No ano em que são comemorados duzentos anos do nascimento de Karl Marx, é compreensível que a efeméride agite debates políticos e teóricos que envolvam seu legado, bem como o mercado editorial local. Entre seus resultados, está a publicação de O velho Marx, de Marcello Musto, autor ligado à fase mais recente do ambicioso projeto editorial das obras completas de Marx e Friedrich Engels, conhecido como MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe), cuja história é longa e cheia de percalços indissociáveis das desventuras sofridas pelo uso soviético dos pensamentos dos filósofos alemães (Marxhausen, 2014MARXHAUSEN, Thomas. História crítica das Obras completas de Marx e Engels (MEGA). Crítica Marxista, Campinas, n.39, p.95-124, 2014.).
Munido pelo aparato documental mobilizado nesse projeto editorial, no qual se destacam os manuscritos/rascunhos e as cartas, frequentemente muito reveladoras, trocadas por Marx com seus correspondentes, o curto livro tem um objetivo restrito, mas nem por isso menor: realizar uma apresentação dos principais acontecimentos da vida pessoal e intelectual de Marx no triênio 1881-1883. Seu principal alvo é a interpretação, rotineira entre seus seguidores, como entre seus críticos, de que os últimos anos do filósofo alemão foram marcados pela confusão de propósitos, fragilidade física e emocional e insegurança teórica. Musto quer nos mostrar justamente o contrário: como Marx, ainda que em condições de saúde frágeis, possuía energia e disposição para perseguir obsessivamente os temas de seu interesse.
Estruturado sob um movimento sempre dúplice, o qual envolve momentos alternados ligados à biografia de Marx com análises da própria evolução de seu pensamento, o livro de Musto conta com quatro capítulos: o primeiro apresenta o estado no qual se encontrava Marx em 1881, ano em que o livro começa sua narrativa; o segundo analisa o debate sobre o destino das comunas agrárias russas e sua relação com o socialismo e a posição de Marx a seu respeito; o terceiro foca na recepção europeia de O capital e o complicado momento familiar pelo qual a família do filósofo alemão passava no segundo semestre de 1881; e o último capítulo expõe a viagem de Marx à Argélia, único momento de sua vida em que saiu do continente europeu, e suas reflexões sobre a situação dos países árabes.
Como se vê, o primeiro mérito do livro de Musto é apresentar os acontecimentos da vida de seu biografado que mesmo o público acadêmico desconhece, como exemplifica o caso da viagem de Marx à Argélia. Nesse plano, vale destacar duas questões delicadas, decisivas para o sucesso do livro, com as quais Musto parece ter se debatido: em primeiro lugar, como selecionar os fatos narrados e articulá-los com uma interpretação a respeito de seus sentidos? Em segundo lugar: como conferir uma narrativa vívida de Marx sem cair numa abordagem excessivamente engrandecedora de sua figura, como se as dificuldades da vida fossem questão menor para espírito tão altivo e brilhante?
No caso da primeira pergunta, Musto teve a ideia inteligente de destacar que o fio vermelho que conecta os empreendimentos intelectuais tardios de Marx - entre os quais se sobressaem, sem dúvida, seu contato com a antropologia por meio da obra de Lewis Morgan e o seu estudo sobre a situação sociopolítica russa - é a recusa do pensamento dogmático, no que Marx contrariava os determinismos variados então em voga. Ao descrever a fusão de Marx com seu gabinete e sua devoção à pesquisa, Musto parece atingir o segundo alvo de seu livro: a noção restrita de “marxismo”, como um conjunto de fórmulas axiomáticas que teve seu primeiro momento de formulação na pena de Karl Kautstky, ele mesmo um tributário das formas de pensar deterministas vigentes no fin de siécle (Haupt, 1979). Com isso, Musto coloca em xeque a construção ideológica mais poderosa das esquerdas do século XX.
E aqui passamos à segunda questão. Em contraste com o procedimento ideológico que alça a figura de Marx à dimensão sobre-humana, o Marx que emerge do livro de Musto não é a figura monolítica, supra-histórica, que os regimes nascidos sob a sua suposta influência pintaram ao longo do século XX. Além de demonstrar como seus pensamentos foram alterados pelas descobertas que realizava, O velho Marx destaca a inserção do filósofo alemão numa rede de militantes e familiares com os quais dividia angústias e alegrias, embora sempre orientado pelas suas preocupações teórico-práticas. Nesse sentido, o esforço do biógrafo não é demonstrar como a dimensão pública das atividades de Marx se sobrepunha à sua vida privada, mas, ao contrário, frisar como sua vida privada e pública se fundiam em uma só - a vida do sujeito Marx - e que, como não poderia deixar de ser, era carregada de contradições, dilemas e escolhas.
Por razões compreensíveis, um livro sintético sobre tema tão complexo traz o risco de algumas limitações. Embora muito bem sucedido, talvez houvesse necessidade de explorar um pouco mais a fundo as descobertas/reformulações teóricas de Marx no período delimitado pela pesquisa. Em que pese observação do autor sobre o fato de esse ser um livro de “biografia intelectual” e indicar a preparação de outro “exclusivamente teórico” (Musto, 2018MUSTO, Marcello. O velho Marx - uma biografia de seus últimos anos de vida (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018., p.10), isso não altera a fato de que poderia ter havido discussões teóricas mais profundas no livro atual, especialmente porque, como o próprio autor demonstrou, a biografia de Marx não é separada de suas formulações teóricas.
Pelo seu assunto e pela sua forma expositiva - clara, concisa e livre de jargões -, o livro de Musto certamente interessará aos pesquisadores brasileiros do pensamento de Marx, bem como ao público não acadêmico, mas interessado em discussões políticas. É possível, inclusive, que incomode aqueles que se identifiquem com o “mito Marx” que transcorreu o século XX. Se o fizer, o livro terá cumprido seu objetivo (Musto, 2018MUSTO, Marcello. O velho Marx - uma biografia de seus últimos anos de vida (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018., p.11). É que Musto apresenta um caminho para outro Marx, talvez um Marx do século XXI, mais aberto, mais plural e, quem sabe, ainda mais poderoso. Um Marx, portanto, em construção.
Referências bibliográficas
- HAPUT, George. Marx e o marxismo. In: HOBSBAWN, Eric (org). História do marxismo (vol.1 - O marxismo no tempo de Marx). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
- MARXHAUSEN, Thomas. História crítica das Obras completas de Marx e Engels (MEGA). Crítica Marxista, Campinas, n.39, p.95-124, 2014.
- MUSTO, Marcello. O velho Marx - uma biografia de seus últimos anos de vida (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2019
Histórico
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Recebido
08 Jul 2018 -
Revisado
22 Jul 2018 -
Aceito
15 Ago 2018