Open-access Oniska: poética do xamanismo na Amazônia

RESENHAS

Miguel Naveira

PPGAS/UFPR

CESARINO, Pedro. 2011. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo: Perspectiva /Fapesp. 423 pp.

Pedro Cesarino, pesquisador doutorado no PPGAS/MN/UFRJ, onde defendeu a tese que originou o livro que aqui se discute, aborda nesta obra o xamanismo e a cosmologia dos Marubo do rio Ituí (Vale do Javari/AC). Entre os assuntos principais cabe destacar: os cantos xamânicos, os processos de cura, as relações corpo/ espírito, a análise de desenhos marubo, sua cosmografia (patamares celestes e terrestres, seres que os habitam, caminho da morte...). Os dados etnográficos relativos a estes temas foram estruturados mediante alguns conceitos-chave que aparecem e reaparecem ao longo das mais das 400 páginas do livro: noção de pessoa, multiplicidade, tradução, poética da linguagem xamânica entendida como "uma elaboração dos problemas da diferença, da replicação e da variação" (:16), processos de alteração e espiritualização, entre outros.

A isotopia fundamental de Oniska é a palavra: por um lado, as palavras xamânicas, presentes nos cantos-mito − denominados saiti pelos Marubo; nos cantos de cura shõki; e nos cantos iniki que, à diferença dos anteriores, são enunciados pelos duplos que visitam os corpos dos xamãs. Por outro, as palavras dos xamãs, interlocutores privilegiados que souberam iluminar as perguntas do etnólogo motivado em compreender o mundo narrativo dos cantos, mundo que finalmente demonstrou ser vários: mundo dos vivos, espaço de encontro dos duplos dos mortos e dos vivos, dos espíritos, mundos de outrem que intersectam a vida dos Marubo, como bem soube registrar o autor.

É através da linguagem, ou para sermos mais exatos, através da linguagem, dos corpos e duplos dos xamãs e da música, que a dimensão comandada por duplos e espíritos e as outras dimensões do mundo vivido marubo coabitam. Disso pode-se extrair uma conclusão com muitas ressonâncias ameríndias: o contexto dos cantos xamânicos é principalmente dialógico, ou melhor dizendo, é através dos cantos, autênticas polifonias em que espíritos e duplos falam pela boca dos xamãs marubo, ou de sua carcaça (shaka), como refere o autor, que se geram esses contextos de interação: "não se trata de influenciar magicamente o mundo através do discurso, mas de variar o mundo e o sujeito que canta" (:21). Cesarino demonstra que tal "variação" se constitui justamente no campo relacional produzido nos encontros (e nas conversas) entre espíritos, duplos e xamãs, e é caracterizada, portanto, pelas múltiplas agências e pelas interseções. É nesse espaço de encontro que o xamanismo − o que os xamãs fazem − produz uma cosmologia que tem na viagem, no encontro e na experiência três de seus aspectos fundamentais.

Nesse sentido, Oniska reilumina com novos dados o complexo citacional que Viveiros de Castro descreveu magistralmente no clássico Arawete e que caracteriza, provavelmente, o xamanismo de muitos outros povos indígenas. Os numerosos cantos dos xamãs marubo tecem uma rede de falas que citam falas, de pessoas que citam espíritos, e destes que citam pessoas, espíritos que falam de pessoas através dos xamãs e outras possíveis variações, apontando para uma compreensão multiperspectivista do mundo, a qual vincula a proposta de Cesarino aos recentes debates sobre cosmologia das populações indígenas ameríndias, enriquecendo-os com uma etnografia que apresenta o raro mérito de reunir extensas e detalhadas traduções de um considerável número de cantos xamânicos.

A partir desses dados etnográficos, destila-se ao longo do livro uma compreensão comunicacional do xamanismo marubo, uma estrutura (ou um processo) de comunicação tecida nos encontros entre viventes, duplos de mortos e espíritos. Assim, a abordagem de Cesarino descreve o entrosamento entre as atividades dos xamãs e a cosmologia marubo sem dissociar o estudo do mito e da cosmologia do estudo das práticas xamânicas. Sobre essa junção são especialmente importantes as reflexões sobre a "origem" e os mitos como valor de referência para os cantos xamânicos e as práticas de cura, bem como as descrições das relações entre os duplos dos vivos, os duplos dos mortos e os espíritos auxiliares.

As relações de aliança e comunicação entre os duplos dos antigos viventes e os atuais xamãs marubo descritas nesta obra possibilitam refletir também sobre outro aspecto fundamental para a melhor compreensão das cosmologias ameríndias: a relação com os mortos. O fato de os xamãs (romeya) veicularem como espíritos auxiliares os vaka (duplo) de pessoas já falecidas, e de estes auxiliarem nos processos de cura e narrarem seus conhecimentos através dos xamãs coloca uma interessante questão para a alteridade que envolve a morte tantas vezes referida nos estudos amazônicos. Esta ideia mereceria alguma revisão à luz das relações complexas com os mortos que, como a etnografia marubo e outras etnografias demonstram, não se esgota completamente em sua definição pela alteridade como sinônimo de distância, como às vezes é interpretada. Que tipo de mortos "distantes" são esses que voltam para falar e auxiliar os xamãs marubo?

Para explicar as atividades dos xamãs e essas relações com os espíritos e duplos, Cesarino faz recorrente uso dos termos "tradução" e "poética". Como destaca o autor, e como já foi abundantemente mencionado na etnologia ameríndia (e para além), o xamã age como um tradutor de mundos. Mas, em certo sentido, a etnografia marubo sugere que o xamã é inserido em uma prática de tradução de si mesmo, já que esse "si mesmo" é caracterizado pela multiplicidade, bem como as práticas xamânicas marubo são caracterizadas pelo encontro e pela comunicação com outros duplos e espíritos. São os duplos dos xamãs que visitam os lugares habitados pelos espíritos; são os duplos de pessoas falecidas e os espíritos que, por sua vez, visitam as aldeias marubo através dos xamãs. Os dados etnográficos incluídos neste livro demonstram justamente a complexidade da noção de pessoa marubo e sua capacidade relacional.

Para o uso do termo poética, segundo o autor, fundamentalmente ligado às recriações escritas dos cantos, Cesarino oferece pistas fundamentais no início do quinto capítulo, quando atenta para o estabelecimento de um diálogo entre os critérios marubo e o nosso conceito de poética. Sem dúvida, esse caminho, explorado etnograficamente, abre a possibilidade para um diálogo reverso (Wagner dixit) menos nivelado pela definição exclusivamente ocidental do termo "poética".

Outro aspecto importante articulado à poética dos cantos é a afetividade, introduzida na proposta de Cesarino principalmente através do valor que a melancolia assume em várias passagens do livro. Este é justamente o sentido do título da obra, que incorpora em destaque o termo marubo Oniska, traduzido no glossário como melancolia, tristeza, nostalgia. Os diferentes usos do termo e o lugar que ocupa no livro, diga-se de passagem, são um tanto enigmáticos. Em algumas partes, ele parece associado a uma poética talvez memorialística, se levarmos em consideração, por exemplo, os dados apontados na tradução de uma conversa com Rosaewa (:81): ichnamanã, ~ oniska, roakark(não é ruim não, é nostálgico, bom/belo mesmo). Nesse sentido, oniska dá a impressão de se relacionar com a expressão shinabutsa, glosada como "uma espécie de melancolia relacionada a lembranças agradáveis de uma época que não voltará mais" (:38). Já em outro contexto, falando sobre o aspecto tétrico desta terra percebido pelos yovevo (espíritos) quando aqui vêm, oniska é traduzido por "desolador", numa inversão de perspectiva concomitante a certas diferenças entre a existência dos Marubo e dos yovevo. Os sentidos e os usos da palavra aparecem esparsos ao longo do livro. Pelo lugar central que ocupa, teria sido interessante ter-lhe concedido maior destaque. Sem dúvida, há nessa temática uma via para futuras pesquisas e esforços de síntese que permitirá trazer a vida dos Marubo em sua dimensão mais existencial.

Sobre todos os assuntos referidos acima, Oniska traz uma profusão pouco comum de dados e detalhes nos estudos do xamanismo das populações indígenas que habitam as Terras Baixas da América do Sul, o que converte este livro em uma monografia rara e meritória. De fato, talvez tenha sido essa abundância e o caráter eminentemente cosmológico e traducional da abordagem teórica que terminaram por invisibilizar, em parte, os aspectos mais sociológicos e etnográficos da vida dos Marubo, incluídos os xamãs, principal referência deste livro. Mais informações básicas sobre o tipo de relações que mantém as famílias entre si, sobre os laços de parentesco, o lugar ocupado pelos xamãs nessas redes ou o cotidiano da vida aldeã (ou sobre os contextos e os processos de tradução dos dados presentes no livro) poderão contribuir para a contextualização e a integração da cosmologia marubo em seu cotidiano.

Para concluir, gostaria de destacar o esforço linguístico do autor, perceptível na inclusão das versões bilíngues (marubo/português), na clareza formal das transcrições − bem pontuadas com notas de rodapé, quando necessário − e na preocupação reflexiva sobre o processo de tradução. A isto se deve somar o encontro bem elaborado com os Marubo, que em suas aproximações com outros povos Pano e antropólogos já demonstraram habilidades especiais nas artes da tradução, bem como seu pendor cosmológico e xamânico. São poucos os estudos sobre o assunto realizados entre populações indígenas das Terras Baixas da América do Sul com a competência linguística e a colaboração cuidadosa dos especialistas presentes neste livro.

Sem dúvida, as numerosas traduções dos cantos reunidas neste livro − uma das melhores compilações sobre xamanismo ameríndio disponível até o momento − trazem novos dados para uma melhor compreensão dos fundamentos ontológicos propostos pelo xamanismo marubo e, por extensão, ameríndio.

Essa feliz aliança entre competência linguística e oportunidade etnográfica faz desta obra uma referência fundamental não só para os estudiosos das populações Pano, mas para todos aqueles, especialistas ou leitores em geral, interessados no pensamento, na linguagem e nos mundos que os povos ameríndios habitam. A complexidade poética das traduções dos cantos e a originalidade da compilação incluída neste must-read merecem, é de se esperar, novas traduções que ampliem o alcance de sua contribuição.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
location_on
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro