Open-access Argélia, argelinos e circulação de notícias Entrevista com Arthur Asseraf 1

Arthur Asseraf é um dos nomes mais proeminentes na discussão sobre a Argélia colonial no debate acadêmico contemporâneo. Apesar de sua formação e principais pesquisas estarem atreladas à área da historiografia, as pesquisas desse autor francês tanto conversam quanto coadunam também alguns temas do campo da Comunicação e de sua ramificação, em estudos de jornalismo.

Esse historiador nasceu e cresceu em Paris e é, hoje, pesquisador na Pembroke College (da Cambridge University). Mais do que isso, Asseraf ( Figura 1 ) tem chamado a atenção primeiramente devido ao Prêmio de Livro de Estudos do Oriente Médio [ Middle East Studies Book Prize ] de 2019, por ocasião de seu primeiro volume publicado, Electric News in Colonial Algeria (Asseraf, 2019 ), conforme Figura 2 . A publicação, na verdade, deriva da tese de doutorado do autor, Foreign News in Colonial Algeria [ Notícias Estrangeiras na Argélia Colonial ], 1881-1940 (Asseraf, 2016 ), defendida em 2016, na All Souls College, da Oxford University. O trabalho em questão mergulha nas dinâmicas entre a população heterogênea da Argélia, durante o período referido, na indústria de notícias que chegavam ao país do outro lado do mar Mediterrâneo e o resultado dessas relações em diferentes sentidos subjetivos.

A entrevista que segue foi motivada tanto pela ascensão do autor quanto pelo crescente interesse do público brasileiro pelas questões que concernem à África do Norte (em especial, a Argélia), devido à também crescente influência de Frantz Fanon no pensamento acadêmico do Brasil. Portanto, a entrevista oportunizará os leitores latino-americanos de entrarem em contato com os vários aspectos da abordagem e interesses de pesquisa de Asseraf. Explorará, ademais, algumas das particularidades de suas investigações acadêmicas, acima de tudo, as relativas à Argélia, uma vez que, é justo dizer, o, assim chamado, Terceiro Mundo, ainda se encontra em meio ao processo de descolonização.

Figura 1:
Retrato do entrevistado

Gostaria, para começar, que você falasse sobre sua trajetória e suas principais influências acadêmicas.

Eu sou um historiador, logo, fui treinado em História como uma disciplina. Cursei o ensino fundamental e médio na França e, então, deixei o país para fazer minha graduação no Reino Unido, em História, na Universidade de Cambridge. Eu estava interessado em vários tipos diferentes de história, não em uma era ou questão particular. No entanto, gradualmente, comecei a ficar mais interessado na Guerra da Argélia, porque é algo muito interessante. Quando eu estava crescendo, na década de 1990 e início dos anos 2000, na França, existiam várias discussões em torno disso, assim, era algo bastante presente. Contudo, também, não era ensinado muito bem nas escolas, de modo que eu tinha várias perguntas sobre isso. Portanto, parecia interessante.

Fiz um mestrado em História Internacional, na Universidade de Columbia, em Nova York, e, naquele momento, comecei a estudar árabe com o intuito de conseguir pesquisar melhor. Acredito que gradativamente [o mestrado] mudou minhas perguntas. Eu me interessei mais no que precedeu a guerra, leia-se no colonialismo na África do Norte, e em tentar entender a história da África do Norte para além da França. Então, ingressei no doutorado orientado pelo professor James McDougall, que é um incrível historiador sobre a Argélia.

Aprendi muito com ele, porque, acredito, até esse momento, eu não havia trabalhado com alguém que sabia, de fato, algo sobre o tema. Frequentemente, eu havia de explicar coisas aos professores, ainda que eu não soubesse muito. Com ele, foi, finalmente, uma dinâmica bastante diferente.

Então, principalmente, o que me interessava era como essa sociedade em particular existia no mundo, o que eles sabiam sobre outros lugares, como isso os influenciava... e gradualmente fui me interessando pela mídia 2 como forma de responder a essas perguntas. Então, eu realmente tinha formação em História e o material da mídia chegou bem tarde.

Depois do doutorado, tive a sorte de conseguir um emprego como professor em Cambridge, por isso, é onde estou baseado: em Cambridge, no Reino Unido, no departamento de História. Passei algum tempo no Líbano, principalmente estudando mais árabe e fazendo algumas pesquisas e, no momento, fui financiado por um fundo de pesquisa sueco. Como parte desse financiamento, estou na Suécia, mas vou regressar a Cambridge.

Escolhi estudar na Inglaterra em vez da França porque queria ir para outro lugar. Fui educado em inglês durante parte da minha formação, porque morei nos Estados Unidos com minha família por um tempo. Eu queria experimentar coisas novas. A Inglaterra estava um pouco afastada, mas um pouco próxima. Além disso, parecia um bom lugar para estudar, onde o sistema é um pouco mais gentil do que o francês. Na França, você tem que trabalhar muito e fazer exames muito estranhos. Parecia um lugar que levava mais a sério, mesmo para um estudante de 19 anos. Os professores estavam muito mais interessados em mim, e você não precisava trabalhar muito por nada desde o início. Gostei do sistema educacional de Cambridge quando entrei para a entrevista.

O que o motivou a estudar a Argélia Colonial? Além disso, por que estudar a recepção do povo argelino às notícias estrangeiras?

O que me motivou a estudar a Argélia Colonial é, em parte, uma questão muito intelectual, que é: como é possível ter uma sociedade onde as pessoas vivem muito próximas umas das outras, mas têm muito pouco contato — e passam a maior parte do tempo ignorando umas às outras? Considero que esse é, em geral, um problema bastante fascinante e que se relaciona com muitos locais, mas é um dos casos mais visíveis e extremos dessa situação. Eu também experimentei isso no mundo em que vivemos agora e por isso estou interessado nisso.

Especificamente, cresci na França, numa época em que havia muitas discussões sobre o legado daquele passado colonial. Então eu queria entender como era aquela sociedade. Além disso, cresci numa família da qual uma parte veio da África do Norte, ouvindo muitas histórias da minha avó, em particular, sobre aquela sociedade, que eram muito intrigantes, que eram muito estranhas. Eu não entendia realmente e acho que, em algum momento, percebi que, se quisesse descobrir isso, teria que descobrir sozinho. Não havia muito disponível para eu encontrar facilmente, então tive que fazer essa pesquisa sozinho.

Agora, sobre a segunda parte da sua pergunta: inicialmente, a questão era: como podemos compreender como esta sociedade colonial específica se enquadrava no mundo mais vasto da época? Então, o que sabem os argelinos sobre o resto do mundo? Eles sabiam o que estava acontecendo na África do Sul? Eles sabiam o que estava acontecendo nos Estados Unidos? Era nisso que eu estava interessado. Eles viam isso como algo semelhante ao que estavam passando ou não naquele momento?

Em parte, porque algumas pessoas estudaram coisas sobre a Argélia colonial, mas foi muito limitado a esse caso e não houve grande quantidade de discussões entre as pessoas que fizeram pesquisas sobre isso e as pessoas que fizeram pesquisas sobre a segregação nos Estados Unidos, na África do Sul ou no Brasil e muitos outros lugares. Eu estava tentando os conectar, descobrindo o que as pessoas daquela época sabiam sobre isso. Foi por isso que me interessei por notícias estrangeiras, mas depois elas me levaram em direções que eu não esperava.

Os lugares que interessavam aos argelinos não eram os que eu imaginava. Por exemplo, a África do Sul — que eu teria pensado que seria um lugar interessante para eles —: eles só se interessariam depois de 1948. Mesmo na década de 1960, que é bastante tarde, e até então não havia muito interesse na África Subsaariana.

Então percebi que não podia apenas procurar os locais que me interessavam, mas que tinha de compreender a mecânica da divulgação de notícias na Argélia, de onde as pessoas recebiam as notícias, como isso funcionava e como isso moldava os seus horizontes políticos.

Eu pensei que, e isso é como vários projetos de pesquisa começam, muita gente tinha feito essa pesquisa, mas, na verdade, não tinha. Basicamente, tive que mapear como a informação circulava na Argélia para entender isso. Assim, isso se tornou muito mais interessante do que eu pensava, está intimamente ligado aos lugares que as pessoas estavam interessadas, uma vez que você fica assim, começa a fazer mais sentido.

No seu perfil no site da Universidade de Cambridge, você afirma que sua pesquisa “olha para a Europa e o Norte da África juntos para”desenvolver novas narrativas”. Você pode divulgar quais são essas novas narrativas? Além disso, como você descreveria seu trabalho em termos metodológicos? Você se vê ligado a uma determinada escola de pensamento? Considerando a sua universidade e as suas raízes, respectivamente, é possível assumir que você pode ter sido influenciado pela abordagem contextualista ou pela École des Annales?

Não sou um historiador do pensamento político, portanto, não pertenço a esse tipo de Escola de Cambridge, nesse sentido específico. Esse é um tipo de escola bem definido dentro de Cambridge. Não sou realmente treinado nesse sentido e não estou principalmente interessado em história intelectual, não é assim que trabalho. Sou mais um historiador social e um historiador da tecnologia. Assim sendo, estou mais interessado nas estruturas materiais, na forma como as pessoas as vivenciam e como as pessoas as imaginam através das infraestruturas materiais.

É por isso que acho a mídia tão interessante, porque ela está obviamente na intersecção de tecnologias muito materiais e da maneira como as pessoas imaginam o mundo, como isso acontece através dele. Essa é a primeira coisa que eu diria. Suponho que herdei muito de uma mudança para a história global, que aconteceu em vários lugares, mas particularmente em Cambridge, sob a orientação do antigo professor Christopher Bayly (1945-2015), que é uma forma de olhar o mundo que não é apenas contra a história nacional, mas também coloca o Sul Global no centro das narrativas da história mundial. Portanto, quando penso em escrever a história da Europa e da África do Norte juntas, é porque penso que chegamos a um ponto em que muitas pessoas disseram que o eurocentrismo é mau. Isso é verdade e é notável quão persistente é na escrita histórica. Porém, penso que precisamos ir além de apenas dizer “o eurocentrismo é mau, olhe para esses outros lugares”. A questão é: depois de reunirmos esses outros lugares, que novas histórias teremos?

Para lhe dar um exemplo, se olharmos para um objeto muito, muito central na história europeia, que é a revolução da impressão — a invenção da imprensa por Gutenberg e como esta transforma as sociedades europeias —, se pensarmos que do outro lado do [Mar] Mediterrâneo as pessoas não estavam interessadas na impressão e não a escolheram, então a história se torna tanto sobre a disseminação muito, muito rápida da impressão, quanto sobre os lugares onde as pessoas não acham isso interessante, ao mesmo tempo. Descrever esses dois fenômenos ao mesmo tempo é bastante difícil analiticamente. Não basta dizer “os árabes não estavam interessados na impressão porque eram atrasados”. É preciso ser capaz de explicar porque é que a impressão se tornou popular na Europa e porque não o foi em muitos outros lugares.

Portanto, acho que essa é minha principal influência. Outra influência foram os historiadores da mídia e da tecnologia. Como encontram continuamente novas formas de repensar a relação entre o material e o imaginário. Isso eu achei realmente inspirador. Não há oposição entre o estudo das condições materiais e o modo como as pessoas imaginam as coisas. Se você olhar um jornal, verá as duas coisas ao mesmo tempo.

A partir de 1848, o Estado francês considerou oficialmente a Argélia como um departamento de ultramar. No entanto, uma parte importante da literatura – e você está incluído – refere-se a esse período como colonial. Você pode explicar sua visão sobre esse assunto?

A Argélia era ambos. A Argélia era composta por três départements — um no Ocidente, Oran, um no centro, Argel, um no Leste, Constantine — e uma colônia. Legalmente, isso não era uma contradição, era descrito como ambas as coisas, o que pode parecer confuso para nós, mas na época não era um problema. Tinha um estatuto jurídico particular diferente dos outros territórios do Império Francês. Por exemplo, quando uma lei era aprovada, a frase que normalmente se dizia era “esta lei é aplicável à Argélia e às colônias”. A Argélia estava separada das colônias.

Principalmente o que isso significava é que os colonos europeus, ou seja, os argelinos franceses que estavam na Argélia, foram governados da mesma forma que seriam na França. Assim, eles tinham a mesma forma de administração e os mesmos direitos. Eles tinham direito de voto, elegeram os seus representantes, tudo isso, mas viviam rodeados por uma população muito maior que era ministrada como colonos coloniais. Portanto, são as duas coisas ao mesmo tempo, e foi descrito, naquela época, como as duas coisas ao mesmo tempo.

Só mais tarde, quando a descolonização começa a acontecer, é que começam a dizer “não, não, não é uma colônia, é uma parte de França”, e essas coisas se tornam um pouco antagônicas. Mas, na verdade, durante a maior parte do século XIX e início do século XX, foram as duas coisas ao mesmo tempo.

Mas é uma colônia com um estatuto específico porque tem uma maior população de colonos [europeus] e essa população exige ser tratada como se estivesse na França, e não como um cidadão de segunda classe.

Na sua tese, o senhor aponta, em diferentes partes, que, devido à sua heterogeneidade, o povo argelino teve relações fortemente contrastantes com as notícias estrangeiras no período que analisou. Como você descreveria o conceito de identidade (tanto no sentido individual quanto nacional) nesse cenário? Em que medida as notícias influenciaram isso?

No meu trabalho, identidade não é um conceito que utilizo, porque acho que se tornou muito, muito vago e difundido. Muitas vezes eu realmente não sei o que significa quando as pessoas dizem isso, então, eu realmente não uso analiticamente.

Assim, para ser conciso, a sociedade colonial argelina está estruturada numa divisão fundamental: pessoas que foram legalmente descritas como nativas (indígenas) e pessoas que são descritas como europeias (ou colonos). Na verdade, essa sociedade é muito mais complicada e existem muitos outros grupos de ambos os lados. Existem muitas diferenças entre a chamada “população europeia”. Depois de um tempo, inclui judeus argelinos, nativos da Argélia, os quais passam a ser legalmente descritos como europeus. Entre a população nativa, claro, também existiam diferenças entre pessoas que falavam línguas diferentes, que vinham de áreas diferentes e que tinham estatutos sociais diferentes.

Há muita diversidade, mas legalmente ela é organizada de acordo com uma divisão. Esta é a primeira coisa a ter em conta e é uma característica das situações coloniais: no entanto, por mais complicada que seja a sociedade, ela é representada como dividida em duas, e é assim que as pessoas a imaginam.

Foi assim que as pessoas na Argélia se imaginavam e também imaginavam, grosso modo , o mundo inteiro dividido entre colonizador e colonizado. Agora, falando especificamente, a maioria dos argelinos se descreviam — e eram descritos pela lei francesa — como muçulmanos. Esse é um termo importante porque, até a II Guerra Mundial, o termo “argelino” não se referia realmente às pessoas que hoje chamaríamos de argelinos.

O termo “argelino” foi, principalmente, designado para o que hoje chamaríamos de “colonos”, um pouco como os estadunidenses se consideram estadunidenses e os australianos se consideram australianos.

A maioria das pessoas que hoje chamaríamos de “argelinos” seriam chamadas de muçulmanas. Esse era um termo legal na França. As pessoas têm evitado usar isso agora porque é quase um insulto não os chamar de argelinos. Na verdade, naquela altura, esse também era um termo que as [próprias] pessoas utilizavam para se designarem, porque se viam como parte da comunidade muçulmana em todo o mundo. Portanto, a sua identidade não era necessariamente apenas nacional. Eles observaram que o que estava acontecendo consigo estava bastante vinculado ao que estava acontecendo com os muçulmanos em outras regiões do mundo, em que estavam muito interessados.

Isso foi uma coisa que tive que descobrir em minha pesquisa. Notícias as quais envolviam pessoas entendidas como muçulmanas interessam os argelinos muito mais, porque eles entendem estarem conectadas às deles próprios. Notícias que afetam pessoas que são ([ou] que diríamos que foram) colonizadas, mas não eram muçulmanas, não percebem imediatamente a ligação. Isso não está errado, apenas a forma como organizaram a sua compreensão do mundo era diferente da forma como fazemos agora. Eles viam a sua forma primária de comunidade como sendo feita através do Islamismo, o que não significa necessariamente que fossem particularmente religiosos. Alguns deles eram, e alguns deles não eram. Eles entenderam que isso os unia como uma comunidade.

Figura 2:
Capa do livro premiado

Albert Camus, em 1945, no Combat, escreveu uma série de textos sobre a Argélia. Em dado momento, abordou a questão da imprensa e da política (mais especificamente, da democracia):

Um retrato político da Argélia hoje não estaria completo sem tomar nota dos democratas franceses que vivem em contacto diário com os graves problemas que descrevemos em artigos anteriores. Contudo, não se enganem: os elementos democráticos estão em minoria. Tenhamos em mente que o regime de Vichy encontrou os seus mais calorosos apoiadores na Argélia, onde ainda permanecem vestígios. Com exceção de Alger Républicain (e, em menor medida, de Oran Républicain ), todos os diários argelinos colaboraram. Eles retiveram algo desse período, como revela uma olhada em qualquer um deles. [...]. Se estes jornais têm um grande número de leitores é porque a democracia não teve uma boa imprensa no Norte de África. Muitos destes leitores são altos funcionários do Governo Geral. Isto é o que às vezes é chamado de “situação política esclarecida”

(Camus, 2007 , p. 214-215, trad. liv.; grifos do autor).

Dito isso, gostaria de ouvir a sua opinião sobre dois assuntos distintos: (1) como avalia e descreve a formação da imprensa em território argelino após as leis coloniais?; (2) a sua análise considerando a imprensa argelina e o seu estado da arte face à ideia de democracia.

Como a imprensa argelina se desenvolveu: não havia indústria impressa antes da conquista francesa, então, ela chega com os franceses, que imediatamente organizam jornais para eles mesmos e o número de publicações aumenta com o montante de colonos europeus. Logo, está diretamente conectado à quantidade de franceses e de outros europeus que estão na Argélia. Desde 1881, existe uma lei muito influente sobre a liberdade de imprensa que existe na França e essa lei também se aplica na Argélia. Ela protegia a liberdade de imprensa e é, ainda hoje, aplicada na França, mas não protege a liberdade de expressão de pessoas que não são cidadãos, como a maioria dos [daqueles] argelinos.

Chega a haver, na Argélia, uma situação muito dividida, que é muito característica daquela sociedade colonial, entre a minoria de pessoas que têm cidadania francesa, que publicam muitos jornais, que estão legalmente protegidas para o fazer, e a maioria das pessoas que seguem leis muito restritivas, que podem ser detidas sem julgamento apenas por dizerem coisas, nem mesmo por as publicar. Quem você é significa que você pode dizer coisas muito diferentes.

Existem muito poucos jornais desenvolvidos destinados à população muçulmana, ou seja, à grande maioria da população da Argélia. Há alguns que se desenvolveram no início do século XX, muito mais tarde. Existem números muito pequenos e tendem a fechar muito rápido. Não havia jornal diário para a maioria dos argelinos até a independência, em 1962.

Isso é bastante surpreendente, dado que, se olharmos para os países vizinhos, como, por exemplo, a Tunísia, que é muito menor que a Argélia, há toneladas de jornais, incluindo jornais diários, ao mesmo tempo. Portanto, há algo específico acontecendo na Argélia e, no meu entender, a presença e a importância da população europeia e dos seus jornais tornam, na verdade, mais difícil o desenvolvimento de jornais para os argelinos. Porque, legalmente, o regime é mais difícil, e, em termos de economia, é mais difícil capturar o mercado e há menos dinheiro para circular, e a economia é mais dominada pela população europeia. Então, isso é mais ou menos o que estava acontecendo.

Havia alguns jornais em árabe, todavia, não eram muitos. O que os argelinos tendem a fazer é ler jornais franceses que não são feitos para eles ou jornais em árabe que eram publicados em outros países, como Tunísia e Egito, e utilizar aqueles para criar o seu entendimento próprio das notícias, ainda que eles não tenham muitas publicações de sua autoria. Também havia publicações em espanhol, italiano e em árabe — mas para judeus, que atendiam essas ações à população.

Quanto ao resto, a citação é sobre o resultado da II Guerra Mundial, logo, é sobre se os argelinos e sua mídia apoiavam o Regime de Vichy em oposição à Resistência. A Argélia foi um dos primeiros lugares em que o Regime de Vichy acabou, pois foi invadida pelos britânicos e pelos estadunidenses, em 1942. Contudo, acima de tudo, muitos da população Europeia haviam sido apoiadores de Vichy, apesar de ser também verdade em vários lugares da França Metropolitana. Não é necessariamente tão distintivo.

Camus era muito próximo aos comunistas nesse período e à população da Argélia que tinha resistido. Na verdade, seus artigos, especialmente os primeiros, na década de 1930, foram realmente importantes na Argélia e na política argelina. Eles foram pioneiros e foram as primeiras tentativas de descrever as condições sociais. Eles foram bastante ativistas, e foi uma grande mudança, comparado ao que havia ali antes. Dessa forma, o panorama que no qual Camus estava operando, em termos de mídia, foi um no qual havia muitos jornais na Argélia. Contudo, eles operavam para um segmento muito específico da população, principalmente os colonos, e, naquele período que você está interessado, no início do século XX, os jornais eram muito menos políticos. Eles eram, na realidade, muito mais por volta da virada para o século XX. Porém, nesse ponto, eles eram muito mais generalistas e controlados por poucos interesses comerciais. Em geral, isso se encaixa no modelo onde a economia colonial argelina era controlada por poucas famílias. Portanto, não se trata de uma minoria de colonos, mas algumas poucas famílias dentro da minoria de colonos que controlam muito da economia. Eles administram vários jornais.

Há a imprensa de esquerda, como os dois jornais que Camus menciona no excerto ( Alger Républicain e Oran Républicain ), os quais são, ambos, associados aos comunistas. Há também jornais que são mais liberais, que não são de esquerda, mas liberais, e são mais conservadores. Então, existe um leque de opiniões dentro da imprensa euro-­argelina. Assim como existem jornais afiliados aos movimentos políticos muçulmanos, os quais também desempenham um papel importante, mas possuem uma existência muito mais precária e possuem números menores de difusão.

O que é interessante é que os conflitos progrediram na Argélia dos anos 1950, [assim,] começa a ficar mais difícil de reportar coisas em jornais. A opinião dos argelinos europeus se torna muito oposta à independência. O que acontece é: pessoas que desejam outras opiniões começam a buscar jornais que são publicados na França metropolitana. Logo, eles vão comprar o Le Monde — o qual, em particular, que era visto como portador de uma cobertura neutra — e ler ele ao invés dos jornais locais, caso quisessem uma opinião menos enviesada contra a independência. Em contrapartida, quando [Frantz] Fanon (1925-1961) escreve, no final da década de 1950, ir à banca de jornais para comprar o Le Monde é um sinal de que se tem tendências políticas suspeitas, mesmo a simples compra do jornal mostra que não se confia nos jornais locais, que são muito contra a independência.

Tanto na sua tese como no artigo “Mass media and the colonial informant” (Asseraf, 2016 , 2022), você aborda, por diferentes formas, o sistema de informação moderno. No primeiro caso, especialmente, você aborda como as notícias foram divulgadas para diferentes públicos dentro do território argelino. Você pode elaborar e descrever esses sistemas de comunicação? Como foram, quais elementos foram fundamentais para a divulgação da informação?

O que se obtém é o desenvolvimento muito rápido, no século XIX, de um novo sistema que se parece muito com o que temos hoje. Portanto, é um novo sistema que se baseia no sistema telegráfico internacional, no cartel das agências de notícias etc., e na comunicação muito rápida em todo o mundo. O que, então, é impresso em jornais de massa, o que significa que a informação que se obtém nos diferentes cantos do mundo é muito, muito padronizada.

Isso afeta a Argélia muito rapidamente na década de 1880, quando se começa a receber telegramas vindos da França mais tarde, e o desenvolvimento desses jornais para os europeus de que falei anteriormente. Isso coexistiu com outras formas de comunicação: pessoas conversando em cafés, escrevendo cartas, cantando canções, boatos etc. Dessa forma, a Argélia funciona como um microcosmo para a compreensão do novo sistema global. Porque, de certa forma, temos estado muito interessados em estudos de mídia, basicamente na Europa Ocidental e na América do Norte, onde se baseia a maior parte da história da mídia. Contudo, de vez em quando, você obterá um histórico de outro lugar e dirá “na verdade, funciona de maneira diferente aqui”.

O engraçado da Argélia é que, num lugar muito pequeno, você pode ver essas duas coisas acontecendo exatamente ao mesmo tempo e como elas interagem. Portanto, é uma espécie de laboratório muito, muito pequeno, onde se pode compreender como funciona o novo sistema global no século XIX e no início do século XX. Porque você recebe uma grande quantidade de notícias em um canto da sociedade e muito menos no outro. Mas vaza entre os dois. As pessoas obviamente observavam os europeus, ou liam os seus jornais, ou pirateavam as suas coisas, e muitas coisas vazaram do seu lado.

Além disso, você percebe que esse novo sistema moderno — e isso talvez não seja chocante se pensarmos em um lugar como o Brasil, mas vale a pena dizer — não é global. No sentido de que exclui grandes quantidades do mundo, não cobre grandes quantidades de coisas que estão acontecendo e não considera a maior parte do mundo como o seu público. Quando você olha para um lugar que fica bem visível quais pessoas estão sendo excluídas dele e o quanto o novo sistema não sabe sobre essas pessoas; fica muito interessante, porque aí você consegue ver como uma formação muito mais limitada.

Para concluir, pode discorrer sobre o estado das coisas da pesquisa acadêmica sobre a Argélia e avaliar o quanto o assim chamado Ocidente sabe sobre a história desse país?

Eu diria que estamos num período em que há muita investigação interessante em curso na história da Argélia, dentro da própria Argélia, claro, na França, nos Estados Unidos e em muitos outros países. Portanto, tem sido um campo de pesquisa bastante dinâmico. Penso que as pessoas têm estado muito interessadas nisso devido às diferentes discussões na França, devido aos diferentes desenvolvimentos que aconteceram nos últimos 20 anos, devido ao interesse no terrorismo, devido à contra-insurgência, devido ao Islamismo político... A Argélia é interessante para incluir muitas questões.

Todavia, penso que talvez haja um problema onde existe uma separação entre o grau de interesse teórico das pessoas na Argélia, porque encontram pessoas famosas, como Camus, no seu caso, ou Fanon; e a Argélia como um lugar real, onde as pessoas vivem e morrem, tal como em qualquer outro lugar. Às vezes há um mal-entendido entre isso e muita da investigação é separada da vida social que está acontecendo na Argélia agora e que acontecia antes. Portanto, as pessoas usam a Argélia de uma forma bastante abstrata, para resolver uma série de problemas, embora seja apenas um lugar bastante interessante por si só. Isso é o que eu diria.

Referências

  • ASSERAF, A. Foreign News in Colonial Algeria, 1881-1940. 2016. 341 f. Tese (Doutorado em História) — Oxford University, Oxford, 2016.
  • ASSERAF, A. Electric News in Colonial Algeria. Oxford: Oxford University Press, 2019.
  • ASSERAF, A. Mass Media and the Colonial Informant: Messaoud Djebari and the French Empire, 1880–1901. Past & Present, v. 254, n. 1, p. 161-192, fev. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1093/pastj/gtab008 . Acesso em: 30 set. 2024.
    » https://doi.org/10.1093/pastj/gtab008.
  • CAMUS, Albert. Camus at Combat. Princeton: Princeton University Press, 2007.
  • 1
    A entrevista foi gravada via Zoom no dia 10 de janeiro de 2024, quando o entrevistado estava em Estocolmo (Suécia) e o entrevistador se encontrava em Porto Alegre (Brasil).
  • 2
    Há, na língua portuguesa, uma controvérsia em torno da palavra “mídia”, pois se trata de um aportuguesamento da expressão media , do idioma inglês. No português brasileiro, a palavra “mídia” é utilizada tanto como sinônimo de imprensa, quanto como sinônimo de meios de comunicação de massa (termo esse que, supostamente, é a acepção original). Enquanto isso, no português de Portugal, manteve-se a grafia (alterando, na realidade, sua fonética).

Editado por

  • Editor responsável:
    Ely Bergo de Carvalho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2024
  • Aceito
    26 Ago 2024
  • Revisado
    30 Set 2024
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Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais Av. Antônio Carlos, 6627 , Pampulha, Cidade Universitária, Caixa Postal 253 - CEP 31270-901, Tel./Fax: (55 31) 3409-5045, Belo Horizonte - MG, Brasil - Belo Horizonte - MG - Brazil
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