.

A relação de Reynaldo com as duas personagens expõe tensões entre o que ele deseja e o que um homem deveria desejar. Desde a primeira aproximação com Sandra, é possível perceber como essa relação é perpassada pelo questionamento sobre quais seriam as práticas sexuais autorizadas a um homem. No primeiro encontro com “o veado que morava no quarto ao lado”, a rejeição inicial por Sandra se transforma rapidamente em atração.

Rey o pegou pelo pescoço e ia jogá-lo escada abaixo quando viu que estava vestido de mulher. Com um rosto lindíssimo e peruca loira. E se conteve. Olharam-se de frente. Era linda. Uma mulher limpa, com pele delicada, perfumada. De saia curta. Ficaram em silêncio se olhando (Gutiérrez, 2001:62).

A tensão entre as personagens parece decorrer do atordoamento de Rey ao acordar sendo acariciado por Sandra, a quem ele tratava como “o veado”. A aproximação entre eles e o jogo entre elementos masculinos e femininos que envolviam a imagem de Sandra pareciam perturbá-lo: “E era lindo. Ou linda? Era muito bonito, na verdade. Parecia uma mulher belíssima, mas ao mesmo tempo parecia um homem belíssimo. Rey nunca tinha visto nada igual” (Gutiérrez, 2001:63). A dúvida da linguagem marca a dúvida da personagem: lindo, linda, bonito, mulher belíssima e homem belíssimo são características de uma mesma pessoa. Esse momento de incompreensão é uma importante passagem para percebermos como características do que seria um homem ou uma mulher podem ser mobilizadas, indicando a instabilidade que o gênero deveria negar.

O desejo se estabelece no interesse pelo que Sandra tinha de masculino e feminino, por ela representar um outro, algo que Rey nunca tinha visto igual. Como afirma Sarduy (1982:13): “A travesti não copia; simula, pois não há norma que convide e magnetize a transformação, que decida a metáfora7”. A escolha dos elementos que constituem a performance da travesti é realizada dentro de um repertório que, ao tentar reificar uma ideia de mulher, elabora a paródia, uma forma de representação que se aproxima, mas também se afasta do objeto parodiado. Para simplificar o impasse, no decorrer desse primeiro encontro, o narrador estabelece locais de gênero que posicionam as personagens em locais de masculino e feminino. O deslizar de Sandra entre gêneros é neutralizado por alguns instantes. Os pronomes deixam de marcar uma relação entre dois eles e passam a marcar uma relação entre um ele e uma ela:

Rey ia empurrá-la, mas é sabido que a carne é intensamente fraca e pecadora. E deixou que ele fizesse. Sandra ajoelhada na sua frente, tirou o bustiezinho e mostrou os peitos lindos, perfeitos, firmes. Rey tocou os bicos e ficaram duros. Sandra parou um pouco o que estava fazendo. Subiu até ele. Beijou-o. Ah, sim. Era uma sem vergonha. Que boca, que beijo, com língua e tudo! (grifo meu, Gutiérrez, 2001:67).

No primeiro momento, enquanto Rey ainda hesita, os pronomes deslizam entre masculino e feminino; após ceder, o artigo posiciona Sandra no campo do feminino. Rey descobre que “Sandra era perita” (Gutiérrez, 2001:68), realizava o que ele esperava de uma mulher, e isso autorizava a relação, impedindo um possível conflito. Mas, enquanto os pronomes autorizam a relação, os corpos ainda expõem interdições: “Rey notou que ela também tinha um bom bicho ereto entre as pernas. Quase tão grande quanto o dele. Mas ele era homem e não gostava daquilo! E desviou os olhos” (Gutiérrez, 2001:68).

Nesse jogo, a tensão despertada pelo desejo é apresentada a partir de sua interdição. Para Rey, um homem não deveria sentir-se atraído por um outro pênis. Na economia falocêntrica dos desejos, dos capitais sexuais apresentados na narrativa, um “bom bicho” equivale a um pênis desejado, como o pênis que Rey possuía. Essa atração por um “bom bicho”, que desperta a atração de quase todas as personagens do livro (homens, mulheres, travestis), também é compartilhada por Rey, mas ele deve controlar esse desejo, reprimi-lo. Mesmo assim, a atração pelo “bom bicho” de Sandra acompanha a personagem:

Na calcinha tão delicada sobressaía o volume formado pelo saco e por sua grande vara. Aquilo produzia uma sensualidade brutal. Rey olhou e ficou muito excitado com aquele contraste tão atraente, mas na mesma hora entendeu que tinha de se dominar, e rechaçou a ideia: 'Eu sou homem, porra', pensou (Gutiérrez, 2001:90-91).

O conflito enfrentado por Rey para confirmar sua masculinidade situa-se na tensão estabelecida entre o desejo pelo sexo com Sandra e a rejeição ao vê-la como um corpo que se confunde com o seu corpo masculino: “Rey evitou que Sandra tocasse suas nádegas e ele não tocou, nem olhou, pelo menos diretamente, o falo ereto de Sandra” (Gutiérrez, 2001:90). Dessa forma, o estabelecimento dos limites durante a relação mantém uma separação entre Sandra e Rey que delimita quais partes do corpo de cada uma das personagens seriam interditadas ao parceiro. Sandra não se aproximou da bunda de Rey, e ele não olhou para o seu pênis ereto, embora o narrador sugira o esforço de Rey para resistir a essa atração.

Apesar de resistir ao desejo pelo pênis de Sandra, ele não resiste à entrega do ato sexual com Magda. A interdição dos carinhos nas nádegas, que demarcava a região do corpo que confirmaria a masculinidade, é transposta durante um dos encontros com a parceira. Nesse encontro não serão apenas as carícias que serão permitidas:

A paranoia do sexo, das carícias, da entrega. Em algum momento, Magda meteu o dedo no cu de Rey. Dois dedos. Três dedos. E Rey gozou a primeira vez. Magda chupou o cu dele e continuou brincando com os dedos. E Rey deixou que fizesse, e guinchou e suspirou. Desfalecido de prazer. Algo em seu machismo a todo custo não lhe tinha permitido isso até agora. Era a entrega total (Gutiérrez, 2001:199).

Mais uma vez, o romance representa como as interdições/normas relacionadas ao desejo são fluidas. Ao deslocar a ideia de objeto penetrante do pênis para os dedos, o autor reduz a centralidade do pênis, tão recorrente ao longo de todo o texto. Ao apresentar Magda como uma mulher que penetra e produz prazer ao homem penetrado, o romance inverte o roteiro apresentado, até aquele momento, em que apenas o pênis realizava a penetração. Esse deslocamento apresenta uma perspectiva na qual as personagens identificadas com o gênero feminino podiam penetrar seus parceiros, sem que isso desestabilizasse a sua relação heterossexual. A ideia de “entrega total”, segundo a qual nada seria proibido durante a relação sexual e todo o corpo poderia ser explorado, reforça a ideia de que o desejo pode ser mobilizado de diferentes formas e pode constituir experiências que negam a arbitrariedade que a heterossexualidade compulsória tenta regular.

Considerações finais

O cenário político/econômico em Cuba, durante a década de 1990, provocou uma crise humanitária que atraiu as atenções para a ilha submetida ao regime socialista. A Crise dos Balseiros foi um dos eventos que atestavam as dificuldades para a sobrevivência do país após o fim da URSS e denunciavam o cenário apocalíptico que os cubanos vivenciaram. Diante da crise, a abertura proporcionada pelo Período Especial em Tempos de Paz favoreceu a produção e a exploração de trabalhos culturais produzidos em Cuba. Além da música e do cinema, a literatura que registrava os efeitos da crise de 1990 conseguiu grande destaque entre um público leitor estrangeiro. Ao representar a sociedade cubana vivendo na miséria, algumas narrativas, como a destacada neste artigo, foram interpretadas como o prenúncio do fim do regime socialista cubano.

Nesse sentido, o romance de Pedro Juan Gutiérrez expõe um cenário em que o projeto político de criação de uma nova sociedade (com a produção do Homem Novo) havia fracassado. Ao explorar a imagem de uma cidade/um país em ruínas, habitada por uma sociedade hipersexualizada e machista, o autor atualizou a ideia de sublimação dos pecados, que ocorreria nos trópicos, cultivada por pensadores europeus desde o século XVII, para descrever uma sociedade em que vícios e virtudes não seriam regulados por limites morais.

Além disso, a narrativa mostra fissuras que indicam a dimensão social que sustenta a heterossexualidade compulsória. Nesse sentido, a narrativa oferece elementos para pensarmos o processo de produção do gênero a partir de atos performativos, como os retomados no constante ato de afirmação da masculinidade de Reynaldo. A percepção de uma imagem ideal, a partir da qual os sujeitos produziriam seus corpos, indica o caráter parodístico relacionado à indicação dos comportamentos e das formas que corpos masculinos ou femininos deveriam ter. Em oposição a modelos sociais fechados, que definiriam limites como feminino e masculino, homossexualidade e heterossexualidade, dominado e dominador, a instabilidade é a marca das relações descritas no romance: a linguagem desliza ao tentar identificar o lugar ocupado por Sandra, a travesti; o desejo desliza e denuncia a tentativa de Reynaldo controlar quais partes dos corpos das parceiras ele poderia desejar; a prática sexual desliza quando Magda domina a relação com seu parceiro, aquele que se julgava dominador.

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  • 1
    Tradução livre de: “Yo camino por la calle y constantemente veo personas que podrían perfectamente ser el Rey de La Habana, personas vendiendo maní o pidiendo limosna. Es como un símbolo del pobre, el verdadero pobre que no tiene futuro y sencillamente se olvida de su futuro porque sabe que no hay futuro”.
  • 2
    Tradução livre de: “there is no better place than the tropics to revive the senses”.
  • 3
    Tradução livre de: “in the Tropic of Cancer, everything changes”.
  • 4
    As leis estadunidenses são um incentivo à imigração de cubanos. Em razão das relações políticas entre Cuba e Estados Unidos, os cubanos que chegam aos EUA são considerados como refugiados políticos e contam com uma política de recepção que é uma das ações de combate ao regime socialista. Os cubanos que chegam por via marítima e sem visto para entrada nos EUA não são presos nem submetidos às deportações que outros imigrantes enfrentam.
  • 5
    Apesar da extrema simplificação, considera-se Estado Socialista: aquele cujas estruturas do Estado estão subordinadas a um partido único, o Partido Comunista, o qual controla o sistema econômico, as atividades de produção e de organização social.
  • 6
    “Gêneros ‘inteligíveis’ são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Em outras palavras, os espectros de descontinuidade e incoerência, eles próprios só concebíveis em relação a normas existentes de continuidade e coerência, são constantemente proibidos e produzidos pelas próprias leis que buscam estabelecer linhas causais ou expressivas de ligação entre o sexo biológico, o gênero culturalmente constituído e a ‘expressão’ ou ‘efeito’ de ambos na manifestação do desejo sexual por meio da prática sexual” (Butler, 2003:38).
  • 7
    Tradução livre de: “El travesti no copia; simula, pues no hay norma que invite y magnetice la transformación, que decida la metáfora”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2024
  • Data do Fascículo
    Set 2024

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2023
  • Aceito
    06 Maio 2024
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