Entrevista realizada pelo Prof. Guillermo Vega Sanabria
Departamento de Antropologia e Etnologia
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Ao cair da noite da sexta-feira, 04 de abril de 2022, a banca composta pelos professores Carlos Etchevarne (UFBA), Antonella Tassinari (Universidade Federal de Santa Catarina) e Maurício Caviedes (UFBA) anunciava o resultado do concurso para Magistério Superior pelo qual o antropólogo Felipe Sotto Maior Cruz, Felipe Tuxá, tornou-se o primeiro indígena a fazer parte do Departamento de Antropologia da UFBA. Embora outros indígenas já componham os quadros docentes de algumas universidades no Brasil, Felipe é o primeiro, até onde temos notícias, a ser aprovado num concurso público feito num Departamento de Antropologia no país. Este fato, notável por si mesmo, reveste-se de um significado todo especial ao coincidir com os dez anos da Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispõe a reserva de vagas nas universidades federais e outras instituições de ensino superior e técnico de nível médio. O Art. 7º estabelece que, “no prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016).
Aos seus 32 anos e tão somente poucos meses depois de ter defendido sua tese de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Social da Universidade de Brasília, apresentamos este texto, ainda no embalo das celebrações pelo fato histórico da aprovação de Felipe no concurso. Nele, encontram-se as pinceladas de uma trajetória jovem e, talvez por isso mesmo, intensa, de múltiplos diálogos e repleta de detalhes em que se conjugam o compromisso com as lutas do povo Tuxá e com o projeto de uma antropologia indígena no Nordeste brasileiro.
O texto tem como base o Memorial apresentado por Felipe durante o concurso na UFBA, editado para adequá-lo ao formato de uma entrevista, depois complementado e novamente editado a partir do diálogo que mantivemos, terminado o concurso, para aprofundar, complementar e ampliar algumas informações. A versão apresentada a seguir fica como registro de uma trajetória pessoal e, ao mesmo tempo, do desenvolvimento, nas últimas três décadas, de uma antropologia que tem os povos indígenas do Nordeste brasileiro como protagonistas, agora também como professores universitários.
Por isso mesmo, no processo de edição, privilegiamos o foco no papel da formação acadêmica universitária que, no caso de Felipe, é concomitante com a formação política no seio de sua comunidade de origem, lá em Rodelas, no norte da Bahia, às margens do rio São Francisco. Tanto a trajetória de Felipe Tuxá quanto a produção antropológica neste âmbito permitem constatar, aliás, como é improdutivo o velho chavão que opõe ciência e política, rigor acadêmico e engajamento nas lutas pela vida e pela terra, juventude e maturidade.
Esta publicação serve como registro do fato histórico da aprovação de Felipe Tuxá no Departamento de Antropologia e Etnologia da UFBA. Porém, ela também serve para lembrarmos do longo caminho percorrido por outros indígenas até chegarem às universidades e dos enormes desafios que eles ainda enfrentam no empenho por ocupar espaços que fortaleçam suas lutas históricas. Dentre os muitos aspectos que mereceriam ser destacados nesse movimento, apenas aponto a maneira como muitos intelectuais indígenas, das velhas e das novas gerações, têm incorporado sua formação acadêmica, seu trabalho profissional e sua experiência no fazer científico como genuína, poderosa e efetiva ferramenta de ação política. Por isso, até hoje ecoa na sala do concurso da UFBA o verso do Toré Tuxá que Felipe entoou ao começar a defesa de seu Memorial:
Ô meu caboclo índio o quê que anda fazendo aqui? (duas vezes)
Eu ando na terra alheia procurando minha ciência,
meu caboclo índio, hei-na-há, hei-hoa.
GVS: Obrigado, Felipe, por ter aceitado publicar este texto e pelas conversas após o concurso para professor no Departamento de Antropologia da UFBA. Já que foi o fato de ter sido aprovado nesse concurso que motivou nosso diálogo, gostaria que fôssemos direto a este ponto. Como surgiu seu interesse pela Antropologia?
Felipe Tuxá: Eu primeiro ouvi falar de antropólogos pelo contato com os profissionais da Fundação Nacional do Índio (Funai) que chegavam em minha comunidade, localizada em Rodelas, no norte do estado da Bahia, quase sempre vindos de Brasília. Meu pai, que é motorista da Funai, me dizia: “Tenho que ir em Aracaju [capital estadual mais próxima] porque chegou um antropólogo de Brasília”. Esses profissionais vinham por motivos diversos, da resolução de conflitos entre famílias rivais até discussões sobre a demarcação dos nossos territórios. Como faço parte de uma geração que nasceu após o deslocamento da minha comunidade, ocasionado pela construção da Hidroelétrica de Itaparica, ao fim da década de 1980, fui socializado em uma época na qual antropólogos da Funai eram uma presença constante. Esses são os primeiros registros que tenho acerca destes profissionais: eles resolviam muitas coisas e podiam, principalmente, nos ajudar a ter o nosso território.
As duas primeiras décadas de minha vida foram marcadas pela atuação de meu povo em prol de regularização de nosso território inundado e pelo cumprimento dos acordos firmados pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf). Nós fomos reassentados em uma aldeia dentro da cidade de Nova Rodelas, em um bairro separado, que outrora tinha como divisória uma linha de coqueiros plantados, único sinal aparente, além da placa da Funai, de que a partir dali havia uma aldeia indígena. A empresa construiu casas que seguiam o padrão de seus reassentamentos e o território dessa nova aldeia era extremamente limitado em comparação com o tradicional, composto por mais de 30 ilhas, que no passado eram nossas e que ficaram totalmente submersas.
A geração da qual faço parte foi aquela que primeiro nasceu na nova aldeia, em um momento em que nossas famílias ainda estavam tentando se reorganizar nesse novo espaço. Sem um território regularizado até hoje, nós, os Tuxá, vimos na educação uma possibilidade de futuro, por meio da ocupação estratégica de espaços políticos por membros do grupo para buscar maior eficácia no diálogo com a sociedade nacional, nas arenas das políticas interétnicas. Não se tratava de um movimento silencioso, mas algo dito e repetido por aqueles que nos criaram: “Estudem!”. Até o início do século XXI, não havia escola indígena na aldeia e aqueles que tinham interesse em seguir com os estudos precisavam, necessariamente, ir estudar em escolas não indígenas. No presente, temos uma escola que, inclusive, já tem indígenas que cursaram toda a sua formação dentro dela.
GVS: O que fez com que você decidisse estudar Ciências Sociais?
Felipe Tuxá: Terminei o Ensino Médio em 2007, aos 17 anos, e prestei o vestibular para Ciências Sociais, mas fui reprovado! Nessa época, as políticas afirmativas para estudantes indígenas não estavam regulamentadas ou ancoradas por lei; dependiam, basicamente, da boa vontade de universidades que, por meio de pessoas interessadas e da pressão do Movimento Indígena de cada região, criavam vestibulares pioneiros para estudantes indígenas. Esses vestibulares eram, em sua maioria, resultado de iniciativas isoladas, experimentos que utilizavam vagas remanescentes, que não eram ocupadas por outros estudantes e que, então, eram destinadas aos indígenas. O indígena que queria ir para a universidade tinha que mapear onde estavam essas iniciativas, o que implicava, quase sempre, um deslocamento para fora do seu território.
No ano de 2009 tive a minha primeira experiência no Movimento Indígena Nacional, por ocasião do I Congresso Brasileiro de Acadêmicos, Pesquisadores, e Profissionais Indígenas, organizado pelo Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (Cinep), em Brasília. Até então, minha consciência interétnica a respeito de outros povos indígenas era resultado de reuniões locais e regionais, em assembleias da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo (Apoinme), de batizados e festas de casamento a que íamos em comunidades indígenas próximas ao povo Tuxá (Pankararé, Pankararu e Kantaruré). Também me recordo vividamente das etapas do Magistério Indígena, desenvolvido pelo Ministério da Educação e a Funai na década de 1990. Os cursos eram feitos em módulos e alguns deles aconteceram em minha própria comunidade, que nessas ocasiões se enchia de outros povos indígenas da Bahia, como os Pataxó, Pataxó Hahahãe e Kaimbé.
Para o congresso do Cinep, um ônibus saiu de Paulo Afonso (Bahia) e nos levou até Brasília, passando por várias aldeias ao longo do caminho para pegar os demais integrantes da delegação. Mais da metade do ônibus era Tuxá: meus primos e amigos, meu irmão e também meu pai, que disse: “não é só para estudantes, eu sou profissional indígena, então também posso ir”. Esse congresso teve muita importância em minha vida porque conheci “parentes” de povos indígenas distantes do meu, que continuam até hoje meus amigos. Também conheci a Universidade de Brasília, que depois também se tornou a minha casa. Vi de perto a efervescência da luta indígena nacional e pude avaliar o quanto eu deveria fazer parte dela.
Foi também nesse evento que ganhei meu primeiro livro de Antropologia, um presente de meu pai. Era o livro Crianças indígenas: ensaios antropológicos, organizado por Araci Lopes da Silva e Ângela Nunes (2002). Não me recordo porque escolhi este livro, mas lembro que o li avidamente e ele me deixou inúmeras lições e experiências. Ao abrir o livro, dei de cara com um ensaio fotográfico sobre crianças tuxá, produzido no final de 1980 e assinado por Ângela Nunes. Nunca vou me esquecer da experiência de abrir um livro por acaso e encontrar menções ao meu povo, fotos de primos, tias e crianças que eu conhecia. Essa experiência se repetiu certa vez em um sebo em Brasília, anos depois, quando achei um livro sobre folclore no Nordeste e lá, no meio do livro, de cujo título não lembro mais, havia uma fotografia do meu avô e de meus tios. Fotografias que eles provavelmente nem sabiam que existiam...
Lembro-me, ainda, que depois de ler o livro sobre crianças indígenas, sempre que estava na aldeia eu via coisas sobre as crianças de meu povo que antes não conseguia ver. Quando viajei no mesmo ano para a comunidade Maxacali, em Minas Gerais, olhei para as crianças buscando ver aspectos de sua educação, socialização, brincadeiras etc. Essas coisas me eram, até certo ponto, invisíveis antes da leitura do livro. E essa foi, talvez, a minha primeira lição em Antropologia: a leitura da etnografia de outros povos abre portas para coisas novas que antes eu não conseguia ver sobre o meu próprio povo.
Já em 2010 tomei conhecimento de que a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) teria seu primeiro vestibular indígena. Eram 12 vagas para seis cursos que seriam oferecidas em um projeto piloto, previsto para durar quatro anos e ter quatro entradas. Os cursos eram de Medicina, Odontologia, Ciências Biológicas, Enfermagem, Agronomia e Ciências Sociais. O processo seletivo era específico e havia uma parceria entre a UFMG e a Funai na assistência e no acompanhamento estudantil. Fui aprovado em Ciências Sociais e me mudei para Belo Horizonte.
GVS: Desde o início, você transitava entre a atuação política do povo Tuxá e os diálogos com os antropólogos. Como foi esse trânsito depois, já sendo estudante de Ciências Sociais na UFMG?
Felipe Tuxá: Ao chegar na UFMG, conheci os colegas que entraram comigo, que eram dos povos Xacriabá, Krenak, Pataxó (da Bahia e de Minas Gerais), Tupiniquim e Tuxá. Éramos poucos indígenas no campus, mas iniciamos algumas mobilizações para dar visibilidade à nossa presença dentro dessa universidade tão grande. Devo muito da base de minha formação em Antropologia aos anos que passei na UFMG. Foi ali que tive o primeiro contato com a disciplina acadêmica e que pude ter certeza de que me interessava pelos estudos de etnologia indígena e de indigenismo. Naquela época, queria apenas me dedicar às disciplinas da Antropologia e também às de Arqueologia. Na UFMG contávamos com o apoio da Comissão de Acompanhamento de Estudantes Indígenas e lá conheci quatro antropólogos que nos acompanharam ao longo dos anos: Karenina Andrade, Paulo Maia, Luiz Roberto de Paula e Ana Gomes.
No segundo semestre, cursei uma disciplina chamada Etnologia Indígena, ministrada pela professora Karenina Andrade, que depois se tornou a minha orientadora. A disciplina era à noite, mas os outros cursos eram de manhã, de modo que, no dia que tinha aula de Etnologia, eu chegava na universidade de manhã e só saía às 22h40. No período da tarde, explorava o campus e a biblioteca, lendo os textos da aula da noite. Karenina havia dividido o seu curso de Etnologia em duas partes. A primeira sobre áreas etnográficas, a partir dos troncos linguísticos; a segunda parte sobre tópicos como educação, território, xamanismo, cosmologia, parentesco etc. Lembro-me que, embora gostasse da maioria dos textos, eu sentia um certo estranhamento, na medida em que aqueles “índios” descritos em etnografias pioneiras das décadas de 1960-1970 eram muito diferentes dos “índios” do presente, os índios de “carne e osso” que eu conhecia.
Também pensava que havia tanta urgência pela demarcação da terra, pela saúde e por direitos, por um indigenismo de resultados em nossas comunidades, que achava aqueles trabalhos um tanto distantes do que eu queria fazer enquanto antropólogo. Em certo ponto, indaguei a professora: “Qual a diferença entre etnologia indígena e indigenismo?”. Ao que ela me respondeu: “uma coisa está na outra, o indigenismo só tem sucesso se tiver ancorado em boa etnologia. A Antropologia está em ambos e ambos são extremamente importantes”. Desde então, essa articulação pareceu-me indissociável numa dimensão teórico-metodológica nas minhas prática e ética profissional. Em minha concepção, os estudos dos povos indígenas precisam carregar consigo as marcas da responsabilidade social junto a esses povos, contribuindo não apenas com os avanços da disciplina, mas também com a possibilidade de prover respostas para os problemas enfrentados por essas populações.
GVS: Que outras experiências foram importantes para você nesse momento de formação acadêmica inicial?
Felipe Tuxá: Tive outros cursos igualmente marcantes, dentre os quais destaco um sobre estudos pós-coloniais, ministrado pela professora Andréa Zhouri. Porém, foi com a professora Ana Flávia Moreira Santos que tive a oportunidade de cursar três disciplinas de grande importância: Antropologia e História, História Indígena e Indigenismo e Laudos Antropológicos. Estes cursos foram muito ricos, uma vez que as questões que eu buscava responder com a Antropologia eram, naquele momento, de ordem histórica ou etno-histórica. Queria saber sobre a história de meu povo e entender os processos sociais diversos que marcam os mais de quatro séculos de contato. Os laudos também me interessavam muito, pois me faziam pensar em um futuro no qual nós, os indígenas, pudéssemos ser os protagonistas na produção de relatórios técnicos. A formação em laudos foi ainda complementada por um minicurso de 30 horas, ministrado pela professora Eliane Cantarino, em 2013, também na UFMG.
Em 2011 foi aberto o Programa de Educação Tutorial - PET Indígena - Conexões de Saberes da UFMG, do qual fui bolsista por três anos. No PET pude experimentar, já desde a graduação, as dimensões do ensino, da pesquisa e da extensão de modo intenso e entrecruzado. O PET era coordenado pela professora Simone Dutra Lucas e todos os estudantes indígenas da UFMG que ingressavam pelo processo seletivo especial eram imediatamente vinculados ao programa. O projeto inicial era pensado em três anos: no primeiro ano aprenderíamos algumas questões metodológicas sobre a pesquisa; no segundo ano executaríamos a pesquisa e, no terceiro, pensaríamos ações de extensão para tratar do problema que havíamos detectado. Cada bolsista tinha sua própria pesquisa junto ao seu povo e podia escolher um dos orientadores disponíveis dentro de sua área. O PET foi minha primeira experiência com a pesquisa acadêmica; meu foco foram as narrativas sobre a inundação do território tradicional e das ilhas, pensando nos tipos de consciência histórica que elas expressavam e articulavam.
Foi com o PET que fui até minha comunidade pela primeira vez levando comigo um gravador. Fiz três entrevistas em profundidade com anciãos, dois dos quais não se encontram mais neste mundo. À época, esses registros me pareciam apenas um protocolo de pesquisa, mas hoje me fazem pensar na importância da memória. Sabendo que minha pesquisa poderia ser considerada enviesada, caso apenas entrevistasse indivíduos do meu núcleo familiar, tracei o perfil dos entrevistados de modo a contemplar membros de outros clãs. Essa decisão me levou a pessoas que, embora fossem meus parentes, eram parentes distantes. Dentre as muitas lições desse trabalho, lembro-me claramente de ter a impressão de que, pelo fato de fazer parte do grupo pesquisado, eu pensava que já sabia o que encontraria nas entrevistas. Foi justamente o contrário! Essas entrevistas me ensinaram muito sobre meu passado e a história de minha comunidade porque cada um dos anciãos com os quais conversei eram particulares, únicos à sua maneira. As narrativas do desterro, da dor, da saudade e da injustiça que cresci ouvindo entre festas, batizados, velórios, visitas de parentes e de profissionais da Funai agora ganhavam novos sentidos e robustez nas formas como passei a ver meu povo, bem como o chamado mundo do branco.
Como é possível perceber, durante minha graduação estive inclinado analítica e politicamente a pensar, de um lado, no potencial da pesquisa etnológica em minha própria comunidade; de outro, nos processos de transformações universitárias suscitados pela entrada de estudantes indígenas. Estas duas frentes de pesquisa marcam meu trabalho até o presente, ou seja, os últimos onze anos. Após ter feito uma pesquisa etnográfica junto à minha própria comunidade, que durou mais de três anos, enquanto pesquisador do PET, optei por voltar meu olhar de etnógrafo para as dinâmicas internas da Antropologia, para os deslocamentos que estavam acontecendo no campo com a entrada de estudantes indígenas na universidade. Publiquei alguma coisa a respeito (Cruz 2017b, 2018b).
Em 2014 me formei no bacharelado em Ciências Sociais, com uma monografia intitulada Um olhar indígena sobre a construção da alteridade na teoria antropológica, orientado pela professora Karenina Andrade. Muitos dos dados ali dispostos eram impressões iniciais, frutos das minhas vivências enquanto baiano, nordestino, estudante indígena de Antropologia no Sudeste. Porém, também eram fruto do compartilhamento mútuo de experiências com outros indígenas antropólogos de outros lugares que havia acontecido no ENEI e de muitas conversas informais. Eu estava particularmente estimulado tanto pelos trabalhos de outros indígenas como pelo livro Decolonizing methodologies, de Linda Smith (2013), e a tese de doutorado de Gersem Baniwa, intitulada Educação para manejo e domesticação do mundo: Entre a escola ideal e a escola real, os dilemas da educação escolar indígena no Alto Rio Negro (2009). Foram também centrais para meu argumento sobre as dinâmicas de poder inerentes aos espaços acadêmicos e sobre o que acontecia quando indígenas estavam presentes em cursos de Antropologia como estudantes os trabalhos anticoloniais de Frantz Fanon (1979), bem como as críticas de Johannes Fabian (2013) e Edward Said (2007).
GVS: A inundação das terras originárias do povo Tuxá, pela construção da Usina de Itaparica no rio São Francisco, é um tema presente tanto na sua dissertação de mestrado quanto na sua tese de doutorado. Este fato é central no seu trabalho não apenas por se tratar do seu povo, mas também pelos seus interesses como antropólogo. Como foi articulando estes dois elementos durante a pós-graduação?
Felipe Tuxá: Ao terminar minha graduação, em 2014, havia dois Programas de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) que tinham políticas recém-criadas de ingresso para estudantes indígenas: o do Museu Nacional e o da Universidade de Brasília (UnB). Ambas as seleções dispunham de apenas uma vaga para o mestrado e outra para o doutorado. Eu prestei as duas seleções e fui aprovado em Brasília para o ano de 2015, lugar onde ingressei no mestrado. A primeira coisa que me chamou a atenção no cotidiano em Brasília foi a quantidade de indígenas no campus. Há um movimento indígena estudantil consolidado a partir da Associação dos Acadêmicos Indígenas da UnB, da qual sou membro e na qual já atuei como assessor. A Associação fica localizada na Maloca, centro de convivência multiétnico que serve como local para realização de eventos, mas que é, sobretudo, um território afetivo, porto seguro para estudantes indígenas da instituição. Para além dos cursos, reuniões de orientação, seminários e demais atividades acadêmicas, os estudantes indígenas da UnB têm, quase sempre, um intenso cronograma de mobilizações do Movimento Indígena para comparecer: reuniões nos Ministérios, em embaixadas, escolas, universidades, bibliotecas, atividades diversas na esplanada, atos e manifestações. O apartamento onde morei se tornou também um local onde recebia parentes de minha comunidade e também de outras, entre vindas a Brasília para tocar agendas políticas. Esta foi a minha primeira lição de morada na capital do país: se há muito o que fazer em prol das lutas indígenas, a força do coletivo e da articulação interétnica e interinstitucional são fundamentais.
No PPGAS da UnB aprofundei meus conhecimentos em Antropologia por meio da pesquisa. Tive, sobretudo, uma imersão nas problemáticas da etnologia e destaco disciplinas como Etnologia indígena em contextos nacionais: Canadá, Austrália e Brasil e Relações interétnicas, ambas ministradas pelo professor Stephen Baines; Antropologia da terra, com a professora Marcela Coelho; A conquista do Outro, com a professora Alcida Rita Ramos e Luis Cayón e Antropologia do Estado, com a professora Carla Costa Teixeira. Esses cursos me ajudaram a pensar as diferentes possibilidades de trabalho antropológico, situando os temas referentes ao povo Tuxá em distintas escalas e conexões com outros povos indígenas, assim como com aspectos políticos e fluxos culturais no Brasil e no mundo. Os cursos também me abriram a possibilidade de pensar nas redes de relações nas quais os povos indígenas se encontram imersos e me permitiram incursionar por modelos teóricos distintos, mas que possuíam um elemento comum: a necessidade de um trabalho de campo rigoroso. Também participei de um grupo de estudos que a professora Alcida Rita Ramos e o professor Luis Cayón criaram em 2015; nós o chamávamos informalmente de “Tertúlias” e a cada 15 dias nos reuníamos para ler obras voltadas à etnologia indígena e discutir sobre o ingresso de indígenas em cursos de Antropologia. No ambiente diverso da Universidade de Brasília, entre grupos de estudo e ações do movimento, pude amadurecer a minha vocação antropológica.
A princípio eu pensava em estudar no mestrado o processo de educação formal no povo Tuxá. Embora não tenha continuado diretamente nesta temática, minha incursão inicial foi muito importante para que pudesse conhecer trabalhos sobre este assunto, produzidos em minha região. No mestrado acabaria focando em apreender a noção de mistura no contexto tuxá, expressa, por vezes, a partir da categoria nativa breado. O objetivo era interpretar as diferentes categorias de alteridade a partir dos grupos étnicos que compõem a matriz de relações sociais da comunidade - índios, brancos e morenos - para, depois, proceder a uma interpretação da construção processual e contextual dos sentidos de mistura, indianidade e de relações de parentesco.
A etnologia tem se debruçado sobre os regimes de alteridade indígenas, destacando sempre abertura dos indígenas para o Outro, por meio do estudo de redes de trocas sociais, econômicas e simbólicas e das estratégias matrimoniais diversas em processos de estabelecimento de alianças interétnicas e intertribais. No entanto, enquanto amadurecia minha percepção sobre a Antropologia e sobre meu povo, a comunidade seguia imersa em inúmeros conflitos devido ao descumprimento dos acordos firmados com a Chesf desde os anos 1980. Em 2018 se dariam os trinta anos da inundação das terras e do deslocamento, mas a comunidade continuava sem território demarcado e sem uma resolução próxima no horizonte. A situação angustiava a todos e as mobilizações políticas e as idas a Brasília eram constantes. Foi nesse contexto que decidi que minha dissertação deveria, de forma direta, abarcar essa situação urgente e contribuir com essa luta.
Defendi a dissertação em 2017, que teve como título Quando a terra sair: os índios Tuxá de Rodelas e a barragem de Itaparica: memórias do desterro, memórias da resistência (Cruz 2017a). Tive o professor Luis Cayón como orientador e as professoras Alcida Rita Ramos e Maria Rosário de Carvalho como examinadoras. Neste trabalho, tomei o evento catastrófico da inundação e o deslocamento da comunidade Tuxá como fio condutor a partir do qual expus duas diferentes narrativas sobre ele. De um lado, expus a narrativa oficial, produzida pela empresa Chesf em seus registros, boletins, jornais e demais publicações. De outro, construí uma narrativa junto com as pessoas de minha comunidade por meio de entrevistas e da observação etnográfica, contrapondo a versão oficial a partir de nossa consciência histórica. Não se tratou apenas de apontar duas diferentes perspectivas sobre o mesmo evento, mas sim de expressar o modo como os Tuxá articulam sentidos culturais específicos com as noções de vida, viver bem, desenvolvimento, progresso, de terra e de território.
A professora Maria Rosário de Carvalho, aliás, é antiga conhecida da minha comunidade e tornou-se uma interlocutora importante para o trabalho do mestrado. Sua arguição, cruzada com suas experiências de pesquisa na aldeia Tuxá na década de 1980, me fez pensar nos desafios geracionais que ela enfrentou, no papel que o Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro (Pineb) e a UFBA tiveram na qualificação das nossas histórias e lutas e, sobretudo, na atualização das demandas no presente. Dentre os trabalhos sobre meu povo que foram referências para meu trabalho, destaco aquelas de egressos da UFBA, como Marcos Tromboni, Nássaro Násser, Elizabeth Násser, Marcos Luciano Messeder, Sheila Brasileiro e José Augusto Laranjeiras Sampaio.
Concluí o mestrado em 2017 e no mesmo ano iniciei o doutorado também no PPGAS da UnB. Continuo até o presente trabalhando com essa temática e creio que será um tema que me acompanhará por toda a vida, de diferentes formas.
GVS: Porém, ao mesmo tempo em que sua pesquisa de doutorado se aprofunda na situação do povo Tuxá, alguns temas novos começam a aparecer nesse trabalho. Pelo menos são temas que se expandem e ganham novas formulações ao articular, por exemplo, a violência contra os indígenas e as discussões sobre racismo, quase sempre referidas, entre nós, à população negra. Como surgem essas preocupações e como elas se inserem nos seus planos como professor da UFBA?
Felipe Tuxá: Em 2017, no primeiro ano de doutorado, tomei conhecimento de um edital do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de seleção de bolsistas para um estudo sobre os principais desafios da erradicação do racismo no país. Uma das vagas era destinada a um trabalho sobre o racismo e os povos negros; a outra era para tratar do racismo e os povos indígenas. Embora eu não tenha sido aprovado na seleção, esta foi a minha porta de entrada para um debate que até então eu conhecia pela mobilização dos estudantes e intelectuais negros. Interessei-me pelo tema do racismo contra povos indígenas ou, melhor, pela invisibilidade desse problema. Nos anos que passei na UnB pude acompanhar o crescente uso da categoria racismo pelos estudantes indígenas em mobilizações políticas, como pronunciamentos, palestras e até mesmo em documentos escritos. Termos como “desinformação”, “preconceitos” e “discriminação” aos poucos estavam sendo substituídos pelo uso do termo “racismo” para se referir às diversas formas de violência. O termo era aplicado, sobretudo, em situações de violência também enfrentadas pelos estudantes indígenas.
Isso fez com que eu passasse a tentar entender os processos históricos de apagamento nas Ciências Sociais e, mais especificamente, na Antropologia da presença indígena nas teorias raciais dos séculos XIX e XX. Em outras palavras: como entender certa timidez das Ciências Sociais em abordar os povos indígenas como alvo de racismo? Diante do meu interesse, fui convidado pelo professor Felipe Milanez (UFBA), Lúcia Sá (Universidade de Manchester) e Ailton Krenak para fazer parte de uma rede de pesquisadores financiada por uma agência de fomento britânica e do projeto Racismo e antirracismo no Brasil: o caso dos povos indígenas.
Por essa mesma época fui convidado também a compor o projeto Tecendo redes antirracistas na Universidade de Brasília. Trata-se de uma rede de intelectuais, majoritariamente negros, que atuam nas universidades e nos movimentos sociais nos países que têm língua oficial portuguesa. Ao longo da organização do primeiro seminário da Rede, os membros da comissão científica se deram conta de que discutir racismo no Brasil articulando as questões específicas dos povos originários era algo absolutamente necessário. O projeto culminou em um livro que contou com um capítulo de minha autoria intitulado Povos indígenas, racialização e políticas afirmativas no Ensino Superior (2019).
Além disso, teve o cenário político dos dois primeiros anos de meu doutoramento, 2017 e 2018, que foram marcados por um recrudescimento dos retrocessos da política indigenista e ambiental. As organizações indígenas se mobilizaram para denunciar e tentar conter a onda de retrocessos que ameaçavam nossos povos; nesse cenário, se tornou bastante comum em discursos, documentos e mobilizações políticas o acionamento da categoria “genocídio”. Durante esse período, diversos fatores conduziram minha pesquisa de doutorado para a análise do que penso que talvez seja o tema principal de meus trabalhos: o da violência anti-indígena e as violações de direitos indígenas. Porém, a reflexão sobre o racismo também me levou a pensar na violência em outras situações e contextos. E a partir das denúncias de genocídio pelo Movimento Indígena, que ficaram ainda mais marcadas em sua estratégia política durante a pandemia, eu pude articular uma agenda de pesquisa para o doutorado.
Dentre as lições que aprendi em minha trajetória, aquela que me conduziu à pesquisa de doutorado foi a constatação de quão presente e difundido é o fenômeno da violência anti-indígena no Brasil. Como pesquisar, etnografar e analisar uma violência que dura séculos e que tem manifestações diversas e elusivas de norte a sul do país? Na minha tese, intitulada Letalidade branca: Negacionismo, violência anti-indígena e as políticas de genocídio, que defendi em janeiro de 2022, meu objetivo era compreender quais os sentidos que eram atribuídos à categoria de “genocídio”; nela tentei abordar como a violência é e pode ser conceituada de formas diferentes em outros ordenamentos de mundo. Por exemplo, em minha comunidade é comum que digamos “o índio sem terra não vive”. Como podemos apreender o sentido desta afirmação para além de um entendimento apressado de que aqui viver possuiria uma conotação metafórica? Para além da violência mais evidente, associada à violação da integridade física dos indivíduos, outras noções são acionadas nas denúncias que abarcam a destruição de paisagens, a destruição do território e de lugares sagrados, a não demarcação dos territórios e as relações entre humanos e não humanos (rios, encantados, montanhas, animais e outros). Minha tese, portanto, é sobre como a etnologia pode contribuir para o alargamento conceitual da maneira como os povos indígenas entendem a morte, assim como o morrer e o viver bem.
GVS: Como essa agenda de pesquisa informa seus planos de trabalho no curto prazo, agora como novo professor e pesquisador na UFBA?
Felipe Tuxá: Deixe-me voltar no tempo para responder a esta pergunta.... Na primeira metade da década de 1970, o etnólogo Pedro Agostinho, logo após se tornar professor na UFBA, elaborou o Projeto de pesquisa sobre populações indígenas da Bahia a partir de um convênio entre a UFBA e a Funai. O projeto, que foi o embrião do Pineb, tinha como tema central a produção de etnografias sobre os povos indígenas da Bahia, bem como a formulação de modelos de atuação e planos de ação indigenista no estado. Foi a partir deste projeto que os antropólogos Nássaro Násser e Elizabeth Násser, conhecidos em minha comunidade Tuxá apenas como “o casal Násser”, foram incentivados a fazer as suas dissertações junto ao povo Tuxá de Rodelas. Eles defenderam as suas etnografias Economia Tuxá e Sociedade Tuxá, respectivamente, no ano de 1975 e esses trabalhos foram as primeiras monografias antropológicas de maior fôlego sobre a minha comunidade. Eles são lembrados ainda hoje por nós, e exemplares de seus trabalhos estão nas estantes de nossa escola como registros de nossa história.
Estou fazendo esta digressão porque é uma parte da história da etnologia pouco conhecida pelos antropólogos, a dos efeitos de seus trabalhos do lado de cá, vistos pelo lado dos indígenas. Essas histórias certamente estão relacionadas à minha expectativa e aos meus planos de atividades de pesquisa, docência e extensão na UFBA. A história recente dos povos indígenas da Bahia e de outros estados do Nordeste tem, em vários aspectos, ecos daquilo que foi promovido por antropólogos e projetos realizados a partir da etnologia da UFBA. O rigor etnográfico e o compromisso com a chamada “questão indígena” tornaram o programa de Antropologia da UFBA parte constituinte de nossas histórias, seja através da atuação de seus egressos na Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), seja por meio das pesquisas e dos projetos realizados pelo Pineb e dos laudos e relatórios técnicos, tão importantes para os processos de regularização fundiária.
Meus horizontes de pesquisa continuam focando problemas locais de minha comunidade, mas também tenho interesses mais amplos nas relações interétnicas que envolvem outros povos indígenas. Percebo um alinhamento de minha perspectiva com os trabalhos desenvolvidos no âmbito do Pineb. Além disso, propus recentemente um projeto de pesquisa voltado para a Etnologia e a Arqueologia no Sub-Médio São Francisco na Uneb. A partir de minha experiência de pesquisa sobre as relações e os agenciamentos múltiplos que envolvem os Tuxá e o rio São Francisco vejo, cada vez mais, a importância da produção de pesquisas que congreguem a etnologia e a arqueologia para a composição de um quadro analítico que dê conta da complexidade histórica e cultural dessa região. Trata-se de dezenas de povos indígenas que subvertem as artificiais fronteiras federativas por meio de circuitos complexos de casamentos interétnicos, assembleias e redes de relações. Este é o caso dos Tuxá localizados na margem baiana do São Francisco, e praticamente defronte está a aldeia dos Pankararu, já em território pernambucano.
Um fenômeno marcante dessa região são, ainda, os processos múltiplos de retomadas linguísticas. São processos marcados, sobretudo nas últimas duas décadas, pela consolidação das escolas indígenas, das licenciaturas interculturais e pelo trabalho feito por professores indígenas na busca de suas línguas nativas, atualmente em desuso fora de contextos rituais e em cantos de Toré. Aqui, novamente, as redes de intercâmbios em torno dos processos particulares a cada grupo, no intuito de fazer a língua “aparecer” e “acordar”, são de grande valor etnológico, inclusive de um ponto de visto comparativo. Porém, a ênfase na região da bacia do São Francisco não deve ser tomada como proposta de que ali teríamos uma área cultural específica, descontínua das demais regiões do Nordeste. Pelo contrário, as redes ali existentes e os fenômenos identificáveis encontram-se também vinculados a redes mais amplas que envolvem povos indígenas de regiões diversas. A participação desses povos em distintos âmbitos do Movimento Indígena os coloca em fluxos e mobilizações dinâmicas, em que experiências de retomadas territoriais e linguísticas são indissociáveis, compartilhadas e com efeitos contínuos e simultâneos em todo o país.
GVS: E em relação ao ensino na universidade e à formação em Antropologia?
Felipe Tuxá: Minha experiência na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), na cidade de Paulo Afonso, é um ponto de partida importante. Fui professor na Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena (Liceei) que, diante das experiências anteriores e da pressão das organizações indígenas locais e regionais, se tornou um curso regular em 2018, ano em que ingressei como professor substituto. Paulo Afonso é o município da Bahia mais próximo de Rodelas, localidade de minha comunidade, território ao qual pertenço, como assinalei. É a cidade que os indígenas têm como referência para serviços de saúde e de assistência da Funai e, também, o local com maior oferta de educação técnica e superior, onde eu mesmo estudei. Nesse sentido, ser aprovado na Uneb significou a possibilidade de retornar para minha região e atuar mais diretamente enquanto professor e antropólogo junto aos Tuxá e demais comunidades do Sub-Médio São Francisco.
Minha formação como etnólogo foi de grande importância para o tipo de sensibilidade que se exige para atuar em um curso complexo e diverso como a Liceei. Os aportes da Antropologia acerca do valor dos conhecimentos indígenas pautam os processos de educação intercultural e permitem pensar a instituição “escola indígena” como resultado da abertura cosmológica desses povos ao Outro. Tive oportunidade de ver de perto os modos como esses povos se apropriam da escola, fazendo com que ela caiba em seus projetos políticos. Por exemplo, ela é dotada de significados particulares, a partir dos quais os professores indígenas tornam-se agentes importantes das mobilizações de suas comunidades. Foi na Liceei, em turmas multiétnicas, compostas exclusivamente por estudantes indígenas dos povos Tuxá, Kiriri, Kaimbé, Tumbalalá, Pankararé, Kantaruré e Xucuru que comecei a ampliar e a qualificar os significados da docência.
GVS: A partir de sua experiência na Liceei da Uneb e mesmo do tempo que viveu como estudante na UFMG e na UnB, como você imagina, agora como professor, os desafios e as possibilidades que uma relativa maior diversidade é colocada no ensino superior? Refiro-me, por exemplo, às transformações experimentadas em uma universidade como a UFBA nas últimas duas décadas, após a chamada Lei de cotas, a presença majoritária de mulheres, a agenda LGBTIQ+, as demandas por acessibilidade etc. Quais seriam, a seu ver, as implicações para a formação em Antropologia nesse contexto?
Felipe Tuxá: Certa vez, após a minha defesa de mestrado, um colega da Antropologia disse algo como “é... esse modelo de universidade está falido, a universidade está deixando de fazer sentido”. Ao que pensei: ora, justamente agora que estamos entrando nela a universidade deixou de fazer sentido? Não, é o contrário, agora que negros e negras, quilombolas, indígenas e demais “esquecidos” estão entrando é que a universidade irá, finalmente, fazer sentido?
Na última década acompanhamos uma transformação no perfil discente das universidades públicas. Essa presença vem provocando deslocamentos e tensionamentos diversos, uma vez que esses sujeitos buscam se reconhecer nesses espaços. Seus projetos para a universidade suscitam transformações logísticas para o seu recebimento, uma infraestrutura adequada para sua permanência, políticas de moradia, bolsas adequadas para a sua manutenção e a criação de espaços de convivência específicos. Mais que do que permanência logística, talvez o mais difícil seja a transformação do modo de se fazer ciência. Para esses sujeitos, a busca por conhecimentos e a construção de hipóteses não são fins em si mesmos. O comprometimento primeiro não é com os avanços da ciência como tal, mas com a melhoria de vida de suas comunidades. É conhecimento com propósito e é conhecimento atrelado a um fim que é coletivo e não individual.
Essa presença é particularmente reveladora quando se trata da Antropologia, pois diferente de outros campos de conhecimento, nossa disciplina se consolidou dentro das universidades como locus de enunciação sobre o Outro, justamente esses que estiveram historicamente ausentes e sub-representados nos quadros discentes. Logo, falar do Outro era possível diante de sua ausência, algo que hoje não é mais a realidade das salas de aula. Quando professores falam sobre os povos indígenas, eles não são mais uma realidade distante ou remota no tempo e no espaço. Muitas vezes estão ali, agora estão presentes na sala de aula. Isto deve mudar dinâmicas discursivas e analíticas e demanda autocrítica e reflexividade, ambos procedimentos característicos da disciplina. A autoridade etnográfica, o “estive lá”, precisa ser adequado para um contexto universitário, onde os sujeitos que possuem a experiência vivida estão também presentes.
GVS: Qual o efeito do acesso à universidade na formação de intelectuais e de profissionais indígenas nas populações originárias no Brasil de hoje?
Felipe Tuxá: Penso, em primeiro lugar, na minha própria experiência, pois tentei desde o início de minha trajetória conduzir pesquisas a partir de uma agenda propriamente etnológica, mas que estivessem sempre em diálogo com os projetos políticos dos povos indígenas. Em outras palavras, sempre busquei conciliar meus interesses particulares de pesquisa e formação em Antropologia com os interesses da minha comunidade e dos povos indígenas com os quais trabalhei. Porém, vou lhe dar dois exemplos recentes, que dão uma ideia do alcance e do que significa a presença de intelectuais indígenas em diferentes campos.
Em 2020 participei do projeto Saúde dos povos indígenas no Brasil: Perspectivas históricas, socioculturais e políticas (componente sobre mobilização indígena em face da pandemia da Covid-19), coordenado por Ana Lúcia Pontes e Ricardo Ventura, na Fundação Oswaldo Cruz. Minha atuação neste projeto me permitiu acompanhar a elaboração de uma denúncia de genocídio que seria protocolada pela Apib contra o presidente Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional em Haia. O processo durou cerca de um ano, até agosto de 2021, quando a denúncia foi feita. Na condição de indígena, pesquisador de genocídio e etnógrafo, acompanhei todo o processo de elaboração da denúncia, no intuito de analisar as estratégias e os agenciamentos políticos indígenas contemporâneos. Mais do que focar no resultado, isto é, na denúncia produzida, a ideia era etnografar o processo de feitura da denúncia, dando relevo à participação de advogados e lideranças indígenas, seus discursos, práticas e incidência política junto a outros atores do campo, como advogados não indígenas, professores universitários, membros de ONGs, indigenistas e juristas.
A Covid-19 foi uma crise que afetou, em níveis diferentes, todos os povos indígenas. Porém, com ela, assistimos a um fenômeno novo porque, ao que me parece, pela primeira vez, após a implementação da chamada Lei de cotas, foi possível observar em grande escala o impacto dos profissionais indígenas não apenas no enfrentamento da Covid-19 nos nossos territórios, mas também na produção de uma memória sobre esse evento. Estou me referindo aos profissionais com formação em Saúde, que atuaram no atendimento em suas comunidades, aos advogados indígenas que moveram ações contra a inépcia do governo federal, aos comunicólogos, fotógrafos e cinegrafistas indígenas responsáveis pela publicização da crise e pela utilização das redes sociais em prol de suas comunidades; falo de historiadores, antropólogos e demais intelectuais que buscaram registrar a memória daqueles que pereceram e ajudaram a elaborar protocolos de intervenção culturalmente sensíveis diante do vírus.
Esse papel sempre me pareceu muito importante, de modo que, desde o início de minha graduação em Ciências Sociais, em todos os eventos e assembleias indígenas de que participei, busquei conhecer outros indígenas que cursassem Antropologia. Fomos nos conhecendo informalmente, por meio de indicações entre pessoas e de encontros no Enei, no Acampamento Terra Livre, na Assembleia Terena e em todos os eventos indígenas. Com o WhatsApp, criamos um grupo para articular os indígenas antropólogos ao redor do país. O interesse era compartilhar experiências, pensar os desafios enfrentados nas pós-graduações de Antropologia no país e as perspectivas de mercado de trabalho. Aos poucos fomos nos conhecendo melhor e, hoje, o grupo tem mais de cem membros, a ponto de criarmos Articulação de Indígenas Antropólogues do Brasil (Abia). A Abia foi criada durante a pandemia de Covid-19 e tem promovido debates virtuais, criado e acompanhado demandas institucionais e ocupado espaços diversos da sociedade civil.
Por exemplo, a Abia estreitou as relações com a ABA e hoje temos um Comitê de Indígenas Antropólogues dentro da Associação, da qual eu sou membro. Na atual gestão da ABA também faço parte da Comissão de Assuntos Indígenas - CAI e do Comitê de Relações Internacionais. A atuação de antropólogos indígenas nesses espaços tem sido marcada pelo debate sobre a criação de políticas indigenistas, o acompanhamento da produção de laudos e relatórios técnicos, assim como a assessoria de projetos de lei. Notadamente, o Projeto de Lei 5476, protocolado pela deputada indígena Joênia Wapichana, que trata da reserva de vagas para candidatos indígenas em concursos públicos. Discutimos também sobre o horizonte profissional dos egressos indígenas em cursos de Antropologia, sua inserção no mercado de trabalho e sua participação no Movimento Indígena.
GVS: Para terminar, você faz parte de uma geração beneficiada diretamente pela reserva de vagas nas universidades públicas. Porém, antes das ações afirmativas, alguns intelectuais indígenas, inclusive hoje professores universitários, foram abrindo caminhos. Há alguma diferença entre a experiência dessas primeiras e as novas gerações na universidade? O que mudou e o que permanece no surgimento e nos posicionamentos dos primeiros e dos atuais intelectuais indígenas e como isso incide, por exemplo, na Antropologia no Brasil?
Felipe Tuxá: Entrei na Universidade em um momento em que as ações afirmativas ganhavam contornos inéditos, tanto no que se refere ao acesso como na permanência. Os indígenas que ingressaram no Ensino Superior antes dessas políticas, como os antropólogos Gersem Baniwa e Tonico Benites do povo Guarani, foram pioneiros e se depararam com uma Universidade ainda muito pouco diversa. Não se podia ter orientador indígena ou mesmo contar com um indígena doutor em uma banca de defesa. Hoje o cenário é diferente, mas ainda somos poucos. Há acúmulo de experiências prévias e, do ponto de vista da logística, algumas universidades contam com maior aporte de infraestrutura para a permanência, mas muitos dos desafios que eles encontraram permanecem. Refiro-me, sobretudo, aos desafios de ordem epistemológica, suscitados pela entrada de sujeitos que concebem o saber a partir de lógicas e modalidades distintas. Receber, sem condescendência, intelectuais indígenas deve ser um projeto que deve ter no horizonte a legitimação no espaço acadêmico de que conhecimento é algo que todos possuem, e que existem outras formas de construir e outras finalidades para o que é produzido fora e a partir das Universidades.
O grande diferencial atual é que quem ingressa no Ensino Superior pode encontrar redes de suporte entre acadêmicos indígenas consolidadas, o que tira o peso do isolamento e fortalece coletivamente suas trajetórias, aumentando as chances de sucesso em finalizar a sua formação. Precisamos ainda aprimorar o diálogo acadêmico no sentido de vislumbrar agendas de pesquisas articuladas entre instituições diferentes, apontando caminhos promissores e lacunas a serem preenchidas por novas pesquisas.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Dez 2022 -
Data do Fascículo
2022