Resumo
A literatura e o cinema podem ser documentos históricos que assumem forte teor testemunhal. Procuram, nesses casos, transmitir a vivência, a experiência e a memória daquele/a que as testemunham. Neste texto, colocamos o foco em narrativas de mulheres que participaram de organizações armadas durante a ditadura militar no Brasil e a ditadura salazarista em Portugal, entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1970, e que, posteriormente, trouxeram a público suas memórias e vivências. Analisamos o documentário Que bom te ver viva, da cineasta brasileira Lúcia Murat, lançado em 1989, e o livro da jornalista portuguesa Isabel Lindim, Mulheres de armas: História das Brigadas Revolucionárias, publicado em 2012. Os depoimentos apresentados nessas obras evidenciam as diferenças dos processos políticos vividos nos dois países, bem como as especificidades das histórias e memórias narradas pelas mulheres. Essas diferenças remetem não apenas às características políticas dos dois países em foco, mas também aos distintos contextos de rememoração em pauta no filme e no livro analisados.
Palavras-chave Mulheres; luta armada; testemunhos
Abstract
Literature and cinema can serve as historical documents, bearing potent testimonial content that aims to transmit the experiences and memories of those who have lived them. This analysis centers on the narrative of women who were active participants in armed organizations during the military dictatorship in Brazil and the Salazar dictatorship in Portugal, between the end of the 1960s and the beginning of the 1970s, and that later chose to make public their memories and experiences. Two works are analyzed: the 1989 documentary Que Bom te ver viva [How Nice to See You Alive] by Brazilian filmmaker Lucia Murat, and the 2012 book Mulheres de Armas: História das Brigadas Revolucionárias [Women in Arms: History of the Revolutionary Brigades], by Portuguese journalist Isabel Lindim. The testimonies presented in these works make explicit the differences in the political processes experienced in the two countries, as well as the specificity of histories and memories narrated by the women who were interviewed. These differences are not only indicative of the distinct political characteristics of the two countries but also reflect the specific contexts of remembrance at stake in the book and film under analysis.
Keywords Women; armed struggle; testimonies
Este texto pretende investigar as memórias de mulheres que, durante as ditaduras no Brasil e em Portugal, participaram de organizações armadas. Essas ditaduras tiveram características, balizas cronológicas e formas de ação e repressão distintas, mas, entre as décadas de 1960 e 1970, entrecruzaram-se na presença de um elemento político importante comum: a luta armada. Nesse período, marcado pela influência da Revolução Cubana, dos acontecimentos de Maio de 1968, da Guerra do Vietnã e da expansão das lutas anticoloniais, a proposta da luta armada se espalhou por diversos continentes, em diferentes formatos, ganhando forte adesão de uma parcela de jovens no mundo inteiro. Entre meados da década de 1960 e os primeiros anos da década de 1970, surgiram e atuaram, no Brasil e em Portugal, organizações armadas, acompanhando um movimento político, ideológico e intelectual mundial.
No Brasil, entre 1966 e 1969, houve o que o historiador Jacob Gorender ( 1987) chamou de “imersão na luta armada”, promovida por diversas organizações, como a Ação Libertadora Nacional (ALN), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). No início da década de 1970, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) 1 conseguiu estabelecer um foco de guerrilha rural na região do Araguaia. Entre 1972 e 1974, a maior parte dessas organizações tinha sido desbaratada pela ditadura, e seus integrantes foram presos, mortos, exilados e banidos.
Em Portugal, duas organizações armadas se destacaram: a Liga de Unidade e Ação Revolucionária (LUAR), fundada em 1967, e as Brigadas Revolucionárias (BRs), criadas no ano de 1971 a partir de uma ruptura com o Partido Comunista Português (PCP). Além dessas, o próprio PCP, diferentemente da maior parte dos partidos comunistas tradicionais na época, sobretudo na Europa, criou seu braço armado, a Ação Revolucionária Armada (ARA), que atuou entre 1970 e 1974.
Interessa-nos aqui investigar e comparar como essa experiência foi vivida e narrada por mulheres brasileiras e portuguesas. Nosso objetivo não é discutir politicamente as ações armadas, mas a memória construída pelas mulheres que delas participaram, compreendendo suas motivações, seus anseios, seus medos e como encararam posteriormente essa experiência. Qual a marca que essa escolha teve em suas vidas? Quais semelhanças e diferenças podem ser estabelecidas entre as memórias e vivências portuguesas e brasileiras?
Neste estudo, está em questão uma abordagem permeada por uma visão mais subjetiva da experiência da luta armada. Nossa preocupação é recuperar e entender os investimentos pessoais feitos, a visão de mundo que sustentou essa opção, as vivências particulares, os sentimentos guardados ou partilhados, os impactos dessa escolha na vida pessoal dessas mulheres, o saldo emocional e a marca geracional dessa experiência.
Em seu livro O pequeno x: Da biografia à história, Sabina Loriga ( 2011, p. 11) afirma: “Desde o fim do século XVIII os historiadores se desviaram das ações e dos sofrimentos dos indivíduos para se dedicarem a descobrir o processo invisível da história universal”. Ainda segundo a autora, nossos livros de história tratam de potências, nações, grupos de interesse, mas não de pessoas. Loriga propõe que se recupere a dimensão individual da história, aquilo que cada ser humano a ela acrescenta de particular, “o pequeno x”. Essa perspectiva historiográfica valoriza a experiência subjetiva, permitindo abordá-la na sua dimensão histórica e social. Dessa forma, relatos de vivências e emoções se tornam objeto e fonte histórica.
Sentimentos e emoções são datados. As pessoas experimentam, registram, compartilham e expressam suas emoções inseridas num determinado tempo histórico. E as formas como decodificam, demonstram ou ocultam sentimentos como amor, raiva e medo são, em grande medida, modeladas por esse tempo histórico, assim como ajudam a tecê-lo. A análise da subjetividade como objeto da história tem, portanto, uma dimensão individual, e outra coletiva. Nesse sentido, ganham destaque os estudos e as biografias de indivíduos e de grupos, o que é exatamente o caso deste artigo. Em um livro que foi pioneiro na renovação dos estudos biográficos, intitulado Histoire et histoires de vie: La méthode biographique dans les sciences sociales [ História e histórias de vida: O método biográfico nas Ciências Sociais], Franco Ferrarotti ( 1983) chamou a atenção para a relação entre a história e as múltiplas histórias individuais, e as possibilidades que daí decorrem de ler uma sociedade através de uma ou muitas biografias. Ferrarotti valorizava, sobretudo, a construção e o estudo de biografias coletivas. Esse seria o maior potencial do método biográfico: mostrar que as múltiplas histórias de vida de uma época, de uma geração, de uma localidade, inscrevem-se dentro dos limites e das possibilidades de uma história mais geral – e que cada uma dessas múltiplas histórias particulares interpreta, a seu jeito, a história e sua relação com ela.
Os estudos no campo da memória e da história oral também norteiam este texto. A memória das ditaduras militares na América Latina mobilizou um grande número de historiadores e outros pesquisadores, que se voltaram a reconstituir e entender o passado com o objetivo de não repetição. Esse movimento envolveu algumas premissas importantes, como as noções de disputas de memória, memórias subterrâneas ( POLLAK, 1989) e trabalhos de memória ( JELIN, 2002). A noção de memória como algo historicamente construído, a partir de disputas e conflitos, de dificuldades e de ação consciente, permeia este texto, assim como incorporamos a proposta metodológica da história oral, que valoriza a contribuição dos depoimentos e testemunhos sobre a experiência histórica. Na verdade, a articulação entre história oral e memória é intrínseca para o historiador, porque o que a fonte oral documenta é exatamente a ação da memória ( ALBERTI, 2004).
Essa perspectiva teórica embasa a proposta deste artigo, que busca analisar experiências e memórias de dois grupos de mulheres que participaram da luta armada no Brasil e em Portugal e que registraram suas memórias em depoimentos que se tornaram públicos. Trazemos neste texto duas obras bastante diferentes, com suportes narrativos e abordagens distintas. O que as une é, essencialmente, a temática.
O documentário Que bom te ver viva, 2 lançado no Brasil em 1989, foi dirigido pela cineasta Lúcia Murat, também autora do roteiro e coprodutora do filme. Lúcia Murat foi militante da organização armada Movimento Revolucionário 8 de Outubro; foi presa em 1971, aos 22 anos de idade, e passou três anos em diferentes presídios, sofrendo vários tipos de tortura. Que bom te ver viva foi o seu segundo filme, e foi com ele que Murat se projetou no campo cinematográfico. No documentário, sete mulheres narram suas experiências de prisão, tortura e violência. Todas elas foram militantes, algumas ainda exercem algum tipo de atividade política. O filme é um híbrido de documentário com dramaturgia, pois a cineasta, de certa forma, faz-se presente na figura da atriz Irene Ravache. O filme é todo centrado nos fortes depoimentos das mulheres, que expõem ao espectador a violência vivida e o esforço que fazem para superar essa experiência.
O livro Mulheres de armas: Histórias das Brigadas Revolucionárias. As acções armadas, os riscos, as motivações foi publicado em Lisboa pela editora Objectiva em 2012. A obra foi escrita pela jornalista Isabel Lindim, filha de Isabel do Carmo, uma das fundadoras das Brigadas Revolucionárias, e narra as histórias e experiências de quinze mulheres, de diferentes idades, que integraram as BRs. As primeiras seis depoentes participaram diretamente das ações armadas, enquanto as outras nove atuaram no apoio à organização. O livro é construído a partir dos depoimentos dessas mulheres, e cada capítulo tem o nome ou o pseudônimo de uma delas. Neste texto, optamos, tanto por questão de espaço, como para construir uma unidade temática mais definida, por trabalhar apenas com as seis primeiras entrevistas, que narram as memórias das mulheres que participaram diretamente das ações armadas. Isabel Lindim ( 2012) não entrevistou sua mãe, mas Isabel do Carmo está presente no livro. Ela é a autora da longa introdução que antecede os relatos biográficos, texto que apresenta uma contextualização histórica e política de Portugal. A obra tem 257 páginas e traz também um anexo com uma detalhada cronologia das Brigadas Revolucionárias.
Que bom te ver viva: Memórias da violência no Brasil
As sete mulheres que narram suas memórias no documentário são: Criméia Schmidt Almeida, Estrela Bohadana, Jessie Jane Vieira de Sousa, Maria do Carmo Brito, Maria Luiza Garcia Rosa, Regina Toscano e Rosalina Santa Cruz. Seus nomes reais aparecem na tela. Elas não interpretam, e sim narram suas experiências, algumas vezes com esforço, outras com emoção. Existe uma oitava mulher, apresentada como Anônima, que não quis fazer um depoimento filmado, mas enviou a Lúcia Murat um texto escrito e autorizou seu uso. A atriz Irene Ravache interpreta uma personagem que, de certa forma, representa a própria Lúcia Murat. Essa identificação só fica clara mais tarde, quando Lúcia narra episódios relacionados às torturas às quais foi submetida, 3 extremamente semelhantes às descritas no filme pela personagem de Irene. A atriz é, então, a única que representa, com grande carga dramática, às vezes com ironia, outras com fragilidade, e que dá ao filme um caráter híbrido.
Logo no início do documentário, as mulheres depoentes são apresentadas: seus nomes, filiações políticas, a repressão vivida (prisões, torturas, exílios) e como estão “hoje”, ou seja, no momento em que o filme foi gravado, no final dos anos 1980. Reproduzimos a seguir as personagens, tais como são apresentadas no início do documentário. Na tela, aparece a foto da depoente e uma breve legenda sobre ela.
Maria do Carmo Brito: militante da organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), presa em abril de 1970. Alguns meses depois, integrou a lista de presos políticos que foram trocados pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. Ficou 10 anos no exílio. É casada, tem dois filhos, trabalha como educadora.
Estrela Bohadana: militante do Partido Operário Comunista (POC), foi presa duas vezes, em 1969 e 1971. É filósofa, casada e tem dois filhos.
Maria Luiza Gracia Rosa (Pupi): militante do movimento estudantil, foi presa quatro vezes na década de 1970. É divorciada, tem dois filhos e é médica sanitarista.
Rosalina Santa Cruz: militante da VAR-Palmares. Foi presa em 1971, ficou encarcerada até 1973, e foi novamente presa em 1974. Seu irmão, Fernando Santa Cruz, desaparecido político, era militante de Ação Popular Marxista Leninista (APML). É professora universitária.
Criméia Schmidt Almeida: militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e sobrevivente da Guerrilha do Araguaia. Foi presa grávida, em 1972, e teve seu filho na cadeia. É enfermeira e vive com o filho adolescente.
Regina Toscano: militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), foi presa em 1970 e ficou um ano encarcerada. Tem três filhos e trabalha como educadora.
Jessie Jane Vieira de Souza: militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Foi presa em 1970, junto com seu companheiro Colombo, na tentativa de sequestro de um avião. Ficou 9 anos presa. Tem uma filha com Colombo, que foi concebida e nasceu na prisão.
Anônima: Viveu 4 anos na clandestinidade e 4 na cadeia. Hoje mora numa comunidade mística e tem um olhar crítico para seus anos de militância.
Como já mencionado, o documentário se constrói basicamente em cima dos depoimentos das ex-militantes. Esses depoimentos são intercalados por falas da atriz Irene Ravache, que, além de interpretar uma militante política que foi presa e torturada, entrevista as mulheres que viveram a mesma situação. Ravache expressa cenicamente o trauma de todas, bem como o esforço para superá-lo e a enorme dificuldade de falar sobre o que se passou. A estrutura do documentário é simples: as mulheres são entrevistadas em suas casas, algumas vezes são filmadas em seus locais de trabalho. Também são entrevistados familiares, filhos, maridos, companheiros. O foco da câmera está, quase sempre, no rosto da depoente. Fotos de jornais da época também são utilizadas. O único cenário do filme é o espaço onde atua a atriz Irene Ravache, caracterizado como um apartamento simples. Ao longo de 1 hora e 40 minutos, o que prende a atenção do espectador é o testemunho, seja ele pronunciado pelas depoentes, seja encenado dramaturgicamente pela atriz. Foi a primeira vez que se expunha em uma tela de cinema a violência da ditadura militar narrada por mulheres que a viveram em seus próprios corpos.
A tortura é abordada em todos os depoimentos, bem como a dificuldade de falar sobre ela. Estrela Bohadana relata que seus filhos não gostam quando ela conta sobre sua prisão. A memória da violência sofrida parece ter um estigma de aporismo. Seu marido comenta: “Não se pode fingir que isso não aconteceu, mas não se pode falar só disso”. 4
As depoentes não narram com detalhes as torturas físicas que sofreram. Todas mencionam espancamentos, choques elétricos, pau de arara, violência sexual, mas sem descrever os detalhes. Falam com mais pormenor, desejando efetivamente comunicar, sobre a desconstrução psíquica e moral, a experiência de degradação e o desalento que a tortura provoca.
Rosalina Santa Cruz fala do sentimento de medo, da solidão e da sensação de total desproteção diante daqueles homens. Ela conta também que, durante a sessão de tortura, não estava tanto em jogo a informação que ela poderia dar, mas sim a sua própria rebeldia. Rosalina descreve esse momento horroroso:
Depois de terem me batido muito, pau de arara, choque elétrico, choque na vagina (…) eu cheguei a um momento em que eu pedi: “Me mate, eu não estou mais aguentando”. E eu me lembro do sorriso dele: “Eu não te mato, não me interessa, eu vou te torturar o quanto eu quiser, e, se eu quiser, eu te mato”. Então esse nível de impotência durante a tortura… a sensação de que ele podia fazer o que ele queria, e eu não sabia qual era a minha resistência. Esse para mim era o caminho para a questão da loucura. 5
Regina Toscano também destaca os sentimentos de impotência e degradação. Ela conta que, aos 14 anos, foi diagnosticada como portadora de epilepsia, doença que aprendeu a controlar com medicamentos e terapia. Quando foi presa, esses dois suportes foram interrompidos, e a tortura acirrou a epilepsia: “Eu sentia, na hora da tortura, que eu não tinha controle do meu corpo (…) tinha medo de ter uma convulsão, e eles se aproveitarem disso (…). Era uma coisa muito degradante, eles se aproveitavam disso, de eu ser epilética”. 6 Maria Luiza também fala dessa sensação de degradação, mas se referindo a outro aspecto. Para ela, a degradação foi sentida no momento em que não conseguiu resistir às torturas e deu informações para os torturadores: “Você entrega aquilo que te é mais caro… Isso te tira um pedaço da alma”. 7 Para Maria Luiza, o trauma maior da experiência vivida foi não ter conseguido suportar a tortura e ter “aberto” (fornecido) informações para os torturadores; informações que poderiam levar à prisão e à morte de seus companheiros. Os sentimentos de traição e fracasso que as torturas produziam poderiam ser piores do que a violência física sofrida.
Na experiência de quem participou de organizações de esquerda entre os anos 1960 e 1970, as experiências mais duras e difíceis de superar muitas vezes estão relacionadas a outras pessoas, a entes queridos. Em seu depoimento, Rosalina Santa Cruz menciona o desaparecimento, em fevereiro de 1974, de Fernando Santa Cruz, seu irmão, junto com Eduardo Collier. Ambos eram militantes da Ação Popular Marxista Leninista (APML) e nunca foram encontrados. 8 Para Rosalina, a busca por Fernando foi a experiência mais traumática que ela e sua família viveram: “A questão do desaparecido foi a invenção mais terrível da repressão. É uma situação mais louca que a própria tortura, porque é uma morte onde a gente não tem o corpo, então não tem uma sensação de morte”. 9 Sem o corpo, o luto não acontece. Rosalina fala de sua culpa por ter sobrevivido: “Por que eu sobrevivi e ele não? Eu tinha me ligado à esquerda armada, eu era mais velha do que ele, eu tinha uma militância maior do que Fernando”. 10
Como apontou a antropóloga argentina Ludmila Catela ( 2001, p. 150), o desaparecimento é uma “morte inconclusa”, uma dor que se perpetua no tempo, que não se materializa num corpo, que não se localiza numa sepultura, que não permite que se faça o luto. No caso de Rosalina, esse luto infindável se soma também à culpa por ter sobrevivido; e o irmão – que era mais novo, militava menos e participara de uma organização de esquerda não armada –, não. Seu depoimento expõe sua culpa e realça as suas ações que justificariam uma maior repressão sobre ela, e não sobre ele.
Se, ao longo do documentário, diferentes narrativas do trauma são marcantes, outros depoimentos falam das formas de superação, dos caminhos que permitiram a retomada da vida. Em vários depoimentos, esse caminho foi proporcionado pelo nascimento dos filhos, que marcaram a continuidade da vida. Muitas delas, como Maria do Carmo, falam da importância da maternidade como uma vivência que se contrapõe à experiência de violência e dá um novo sentido de vida. Quem mais explicita essa ideia no documentário é Regina Toscano: “Quando eu fui presa, eu estava grávida e perdi esse neném na cadeia (…) e lá, durante a cadeia, o que realmente me segurou foi a vontade de ter um filho, a certeza de que eu ia ter um filho. E isso representava para mim a vida. Eu tinha que dar uma resposta de vida!”. 11 Assim que ela e seu companheiro saíram da prisão, eles tiveram um filho, Daniel. Alguns anos mais tarde, num segundo casamento, Regina teve mais dois filhos.
O depoimento de Criméia Schmidt Almeida, porém, mostra-nos que a relação entre prisão e maternidade pode ser bastante complexa. Criméia deixou a guerrilha do Araguaia porque estava grávida. Atravessou o rio Araguaia a nado e, após essa empreitada, rumou para São Paulo. Alguns meses depois foi presa, grávida de sete meses. Mesmo assim, foi violentamente torturada e teve seu filho na prisão. Em seu depoimento, ela diz:
É uma sensação assim, meio impossível… Eu pensava o seguinte: eles tentam acabar comigo e nasce mais um, aqui mesmo, na prisão. Quando eles tentam acabar com as pessoas, a vida continua. Eu senti o nascimento do meu filho como se ele estivesse se libertando do meu útero. Pra mim era um sinal de liberdade, meu filho livre! 12
É muito significativa a comparação que Crimeia faz entre o seu útero e a prisão, como se o útero de uma guerrilheira aprisionasse o bebê, pois seu filho foi preso, junto com ela, em função de suas escolhas. Essa sensação dolorosa, traumática, foi tão forte que Criméia nunca mais quis engravidar de novo: “Para mim, uma segunda gravidez era qualquer coisa, assim, pavorosa. Nove meses de gravidez era muito tempo, muita coisa podia acontecer em nove meses”. 13
Uma outra história marcante de maternidade que o documentário mostra é narrada por Jessie Jane Vieira de Souza. Ela e seu companheiro Colombo foram presos em 1970, numa tentativa de sequestrar um avião. Ficaram presos quase 10 anos e passaram 5 anos sem se ver. Quando Ernesto Geisel se tornou Presidente da República, em 1974, iniciou-se o projeto de abertura política. Ele, então, trocou o diretor do presídio, e Jessie e Colombo solicitaram direito a visita íntima – o que foi autorizado. Em 1977, Leta, filha do casal, nasceu na prisão. Jessie reforça: “O nascimento da Leta abriu uma brecha para as emoções fluírem”. 14 As imagens dos três juntos – Jessie, Colombo e a pequena Leta – saindo da prisão são de uma alegria enorme.
Em meio às narrativas sobre a militância política, as prisões, as torturas e as superações, Lúcia Murat registou também uma posição destoante: a da militante Anônima, que não quis participar do filme e, em vez disso, lhe enviou um depoimento escrito, autorizando a diretora a usá-lo. Nesse texto, está uma visão bastante diferente daquela expressa pelas outras mulheres. A militante, que pediu para não ter o seu nome revelado, passou quatro anos na clandestinidade e mais quatro presa. Quando Lúcia a contactou, ela vivia numa comunidade mística. Reproduzimos aqui partes do texto que é lido no filme enquanto a câmera mostra o interior de um local que parece ser um templo budista:
Fomos, enquanto geração, afetados pela aspiração de nos devotarmos ao bem da humanidade. Esta aspiração sofreu a interferência de um pensamento, dominante na época, de que a melhor forma de minorar o sofrimento humano seria uma revolução social. Fomos impulsivamente, inconscientemente, aparelhos receptores e transmissores de emoções violentas. Ao desenrolar destes fatos, a tortura se tornou um acidente inevitável. Sou, como todos nós, um elo na corrente evolutiva da humanidade, e, como tal, sei que sou corresponsável por qualquer violência ocorrida. 15
O conteúdo da carta se contrapõe a todos os outros depoimentos do documentário, principalmente pela posição crítica em relação à luta armada. É o único momento em que aparece uma memória diferente em relação ao que foi vivido.
Gostaríamos, por fim, de ressaltar o papel de Irene Ravache. A atriz revela os pensamentos e sentimentos de uma mulher marcada pelo trauma e pela solidão; uma solidão que resulta da dificuldade de partilhar a sua experiência. Sua personagem é uma mulher devastada por lembranças e traumas, mas empenhada em sobreviver, ser feliz, viver o prazer e a vida; ela luta com sua memória traumática. A última cena do documentário é sintomática desse impasse. A personagem diz: “Eu devia pôr uma placa. Cuidado, cachorro ferido”. 16
Em seu livro Escribir la historia, escribir el trauma, Dominick LaCapra (2005) aponta para a presença crucial do trauma na história contemporânea e chama a atenção para o papel dos historiadores, que devem reconhecer sua centralidade na vida humana. O autor argumenta também que, para o conhecimento da experiência traumática na história, os testemunhos são fundamentais, porque eles trazem algo de específico, relacionado à forma como essa experiência foi vivida; ou seja, eles “aportam algo que é distinto do conhecimento puramente documental” 17 ( LACAPRA, 2005, p. 105). À época em que o filme de Lúcia Murat foi lançado, o Brasil dava os primeiros passos para a redemocratização. A Lei da Anistia havia sido aprovada em 1979 18 e, com isso, vários exilados, banidos e presos políticos retornavam à cena pública do país. Não havia ainda, contudo, qualquer movimento por verdade, justiça ou reparação; demorou muitos anos para que isso acontecesse. Em 1985, um governo civil substituiu os generais presidentes; em 1988, uma nova Constituição foi promulgada por meio de uma Assembleia Constituinte criada no ano anterior. Em 1989, brasileiros e brasileiras votaram para presidente da República pela primeira vez após o golpe de 1964. Falava-se sobre a ditadura, as novas e antigas lideranças tinham retornado ao país, os novos partidos tinham sido criados, a Constituição de 1988 marcava um novo patamar político.
Como muitas das depoentes do filme comentam, a tortura ainda era um tema incômodo, desconfortável. O país avançava no processo de redemocratização, mas varrendo algumas questões para debaixo do tapete, entre elas a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos políticos. Todas as depoentes comentam sobre esse desconforto em falar sobre a tortura, um tema difícil não só de enunciar, mas também de ouvir. Esse tabu foi-se rompendo ao longo dos anos da redemocratização, com a ação de grupos como o Tortura Nunca Mais e coletivos de vítimas de ditadura e seus familiares. O filme de Lúcia Murat teve um papel pioneiro, abrindo espaço para a fala de algumas mulheres sobre a tortura que tinham vivido e, com isso, abriu espaço na sociedade para a escuta desses relatos.
Marcio Seligmann-Silva ( 2008) discute o teor testemunhal da literatura do século XX: a literatura que narra o Holocausto, o gulag, as ditaduras latino-americanas, as guerras e as catástrofes que marcaram não só o século XX, mas se estenderam também pelo XXI. A partir dos livros escritos por Primo Levi sobre seu cativeiro em Auschwitz, Seligmann-Silva definiu as características essenciais do que seria a literatura testemunhal: uma literatura que se refere a uma experiência traumática de violência política e que se produz premida entre a necessidade de narrar e a dificuldade de narrar. O testemunho oral ou escrito abre, portanto, uma janela que revela a experiência singular associada ao trauma e à violência política. Seligmann-Silva discute principalmente a literatura testemunhal, mas essa característica se pode estender a outras formas de expressão. O documentário Que bom te ver viva pode ser visto como um exemplo de cinema testemunhal. Esse caráter testemunhal está indissoluvelmente ligado ao trauma e ao esforço para o superar. O testemunho, então, apresenta-se como condição de sobrevivência para os/as depoentes ( SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 66). É dessa forma que os depoimentos do filme devem ser encarados, não só aqueles das personagens reais, mas também as falas da atriz Irene Ravache, que representam o testemunho da própria diretora.
O filme de Lúcia Murat somou-se ao e ampliou o esforço de algumas mulheres de narrar a violência e o trauma a que foram submetidas pela repressão. Podemos citar alguns outros exemplos que marcam esse processo: em 1980, foi publicado pela editora Paz e Terra o livro Memórias das mulheres do exílio, organizado e editado por Albertina de Oliveira Costa, Maria Teresa Porciúncula Moraes, Norma Marzola e Valentina da Richa Lira. A obra é pioneira na abordagem de testemunhos de mulheres a partir de uma ótica não apenas política, mas também feminista. O livro contém depoimentos de mulheres que relatam diferentes experiências sobre o exílio. Algumas fugiram do Brasil, outras foram banidas, como Maria do Carmo Brito, que aparece no filme de Lúcia Murat. Certas depoentes usam seus nomes completos, outras apenas o primeiro nome ou um pseudônimo, tendo em vista que, à época da publicação do livro, a ditadura ainda não havia terminado. Na introdução, as organizadoras apresentam seu projeto do ponto de vista memorialístico e político: “Buscamos a nossa vivência como mulheres no terreno onde o subjetivo e o objetivo se entrelaçam: o das emoções e o da história pessoal concreta, das mudanças cotidianas e nem por isso menores, nem por isso menos históricas” ( COSTA et al., 1980, p. 16).
Outro livro importante, com uma abordagem mais acadêmica, foi publicado por Elizabeth Xavier Ferreira ( 1996): Mulheres, militância e memória, resultado de sua pesquisa de mestrado em antropologia no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A obra resgata, a partir de testemunhos, as histórias de vida e de sobrevivência de 13 mulheres que passaram pela experiência de captura, tortura e prisão. Nesse caso, as depoentes são apresentadas através de pseudônimos. Dois anos depois, o jornalista Luiz Maklouf Carvalho ( 1998) abordou a presença das mulheres na luta política, bem como a prisão e a tortura a que foram submetidas, em Mulheres que foram à luta armada. O livro apresenta depoimentos de diversas militantes, como Vera Silvia Magalhães, Maria do Carmo Brito e, também, Lúcia Murat.
A partir dos anos 2000, a historiografia sobre a ditadura militar no Brasil ampliou-se de forma considerável, voltando-se para os estudos da memória e dos processos de justiça de transição, muitas vezes em perspectiva comparada em relação aos países da América Latina, especialmente no Cone Sul. Essa é a especificidade e a contribuição do livro organizado por Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff ( 2010), Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul. O objetivo da coletânea é entrelaçar esses dois temas, os estudos de gênero e o feminismo, com a história das ditaduras militares na América Latina. O livro reúne ensaios de pesquisadores do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia, e depoimentos de mulheres, militantes de organizações de esquerda desses países, que tiveram suas vidas afetadas por prisões, torturas e exílios. Pela sua importância historiográfica, o livro é uma referência fundamental para os estudos de trajetórias e memórias de mulheres em épocas de ditaduras. A valorização de testemunhos e depoimentos na historiografia da ditadura se acentuou a partir de políticas de memória implementadas pelo próprio governo brasileiro, que resultaram em projetos como Memórias reveladas 19 e Marcas da memória, 20 que se voltaram para o desenvolvimento de pesquisas e construção de acervos de depoimentos. A criação da Comissão Nacional da Verdade, em 2011, 21 também foi um momento importante desse processo.
Mulheres de armas: A luta armada em Portugal
No livro Mulheres de armas, a jornalista Isabel Lindim ( 2012) conta, a partir de entrevistas que realizou, a história de quinze mulheres que participaram da luta armada em Portugal. Como já vimos, ela narra uma experiência da geração de sua mãe. O depoimento de sua mãe não está no livro, mas Isabel do Carmo ( 2012) faz uma introdução sobre a história política de Portugal. Há uma divisão de trabalho entre mãe e filha: à mãe, coube a parte da história e da política; à filha, a parte das entrevistas e da memória. Isabel do Carmo não foi entrevistada, mas imprimiu a marca de sua visão política sobre o tema, uma análise legitimada inclusive por ter sido fundadora e figura destacada da organização Brigadas Revolucionárias, em Portugal.
A introdução escrita por Isabel do Carmo ( 2012) tem por título As mulheres nas Brigadas Revolucionárias, mas, na verdade, traz uma abordagem muito mais ampla. O texto começa descrevendo situações vividas por ela, seu companheiro Carlos Antunes, sua filha Isabel Lindim ainda criança (chamada pelo apelido de Bli) e outros militantes da organização, alguns meses antes do 25 de Abril. Após esses primeiros parágrafos, opera-se um retorno ao início do século XX para narrar a história de Portugal e das mulheres no país, com o objetivo de apresentar a relação da história do movimento de mulheres com a história do país e do mundo.
Não cabe, neste artigo, analisar o texto de Isabel do Carmo, porque nosso interesse maior reside nas narrativas e memórias da luta armada expressas nos depoimentos, ou seja, no texto escrito por Isabel Lindim, a filha. No entanto, algumas questões referentes à luta armada, contidas no texto da mãe, são importantes para a compreensão da especificidade desse tema em Portugal e para o entendimento dos depoimentos colhidos.
Normalmente, quando se fala em luta armada contra a ditadura portuguesa, o que vem em mente é a guerra colonial. O Centro de Documentação 25 de Abril (CD25A), em Coimbra, é responsável pela salvaguarda de documentos das Brigadas Revolucionárias (BRs), da Liga de Unidade e Ação Revolucionária (LUAR) e da Ação Revolucionária Armada (ARA). Essa documentação não está inteiramente classificada e organizada. Na Pasta LUAR, por exemplo, encontram-se tanto materiais de propaganda como documentos de avaliação política, panfletos e jornais. Um dos documentos se refere à primeira ação armada de grande repercussão realizada pela LUAR: o assalto ao Banco de Portugal em Figueira da Foz em 1967, liderada por Palma Inácio e Camilo Mortágua. Após a Revolução dos Cravos, a LUAR seguiu atuando politicamente, mas abandonou as ações armadas e passou a agir no sentido de radicalizar o processo político português em direção a uma revolução socialista. O jornal e os comunicados do grupo, que podem ser encontrados nas pastas do CD25A, atestam esse esforço político. 22
A ARA, criada em 1970, era o braço armado do PCP. De forma geral, nas décadas de 1960 e 1970, as organizações armadas foram criadas, em vários países do mundo ocidental, em oposição aos Partidos Comunistas tradicionais. Estes, por sua vez, criticavam a opção armada e insistiam em caminhos mais institucionais. 23 A ARA foi, portanto, uma especificidade do PCP. Segundo D. L. Raby ( 1988), o treinamento dos militantes comunistas para a ação armada foi coordenado por membros do próprio Comitê Central do PCP, tendo sido, inclusive, muitos militantes enviados para Cuba e para a União Soviética. Um dos primeiros atos da ARA foi a sabotagem do navio de guerra Cunene. Após o 25 de abril, a ARA suspendeu suas ações e, somente nessa ocasião, explicitou publicamente seu vínculo com o PCP.
As Brigadas Revolucionárias, segundo Isabel do Carmo ( 2012, pp. 63-65), foram criadas em 1970. Sua primeira ação armada foi realizada em 7 de novembro de 1971 e a última ação, relacionada na cronologia final do livro, foi no dia 9 de abril de 1974 (LINDIM, p. 247). É sobre esse período que as personagens do livro falam. Com a Revolução dos Cravos, as BRs foram dissolvidas. No entanto, uma parte da militância da organização vinha estruturando um partido político há alguns anos, o Partido Revolucionário do Proletariado (PRP), que já atuava na clandestinidade. Quando as BRs cessaram suas ações, o PRP passou à legalidade e continuou atuando, assim como a LUAR, com o objetivo de radicalizar o processo revolucionário.
Um dado singular em relação à luta armada das organizações portuguesas é que elas se voltavam prioritariamente para a sabotagem dos navios que partiriam para a guerra colonial em África. Também faziam assaltos a bancos para comprar bombas e explosivos para as ações de sabotagem, mas tinham posição contrária ao uso de armas ou bombas que pudessem provocar danos a pessoas. As BRs e a ARA tinham esse direcionamento muito claro. A luta armada tinha exclusivamente o objetivo de prejudicar a ação militar de Portugal e, assim, auxiliar a luta das colônias africanas. Nenhum atentado que pudesse colocar em risco a vida de pessoas seria praticado pelas organizações. Na seção Não matarás da longa introdução ao livro de sua filha, Isabel do Carmo ( 2012, p. 69) destaca essa característica:
Foi decisão da direção das BR, onde estávamos eu e o Carlos Antunes, que a organização não mataria. É uma posição filosófica e prática. O respeito pela vida humana significa que cada pessoa é irrepetível e não temos o direito de acabar com a vida porque isso será irreversível. Provocar a morte é um ato irreparável. De igual modo somos contra a pena de morte.
Em função dessa posição, as ações eram planejadas “de modo a não provocarem danos em pessoas” ( CARMO, 2012, p. 70). Isso incluía a escolha de horários em que não houvesse qualquer funcionário no local onde seriam colocadas as bombas. A morte de dois militantes foi um tema recorrente nas falas das mulheres entrevistadas por Isabel Lindim. Nas palavras de sua mãe, “acabaram por ser dois militantes (nossos) que morreram numa ação as únicas vítimas mortais das ações das BRs” ( CARMO, 2012, p. 70).
A Revolução dos Cravos interrompeu as ações armadas e mudou o cenário da ação política. O principal objetivo da luta armada portuguesa era o apoio à luta colonial africana. O novo governo, surgido da Revolução dos Cravos, interrompeu as ações de guerra e sinalizou apoio ao processo de independência das colônias africanas. Com isso, após o 25 de Abril, os militantes das organizações armadas engajaram-se na luta política legal, no esforço revolucionário e na tentativa de radicalizar o processo político na direção do socialismo; atuaram nos movimentos de bairros, fundaram jornais, criaram e participaram dos Conselhos Revolucionários ( RABY, 1988). 24
Partir para a acção é o título da segunda parte do livro, escrita por Isabel Lindim ( 2012), que apresenta as histórias e as memórias das mulheres que participaram das Brigadas Revolucionárias. Abordaremos aqui as entrevistadas que estiveram diretamente ligadas às ações armadas, mas registramos, também, os nomes das mulheres que atuaram no apoio às BRs e que deram seus depoimentos para o livro: Teresa Gaivão Veloso, Manuela Lima, Marília Viterbo, Maria João Ceboleiro, Celeste Ceboleiro, Laurinda Queirós, Alexandra Ramos, Joana Lopes e Luísa Sarsfield Cabral.
As seis mulheres entrevistadas no livro que participaram das ações armadas são: Graça, Joana I, Joana II, Maria Elisa da Costa, Maria Patrocínia Raposo Guerreiro (Rosa) e Paula Viana. As três primeiras preferiram usar os pseudônimos que tinham na época em que militaram na organização. 25 Em 1974 (ano da dissolução das Brigadas), todas elas tinham entre 20 e 31 anos de idade. O motivo pelo qual as três primeiras preferiram usar pseudônimos não foi uma questão de segurança, mas sim de zelo por suas posições profissionais. Depois do 25 de Abril, essas três militantes desenvolveram carreiras bem-sucedidas num Portugal que, após o fim da longeva ditadura, modernizava-se nos moldes das democracias europeias. Elas nunca comentaram em seus locais de trabalho que haviam participado de uma organização armada.
Cada capítulo, que tem como título o nome de uma das personagens, narra a respectiva trajetória política. Não se trata da transcrição integral dos depoimentos. A partir das entrevistas com as mulheres, Isabel Lindim ( 2012) construiu o texto, que é entremeado de citações e referências às entrevistas.
Graça tinha 19 anos quando ingressou nas Brigadas Revolucionárias. Ela vinha de uma família de classe média – o pai era engenheiro civil, o que conferia um certo nível econômico à família. Segundo ela, era um “ambiente familiar republicano e laico”, onde se “respirava liberdade e fomentava-se a vida intelectual” ( LINDIM, 2012, pp. 79-80). Era uma família católica, mas só a mãe era praticante. Quando Graça quis parar de frequentar a Igreja, a família aceitou sem qualquer problema. A educação era baseada no sentido de igualdade e no espírito contrário ao regime salazarista. Graça tinha muito contato com suas primas, que influenciaram as suas posições políticas. Uma dessas primas, a Joana I do livro, entrou junto com Graça na organização:
Lembro-me de haver sempre um discurso contra o Salazar nas conversas em casa. Discutia-se muito política, mas, curiosamente, era mais da parte das raparigas, que participavam nas discussões, os rapazes nunca tiveram o mesmo interesse pela política. Havia uma luta associada às mulheres e eu sentia-me muito identificada com elas ( LINDIM, 2012, p. 81).
Foi no ambiente familiar que Graça iniciou sua militância política. Isabel Lindim ( 2012, p. 81) comenta que, provavelmente, seu engajamento político seria aceito por todos na família, mas não sua militância numa organização armada. Sua família nunca soube de sua atividade política, mesmo Graça tendo participado de uma ação que ganhou as páginas dos jornais. No dia 25 de maio de 1973, o Diário de Lisboa anunciava na primeira página um assalto a um banco em Alhos Vedros. O jornal mencionava uma “jovem de minissaia azul” ( LINDIM, 2012, p. 73). Depois desse episódio, ela participou de mais alguns assaltos; um deles com corrida e perseguição de carros pelas ruas de Lisboa. Sua atividade nas Brigadas era inteiramente clandestina. Paralelamente, Graça continuava trabalhando, em meio período, como secretária em uma associação de planejamento familiar. Quando ocorreu a Revolução dos Cravos, e a consequente suspensão das atividades armadas das BRs, chegou para ela o fim de sua vida dupla, e ela nunca havia contado a ninguém essa sua experiência. Formou-se em sociologia. Ao final do capítulo a ela dedicado, declara: “É muito triste que 37 anos após o 25 de Abril tenhamos construído um país com tamanhas injustiças” ( LINDIM, 2012, p. 93).
Joana I, que também optou pelo pseudônimo, é a prima mencionada por Graça em seu depoimento. Ela era de uma família tradicional e culta. Em sua entrevista, menciona que Manuel Serra, militante da Juventude Universitária Católica e uma figura histórica da luta contra a ditadura, foi uma grande influência política em sua vida. Graça e Joana I entraram nas Brigadas e chegaram a fazer assaltos juntas. A primeira missão em que participaram fracassou, mas o grupo conseguiu fugir. Joana narra esse episódio com detalhes da fuga, que envolveu uma perseguição pelo segurança do banco, veículos entrando na contramão, até que o carro da ação foi abandonado, e os militantes se dispersaram. Após o 25 de Abril, Joana I não se vinculou a qualquer outra organização política, mas participou intensamente dos movimentos sociais de 1974 e 1975: os movimentos nos bairros, as associações de moradores, as greves nas fábricas, as ocupações das casas.
Já Joana II apresenta uma trajetória diferente. Ela vinha de uma família tradicional, rica, conservadora e católica, e tinha 16 irmãos. O pai era da Opus Dei e apoiava a ditadura. A família conservadora tinha imensas bibliotecas: “Influenciaram-me muito as centenas de livros ‘roubados’ às bibliotecas dos meus avós, pais e tios. Descobri que os livros eram uma porta para um mundo desconhecido, complexo e cheio de opções diversas” ( LINDIM, 2012, p. 106). Joana II fez o curso de serviço social. Apesar do teor religioso do curso na época, ela adorou os estágios e os trabalhos práticos. Um desses trabalhos foi no centro paroquial de um bairro popular de Lisboa, onde os moradores organizaram uma exposição que mostrava as condições de vida do bairro, mas “o material acabou por ser confiscado pela PIDE 26 e a responsável pelo centro social e o pároco tiveram problemas políticos” (p. 107). Depois dessa experiência, Joana II decidiu sair de Portugal em busca de “um pouco de liberdade e sabedoria”. Morou em Paris e nos Estados Unidos, tendo contato amplo com ideias, debates políticos e liberdade. Ficou grávida e teve a criança sozinha. Em 1972, decidiu voltar para Portugal, mas sua família não a quis receber, pois era “mãe solteira com tendências esquerdistas” (p. 109). Joana II foi, então, para Setúbal morar com uma tia. Lá, trabalhou numa livraria e numa tipografia, conhecendo militantes de esquerda com quem colaborava imprimindo panfletos de propaganda política. Foi assim que começou sua colaboração com as Brigadas Revolucionárias, mas foi após a Revolução que ela se vinculou ao movimento de bairros:
A nossa grande animação começou aí, depois do 25 de Abril, na vida socioeconômica de Setúbal. Havia a organização com os moradores, com os soldados e com os trabalhadores das empresas. Foi uma altura espantosa, onde se discutia muita coisa, toda gente queria participar ( LINDIM, 2012, p. 113).
A partir daí, Joana II consolidou a opção de trabalhar com urbanismo e movimentos de bairro, associando “os desejos profissionais e políticos” ( LINDIM, 2012, p. 114). Hoje, ela é professora da Universidade de Lisboa, onde dirige uma equipe que trabalha com políticas de habitação.
Maria Elisa da Costa é filha única de uma família modesta e conservadora. Aos 17 anos, arranjou emprego numa casa de família como preceptora. Quando as crianças cresceram, Maria Elisa decidiu ter um segundo emprego e passou numa seleção para o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). Trabalhando nessa instituição, fez novos contatos e amizades, inclusive participou da criação de um grupo de teatro no LNEC. A atuação nesse grupo lhe propiciou os primeiros contatos com movimentos de contestação e de oposição ao regime. Ela começou, então, a colaborar com a fuga de jovens portugueses que não queriam servir na guerra colonial. José Paulo Viana, irmão de Paula Viana, uma das entrevistadas no livro Mulheres de armas, foi quem introduziu Maria Elisa nas Brigadas Revolucionárias. Dentro da organização, ela assumiu o nome Fátima e serviu de apoio a diferentes ações e estratégias. Uma das mais importantes foi, em 1972, a captura dos mapas das colônias portuguesas em África, que eram guardados no prédio dos Serviços Cartográficos do Exército: “De madrugada saíram todos com os mapas militares de Angola, Moçambique e Guiné, que mais tarde José Paulo levou até Paris, de onde seguiram para Argel, para chegarem às mãos dos movimentos de libertação” ( LINDIM, 2012, p. 122).
Em sua entrevista, Maria Elisa narra um episódio já mencionado e que será ainda referido em outros capítulos do livro: a explosão acidental que ocorreu, em março de 1973, quando militantes da BRs estavam colocando bombas em instalações militares. O plano original era que elas explodissem de madrugada, mas um erro técnico fez com que explodissem quando estavam sendo montadas. Nessa explosão, morreram Ernesto e Luís, respectivamente Arlindo Garret e Carlos Curto – este último, colega de Maria Elisa no LNEC. A ligação dela com Carlos Curto era evidente e, por isso, ela teve que sair de Lisboa e se refugiar em Paris. No mesmo dia, a PIDE começou a procurá-la. Em Paris, ela trabalhou como empregada doméstica. Reencontrou, entretanto, militantes portugueses também refugiados, como Manuel Serra e Fernando Pereira Marques, este último ligado à LUAR. Maria Elisa e Fernando iniciaram um relacionamento e tiveram uma filha, nascida durante o exílio. Ela voltou para Portugal no dia 25 de Abril, com seu companheiro Fernando e a filha Marta nos braços, retomando seu trabalho no laboratório após os dois anos de exílio.
De todas as trajetórias narradas no livro Mulheres de Armas, a de Maria Patrocínia Raposo Guerreiro (Rosa) é a mais surpreendente. Rosa foi o seu pseudônimo nas Brigadas Revolucionárias, mas é com esse nome que Isabel Lindim conta sua história. Rosa nasceu em 1944, no Alentejo, em uma família humilde, que trabalhava “na ceifa e na apanha de azeitona” ( LINDIM, 2012, p. 137). O pai morreu quando ela tinha um ano e meio e, alguns anos depois, a mãe se casou de novo. O padrasto já tinha um filho e, dez anos depois, nasceu mais um irmão. Quando Rosa tinha 18 anos, o filho do padrasto, que estava na tropa em Moçambique, pediu-a em casamento. Ela aceitou. Casaram-se por procuração e, um ano depois, ela foi até a África encontrar o marido. O casamento nunca se consumou. Em sua entrevista, ela diz que “aceitou o casamento porque não queria desapontar a mãe” ( LINDIM, 2012, p. 138). Segundo ela, o marido compreendeu e aceitou a situação. O casamento perdurou oficialmente por muitos anos: só se divorciaram após o 25 de Abril, tendo ele morrido logo em seguida.
Após seu retorno de Moçambique, Rosa fez um concurso, foi aprovada e contratada para trabalhar como funcionária dos Correios, em Leiria. Lá, apaixonou-se por um homem, foi viver com ele, abandonou o emprego e engravidou de seu primeiro filho. O companheiro morreu num acidente de carro quando ela estava grávida de três meses. Com isso, Rosa foi para a casa de sua cunhada, em Figueira da Foz, e morou lá até seu filho Carlos nascer. Algum tempo depois, a cunhada, que trabalhava no Cassino de Espinho, ajudou-a a arrumar um emprego. Rosa foi contratada como bailarina de strip-tease e fez muito sucesso. Apresentou-se em vários clubes em Lisboa e no Porto. Isabel Lindim ( 2012, p. 139, grifos no original) assim descreve a cena:
No palco tudo que havia era uma cadeira e uma manta em seda com padrão de tigre. Rosa começava a sua performance na cadeira e acabava no chão. De vez em quando, também tinha de beber um cocktail com um cliente. Foi assim que, em Fevereiro de 1972, se sentou na mesa de Victor, o “João Grande” das Brigadas.
Rosa largou a vida de dançarina, foi viver com Victor e começou a colaborar com as atividades das BRs. Foi ele quem lhe sugeriu o pseudônimo. No início, sua função na organização era de apoio, levando ou buscando de carro os militantes, mas rapidamente a situação evoluiu: “A dada altura eu comecei também a participar nas ações. Nos assaltos, não entrava no banco, mas ficava a espera que me viessem entregar o dinheiro” ( LINDIM, 2012, p. 141).
Em sua entrevista, Rosa também se refere ao episódio que já conhecemos pelo capítulo de Elisa: a ação do dia 9 de março de 1973, na qual morreram os militantes Ernesto e Luís. O plano era colocar as bombas em dois quartéis diferentes e depois acionar a explosão. Rosa estava parada com o carro cheio dos explosivos que seus camaradas viriam buscar. Estava com seu filho Carlos e grávida de Armanda, filha de Victor. Alguma coisa errada se passou e, quando as bombas explodiram acidentalmente matando os dois militantes, os detonadores que estavam no seu carro também explodiram. O carro só não foi pelos ares porque os detonadores não estavam ligados ao plástico: 27
A dada altura rebentaram os detonadores no carro, na parte de trás. Fez um estardalhaço muito grande, partiram-se os vidros e cheirava a queimado. Tinha mais de vinte quilos de plástico. Se estivesse ligado ao detonador tínhamos morrido. Começou a aproximar-se gente. Só tive tempo de tirar a peruca, tirar os óculos escuros e agarrar o meu filho. Deixei o carro como estava ( LINDIM, 2012, pp. 141-142).
Rosa ainda participou de outras ações com explosivos e do apoio logístico à organização. Era ela quem alugava os carros utilizados nas ações. Alguns meses após o 25 de Abril, João Grande e Rosa se separaram. Três meses depois, Victor morreu num acidente de carro (como acontecera com o pai de Carlos). Rosa se afastou, então, dos antigos companheiros das BRs e retomou seu trabalho nos Correios. Carlos, que sempre acompanhou a mãe, hoje tem uma loja no Bairro Alto, em Lisboa. Armanda lhe deu um neto, chamado Afonso.
Paula Viana vivia em Angola com a família. Segundo ela, “num ambiente colonial, moderno e abastado” ( LINDIM, 2012, p. 148), só conhecia os brancos que moravam nos bairros ricos. Foi para o Porto cursar Economia. Lá, morava num lar de estudantes ao lado de um prédio de habitação popular, onde famílias inteiras dividiam um único cômodo. Começou aí seu processo de conscientização política, e ela buscou contatos com lideranças estudantis e militantes do PCP, mas ficou insatisfeita. Tomou conhecimento das Brigadas Revolucionárias quando elas realizaram suas primeiras ações e se sentiu imediatamente atraída. Seu irmão José Paulo Viana (que também encontramos no capítulo de Elisa) já era integrante das Brigadas, e foi ele quem a inseriu no grupo. Sua primeira ação foi a colocação de petardos com panfletos dentro de caixotes de lixo, em locais de confluência, para explodirem e espalharem panfletos referentes ao 1º de Maio. Paula tinha 22 anos. Após essa ação, Chico, seu marido, também se juntou às BRs. O casal e mais um amigo foram responsáveis por várias ações. Um dos alvos foi o Distrito de Recrutamento e Mobilização do Porto, onde se localizavam os arquivos dos soldados que seriam enviados para a guerra colonial. Paula narra com detalhes a instalação da bomba colocada por ela durante o dia e programada para explodir à noite, quando não haveria pessoas no local.
Paula participou também do planejamento de uma ação a ser realizada na Guiné, com o objetivo de intimidar um grupo de militares. Isabel Lindim ( 2012, p. 157) destaca que foi a única vez que, segundo Paula, discutiu-se dentro da organização a “possibilidade de haver vítimas”. A bomba foi levada por um militante das Brigadas dentro de um livro, no qual se cortaram as páginas e se encaixou a bomba. A ideia era colocá-la ao lado de uma sala onde deveria ocorrer uma reunião. O encontro acabou não se realizando, mas um militar português que estava na sala trabalhando, o General Galvão de Figueiredo, foi atingido por alguns estilhaços. A explosão não teve vítimas fatais. Paula participou de outras ações junto com militantes já mencionados, como Graça e João Grande. Ela participou também do último assalto a banco feito pelas Brigadas, poucos dias antes do 25 de Abril. Após a Revolução, Paula Viana se engajou no clima revolucionário do Porto, participando de comissões de moradores, apoiando os trabalhadores em greve, envolvendo-se em ocupações de fábricas. Para ela, “aqueles primeiros tempos depois do 25 de Abril foram muito intensos e dos mais felizes da minha vida” ( LINDIM, 2012, p. 165).
O livro de Isabel Lindim ( 2012) – com toda a sua carga de subjetividade – tem uma importância singular no panorama dos estudos de gênero sobre a ditadura portuguesa. A perspectiva teórica e metodológica do trabalho com a memória e testemunhos é relativamente recente em Portugal. O Museu do Aljube – um antigo presídio em Lisboa que foi transformado no Museu da Resistência e da Liberdade 28 – tem fomentado iniciativas desse tipo. Desde sua criação, a instituição se tem dedicado a avançar no tema da memória em Portugal, valorizando, principalmente, a questão dos testemunhos. Em 2014, o museu criou o Projeto Vidas Prisionáveis, 29 com entrevistas públicas realizadas em seu auditório. Eram convidados ex-vítimas e ex-prisioneiros da ditadura salazarista, a cada vez um personagem diferente. Alguns desses depoimentos foram publicados no livro No limite da dor: A tortura nas prisões da PIDE, de Ana Aranha e Carlos Ademar ( ARANHA; ADEMAR, 2014).
Cruzando narrativas e memórias: Elementos comparativos entre o documentário brasileiro e o livro português
Tanto as depoentes do documentário como as entrevistadas do livro valorizam, e não renegam, sua participação na luta armada. O tom e, principalmente, o teor das memórias são, contudo, bastante diferentes. As militantes brasileiras foram submetidas a uma enorme violência física e psicológica, sevícias e humilhações. O trauma e a luta para a sua superação são os elementos centrais dos depoimentos no filme Que bom te ver viva – não apenas aqueles das entrevistadas, mas também os da personagem representada pela atriz Irene Ravache. Os relatos das militantes das BRs apresentados no livro de Isabel Lindim são diferentes, pois elas não chegaram a passar por prisões ou torturas. As ações das Brigadas foram interrompidas pelo 25 de Abril, que derrubou a ditadura portuguesa. A Revolução dos Cravos esvaziou a mobilização das BRs, que puseram um freio em suas ações armadas. Mas, se a ditadura portuguesa chegou ao fim derrubada por uma revolução, no Brasil, as organizações guerrilheiras foram desmanteladas por uma ditadura militar ainda forte, que via como um trunfo a derrota sobre a esquerda armada. O período que marcou o confronto entre as organizações armadas e a ditadura militar brasileira entrou para os anais da história como os Anos de Chumbo (1969-1974), a época mais violenta da ditadura, que correspondeu ao governo do presidente Médici. Essa diferença entre os processos históricos é o que determina o contraste não apenas no tom dos depoimentos, mas também na experiência que eles retratam. A questão da tortura, em suas diferentes dimensões, tanto física quanto psicológica, é, portanto, um elemento central na diferenciação das experiências e das memórias aqui analisadas.
Por outro lado, é interessante notar que as depoentes do documentário brasileiro (com exceção da militante Anônima) têm seus nomes e sobrenomes publicizados no filme. Todas elas foram presas, e a recuperação/superação que estavam vivendo na época em que o filme foi feito se dava a partir de seu nome real na sociedade. Não há possibilidade de reparação sob um nome fictício. A superação do trauma e a reinserção na vida “normal” (ou seja, a vida que os outros vivem) só acontecem a partir de seus nomes próprios. Ao passo que, no livro Mulheres de armas, as três primeiras depoentes narram suas histórias com os pseudônimos que usavam quando militavam nas Brigadas Revolucionárias. A justificativa que dão é que não querem se expor no espaço profissional em que atuam hoje. Ou seja, uma justificativa racional, profissional. Essa diferença está relacionada aos processos históricos distintos, mas acreditamos que há também um outro elemento: a diferença da data da publicação dessas obras em relação à experiência vivida.
O filme de Lúcia Murat foi lançado em 1989, cerca de 15 a 18 anos depois dos acontecimentos vividos, e as entrevistas começaram a ser gravadas alguns anos antes. Muitas feridas ainda estavam abertas. Em 1989, foram realizadas as primeiras eleições diretas para presidente da República após o golpe de 1964. A redemocratização do país dava seus primeiros passos, mas a sociedade brasileira parecia querer apagar a memória da violência, das torturas, dos mortos e desaparecidos. O processo de luto pessoal e político ainda estava acontecendo. As mulheres do filme Que bom te ver viva ainda estavam feridas, traumatizadas, esforçando-se para se reinserirem no mundo e na vida social. A questão da recuperação de sua integridade física e emocional ainda era prioridade. E, para isso, elas precisavam dizer quem eram e o que lhes aconteceu. A situação das depoentes portuguesas é diferente, em parte porque estão narrando episódios que aconteceram cerca de 40 anos antes. O que foi vivido já está longe e não interfere de forma mais profunda em suas vidas ou em seus sentimentos. Por outro lado, algumas delas (as que usam seus pseudônimos) têm carreiras profissionais consolidadas que não se coadunam com um passado de ações armadas. A questão do anonimato versus a necessidade de falar em nome próprio se coloca de forma diferente para esses dois grupos de mulheres, em função tanto das diferenças dos processos políticos dos dois países quanto da proximidade ou da distância temporal dos acontecimentos vividos.
O documentário brasileiro de Lúcia Murat, que fala de si e entrevista suas companheiras, é um testemunho geracional sobre o trauma da violência e a tentativa de sua superação. O livro português, escrito por Isabel Lindim ( 2012), relata experiências da geração de sua mãe. Uma mãe que está fortemente presente na obra, não de forma testemunhal, mas sim através de um texto teórico sobre a história e a política que sua geração vivenciou. Os lugares e posições de autoria são diferentes e conferem caráter distinto às duas obras. Isabel Lindim escreve o livro, de certa forma, sob a ascendência da mãe. O enquadramento do livro é dado pela introdução de Isabel do Carmo ( 2012), que também é responsável pelas indicações e pelos contatos com as entrevistadas. As entrevistas compõem uma narrativa que insere as Brigadas Revolucionárias na história contemporânea portuguesa. O livro é um ato de valorização da experiência armada das BRs.
Os casos das militantes portuguesas abordados no livro são, essencialmente, experiências positivas – entre outros motivos, porque essas mulheres não foram presas e não vivenciaram a tortura. Em seu testemunho, Paula Viana deixa isso claro: “Tudo se passou num período de três anos, de 1971 a 1974. Se não tivesse acontecido o 25 de Abril, talvez a polícia tivesse descoberto o rasto da organização e de seus elementos” ( LINDIM, 2012, p. 164). Isso, entretanto, não aconteceu, e nenhuma dessas militantes armadas entrevistadas passou pela prisão.
Podemos apontar que as duas obras constroem tipos diferentes de memória: uma memória traumática no documentário brasileiro, e uma lembrança feliz no livro português. A ditadura militar se encerrou no Brasil por meio de um processo de negociação que deixou muitas feridas abertas. O filme de Lúcia Murat torna isso evidente. Já em Portugal, a derrubada da ditadura pela Revolução dos Cravos e o período de intensa participação política que lhe seguiu influenciaram na forma como as depoentes lembraram e narraram suas experiências.
A comparação aqui proposta coloca em diálogo um filme-documentário e um livro, que normalmente demandariam ferramentas metodológicas distintas de análise. Estamos, no entanto, encarando esses dois documentos a partir de seu teor testemunhal, em torno do fato de que ambos são suportes de depoimentos. Nesse sentido, eles apresentam algumas características comuns interessantes: tanto o filme como o livro são feitos essencialmente a partir de depoimentos editados. Os dois tratam de memórias de mulheres que foram recolhidas e editadas, seja pela diretora do filme, seja pela autora do livro, ambas com forte envolvimento íntimo e afetivo com o tema tratado e com as mulheres que depõem. O filme de Lúcia Murat recorre à teatralização da personagem Irene Ravache. Já no livro de Isabel Lindim, as próprias depoentes muitas vezes narram suas experiências de forma teatralizada.
Algumas considerações finais
Procuramos abordar neste texto a inter-relação entre política e subjetividade, a partir do entrelaçamento entre história e memória. Gostaríamos de encerrar mostrando como esse binômio atuou na escrita deste texto. Rever o filme de Lúcia Murat depois de tantos anos – pois assistimos a ele pela primeira vez em 1989, quando foi lançado – e nos debruçar sobre a análise mobilizou as nossas próprias memórias.
Gostaríamos de mencionar também o impacto que foi a descoberta da existência de organizações armadas em Portugal e conhecer as suas especificidades. A única luta armada no mundo que se impôs o preceito “não matarás”. Essa descoberta apareceu, primeiramente, no acervo do Centro de Documentação 25 de Abril, em Coimbra, e depois foi complementada no setor de documentação da Biblioteca Nacional, em Lisboa. Para um historiador ou uma historiadora, a descoberta de uma documentação desconhecida sempre abre um novo campo de estudos e reflexões.
Referências
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- MONTENEGRO, Antonio T.; RODEGHERO, Carla S.; ARAUJO, Maria Paula (Org.). Marcas da memória: História oral da anistia no Brasil. Recife: Ed. UFPE, 2012.
- PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina Scheibe (Org.). Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Mulheres, 2010.
- POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
- RABY, D. L.. Fascism & Resistance in Portugal: Communists, Liberals and Military Dissidents in the Opposition to Salazar, 1941-1974. Manchester: Manchester University Press, 1988.
- SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: A questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica, v. 20, n. 1, p. 65-82, 2008.
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1
O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) é uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro (PCB), criado em 1962. Diferentemente das outras organizações aqui mencionadas, o PCdoB existe até hoje, tendo sido legalizado em 1985.
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2
QUE BOM te ver viva. Direção: Lúcia Murat. Rio de Janeiro: Taiga Filmes e Vídeo, 1989, 100 min.
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3
Ver, por exemplo: MURAT, Lúcia. Depoimento às Comissões Nacional e Estadual. Rio de Janeiro, 28 maio 2013. In: Comissão da Verdade do Rio (YouTube). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZwyKtFdZrKk (a partir de 9 min 44 s). Acesso em: 18 set. 2023.
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4
QUE BOM te ver viva, 1989, 21 min 35 s.
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5
QUE BOM te ver viva, 1989, 49 min 6 s.
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6
QUE BOM te ver viva, 1989, 40 min 47 s.
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7
QUE BOM te ver viva, 1989, 34 min 32 s.
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8
Os desaparecimentos de Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier estão registrados no terceiro volume do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, Mortos e desaparecidos políticos ( BRASIL, 2014, pp. 1595-1607). Nos dois casos, o relatório indica a possibilidade de que eles tenham sido executados na Casa da Morte, em Petrópolis, local que funcionava como um centro clandestino de detenção e tortura.
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9
QUE BOM te ver viva, 1989, 51 min 7 s.
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10
QUE BOM te ver viva, 1989, 52 min.
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11
QUE BOM te ver viva, 1989, 38 min 31 s.
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12
QUE BOM te ver viva, 1989, 62 min 45 s.
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13
QUE BOM te ver viva, 1989, 63 min 48 s.
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14
QUE BOM te ver viva, 1989, 82 min 19 s.
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15
QUE BOM te ver viva, 1989, 68 min 13 s.
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16
QUE BOM te ver viva, 1989, 95 min 24 s.
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17
Trad. livre da autora: “aportan algo que no es idéntico al conocimiento puramente documental”.
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18
BRASIL. Lei n o 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm. Acesso em: 18 set. 2023.
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19
ARQUIVO NACIONAL. Memórias reveladas. Disponível em: https://www.gov.br/memorias\reveladas/pt-br. Acesso em: 18 set. 2023.
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20
Resultados parciais podem ser consultados em Montenegro; Rodeghero; Araujo ( 2012).
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21
Ver: BRASIL. Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/\_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm. Acesso em: 18 set. 2023.
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22
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL (CD25A), Coimbra. Pasta LUAR, 1967-1976. O material referente à LUAR ainda não estava catalogado quando fizemos nossa pesquisa em Coimbra. O material estava guardado em caixas e pastas que reuniam panfletos, recortes de jornais, cartazes, documentos diversos da organização. Em vários desses documentos, pode-se perceber o conflito dessa organização entre apoiar o governo e manter o projeto de luta socialista. Num panfleto datado de 15 de agosto de 1974, a LUAR denunciou o que considerava um recuo e uma traição do governo pós-revolução, que não estaria levando em conta os anseios populares.
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23
Esse foi o caso do Brasil, de vários países latino-americanos e europeus, como Itália, Alemanha, entre outros. O tema é discutido em Araujo ( 2000).
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24
Há algumas indicações de que o PRP realizou atividades armadas em 1975. Na cronologia que acompanha o livro de Lindim ( 2012, p. 254), há o seguinte registro: “1 de Agosto: Resistência Armada do PRP-BR na sede de São João da Madeira”. Não são, contudo, dadas maiores informações sobre o ocorrido. Em sua tese de doutorado, Ana Sofia de Matos Ferreira ( 2015, p. 303) também menciona uma declaração do PRP de retorno à luta armada, sem especificações.
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25
Como duas delas haviam utilizado o mesmo pseudônimo, Lindim as nomeou como Joana I e Joana II.
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26
A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) foi criada em 1945, como polícia política a serviço do Estado Novo português. Durante o governo de Marcello Caetano, em 1969, foi substituída pela Direcção Geral de Segurança. Ver: PIDE/DGS. In: Associação dos Amigos da Torre do Tombo. Disponível em: https://www.aatt.org/site/index.php?op=Nucleo&id=1452. Acesso em: 18 set. 2023.
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27
Essa explicação técnica aparece tanto no capítulo referente a Maria Elisa da Costa quanto no depoimento de Maria Patrocínia (Rosa).
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28
Para saber mais sobre a instituição, consultar: Museu do Aljube Resistência e Liberdade. Disponível em: https://www.museudoaljube.pt/. Acesso em: 18 set. 2023.
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29
Ver as gravações disponíveis em: TESTEMUNHOS/Vidas prisionáveis/Vidas na resistência. In: Museu do Aljube Resistência e Liberdade (YouTube). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wQzogtmgqfY&list=PLuMKlAonEPgUsqwWdu5M0N5GXzJi3x_hZ. Acesso em: 18 set. 2023.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Jan 2024 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2023
Histórico
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Recebido
24 Fev 2023 -
Aceito
08 Out 2023 -
Revisado
18 Set 2023