Na introdução de seu mais recente livro, a antropóloga Ondina Fachel Leal afirma que se trata de:
uma etnografia sobre os gaúchos - gaúchos tomados na acepção restrita do termo - peões campeiros, trabalhadores rurais da pecuária extensiva da região do pampa latino-americano. Este trabalho é sobre identidade. É sobre a identidade social de um grupo específico e sobre vários discursos através dos quais essa identidade se apresenta (Leal, 2021: 29).
Ao longo de seis capítulos, o livro vai além. Nós, que ora escrevemos esta resenha, também somos gaúchos. Em uma acepção mais ampla do termo, a partir de sua generalização como gentílico das pessoas nascidas no Rio Grande do Sul. No entanto, as situações apresentadas pela autora, cenas narradas e contextos explorados, são-nos familiares, ora porque crescemos na região da campanha, nas fazendas, nos galpões, ouvindo causos, campeirando o gado, ora porque eram nossos destinos aos finais de semana, feriados e férias. É-nos familiar o trabalho de Ondina Leal. Daí a dificuldade em estranhá-lo.
A autora produz em nós, leitores gaúchos, reflexões afetadas (Favret-Saada, 1980) por essas memórias de infância nesses territórios de belezas verdejantes, espaços segregados e uma boa dose de solidão. Muito além de falar sobre os gaúchos, a autora produz uma etnografia, que merece ser chamada de clássica, no melhor sentido de uma descrição densa, como diria Clifford Geertz (1978). Há, inclusive, um longo hiato entre o “estar lá”, no campo do Pampa, e o “estar aqui” escrevendo (Geertz, 2009). Foram mais de 30 anos de espera para que o texto chegasse às mãos de um público mais amplo no formato de livro.
O livro é fruto da tese de doutorado de Ondina Leal, defendida no final da década de 1980 na Universidade de Berkeley, na Califórnia, sob orientação do Prof. Burton Benedict, antropólogo com formação na London School of Economics, que se orgulhava de seguir a linhagem de Malinowski. É dessa cepa que é feita a obra de Leal. O texto mantém relevância e atualidade em dados produzidos há tantos anos, a partir de um olhar apurado, minucioso, cuidadoso às coisas miúdas que ajudam a constituir sentido a uma trama ampla de relações.
No primeiro capítulo, há a descrição do lugar, a campanha gaúcha, a zona rural do Alegrete e cidades vizinhas, inclusive do Uruguai, onde atenta a um ambiente em que ainda persiste o modelo heteronormativo e de convenções muito rígidas em torno das noções de gênero e sexualidade. É possível que atualmente haja alterações no terreno, mas a tônica da vida na campanha gaúcha acerca dessas noções, captadas por Leal há mais de 30 anos, mostram muitas permanências.
Assim, é próprio que as análises sobre gênero e sexualidade, com atenção às masculinidades e às relações entre os homens e as mulheres presentes no livro, por exemplo, não sejam contemporâneas. Aliás, houve a opção consciente da autora em não atualizar as reflexões da obra como um todo. Uma decisão que entendemos como muito adequada, pois não desconsidera o contexto da época de sua produção. Uma das interlocuções mais “atuais” era, naquele período, a obra de Pierre Bourdieu (1962, 1977, 1986). Eis outra virtude do livro: sua contribuição histórica e cultural e seu pioneirismo ao visibilizar tais questões em tal contexto.
No segundo capítulo, sobre o trabalho de campo, embora analise os gaúchos in loco e em ação, ela também analisa os discursos sobre eles e deles sobre si mesmos. Convivendo com os homens no galpão, no terceiro capítulo, Ondina registra histórias narradas por eles e sobre eles reconstruindo literariamente todo um ethos de ser gaúcho, mas, acima de tudo, de ser homem nesses espaços. Acaba por convencer-nos de que em alguns contextos nunca basta ser apenas homem, mas é preciso ser homem entre os homens. E, mais, que este, de fato, é um aprendizado que os marca de forma indelével, como também percebera Daniel Welzer-Lang (2001) em outro contexto de pesquisa, tanto quanto baliza a forma como esses homens se relacionarão com as mulheres.
No quarto capítulo, aliás, as mulheres aparecem como a alteridade ausente. Por se tratar, nas palavras da autora, de um “universo masculino autoreferenciado”, as mulheres não estão apenas fisicamente distantes, mas também “socialmente desvalorizadas”, “hostilizadas” e violentamente depreciadas (Leal, 2021: 215). No imaginário do galpão, as mulheres são vistas como um ser “extraordinário, encantado e perigoso” algo “impossível de se ter e impossível de ser controlada” (Idem: 174). Nesta sociedade, que se estrutura a partir de uma radical segregação espacial de gênero, a autora salienta seu olhar e seu lugar de intrusa no galpão e em outros espaços de masculinidade hegemônica.
Além desse aspecto, a etnografia de Ondina permanece atual, pois mostra um lugar onde as desigualdades sociais entre a casa grande da estância e o galpão dos peões, trabalhadores rurais, não foram amenizadas e muito menos superadas apesar do tempo. Basta voltar à zona rural do Alegrete. Talvez a grande alteração seja o avanço tecnológico nas fazendas e a modernização no processo produtivo seguindo a tônica do capitalismo hodierno. No entanto, as hierarquias socioculturais continuam lá. A vida dos peões pouco ou nada melhorou.
O livro é um exemplo de como deve ser uma boa etnografia. Trata-se de uma forma de literatura que combina história, conhecimento, teoria social e análise sofisticada do ambiente cultural estudado. Quando vocês lerem o texto, serão conduzidas por Ondina, em sua etnografia, primeiro a entender a construção histórica do termo gaúcho e desta personagem cujas características de independência, bravura e virilidade marcarão toda uma identidade coletiva do Estado do Rio Grande do Sul. Em seguida, vocês adentrarão o Pampa, no banco do carona, ao lado de Leal, de Porto Alegre ao Alegrete. Ondina as levará a uma viagem de mais de 500km, circundando mais de 300km por estâncias históricas, com grandes extensões de terras. Eis outro mérito da obra, o fato de se configurar como uma etnografia clássica com o tão necessário - naquele momento ainda - distanciamento espacial e geográfico. Durante a viagem, terão o prazer de serem companheiros de jornada da antropóloga, visualizando imageticamente aquela paisagem, seus cheiros de estrada, de campo, cheio de ruídos de pássaros, mugidos de gado e o ruído seco dos cascos dos animais nas estradas de chão batido. Experimentarão, como nós, “gaúchos nativos”, a saudade expressa nas lonjuras matizadas em tantas tonalidades de verde, que fariam inveja aos mais de quarenta tons de branco conhecidos pelos esquimós e eternizados por Franz Boas (2004).
Ao ler o livro de Ondina Leal, temos a possibilidade de questionar esse lugar, o Pampa, quem sabe o Rio Grande Sul como um todo, esse território dos gaúchos que, apesar de muito idealizado e romantizado pelos Centros de Tradições Gaúchas (CTG), ainda é desconhecido a muitas pessoas do Brasil, que poucas têm noção dos espaços, das distâncias, das dezenas de quilômetros de campo em sequência sem qualquer divisão, documentando que há ainda muita terra controlada por poucas mãos e muitas mãos sem conseguir controlar qualquer pedaço de terra. Não por acaso, a campanha gaúcha é grande produtora de riqueza, no âmbito do agronegócio, mas ainda uma região de muita desigualdade social, com grandes bolsões de pobreza.
O quinto capítulo, sobre a briga de galos, é um outro ponto alto do livro. Ali, vemos como galos e homens refletem atributos de uma masculinidade almejada, de coragem, força, bravura, orgulho e dignidade. Sociedades as mais diversas, ao longo da história, produziram fenômenos antropomórficos. Na campanha gaúcha, os galos são os seus donos. A bravura, virilidade, força e competência do dono é posta em jogo. Não se discutiam os direitos dos animais, eis uma alteração política importante. É nesse momento que a autora apresenta, de modo tão didático (que até parece muito simples), um jeito de fazer uma competente análise estruturalista daquele ritual que mobiliza as gentes do lugar. É bom lembrar que toda a obra, não apenas esse capítulo, bebe do estruturalismo francês que, na altura, era de importância ímpar para a condução das reflexões antropológicas.
Por fim, o sexto, e último capítulo do livro, é sobre o ato derradeiro de bravura do gaúcho, que se considerando vencido pela vida, sem forças para cavalgar, para laçar, para as lidas que o constituíram como centauro, usa o seu laço para suicidar-se. Sem ser valente, sem conseguir demonstrar a valentia diante de outros homens, diante dos animais, diante da rudeza da natureza, ele precisa ser bravo, ainda que pela última vez, diante de si mesmo, para que assim sua vida de coragem e de desafios - isto é, a obra que escrevera - acabe, em sua leitura, em grande estilo.
Um suicídio na família, como em um jogo de espelhos (Rosaldo, 1980), aproxima de um outro modo a antropóloga de Berkeley, guria de Porto Alegre, daqueles gaúchos do Pampa. Ele teria sido um dos responsáveis pela obra ter ficado inédita mais de três décadas. Compreendê-lo do ponto de vista de aspectos mais amplos, acaba por direcionar as reflexões de Ondina Leal para o campo da Antropologia da Saúde em que também foi pioneira e hoje é uma referência.
O livro de Ondina Leal chega em meio à Pandemia de COVID-19. Ela atingiu o mundo todo e devastou mais de 600 mil famílias no Brasil até o momento. Ler esse livro, é como conseguir dar um break em tempos tão trevosos e ao mesmo tempo olhar para tudo isso de forma um pouco distanciada. Eis a potência da etnografia, eis a importância inegociável da reflexão antropológica. Fica o convite à leitura de Ondina sobre eles e nós, os gaúchos.
Referências Bibliográficas
- BOAS, Franz. [1887]. 2004. “Um ano entre os esquimós.” In. A formação da antropologia americana 1883-1911 Rio de Janeiro: Contraponto - Editora UFRJ. p.67-80.
- BOURDIEU, Pierre. 1962. “Célibat et condition paysanne”. Études rurales, v. 5, n. 6, april.
- BOURDIEU, Pierre. 1977. “Sur le pouvoir symbolique”. Annales. Economies, Socié- tés, Civilisations 32e année, n. 3. p. 405- 411.
- BOURDIEU, Pierre. 1986. “Habitus, code et codification”. Actes de la recherche en Sciences Sociales v. 64, septembre.
- FAVRET-SAADA, Jeanne. 1980. Deadly words: witchcraft in Bocage. Cambridge: Cambridge University Press.
- GEERTZ, Clifford. 1978. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: Zahar Editores.
- GEERTZ, Clifford. 2009. Obras e vidas. O Antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ.
- ROSALDO, Renato. 1980. Ilongot Headhunting, 1883-1974 - A Study in Society and History. Stanford: Stanford University Press.
- WELZER-LANG, Daniel. 2001.“A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia”. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, p. 460-482.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Dez 2021 -
Data do Fascículo
2021