Open-access Negras cores de escravidão para não se ver Raça, classe e nação na viagem de Miguel Calmon a plantações asiáticas (1905)

Black Colors of Slavery not to be seen Race, Class and Nation on Miguel Calmon’s Journey to Asian Plantations (1905)

Resumo

Inicialmente, o artigo enfoca três excursões de Miguel Calmon a plantações de fumo dos holandeses em Sumatra. Conecto a análise do relato de viagem de Calmon ao estudo da ideologia dos senhores de terras da Bahia no pós-abolição e evidencio, nas suas percepções, a autonomia dos trabalhadores. Também indico as estratégias patronais de organização do trabalho livre, centradas no aluguel e usufruto da mão-de-obra. Na continuação, o artigo demonstra como, após o regresso do viajante, sob sua liderança, contactar índios representava descobrir trabalhadores nacionais. Além de sublinhar a importância da mobilidade, para os índios, em lidarem com as estratégias de sua teórica proteção, argumento que a mobilidade era igualmente uma arma de luta para a classe trabalhadora. Pretendo assim contribuir para ampliar a pesquisa sobre os mundos do trabalho, iluminando conexões tanto globais quanto brasileiras.

Palavras-chave: coolies; índios; trabalhadores

Abstract

At first, the article focuses on three visitations by Miguel Calmon to Dutch tobacco plantations in Sumatra. I connect the analysis of his travel report with the study of the landlords’ ideology of post-abolition Bahia highlighting their perceptions on the workers’ agency. I also point out the landlords’ strategies for organizing free labor, focusing on rent and enjoyment of manpower. Following, the article demonstrates how, under Miguel Calmon’s leadership after his return to Brazil, contacting natives represented unveiling national workers. In addition to stressing the importance of mobility for natives in dealing with the strategies of their alleged protection, I argue that mobility was also a weapon of struggle for the working class. I thus intend to contribute to broaden researches on the worlds of labor, addressing global but also Brazilian connections.

Keywords: coolies; native people; workers

INTRODUÇÃO

Desejo neste artigo dar continuidade à “especial ênfase da historiografia brasileira em combinar história da escravidão e história do trabalho ‘livre’” (WEINSTEIN, 2017, p. 18). Esse realce da pesquisa histórica no Brasil tem mais de um ponto digno de nota. Enquanto historiadores do Atlântico Norte se perguntavam se não era hora de dar adeus à classe trabalhadora (no limite, aos próprios conceitos de classe social e luta de classes), os estudos sobre mundos do trabalho avançavam no Brasil tendo por impulso extraordinárias possibilidades, tanto de democracia política e social, quanto de pesquisa científica, numa sociedade que então reconstruía instituições com ímpeto proporcionado por movimentos populares em luta por direitos de cidadania e justiça social. Exatamente por isso, em réplica a seus colegas, Weinstein retrucou com outra pergunta: se não deviam também se perguntar aonde, embora bem longe deles, surgiam novas ideias sobre classe (WEINSTEIN, 2000, p. 53-59). Entre essas novas idéias, estava uma que com o passar do tempo evoluiu a partir do propósito de pensar “‘mundo do trabalho’ de uma maneira bem ampliada” e, portanto, incorporando “plenamente ‘trabalhadores’ de todo tipo” (WEINSTEIN, 2017, p. 18).

É neste debate que este artigo toma parte. Sua intervenção vai no sentido de perceber sujeitos nos mundos do trabalho que estão além de senzalas ou fábricas. Para tal, valendo-me de fontes referidas a três engenheiros (dois civis, da Bahia; um militar, de Mato Grosso), aqui serão abordados mundos do trabalho tanto na lavoura quanto no processo de consolidação do domínio do Estado brasileiro sobre o território que arrogava como seu, no caso, como será visto, o sertão do Brasil Central. De relance ou minuciosamente, coolies, retirantes, ou povos originários, são sujeitos de uma pesquisa que se pergunta sobre como foram avaliados, numa perspectiva a partir de cima, os prós e contras de uma mão-de-obra tão socialmente diversificada (e tão diferente do operariado fabril da Revolução Industrial). De 1870 a 1930, os termos dessa estimativa eram conjugados numa equação “liberal e racista” (conforme sintetizou Manuela C. da Cunha). O “discurso racial” era refúgio para a defesa das hierarquias sociais. Quer dizer, o racismo científico de uma República de bacharéis médicos, engenheiros e advogados era acalanto para a supremacia de classe de proprietários senhoriais.1

Na sua sanha de autopreservação, a elite branca brasileira debateu ou testou inúmeras experiências de botar os outros na condição de obrigados ao trabalho (em nome da livre iniciativa). Tais iniciativas se denominaram organização do trabalho livre. Em poucas palavras, a classe dominante desejava usufruir da força de trabalho do proletariado por meio do livre mercado, alugando e descartando homens e mulheres conforme suas necessidades particulares, tintas de verde-amarelo, como se fossem para o bem do país. Não só tento contribuir para reforçar a validade da pesquisa sobre o caráter transnacional de fenômenos que parecem locais, como também dou nitidez ao campo de atuação dos baianos, como por um lado se informavam sobre o caráter transnacional dos fenômenos que lhes diziam respeito, e como, por outro lado, atuavam dentro e fora da Bahia, defendendo seus interesses de classe na política.

Em 1905, o secretário da Agricultura da Bahia Miguel Calmon foi escolhido pela II Conferência Açucareira (ocorrida no Recife) para chefiar missão de estudos sobre a cultura da cana e outros produtos tropicais no Egito, Índia, Cingapura, Java e Sumatra. A viagem durou certamente quase todo o segundo semestre de 1905, acabando no início de 1906. Em apenas três dias desse périplo, o estrangeiro visitou plantações de fumo pertencentes a prósperos capitalistas holandeses, sitas nos arredores da cidade de Medan - Sumatra, Indonésia (BRANDI, 2015). Travou contato, nessas três visitas, com uma política de dominação que forjava o trabalho compulsório por meio do indentured labour (mão-de-obra livre alugada sob contrato). Ao mesmo tempo, agitava-se a propaganda ideológica do trabalho livre. Calmon estabeleceu relação entre o que presenciou e o que já pensava sobre o Brasil da virada do século XIX ao XX. Apesar de se certificar do êxito da lucratividade holandesa ser impossível sem os trabalhadores coolies, e, em acréscimo, embora estivesse seguro de serem os coolies mais fáceis de manipular do que “matéria inerte”, Calmon não mudou o seu ponto de vista sobre serem os coolies imprestáveis para solucionar os problemas de mão-de-obra da lavoura brasileira. Embora o viajante possa ter tido contato com um fenômeno de compleição madura e global - e que, ainda mais, marcaria a evolução do capitalismo no século XX (KEMPADOO, 2017, p. 48) -, ele percebia a desigualdade socioeconômica a partir de cima, de tal modo que não encontrou valia na imigração asiática, descartando-a até mesmo perante a rentável solução dos holandeses para o problema deles de mão-de-obra na lavoura asiática. Tal solução - Calmon não hesitou em escrever - era uma escravidão camuflada (de trabalho livre). Apesar de atiçar protestos na Europa, o baiano entendia o proveito tirado do disfarce e, sem carecer de pelejar, não botou reparo nas “negras cores” de escravidão que seu anfitrião pediu para ele não ver.

Vou me concentrar na análise e conexões que extraio do relato de viagem “Dos métodos de produção do fumo no Oriente”, publicado por Calmon em Fatos econômicos (1913a). A seguir, tendo por fonte dois álbuns fotográficos da coleção Calmon, guardados no Museu Histórico Nacional, vou em menor medida indicar como, na volta ao Brasil, proteger índios significava localizar - descobrir - trabalhadores nacionais. Sob sua liderança, esses grupos indígenas foram imobilizados em relações de exploração ou dependência, em fazendas, missões religiosas ou postos indigenistas. Descobertos, foram convertidos em brasileiros, isto é, trabalhadores. Brevemente, passarei por Teodoro Sampaio, a fim de evidenciar sua interpretação da mentalidade senhorial brasileira.

DOIS ENGENHEIROS BAIANOS

Em artigo sobre estratégias e alianças de um homem de cor no tabuleiro da Bahia, Wlamyra Albuquerque traz de sua pesquisa sobre o engenheiro Teodoro Sampaio duas fontes de longo alcance elucidativo. Em ambos os documentos por ela revelados, vê-se ator em movimento cujo norte, além da alforria de familiares escravizados, é preservar a liberdade. Sem remoer o moralismo dos heróis impolutos, Sampaio teceu alianças, por um lado, com a família do Recôncavo que escravizou sua própria família e, por outro lado, com a elite senhorial, em negócios e na política, dentro e fora da Bahia, na monarquia e na República. Segundo a autora, ele era experto na habilidade de empreender “leitura bem particular da cultura política que enredava a família senhorial, os cativos e seus agregados” (ALBUQUERQUE, 2015, p. 88). No delicado desmonte do cativeiro em Santo Amaro - burgo de poderosos proprietários de terras e de seres humanos -, o engenheiro nascido em engenho foi homem de ciência em outra travessia, a construção da República. Em ambos os cenários, ele queria resguardar a liberdade, abrindo e fortalecendo opções de vida perante uma classe senhorial mundialmente isolada no seu atávico escravismo e obsessiva, em segundo lugar, em dramatizar a não-indenização aos senhores, após 1888. Com cultivadas letras, Sampaio tanto reiterou “os seus vínculos com grandes proprietários de escravos”, quanto ajeitou seu trânsito nas rodas das “altas autoridades”, a exemplo de Pedro II e Rui Barbosa (ALBUQUERQUE, 2015, p. 97).

O paternalismo, sintetizou Cunha (2012, p. 93), foi um relacionamento entre senhores e subalternos “usado e explorado de forma radicalmente diferente” por ambos os lados. Enquanto convivem e lidam com seus desejos e impulsos, com diferenças e tensões, calculando incessantemente o que se passa, cada um dos dois grupos busca tirar proveito da desigual relação. Intérprete do que os senhores desejavam ver, o mui leal e ladino engenheiro escreveu manuscrito em 1906 sobre aspectos da sociedade baiana (mesmo ano da volta de Calmon). Como autor, a sua fala estava mais para porta-voz de uma classe dominante branca (embora fosse negro). “A Bahia hoje é uma sociedade em decadência”, solfejou o engenheiro (ALBUQUERQUE, 2015, p. 93). O “aspecto doentio de um povo de degenerados” era o saldo da aniquilação da “Bahia culta de outros tempos”, derribada pela “abolição”, que “desbaratou as fortunas” e matou “a sociabilidade e o refinamento”. Naquela polida e culta Santo Amaro, a “decadência da sociedade” começou em 13 de maio de 1888. Em esforço de avaliar os desafios colocados, foram indicadas as “novas exigências da vida”, tanto para senhores, quanto para libertos. Foi reconhecida a inaptidão dos primeiros - “acostumados como estavam de viver às custas do trabalho de outrem” - e indicada a “incapacidade” da população afrodescendente defronte ao “regime de liberdade”, resultado de sua ignorância e da “índole da raça”, causa de “preguiça e inatividade”.

São tais termos - (a) civilização fidalga alquebrada; (b) inaptidão dos de cima e incapacidade dos de baixo; (c) o aspecto doentio de um povo degenerado e (d) o temor ao sangue mal misturado - que transparecem no pensamento por escrito de Miguel Calmon. Concluído na Escola Politécnica em 1876, o bacharelado do menino nascido de ventre escravizado é anterior ao desse segundo baiano, Miguel, diplomado em 1900 na mesma instituição, mas nascido em doirado berço, com carreira assegurada no instante de vir à luz. Enquanto Teodoro teve de negociar alforrias, Calmon conjugava aquilo que, a partir de baixo, Sampaio conhecia bem: o poder de classe encarnado na artificial distinção de uma pretensa raça superior - dona do direito à honra, ao mérito e ao não-trabalho. A partir de cima, numa de suas primeiras experiências profissionais como engenheiro - em viagem pelo sertão da Bahia -, Teodoro Sampaio percebeu distintas experiências de trabalho. Como cientista, ele anotou que havia quem conseguisse contornar as relações de dependência. Mas havia também os que estavam obrigados a trabalhar para não morrer de fome, sede ou doença, como os retirantes da seca de 1877, atraídos para uma construção de estrada de ferro. Homens solteiros, casados ou pais de família aceitavam o recrutamento em troco de uma paga que, parte em alimentos, parte em generosidade de permitir o pouso, era entregue a familiares amontoados em barracões ou ajuntados debaixo da sombra. De aspecto repugnante e podre, o engenheiro se recusou a beber a água - grossa, turva e com sabor de urina - servida aos retirantes (SAMPAIO, 2002, p. 65, 72, 81, 142).

HÓSPEDE EM MEDAN

Tanto em Medan, onde se hospedou, quanto nas fazendas que excursionou no decorrer de três jornadas muito particulares, Calmon avistou trabalhadores braçais chamados de coolies. De origem indiana, chinesa ou do sudoeste asiático, os coolies eram trabalhadores resultantes da reinvenção do trabalho forçado após o fim da escravidão no império britânico em 1834. Foram maciçamente transportados para o Caribe, onde foram postos para trabalhar nas plantations. Em meados do XIX, o planeta passava pelo incremento do fenômeno da migração em massa, entre regiões, países ou continentes. Na esteira do desmonte do tráfico negreiro, o maciço deslocamento de trabalhadores, “sobretudo proveniente da Índia e da China”, abriu processo amplo e complexo que seria sucedido, entre outras experiências, pela “emigração eslava, judaica e italiana para as Américas, a partir de 1880” (HOBSBAWM, 1982, p. 216, 208; KNIGHT, 2011).2 O coolie era teoricamente um ser livre que recebia paga em dinheiro - salário - por seu trabalho, após ter acertado vender sua força de trabalho ao empregador, mediante acordo firmado em contrato por tempo determinado. Na prática, a livre contratação obrigava o coolie a uma sujeição na qual caía gradativamente. Longe de suas comunidades originais, viviam sem liberdade de ir e vir, e em situação de vulnerabilidade perante chefes e patrões. Imobilidade e vulnerabilidade, mais más condições de moradia e saúde, insalubridade e periculosidade, exploração e exaustão, abusos sexuais, ofensas físicas (castigos) e morais, multas ou penas, privação ou desrespeito de direitos, afora dívidas e obrigações, caracterizam sua experiência de trabalho livre fraudado. Os coolies com que Miguel Calmon se deparou eram homens e mulheres trabalhadores atraídos para uma relação de livre contratação da força de trabalho. Tinham sido, porém, recrutados para um trabalho no qual era difícil progredir materialmente, ou dele sair na hora aprazada, quando o contrato expirasse (KNIGHT, 1999).

Ao perceber os coolies em toda parte - logo saltavam aos olhos no primeiro momento em que o engenheiro punha o pé num logradouro público -, Calmon tem invariavelmente em conta a questão, para ele crucial, de entender como os holandeses conseguiam lucrar tanto e de maneira tão estável em seus domínios coloniais, ínfimos torrões de terra (em termos de tamanho). No avesso dessa questão sobre os ganhos da empreitada holandesa com a lavoura do fumo, estava a sua preocupação de homem de ciência com o estado de ruína da classe agrária brasileira, da qual o baiano era um polido fidalgo.

É bom dizer que esse lastimoso estado da classe agrária brasileira era muito bem calibrado - ou fantasiado - pelo seu notável “poder de dramatização das próprias perdas”; e que essa astuciosa habilidade “roubava a cena” de outros sujeitos (CHALHOUB, 2012, p. 77). Defendendo a lavoura até a náusea, o tirocínio dessa narrativa marca o pós-abolição ao apresentar o senhorio como vítima de calamidade eclodida no 13 de maio (FRAGA, 2006, p. 129). E sempre - sempre - desprezando a necessidade da indenização às escravizadas e aos escravizados. Foi munido dessa autoindulgência, acrescida de saber científico racista valorizado pela República, que Calmon constatou a fortuna dos holandeses em seus domínios coloniais asiáticos, em tudo dependentes dos coolies, razão do conforto e dignidade, quer das casas-grandes batavas, quer dos industriais na metrópole.

PRIMEIRA FAZENDA

Rasgados elogios foram tecidos já no primeiro dia. A qualidade das estradas, construídas pela iniciativa privada sem apoio estatal foi um deles. A caminho da primeira fazenda visitada, avistou “coolies sem conta”, voltando “do campo com os instrumentos de trabalho às costas, como que se retemperando, na amena frescura de sombra (…), das fadigas de dez horas de trabalho, sob calor canicular” (CALMON, 1913a, p. 61). Na fazenda, quando lhe mostraram amostras do fumo, o baiano maravilhou-se com os “espécimens de folhas”. Eram “soberbos”. Rapidamente, não discernia o “que mais admirar, se a cor clara uniforme, em algumas, de um pardo esverdeado (vaal), se a macieza e o acetinado do parênquima”. Sem sucesso, esforçou-se por flagrar defeitos nas etapas de secagem e fermentação. A uma certa altura das inspeções, se deparou com longa sala onde mais de cem “coolies dos dois sexos” triavam fumo. Terminada a escolha, que era feita com “presteza”, os feitores procediam a rigoroso exame das manocas, “a fim de verificar qualquer falta cometida pelos coolies”. As “fraudes”, quando encontradas, ele anotou, eram “severamente punidas”. Já aí lhe pareceu que conseguia captar a “razão de ser dos fabulosos lucros”. Contudo, além da fertilidade do solo, e da inigualável organização dos holandeses, especulou, ainda curioso, que “devia haver algum outro fator, que fosse, por assim dizer, a determinante” (CALMON, 1913a, p. 73-76). Seu anfitrião deixou-o saber que havia ali cerca de mil empregados. Sem incluir “alguns a jornal”, estavam divididos em etnias: 600 chins, 200 jaus, 50 kalingas... O saldo restante de 150, nas contas dessa divisão, era de “mulheres”. “Inquirindo acerca do chim, como trabalhador”, lhe foi replicado que possuía “qualidades raras”... Para o chim - o trabalhador vindo da China - não havia “dia de descanso”; labutava “cotidianamente desde as 6 da manhã até as 6 da tarde, apenas com ligeira pausa ao meio-dia”; “de uma resistência e sobriedade inigualáveis, paciente e submisso”, se desincumbia das tarefas “com perfeição” (CALMON, 1913a, p. 73-78). Nada se fala sobre como o serviço se transmudava em imperfeito, quando magoavam o beneficiamento da planta.

Parece óbvio que trabalhar dez horas por dia na lavoura não combina com sobriedade ou perfeição; e talvez nem mesmo um monge do templo Shaolin suportasse tanta exploração com tanta elevação. O chim de fato não era um ser sublime; era trivial em sua numerosa multidão e pouco valor. Muitos eram os que se demoravam nas fazendas, foi observado. Eram os “perdulários”, pois, sem dinheiro para voltar para casa (por ser despesa antieconômica, ninguém pagaria a passagem, para início de conversa) ou endividados, ficavam nas plantações depois do término do contrato. Ao receberem “os saldos das respectivas contas, os desbaratam sem custo”, entendeu Calmon. “Comumente”, o coolie recebia de 8 a 12 dólares “por mês e acumula, em mão do administrador, o restante dos salários”. Enquanto recebiam “saldos” restantes - tendo concordado em contrato ver seus salários acumulados nas mãos dos chefes -, os coolies consumiam (com débitos) os mesmos salários retidos (e matematicamente controlados) pelos administradores. Sem causar surpresa à parte contratante, o endividamento implicava pagar menos pelo serviço recebido, cobrando caro pelas mercadorias fornecidas. De bolsos vazios, os endividados freqüentemente se demoravam, só vindo “a pagar noutra safra” - e não a receber (CALMON, 1913a, p. 79). Em síntese, talvez trabalhassem para quitar dívidas, não para embolsar salários, e é por isso que essa livre contratação era uma maneira de aprisionar (SANTOS, 2017; SILVA, 2018).

Havia outro “flagelo que acossa essa pobre gente”, se condói Miguel (CALMON, 1913a, p. 80). Nas tascas de Medan, um chim podia em instantes perder “o ganhado em anos de fadiga!”, o que permite pensar que o pagamento em suas mãos era mesmo baixo. Quando se deparou com uma “casa de jogo”, ele pôs a dó de lado e desgostou do “espetáculo”:

parte ao ar livre, parte sob uma varanda, acogulava-se um ror de figuras seminuas, em que abundavam os tipos mais estranhos e grotescos, premendo-se em torno de duas bancas, ou acocoradas, umas sobre outras, à beira de um pano verde, estendido no chão (CALMON, 1913a, p. 80).

Os jogos, ele assuntou, “variavam conforme os banqueiros”, sugestivo termo designativo daqueles que também lucravam com os tostões furados de quem ganhava pouco. Nessa situação - “ver os esgares e posições deste pululamento humano; a ânsia dos desgraçados, na expectativa do resultado; o desespero dos que, tristemente, se retiravam dilapidados” -, se desfizeram as raras qualidades de “povo por excelência fleumático” (CALMON, 1913a, p. 80).

Ainda a respeito dessa jornada, uma anotação revela não só um fator que ajudava a explicar o êxito dos holandeses, mas também os termos de Calmon para abordar a situação. Os gerentes europeus transmitiam ordens aos coolies pelos chefes tandil (no caso dos chineses) e mandoer (no caso dos javaneses), sendo ambos “responsáveis pela boa marcha de todo o serviço no campo”. Seu “absoluto predomínio” sobre sua respectiva turma étnica era a “razão dos felizes resultados dessa apertada entrosagem”. Conclui-se então que “o manejo dos cules é mais fácil que o da matéria inerte” (CALMON, 1913a, p. 83).

NEGRAS CORES DE ESCRAVIDÃO

Pela manhã do segundo dia, “já era grande o bulício nas ruas”. Ao transitar na rua, uma “mísera Kalinga” lhe apareceu. Qual sonâmbula, “seminua, de narículas e lábios deformados por grossos pingentes”, apanhava em incessante vai-e-vem níveas florinhas “para adorno de seus feitiços”. Era uma bruxa, pensou. E quis distância. No trajeto, ao sondar as possibilidades sobre eventual contratação de especialista em cultura e beneficiamento do fumo, pelo governo da Bahia, Calmon quis vizinhança. Contudo seu anfitrião escusou-se. Nada “que pudesse facilitar aos concorrentes estrangeiros meios de vitória” seria franqueado (CALMON, 1913a, p. 92).

A empresa visitada empregava cerca de 850 coolies afora grande número de “trabalhadores livres”. Nessa contagem - onde coolies não entram como trabalhadores livres - havia “raças”: 486 chins, 329 jáus e 33 kalingas. Disseram-lhe, em segundo lugar, que sem os chins “não poderia subsistir a cultura do fumo em Deli”. “A questão desses coolies”, anotou Miguel, “constitui, realmente, uma das mais sérias preocupações para o holandês”. Ele nessa hora registrou que seu anfitrião já havia “tocado no assunto”, com vistas a preparar-lhe o “espírito”, de modo a não enxergar “sombra de escravidão no regime a que estão sujeitos os trabalhadores”. No entanto, apesar de “disfarçada”, não deixava a escravidão de existir, raciocinou. O fato, ele adendou, “levantava clamores entre os liberais da metrópole, que pintam em negras cores a situação”. Para o baiano, os holandeses agirem desse jeito na sua colônia não era exatamente um problema, pois era isso o que burgueses civilizados faziam com o proletariado no além-mar colonial. “A organização que ali prevalece para os serviços agrícolas, baseia-se, em grande parte, nesse regime de meia escravidão”, sombra cujo “desaparecimento” acarretaria “profunda revolução na indústria do fumo” (CALMON, 1913a, p. 104). Quando a extinção desse regime de escravatura ocorresse, Calmon exclamaria a sua grita liberal. Referência ao abalo da classe agrária no Brasil, o 13 de maio de 1888 reaparece como drástica mudança que requeria aviso e combinação, a exemplo da indenização aos senhores, assim como disposições transitórias garantidoras da tutela desses mesmos senhores sobre os libertos, com quem diretamente queriam ver organizado o trabalho livre, alugando a força de trabalho.

A atitude dos trabalhadores, no Brasil, de não aderirem de corpo e alma ao regime proposto pelos fazendeiros, é um facho de luz sobre a sombra de escravatura que ex-senhores de escravos queriam projetar nas relações capital-trabalho, quando tentavam atrair mão-de-obra para uma relação de dependência. Como Ramos (2018, p. 30) afirmou, “as faces do trabalho livre almejado por fazendeiros e políticos brasileiros” eram parecidas com a exploração dos coolies, nas Índias Britânicas, a saber, liberdade contratual para oferecer baixos salários e alojamento, vestimenta e alimentação de reduzido custo. Porém, com sua liberdade enfim reconhecida, o proletariado podia exercer com maior desenvoltura a mobilidade que já praticava antes mesmo da abolição do cativeiro. Sinal das dificuldades em forçar proletários livres ao trabalho, a queixa patronal quanto à desorganização do trabalho era a outra face da mobilidade operária.3 Obrigar seres livres ao trabalho dependente (CUNHA, 2012, p. 126) era o invejável efeito da organização do trabalho obtido nas plantações asiáticas. Tal qual as palavras (em brancas cores) de Miguel Calmon, forçar ao regime de meia escravidão significava aprisionar os trabalhadores, quer por meio da livre contratação, quer impedindo o seu direito à mobilidade, detendo-os nas fazendas.

Com os coolies, até as leis trabalhistas eram brutas. Jaus e chins conheciam apenas “a lei que o chefe da tribo lhes impõe”, diretiva “sempre” calibrada conforme os “desejos do administrador” holandês. “A justiça é muito sumária para os coolies que claudicam”, e, como foi dito, essa era uma relação sintetizada para fraudá-los, aumentando a exploração. Aqueles que não só claudicavam, mas também recalcitravam, eram “julgados em Medan com poucas formalidades e condenados a multa ou trabalhos públicos, conforme o delito”. Se multas dissipavam os escassos salários, trabalhos públicos, na forma do engajamento em obras (naquelas bem cuidadas estradas da iniciativa privada, talvez), beneficiavam a empresa privada. Castigo público era corretivo visto e falado, para que coolie nenhum incorresse em delito. Por fim, se “o patrão” verificasse que “o trabalhador” era “incapaz para o serviço”, o contrato era rescindido (CALMON, 1913a, p. 106). O empregador tinha aquilo que o proletário não possuía, isto é, podia romper com a relação quando ajuizasse que a outra parte não prestava.

Em estado de relaxamento ao lado do viajante - talvez porque o baiano não tenha se horrorizado com a disfarçada escravidão em vigor (Calmon se enojou mesmo foi com a tasca de jogo) -, seu informante contou episódio comprovador de “não haver motivo de tanta bulha” a propósito dos coolies, os quais, no seu modo de ver, “já gozavam assaz de garantias”. Narrou então o caso do braçal que, tendo recorrido à autoridade (por ter o patrão lhe dado uma bofetada), em seguida recusou-se a embolsar a sentenciada “satisfação” de cem florins. Na entrega da quantia, o queixoso alegou “não lhe pertencer”; só ficaria com ela sob a condição de devolvê-la ao seu agressor. Desconfiado, Calmon entendeu que o chim tinha assim procedido “por injunção do tandil”, seu feitor. Não raciocinava ele como seu informante, o qual via “estado rudimentar de inteligência do coolie” no seu ato de desistir do dinheiro. Calmon também anotou que os funcionários holandeses encarregados das reclamações trazidas pelos trabalhadores asiáticos costumavam ser condescendentes com seus conterrâneos implicados em queixas e denúncias (CALMON, 1913a, p. 107). Diante de inferiores, os seres superiores tinham em comum a sua supremacia racial; e isso fica claro pela agudez do texto do baiano, entendedor da cumplicidade existente entre os holandeses.

Na continuação, as despedidas após o almoço. Aí então o visitante assombrou-se com a “pujança” do horto da borracha. Acreditou ter contido os receios que lhe sobressaltaram. Foi uma polidez estratégica, pois, para ele, ali se cultivava um “concorrente invencível na produção da goma elástica” (CALMON, 1913a, p. 111). De fato, após seu regresso, a preponderância brasileira no comércio mundial da borracha foi desafiada (e vencida) pelas plantações asiáticas, para onde foram levadas - ou sementes, ou mudas - da árvore nativa da Amazônia (SANTOS, 1980; WEINSTEIN, 1993). Perto do fim do dia, ao divisar “vastos pavilhões” cobertos de palha erguidos do chão por espeques, onde os coolies eram alojados, janelas de alçapão permitiram devassar “o interior dos míseros lares”. Sem hesitar, vaticinou: “vivem aí os trabalhadores de cada raça, um tanto promiscuamente, e só a proximidade do chefe (tandil ou mandur) lhes impõe respeito e disciplina” (CALMON, 1913a, p. 109). De novo, sua perspectiva foi a do senhorio escravista, que via amoralidade na senzala brasileira dos afrodescendentes escravizados, racializava relações de trabalho, e não tomava nota da imoralidade da escravidão. Se os barracões eram um para cada “raça”, isso enfim (talvez) explique porque as mulheres coolies foram contadas ao lado de chins, jaus e kalingas (talvez porque fossem alojadas em separado dos homens).

O BULÍCIO DA “CULISADA”

Logo cedo no terceiro dia, Miguel já se encontrava fora de seu hotel, em logradouro público. Na companhia do médico sergipano Theodureto Nascimento - ambos tinham em comum os estudos sobre o alcoolismo -, o baiano logo se viu assediado “pelo burburinho da culisada” (o autor pede perdão pelo “hiper-neologismo”), o bulício das ruas. “Nas estações, era sempre curioso o movimento de coolies”, notou. Distintos em “raças” e trajes “variadíssimos”; baços chins raspavam seus “cascos”, mas deixavam “longos rabichos, terminados em tranças”, “esmeradamente”. Malaios e jaus “com sarongs multicolores e turbantes meio entrouchados” circulavam entre kalingas “quase desvestidos, de largas testas lisas, toucados de negros cabelos soltos”, vestindo batas de “aspecto selvagem”. Entre as mulheres havias as “envoltas em cabajas, com as bocas abrasadas de mascar betel” e ainda mais outras: “de orelhas e lábios perfurados, trazendo pendentes grossas argolas de metal polido” (CALMON, 1913a, p. 120-121).

Na continuação, despido do traje de etnógrafo, Calmon escreveu que os coolies eram “multidão heterogênea e bulhenta”, ferindo o “espírito do estrangeiro não habituado aos usos insólitos e ao pululamento dessa gente semi-bárbara”. “Felizmente”, respirou aliviado, subiu em trens “bem-dispostos”, haja vista serem divididos em classes. Em vagão apropriado, Calmon transportou-se “completamente insulado de tão desagradável companhia”. Tal como se desejava no tocante à regulação dos espaços urbanos então ditos “modernos”, raça e classe embarcavam juntas. Após chegar na plantação do terceiro dia, o belo e civilizado estrangeiro botou repetido reparo nas “qualidades admiráveis” dos braçais, que as tinham apenas enquanto trabalhavam (não houve elogios quando esteve defronte aos trabalhadores em sua liberdade, no bulício das ruas). Cerca de cem foram logo percebidos lavrando o solo depois de desbravado o terreno. Os jaus estavam de tal modo vergados sobre a terra “que parecia insustentável a posição”. Assim ficavam horas e horas sem descanso, retrucou Marinus (o informante da vez). Sem preferir outra posição, os coolies lidavam “com perfeição” com o que lhes era distribuído (CALMON, 1913a, p. 126).

Desagradáveis na estação, aloprados nas tasca, inexcedíveis em sobriedade e perfeição no chão da lavoura (e invisíveis no serviço doméstico, quer das acolhedoras casas-grandes, quer do hotel), os coolies estavam no lugar. Havia coolies nas florestas onde antes viviam elefantes. Derrubada a mata para dar passagem à agricultura, removida a madeira a ser reservada para construções, o terreno foi confiado a chins ou jaus. Separaram troncos, lenha, e mato, montaram medas e as queimaram. E talaram depois os “derradeiros vestígios” para as sucessivas lavras. “O que espanta”, foi admitido, “é a quantidade de obra acabada” com rapidez. Sem apelar à inovação tecnológica, as relações de trabalho e “a abundância de braços” eram fatores para o êxito em “metamorfosear de pronto e por completo” mata virgem e fechada em terreno amanhado para o plantio (CALMON, 1913a, p. 126).

Na casa de fermentação do fumo, foi retomada a conversa sobre “defeitos e qualidades peculiares aos trabalhadores”, vezeiramente classificados segundo “raças”. Sendo confirmado o bom juízo feito sobre chins e jaus, deu-se a conhecer as desvantagens dos malaios. Esses últimos eram os “piores”. Por estarem no local desde a derrubada das árvores gigantescas, angariaram “prerrogativas” de assumir a primazia do extrativismo, o que causava constantes “distúrbios”. Não havia remédio para o seu indefectível costume de não encontrar prazer “senão na vagabundagem” (CALMON, 1913a, p. 130). Como um canto étnico, o extrativismo controlado pelos malaios talvez lhes desse não só dieta mais rica e saudável, mas também fosse meio de independência e livre arbítrio, exatamente - como já foi dito - o contrário do que a política capitalista do trabalho livre almejava. A possibilidade de extrair alimentos endógenos do local era, com certeza, um contraste com a dieta de arroz à disposição dos coolies em fazendas cujos recursos naturais já estivessem em baixa. De modo indiciário, em queixas sobre vagabundagem, é possível perceber a presença dos de baixo em sua relação com os de cima. Também a matéria inerte, como se sabe, possui agência. Longe de uma organização com endereço e finanças, líderes e sócios publicamente e ciosamente registrados (em arquivo próprio ou na polícia), a matéria prima dessa coisa era sua invisibilidade e anonimato, dificultando represálias aos seus costumes em comum. Invisibilidade e anonimato eram fundamentais para sabotar a produção ou garantir a mobilidade. Nas informações de Calmon, enquanto percebo a contrariedade patronal, quase invisível é a ação dos trabalhadores. Essa falta de detalhes é certamente efeito da maneira peculiar dos trabalhadores agirem, sendo, paralelamente, reflexo dos juízos de valor de quem fez o seu registro.4

PROFILAXIA OU MIXÓRDIA

Noutro escrito (sobre heveicultura), Miguel Calmon versa sobre as medidas que buscou tomar a fim de encorajar a defesa e o progresso, no Brasil, do cultivo dos cauchos, árvore da goma elástica. Para um homem de ciência como ele, para quem a “causa da lavoura” era “a mais nacional de todas”, o problema da mão-de-obra - a “súbita transformação do trabalho agrícola, com a libertação dos escravos” - era uma variável crucial (CALMON, 1913b, p. 261). Logo, não havia sombra de dúvida de “um dos principais fatores do desenvolvimento rápido das plantações asiáticas” consistir na “abundância e barateza” dos trabalhadores, em “flagrante contraste com a carestia da mão-de-obra” no Brasil. Na Amazônia, onde brotava a silvícola Hevea brasiliensis (seringueira), “a falta de mão-de-obra abundante e barata”, assegurou, “tem sido, e ainda é, um dos maiores estorvos para qualquer empresa agrícola” (CALMON, 1913c, p. 403).5 Esse estorvo, ele pensava, só se comparava à agonia da perda da supremacia racial, encosto da superioridade de classe.

O engenheiro da Bahia aponta como “primeiro dever de todo brasileiro” envidar “esforços” para “a nossa raça” (a raça dele, de Miguel, dos Calmon) não se expor à derrocada de “suas qualidades viris”. Achava-se ele “bem longe da pátria, entre povos de costumes estranhos” quando o problema da preservação da raça - e, logo, da posição senhorial - lhe ocorreu em termos históricos, comparativos e na longa duração dos séculos (XVII-XX). Tinham sido os varonis lusitanos fundadores do Brasil quem havia conseguido expulsar os holandeses, impedindo-os de se estabelecerem na Bahia e Pernambuco. Na viagem à Ásia, perante “uma civilização de amoucos”, indagou-se: “haverá, efetivamente, raças taradas, às quais não seja lícito aspirar o gozo da liberdade, ou serão esses povos vítimas dos erros e da imprevidência dos governos?”. “Cedo”, se convenceu “de que a última razão bastava para explicar-lhes todas as desgraças”. A despeito de seus brios guerreiros, os javaneses no início do século XX nada mais eram do que “seres servis”, de hombridade perdida. Sua “única ambição” se resumia “em lisonjear os chefes a que estão sujeitos” (CALMON, 1913d, p. 276).

Vista de cima - mas mais conhecida na História Social como a arte de amansar senhores -,6 a sabujice dos coolies talvez só fosse comparável à sua fértil capacidade de multiplicação, causa do incontido incômodo com a sua pululante “proliferação”. E, não por acaso, o baiano, quando os viu agrupados, desgostou do bulício, quis distância da kalinga e da gente “semibárbara” perambulante nas estações ferroviárias. Ansioso, entrou em carro - exclusivo vagão ferroviário - onde raça e classe coincidiam. Perdidos os escravos, sem indenização, apegados à imprevidência e à rotina de seus ancestrais, os senhores, no quadro do pós-abolição das elites, viviam quadro desalentador: propriedades em ruínas, sem método, sem vontade ou arrojo, de autoridade doente. Tinham de garantir a sua autopreservação racial para conservar a palavra senhor (ALBUQUERQUE, 2009, p. 113). Não podiam se perder de si mesmos.

Nesse cálculo de Calmon quanto ao caráter prejudicial da queda das qualidades viris de sua raça - de sua classe -, transparece arrefecimento na voracidade sexual do homem branco. Nova onda de mestiçagem seria vetor de perda de condição racial, o que era necessário para a hierarquia entre as classes. Ante essa possibilidade, poderia diminuir a nitidez nas distinções sociais, atingindo a coincidência entre supremacia racial e supremacia de classe. Assim pensar em “substituir” negros por asiáticos - sem certeza de vantagem na hierarquia racial - não devia ser mais do que uma cogitação sem efeitos concretos. Exposto à presença perturbadora de homens e mulheres subalternizados, numa relação tensa e conflituosa, vivida anos a fio, geração após geração, Calmon exprimia estarem os senhores sem aquele vigor de antanho. Mostravam-se indispostos a viverem novo comistão racial. Mesmo se ficassem apartados, temiam a capacidade de proliferação populacional dos asiáticos. E, para piorar, perdiam a primazia mundial da lavoura da borracha para os senhores da lavoura asiática.

ALTO TEOR DE ALBUMINA

Ao final do século XIX, a lavoura brasileira estava derribada e a economia parecia estar em ponto parelho ao século XVIII inglês. A agricultura se arruinava; viam-se os fazendeiros desmantelados. Manufatureiros e artífices se endividavam. Ninguém que desse serviço aos pobres podia acreditar em acordos fechados com os trabalhadores (perigosos, traiçoeiros, vagabundos). Pois não havia lei nem poder que os obrigasse a desempenhar, honestamente, as tarefas para as quais eram recrutados. Esse era o azedo parecer de Defoe, citado por E.P. Thompson (1998, p. 41, p. 85).

O século XVIII inglês, agora na ótica do próprio Thompson (1998, p. 42), “testemunhou uma mudança qualitativa nas relações de trabalho”. Os trabalhadores passaram a ter mais liberdade diante do poder disciplinar, obtiveram mais margem de manobra entre se alugar a um patrão ou passar o tempo usufruindo seus costumes em comum. E também haviam conseguido se livrar de posições de dependência na hora de viver a sua própria vida, conquistas nada ao gosto do poder disciplinar capitalista que os espreitava, no seu panóptico fabril. Vistos de cima, sobressaía a queixa de sua indisciplina, a irregularidade de seu engajamento, a falta de dependência e sua insubordinação. Quando avaliavam que a escassez do pão era ultrajante, amotinavam-se. Ao perder, na década de 1790, sua “hegemonia cultural autoconfiante”, a fidalguia terra tenente sentiu que “o mundo não parecia afinal limitado em todos os pontos pelas suas regras, nem vigiado pelo seu poder” (THOMPSON, 1998, p. 85). “Libertos do senhor da casa-grande”, subalternos não “sujeitos ao olhar disciplinar do capitão de fábrica”, escreveu recentemente Rediker (2010, p. 17), “vagavam (…) sem senhor”.

Quase nada disso se acomoda na descrição das plantações asiáticas, quer sobre os patrões, quer sobre os trabalhadores. Os ganhos patronais eram invejáveis e não correspondiam a um surto ou a uma fase temporária de fertilidade do solo, mas sim a um padrão de lucratividade e de expansão agrícolas. As famílias dos proprietários embeveceram os olhos do baiano, que, muito à vontade, saboreou o máximo de fidalguia possível, momentos de encantadoras palestras, comes e bebes. E fumo. Tudo servido por alguém, serviçal homem ou mulher, desprezível na sua faina de agradar ou não ser visível. Perceptivo, Calmon pode ter notado os arranjos íntimos, talvez os sexuais, talvez os afetivos, criadores de categorias coloniais demarcadoras de domínio e subordinação, tal como analisado por Stoler (2010).

Quanto aos trabalhadores de fato anotados por Calmon, sua vulnerabilidade (distância da terra natal, sua pobreza) e sua imobilização nas fazendas, de onde não podiam sair a não ser quando autorizados, apontam para seu estado de dependência e sujeição. Os coolies pareciam ter sido envenenados numa relação praticada maliciosamente, visando o seu aprisionamento progressivo. Talvez a sua liberdade começasse a ser fraudada no próprio fechamento do livre acordo entre as partes capital e trabalho.7 E quem sabe depois pensassem que não era para ter botado fé nos acordos fechados com eles, os patrões.

Se só na roça (ou nos barracões de beneficiamento das folhas de fumo) se puseram em relevo as qualidades dos coolies, o relato do engenheiro baiano mesmo assim pincela em cores vivas os traços de sua presença. De modo quiçá sedutor, banhavam-se deleitosamente e sem cerimônia no rio, cena avistada a caminho da primeira plantação visitada. Ainda nesse caminho, foram também avistados os braçais, de regresso do serviço, após dez horas de sol canicular. O esgotamento físico era retemperado à sombra de majestosas árvores. No costume das apostas a dinheiro, a fissura e esgares dos jogadores, conquanto grotescos e estranhos, quebraram aquela imagem fleugmática de foco e serenidade imperturbáveis (o semblante esperado num “oriental”, por um “ocidental”). A bruxa Kalinga poderia jogar feitiços sobre ele. Rapida mente a evitou; sem deixar de fazer o registro dessa sua esquiva, no seu científico relato. Ao deixar para trás a plebe buliçosa da estação ferroviária, que Calmon se esforçou para registrar com objetividade etnográfica, foi enfim confirmado no seu vagão de primeira classe e primeira raça. Na última fazenda visitada, ele ouviu a queixa sobre os malaios, que não encontravam prazer algum a não ser na sua licenciosidade, prática quiçá adotada para dominar a caça e a coleta, o que lhes daria uma dieta mais rica, diminuindo a dependência, motivo pelo qual a floresta era um canto étnico malaio. Nesta mesma plantação, o viajante se fixou num sino, em seguida chamado de tambor, medonho roncador. Num primeiro momento, servia apenas para marcar o tempo, o de trabalho. Nas linhas imediatamente contínuas do texto, o som lúgubre do tambor, especificamente de noite, voa em todas as direções. Lhe foi dito que podia servir de meio de comunicação aos indígenas, o que pode ter deixado Calmon (1913a, p. 61, p. 132) ainda mais intrigado. Era comum os subalternos, mesmo proibidos ou vigiados, conseguirem se comunicar e trocar recados, segredos. As redes invisíveis de anonimato e segredo existiam e funcionavam. Os senhores sabiam disso. E como sabiam.

Além do esnobismo - ou do autocontrole quanto ao que redigia -, a ausência dos trabalhadores (como um sujeito em luta), no texto do viajante, pode ser reflexo dessa política de invisibilidade, da parte de quem lucrava algo quando não se fazia notar. Sem ser visto nem se dar a ver, o trabalho doméstico servia o senhorio, no conforto do hotel, na hospedagem da casa-grande das fazendas. A sabujice da onipresente culisada talvez pudesse dissimular o ponto de vista particular dos trabalhadores sobre a dependência: podia ser a emulação de uma imagem na qual outras possibilidades eram disfarçadas. Ou abafadas pelo burburinho e corpos, cedo da manhã, nos logradouros movimentados. Sua subserviência podia estar em todos os lugares e em lugar nenhum, assim como, em lugar nenhum, o seu livre arbítrio foi discernido, embora em diversos lugares ele exista, para ser percebido, em seu relato. Tanto eram fraudados pelos patrões quanto fraudavam as folhas de fumo, por exemplo.

À medida em que prendia a atenção para seus “exóticos” costumes, o bulício da “culisada” também repelia os civilizados, enojados ou receosos com o vai-vem de sua “inferioridade” racial. No eito, passavam horas em posições difíceis de imaginar ou repetir por alguns momentos. O que dizer então de lidar - suor, destreza e força - com a terra sob o sol, dez horas por dia. Suas mãos ágeis e seu poder de concentração eram fundamentais ao processo de trabalho pelo qual o fumo era beneficiado, deixando de ser verde folha para ser uma corda trançada e dura, escura, ungüenta e cheirosa, antes diligentemente cultivada, colhida e sortida, seca e fermentada. Mesmo submetidos a forte poder disciplinar, ludibriavam os ditames dos supervisores e eram por isso punidos, indício de tensão no dia-a-dia (sabotagem) do processo produtivo. As condições para darem a produção exigida tinham de ser pesadas também sob suas vistas. Ainda que a vigilância se interessasse apenas por sua capacidade de estragar o fumo, os trabalhadores também detalhavam os termos do seu acordo e cooperação porque eram eles e elas quem beneficiava o tabaco, quando aceitavam dar a produção.

RAÇA, CLASSE E NAÇÃO

Se definir os grupos sociais em termos raciais já era parte da luta de classes, instituindo quem dominava e quem era subalterno, a preferência pela imigração européia como substituidora dos negros na lavoura apontava para o norte estratégico do projeto de construção da nacionalidade brasileira. Para onde e com quem a República poderia ir se abandonasse uma elite tão ladina quanto saliente? Quer hierarquia e ordem pública, quer progresso e ciência, já estavam alojados nos interesses e planos das classes dominantes, muito antes de 1889. Tendo engavetado a matéria da indenização aos escravocratas, a República não lhes faltou noutros quesitos. Os senhores já haviam perdido a disputa pela hora de acabar com o cativeiro, encerrado, não só surpreendentemente, mas de modo prematuro (isso na perspectiva deles). Igualmente, perderam no quesito compensação, porque não foram indenizados. Ficaram também sem o “aprendizado”, tempo durante o qual o liberto, pensavam eles, aprenderia a lidar com o mundo do trabalho livre.

Porém, conseguiram que sua ideologia sobre a inferioridade racial dos povos originários e dos negros não se acabasse com a abolição e durasse como tradição, legado inspirador para as gerações seguintes. Em segundo lugar, o mundo do trabalho livre se resumia, para os senhores, a livre contratar proletários e obrigá-los ao trabalho, impedindo pela força do contrato e por outros constrangimentos (leis, fiscalização, vigilância, punições) que os trabalhadores escapassem da relação livremente contraída. Apenas os patrões teriam real poder para sair da relação, tanto provisoriamente, quanto definitivamente. Seus planos de alugar e descartar a força de trabalho, sem obrigações paternalistas ou direitos trabalhistas, permanecem vivos. Por mais díspares que tais idéias possam ser - quer a “indenização” da “propriedade” “confiscada” (sem mencionar a liberdade roubada a homens e mulheres em cativeiro), quer o drama da lavoura surpreendida pela abolição -, a mais nacional de todas as causas é vítima a ser socorrida e amparada constantemente, inclusive com armas de fogo. E o seu racismo científico, que é anterior à República, nutria não só a ânsia por imigrantes brancos mas também a condenação do trabalhador nacional, muito pouco branco e por isso mesmo acusado de vadiagem ou inaptidão para a ordem competitiva do mercado livre.

No regresso da Ásia ao Brasil, Miguel Calmon foi distinguido em 1906 com convite do então recém-eleito presidente, o mineiro Afonso Pena, para assumir o Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas. Houve recursos para novas viagens, desta vez a Paris, onde no bulevar dos Italianos foi instalada a Mission Brésilienne de Propagande, agência de publicidade no mundo dito civilizado. O novo ministro também promoveu a simbiose das linhas ferroviárias e telégrafo nacional, ligando os atuais territórios do Mato Grosso do Sul, da fronteira com a Bolívia, do Mato Grosso, até Rondônia. Em 1907 Calmon entregou o comando de parte dessa empreitada a Cândido Rondon ao nomeá-lo engenheiro- chefe da Comissão Construtora de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas.

Se o ministro serviu ao presidente Afonso Pena até sua morte em 1909, Rondon sobreviveu às eleições de 1910, que afastaram do poder o grupo baiano de Calmon, chefiado por Rui Barbosa. Positivista, militar, mestiço, desembaraçado nos caminhos do sertão à capital litorânea, Rondon era homem de carreira ascendente. Em 1911, foi feito diretor do então recém-criado Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). A transparência do nome dessa primeira agência republicana da política indigenista brasileira é indicativa de seu objetivo: proteger índios e localizar trabalhadores nacionais (SOUZA LIMA, 1995). Assim como aconteceu com a “descoberta” do Brasil, localizar trabalhadores nacionais era um ato de descobrir algo onde esse algo não existia.

Desse jeito, homens e mulheres - ditos indígenas - se tornaram alvo da mira racialista e classista da civilização brasileira. Nos seus costumes de tecelagem e olaria, caça e pesca, podiam até ser admiráveis em sua engenhosidade, mas por outro lado, sem autoridade tutelar, não podiam vaguear ao léu, perambulando em bandos livres e nus, seres habitantes de vales, rios e serras. Proteger índios foi de fato uma maneira de localizar - ou forjar - trabalhadores, rebatizados de nacionais, assim que sua conversão em raça e classe foi alinhada ao verde- amarelo. Na prática do encontro da República com os donos originais de cobiçadas terras, os povos nativos deviam ser atraídos e, como foi dito, convertidos a uma nação imaginada, vezeira na sua contínua carência de raças obrigadas ao trabalho. Protegendo-os, era possível saber onde estavam os braços que faltavam ao progresso. Localizá-los era locá-los para o dispor de outrem. De acordo com Freire (2009, p. 78), os Kaingang em São Paulo estão entre os primeiros povos a ser atraídos pela política indigenista. Com terras vizinhas à passagem da estrada de ferro Noroeste, à medida que os Kaingang se apegavam ao posto do SPILTN, mais “eram deslocados de suas terras originais por fazendeiros”. Para piorar, o caráter pacífico de seu contato com os funcionários degringolou em doenças contagiosas e óbitos, criando dependência para com a assistência do posto, que dizia estar ali a seu serviço, em sua defesa.8

Imigração por imigração (a negra foi impedida depois de 1888; a asiática foi contida a pequenas quantidades; a européia foi promovida), o Brasil continuamente assediou os povos originários, querendo suas terras, querendo seus corpos (se estivessem sadios). “À medida que crescia a demanda por escravos”, escreveu Monteiro, “a violência torna-se um instrumento cada vez mais importante na aquisição de cativos no sertão” (1994, p. 65). Logo, o que sucedia no Brasil Central no início do século XX era o devir de um processo desfiado de tempos anteriores, noutras regiões. Parafraseando Scott (2018, p. 2), em sociedade - legalmente ou ilegalmente - dependente da “falta de liberdade da força de trabalho”, trabalhadores chamados “‘livres’” são mais “anomalia” do que “regra”. Assim como a ferrovia britânica na Bahia da década de 1860 não fazia distinção se os trabalhadores eram livres ou escravizados (SOUZA, 2015, p. 75-112), a ferrovia construída no Brasil central não diferenciava se eram nacionais ou cativos, ou melhor, nativos. Aliás, quanto mais estudamos o trabalho livre, mais essa anomalia parece pautada pelo simultâneo recurso à negação de liberdade ao trabalho.

Reconhecer homens e mulheres - coolies, ou escravizados, ou indígenas - como trabalhadores implica deslocar o operariado industrial assalariado como elemento único ou central. É também pensar a História do capitalismo como um fenômeno que recorre, de diversos modos, a uma mão-de-obra variada em termos de etnia, gênero, nacionalidade e subalternidade.9 Pesquisando sujeitos ocultados pela História presidida por uma ideologia da homogeneidade nacional, encontrei os Bororo em dois álbuns fotográficos da coleção Calmon (um sobre a construção de linhas telegráficas sob o comando de Rondon, outro sobre missionários salesianos).10 Cercados por bois e balas, e buscados por evangelhos de batina ou de farda, os Bororo figuram em luxuosos artefatos produzidos para celebrar o Brasil republicano sob a liderança do baiano e viajado engenheiro Miguel Calmon.

Não só pela força econômica e política dos fazendeiros, mas também como alvo da catequese católica e positivista (ambas republicanas), os Bororo nos dois álbuns eram objeto da conversão em civilizados, tornando-se serviçal de ofícios vários. Embora tenham sido recrutados para fazendas, percebê-los como trabalhadores não se justifica apenas por terem sido atraídos para a atividade agropecuária. Na mira de um projeto de expansão do poder burguês, republicano ou religioso, os Bororo foram retratados nus, cobertos, bem ou malvestidos, ou fardados; havendo em cada (falta de) traje uma abordagem dita civilizatória. Enquanto lanchas (Floriano Peixoto) e rios (Benjamin Constant) eram rebatizados com nomes alusivos à República, mulheres indígenas plantavam mandioca ou lavavam roupas. Homens indígenas labutavam no curtume dos salesianos, mas também abriam picadões para Rondon. Plantavam e colhiam algodão. Devido à lida doméstica, nunca ninguém ficou sem fazer alguma coisa. Pescavam-se peixes para o alimento. Havia cozinheiros e crianças no apoio às suas andanças, afora carregadores para a estiva ou transporte de fardos. Depois de arrastados, pesados postes eram distribuídos, içados e socados no chão de terra. Cabos eram estendidos e estirados. As estações telegráficas, além de terem sido construídas, precisavam ser limpas ou conservadas. Ao longo das fiações, árvores foram derrubadas e os terrenos tinham depois de ser desmoitados e mantidos sem mato. Tanto missionários católicos quanto apóstolos do positivismo precisavam de quem cuidasse dos animais, usados para transporte ou comida. Mais ainda, Diacon (2006, p. 71-92) mostra que Rondon também submetia recrutas do Exército ao trabalho forçado.

Para todos esses serviços - afora construir estradas de ferro e a agropecuária -, foi ativado um complexo processo de imobilização de diversificada mão-de-obra. O apreço que a mobilidade despertava em trabalhadores - fugitivos, ausentes, arredios, invisíveis, evasivos - refletia tentativas de escapar do processo de subalternização de classe e raça que associava exploração do trabalho a pobreza, doenças e ofensas, sobretaxadas com expectativas de lealdade, gratidão e dívida, atitudes esperadas por chefes e patrões, esses encarnados em personagens dadivosas, missionários de ensino e trabalho. Numa relação caracterizada pelo estrangulamento de sua liberdade e dignidade, os subalternos buscaram formas de garantir a sua independência, lutando por costumes ou direitos.11

CONCLUSÃO

Um senhorio em fadiga de nervos devido à abolição da escravidão ingressou na República a ver navios embarcados de proletários europeus tendo São Paulo por destino. Uma República inaugurada por um golpe de Estado e conduzida por militares facciosos não podia correr o risco de ser tratada com a mesma distância com que os plantadores se afastaram de Pedro II, quando destronado. Talvez por isso a cidadania republicana tenha sido reiterada não como um direito amplo e irrestrito, ao qual a população podia ter acesso. Lugares racializantes foram preservados como forma de dar nitidez à classe que detinha privilégios. A nação estava assim circunscrita a homens (e mulheres) portadores de alto teor de albumina (sobretudo nas aparências de classe). Nesses termos, a República foi resultado da força da tradição, constituída pela força da escravidão.12 Para sábios homens brancos, raça e classe eram ferramentas para diferenciar o civilizado, e, por conseguinte, o detentor da honra ao mérito e do direito à cidadania. Era horripilante, observou Fraga (2006, p. 130, 134), um serviçal doméstico fundir liberdade com igualdade.

Houve, contudo, disputa pela ampliação do lugar de quem seria reconhecido em seus direitos. Além de analisar a proposta de código rural que obrigava a população operária ao trabalho (a exemplo da “papeleta” que devia possuir sempre em mãos, a fim de exibir prova de não estar na vadiagem), Castellucci (2015, p. 81-85) ressalta que foi o movimento operário quem conseguiu impedir sua aprovação em lei, agindo coletivamente à luz do dia em favor da liberdade e dignidade operárias. Para alguém como o líder da construção civil Domingos Silva, sob o pretexto de “‘proteger’” a lavoura e reprimir a “‘vagabundagem’”, havia, embora não fosse para ver, uma “‘disfarçada escravidão’” inscrita nas entrelinhas desse projeto de código rural.13

Os subalternos também fizeram de sua mobilidade uma arma na luta de classes. Nas bordas, brechas e desvãos das propriedades dos fazendeiros, dos missionários e do Estado, sua presença ou quantidade era difícil de ser numerada, isso para não dizer da dificuldade de saber aonde estavam. Logo, ao poder disciplinar custava fixá-los como trabalhadores nacionais. Evitando se prender à autoridade tutelar ou religiosa, a um lugar ou a um patrão, eram atores versáteis, expertos nos cenários de missionários, indigenistas e fazendeiros. Podiam trocar de ferramenta ou instrumento, de roupa, fé e fala, segundo a personagem requerida em cena. Podiam usar ferramentas para trabalhar menos, e não mais. Em constante deslocamento, podiam não se incomodar com seu pouso provisório, cuja grande qualidade - como elucida Wissenbach (1998, p. 59) a respeito dos caipiras - estava na facilidade de seu abandono. Carregavam suas coisas com a cestaria produzida pelas mulheres e com a força grupal que conseguiam sintetizar. No entanto, sua mobilidade, mais do que expressão de sua destreza e saúde, podia ser necessidade nova de sobrevivência, dada a mortalidade decorrente do recrutamento para a grandiosa obra verde-amarela.

Por fim, citar Wissenbach (1998) não apenas esclarece, pois também repõe o relevo de sua observação sobre a importância de pontuar as intersecções “entre a mobilidade e a sobrevivência de brancos pobres, mestiços e forros” (incluindo os índios). Eram suas “transumâncias” - seu seminomadismo - que lhes proporcionava a “maleabilidade” necessária para com astúcia contornar a exploração, a violência e o mandonismo. Essa era uma arma contra processos “de submissão das diferenças” e de “erradicação, sistemática e rotineira, de heterogeneidades e autonomias” (OLIVEIRA, 2009, p. 230).

  • 1
    Apresentação de Manuela C. da Cunha a SCHWARCZ, Lilia. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Sobre sujeitos trabalhadores além de senzalas e fábricas, ver: NEGRO; GOMES, 2006.
  • 2
    Mac Cord (2016, p. 210) anota já haver, antes de 1840, planos de “substituir” negros por imigração asiática.
  • 3
    Leite Lopes (1988) analisando o sistema fábrica com vila operária, mostra a importância da oferta de moradia a uma família proletária, estratégia patronal para fixá-la no local. Sobre a importância da mobilidade, na luta de classes, para os trabalhadores, ver: REDIKER et al., 2019.
  • 4
    Sobre a importância do anonimato para a turbulência plebeia, ver: THOMPSON, 1998, p. 64.
  • 5
    Sobre trabalhadores nos seringais amazônicos, ver: LEAL, 2016.
  • 6
    Os “crioulos eram mestres da dissimulação, não havia quem melhor fizesse o branco de bobo e lhe arrancasse concessões” (REIS, 1986, p. 176).
  • 7
    Interessante paralelo pode ser examinado quanto à contratação de imigrantes italianos para a construção da Bahia and São Francisco Railway (SOUZA, 2015, p. 143-148). Já a pesquisa de Mac Cord (2018) sobre os trabalhadores chineses no Rio de Janeiro oitocentista evidencia o antagonismo de classe.
  • 8
    Sobre a Noroeste, ver MORATELLI, 2013. Sobre o recrutamento de índios para construírem estradas no Sul da Bahia, na segunda metade do XIX, ver SILVAa, 2014.
  • 9
    A História do capitalismo tem regularmente sido “a história do trabalho compulsório” (SILVAb, 2014, p. 358).
  • 10
    Museu Histórico Nacional (MHN), Construção das linhas telegráficas no estado de Mato Grosso. MCab3. MHN, Missão em Mato Grosso, 1908. MCab10. Ver também: SÁ et al., 2008; KURY; SÁ, 2017. Sobre os Bororo, ver BORGES, 2010.
  • 11
    É por isso, entre outras razões, que nem sempre são encontrados em sindicatos ou partidos, mas a pesquisa sempre pode revelar achados extraordinários. Ver: SILVA, 2017.
  • 12
    Tal como a exemplar Inglaterra, por consistirem em lucrativo esquema de “interesses predatórios” entre a “riqueza agrária, comercial e manufatureira”, as insuficiências da democracia não eram a jarra quebrada das ilusões despedaçadas. No que tocava à corrupção, o governo inglês, durante o século XIX, distribuíra cargos e sinecuras entre parentes e a clientela dependente (HOBSBAWM, 1988, p. 142). “Uma formação única. A Velha Corrupção. Mal poderia ter sobrevivido ao século XVIII se a Revolução Francesa não tivesse aparecido, providencialmente, para salvá-la” (THOMPSON, 2001, p. 103-104). Sobre as ligações da Velha Corrupção e a escravatura britânica no Caribe, ver: BLACKBURN, 2011, p. 70, 141.
  • 13
    Silva (2016, p. 71) menciona debates na Assembleia Legislativa em 1893, sobre o Código Rural, desdobramento de outro sem aprovação pela Câmara, de 1890.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2019
  • Revisado
    24 Mar 2020
  • Aceito
    18 Maio 2020
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Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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