Plastic bodies é um livro fundamental para pesquisadores/as interessados/as em temas como corpo, saúde, gênero, tecnociência, biomedicina e medicamentos. O texto resulta de uma revisão ampliada da tese de doutorado apresentada em 2008 ao King’s College em Cambridge, sob orientação de Marilyn Strathern, por Emilia Sanabria, atualmente professora de Antropologia Social na École Normale Supérieure de Lyon, França. Partindo de sua pesquisa de campo em Salvador, Bahia, Sanabria apresenta uma etnografia do fluxo de substâncias como os hormônios sexuais e o sangue menstrual. Como sugere o título do livro, Sanabria explora a ideia de “plasticidade do corpo”, conceito inspirado em Catherine Malabou, para tratar desses temas.
O/a leitor/a brasileiro/a eventualmente terá aquela sensação “colonial” de ler trabalhos feitos por pesquisadores estrangeiros acerca do Brasil: o de não se reconhecer completamente como público-alvo de interlocutores, e de se ver em parte como nativa/o. Embora da tese para o livro a autora tenha feito um esforço notável de reanalisar seus dados dialogando com a bibliografia brasileira mais significativa acerca dos diversos temas que aborda, o pequeno detalhe das diversas expressões em português citadas ao longo do texto terem sido grafadas sem revisão, e erroneamente, provoca sempre um estranhamento. As críticas que a autora faz aos problemas sociais brasileiros são, entretanto, profundamente verdadeiras e bem vindas para quem quer pensar as desigualdades sociais considerando as questões de corpo, biomedicina, raça, classe e gênero.
Não é à toa que o livro começa e termina com Elsimar Coutinho, médico baiano conhecido local e internacionalmente pela sua participação no desenvolvimento de uma série de tecnologias contraceptivas para suprimir a ovulação e também a menstruação. Um dos principais defensores da supressão da menstruação através do uso contínuo de hormônios sexuais, Coutinho argumenta que a menstruação contemporânea é um fenômeno “social” devido à eficácia do controle da fertilidade feminina pelas sociedades “modernas”. De acordo com ele, na “natureza”, as fêmeas não menstruam - o que situa a supressão da menstruação através do uso de hormônios sexuais como uma espécie de técnica que atualiza uma “paleofantasia”, isto é, uma técnica que objetiva, através da tecnologia, restaurar os corpos femininos no sentido do seu suposto estado “natural”, pré-histórico.
Como Sanabria discute na introdução do livro, o desenvolvimento da indústria farmacêutica e dos métodos contraceptivos hormonais na segunda metade do século XX tornou possível manejar os hormônios sexuais e o sangue menstrual. A imagem escolhida para a capa do livro, a fotografia de uma das primeiras cartelas da pílula anticoncepcional, lembra o surgimento do regime de pausa ou placebo, por sete dias, no uso diário dos hormônios. Foi esta pausa que permitiu a mimetização dos sangramentos mensais e tornou a pílula um artefato socialmente viável na época, década de 1950. Embora a possibilidade técnica da supressão da menstruação somente tenha sido explorada comercialmente pela indústria farmacêutica por volta da década de 2000, muitas mulheres brasileiras vinham experimentando, desde a década de 1970, a supressão de longo prazo e hormonalmente induzida da menstruação, possivelmente devido à importância e à influência local de Elsimar Coutinho, suas pesquisas clínicas e atuação em programas de planejamento familiar.
Contraceptivos injetáveis, implantes subdérmicos e dispositivos intrauterinos com hormônios são as principais formas de provocar a supressão prolongada dos sangramentos menstruais. O desenvolvimento destas técnicas em Salvador, ao longo das décadas de 1960-1990, esteve atrelado a discussões sobre controle da natalidade e explosão demográfica, com um forte conteúdo racista e classista. Estas técnicas, sobretudo o implante, encontraram muita resistência dos movimentos feminista e negro no Brasil, então em processo de fortalecimento com a democratização. O desenvolvimento desses contraceptivos, apesar das diversas controvérsias, críticas e polêmicas, ganhou força conforme a questão demográfica foi sendo configurada como um problema.
Corpos e substâncias não são colocados em relação arbitrariamente, mas se misturam de acordo com diferentes critérios biopolíticos. Portanto, para considerar o que Sanabria clama de maleabilidade e plasticidade dos corpos brasileiros, o que os tornaria mais “abertos à intervenção” (:6), algumas conexões devem ser consideradas. Por exemplo, entre substâncias (hormônios sexuais em diferentes formulações e modos de administração), projetos de controle populacional e construção nacional (o projeto de “modernização” do Brasil) e biopolítica (quais vidas são valorizadas e bem vindas, e quais são descartáveis).
Em um texto provocativo, Sanabria se propõe a seguir tanto os “hormônios” quanto a “menstruação”. Seu trabalho qualifica os temas de raça, classe e gênero sem cair na armadilha de tomá-los como dados, como condições fixas situadas nos corpos (no caso de raça e gênero, especialmente). Essas diferenças e desigualdades aparecem através do seu trabalho à medida que ela narra as circunstâncias testemunhadas durante sua pesquisa de campo, e conforme ela tenta situar sociologicamente as narrativas de suas interlocutoras.
O trabalho de Sanabria é inovador e criativo, e responde aos impactos do neomaterialismo, dos estudos feministas da ciência e da virada ontológica na Antropologia. Dialogando com trabalhos clássicos como os de Mary Douglas e Julia Kristeva sobre fronteiras corporais e abjeção, Sanabria evita tomar essas fronteiras como dadas, preferindo pensar seu próprio processo de construção. Ao abordar dessa maneira o uso de hormônios e as narrativas sobre útero, vagina e sangue menstrual que aparecem em campo, Sanabria contribui para os estudos contemporâneos sobre o corpo, pois apresenta um esforço bem-sucedido de pensar sobre corpos em fluxo com o mundo, suas materialidades, plasticidades e maleabilidades. Corpos vivos, em ação e em contexto. Seu livro vai além da visão dos corpos como entidades dadas, considerando suas agências e como partes de agregados que compõem processos vitais e trans-humanos. Isto inclui diferentes engajamentos com artefatos tecnocientíficos, como os hormônios sexuais.
Sanabria aborda as diferentes maneiras com que as travestis da Bahia usam alguns desses artefatos (principalmente o estrogênio) para suplantar as expectativas de dimorfismo sexual e identidade de gênero baseadas em formas corporais estáveis. Assim, como ela mostra, a potência material dos hormônios excede sua prescrição “microfascista de gênero” - como Preciado talvez caracterizaria. Uma vez que os corpos são considerados abertos a diferentes fluxos, modificações corporais podem ser performadas em um nível molecular por um uso (subversivo) dessas substâncias. Neste caso, para feminizar um corpo masculino.
A ideia de um “excesso” de potência de um objeto técnico, isto é, as propriedades não prescritas dos hormônios sexuais, é muito estimulante teórica e politicamente. Podemos atribuir, como mostram as travestis, uma positividade política à agência dos hormônios sexuais em termos de gênero e sexualidade por questionar a heteronormatividade e o modelo do binarismo sexual. Por outro lado, é esse mesmo “excesso” de potência que compõe a base para classificar os efeitos “colaterais” ou “adversos” de uma medicação ou substância.
Seu livro leva a pensar se não é essa mesma agência dos hormônios sexuais que nos assombra quando homens brancos, poderosos e bem estabelecidos como Elsimar Coutinho expressam sua confiança na força e no apelo desse objeto técnico entre as mulheres, como narra Sanabria ao final do livro, expressando seu desconforto. Com uma trajetória marcada por privilégios de gênero, raça e classe, Coutinho defende os hormônios contraceptivos que suprimem a menstruação como artefatos libertários à disposição das mulheres porque ele sabe que a maior parte das mulheres brasileiras está presa a uma subjetividade heterossexual centrada na beleza, na juventude e no corpo.
Baseado em numerosas estórias de pacientes, ele sabe as perversidades que a vida reprodutiva pode causar a mulheres das camadas pobres (geralmente negras), as dificuldades que a menstruação e a maternidade em geral representam para mulheres trabalhadoras, sobretudo em um contexto de alta competição, redução dos direitos trabalhistas e escassez de recursos. Ele também sabe o quanto mulheres das camadas médias e altas (geralmente brancas) estão dispostas a pagar para “melhorar” seu desejo sexual, a atratividade dos seus corpos e para ter sua fertilidade e sexualidade controladas em níveis moleculares, com o auxílio conveniente de cápsulas subdérmicas trocáveis duas vezes por ano apenas. Ele conhece o poder e a habilidade da biomedicina contemporânea e local para “resolver” esses problemas e, talvez justamente por isso, prefira se desviar de discussões sobre os efeitos colaterais nocivos que esses artefatos possam causar à saúde das usuárias.
Esse “excesso” de agência permite, portanto, ao mesmo tempo, um uso prescrito (contracepção/reposição hormonal) e um uso que excede e tensiona a prescrição (contra a estabilidade corporal do gênero). As usuais críticas que os movimentos sociais e a academia fazem à tecnociência, à expansão da biomedicalização e do mercado farmacêutico não costumam partilhar a positividade desse excesso. Mas tecnofobia pura e absoluta não resolve o problema. Como Donna Haraway deixou claro quando trouxe a figura do cibogue para o cenário teórico-político feminista e marxista, não há um ponto de “pré-artifício” para o qual possamos voltar e não há como recusar ser parte desse processo global-contemporâneo. Temos que “ficar com o problema” (stay with the trouble). E, ainda assim, de dentro, conseguir forjar rotas de fuga e desvios. Precisamos dar respostas melhores para a questão de como lidar com as políticas que se apoiam, e tiram vantagem, da plasticidade de certos corpos.
A estabilização de objetos técnicos como os hormônios sexuais no Brasil (ou qualquer outro local no escopo dos mercados farmacêuticos) deve ser pensada criticamente, e abordada etnograficamente, para revelar as complexidades e tecnopolíticas envolvidas. Nesse sentido, Plastic Bodies é perturbadoramente preciso ao demonstrar como corpos brasileiros engajam múltiplas agências com instituições e políticas de saúde pública e privada; biomedicina e suas biopolíticas; mercados farmacêuticos; expectativas de gênero, sexualidade e reprodução; tensões de raça e classe. Sanabria mostra como o sangue menstrual, sua supressão e os hormônios sexuais são visceralmente importantes para qualquer análise que leve em conta as dinâmicas da vida no mundo contemporâneo - uma contribuição muito bem-vinda para tempos tão conservadores, xenofóbicos e misóginos.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2017