Open-access O Canto da Machadinha: mito, ritual e história em um gênero de arte verbal krahô

The Chant of the Small Axe: Myth, Ritual and History in a Krahô Verbal Art Genre

El canto de la pequenã Hacha: mito, ritual y historia en un género de arte verbal Krahô

Resumo

Este artigo é dedicado à análise da performance e da poética de um gênero de arte verbal krahô (povo ameríndio falante de uma língua da família Jê e que vive no norte do Tocantins) denominado Kàjre jarkwa, o “Canto da Machadinha”. Em um primeiro momento, recupera-se parte da história recente e profunda desse importante artefato ritual timbira a fim de se destacar alguns elementos centrais para a compreensão de sua matéria narrativa e dispositivo dialógico de enunciação. Em seguida, o foco se volta para a análise de fenômenos tais como paralelismo, indexicalidade e multiposicionalidade a fim de se mostrar como a agência ritual produz uma equivocidade ontológica que transforma o estatuto de seus enunciadores e permite que a Machadinha e outros personagens míticos ganhem voz no presente.

Palavras-chave: Krahô; Artefato ritual; Artes verbais; Poética; Etnologia indígena

Abstract

This article focuses on the analysis of the performance and poetics of a Krahô verbal art genre called Kàjre jarkwa, the “Chant of the small Axe”. The Krahô are an Amerindian people who live in northern Tocantins (Brazil) and speak a Jê language. We first recover part of the recent and deep history of this important Timbira ritual artifact in order to highlight elements that are key to the understanding of its narrative material and dialogical device of enunciation. The focus then turns to the analysis of phenomena such as parallelism, indexicality and multi-positionality, in order to show how ritual agency generates an ontological equivocity that transforms the status of its enunciators and allows the small Axe and other mythical beings to gain voice in the present.

Keywords: Krahô; Ritual artefact; Verbal arts; Poetics; Amerindian ethnology

Resúmen

Este artículo está dedicado al análisis de la performance y de la poética de un género de arte verbal krahô (pueblo amerindio hablante de una lengua de la familia Jê y que habita en el norte del Tocantins, en Brasil) llamado Kàjre jarkwa, el “Canto de la pequeña Hacha”. En un primer momento, recuperamos parte de la historia reciente y profunda de este importante artefacto ritual de los Timbira para destacar algunos elementos centrales para la comprensión de su materia narrativa y dispositivo dialógico de enunciación. En seguida, la atención se dirige al análisis de fenómenos como el paralelismo, la indexicalidad y la multiposicionalidad para mostrar cómo la agencia ritual genera una equivocidad ontológica que transforma el estatus de sus enunciadores y permite que la pequenã Hacha y otros personajes míticos ganen voz en el presente.

Palabras-clave: Krahô; Artefacto ritual; Aartes verbales; Poética; Etnología indígena

A Machadinha quer alegrar, quer alegrar Quem deu ela lá no Pé-do-Céu disse que ela não quer o calor das casas Depois que ela foi devolvida, eu não escutei mais falar da Machadinha A Machadinha tem que estar em toda festa Ela quer se alegrar, não gosta de ficar parada O pensamento da Machadinha é limpo Quando tem movimento ela não gosta de ficar no calor Ela gosta de ficar alegre no pátio Mas a história da Machadinha está parada Eu estou longe e não estou escutando falarem dela A Machadinha quer se alegrar e mostrar tudo o que conhece Em todo movimento ela fica alegre A Machadinha não tem sono, não tem fraqueza Olegário Tejapôc in memoriam

Introdução 1

As reflexões apresentadas em epígrafe foram feitas pelo mestre ritual krahô Olegário Tejapôc quando, numa manhã de setembro de 2016, ele me disse que gostaria que eu registrasse com meu gravador o Kàjre jarkwa: a “voz”, a “fala”, a “língua” (no sentido de idioma) ou ainda o “canto” da Machadinha que, segundo ele, estava sendo esquecido. À época eu estava realizando uma segunda etapa de minha pesquisa de campo de doutorado, centrada na transcrição e na tradução de diversos gêneros de arte verbal krahô, e apesar de já conhecer um pouco da história da Machadinha por meio de algumas referências encontradas na literatura etnográfica disponível, não era ainda minha intenção desenvolver uma pesquisa pormenorizada sobre o assunto, a começar pelo fato de este artefato ritual não ser guardado na aldeia em que vivia Tejapôc, a aldeia Pé de Coco, e sim na aldeia Pedra Branca, a mais populosa e uma das mais antigas aldeias krahô. Eu não podia imaginar assim que, ao me sentar com Tejapôc à sombra de um cajueiro que havia ao lado de sua casa, ele iria recitar - por quase duas horas e de modo praticamente ininterrupto - cerca de 400 versos, detendo-se apenas por alguns instantes para dar um gole de café, um trago em seu cigarro e pedir a seus netos e demais crianças que brincavam ao nosso redor que ficassem em silêncio e prestassem atenção ao que ele estava comunicando.

Diferentemente de grande parte dos saberes rituais dos povos Timbira e Jê, o Kàjre jarkwa não faz parte dos conhecimentos que constituem prerrogativas cerimoniais ligadas a nomes pessoais e que são transmitidas juntamente com eles por meio de relações de parentesco específicas ( Melatti 1978). Ao contrário, o conhecimento do Kàjre jarkwa é, ao menos em princípio, uma possibilidade aberta a qualquer pessoa interessada em adquiri-lo. Na prática, contudo, somente cantores experientes e de mais idade, que já são socialmente reconhecidos como mestres rituais ( padré ou increr cati, “grandes, magníficos cantores”), ousam se declarar seus conhecedores e são efetivamente capazes de executá-lo de maneira considerada “correta”, “bela” e “verdadeira” ( impej 2). Isto porque se exige dos enunciadores do Kàjre jarkwa não apenas que eles encarnem uma série de condutas éticas exemplares - não fazer barulho, brigar, se divorciar ou maldizer os outros; escutar mais do que falar, dormir pouco e esperar que todos tenham sido servidos para comer ( Carneiro da Cunha 1973) - como também que dominem uma ampla gama de conhecimentos mitológicos e sociocosmológicos. Como me dizia Tejapôc, “precisa de muito estudo pra cantar o Kàjre jarkwa. Quem não viajou muito não sabe cantar, porque o Kàjre jarkwa é coisa de quem viaja muito. É só contação, vai contar o que viu, por onde andou, por onde passou”.

Além disso, tais cantores devem ser capazes de elaborar e transmitir esses conhecimentos por meio de habilidades verbovocais que são tidas como particularmente difíceis de serem adquiridas e manejadas. Com efeito, o Kàjre jarkwa pertence a um gênero verbal mais amplo, denominado Mẽ icakôc xà (algo como “Nossas palavras” ou “Nosso discurso”), que ocupa uma posição singular no interior do vasto campo de artes da palavra krahô. Diferentemente dos cantos rituais ( increr), por exemplo, com seus versos curtos e que devem ser aprendidos e transmitidos verbatim de um cantor a outro ( Packer 2020b , 2023), trata-se de uma forma discursiva que aceita certa margem de improvisação, pois por meio da manipulação de um conjunto de fórmulas verbais seus enunciadores produzem significativas variações narrativas a cada nova performance, variações estas que são bastante apreciadas pelos ouvintes. Ademais, a enunciação dessas unidades discursivas é marcada por um ritmo escandido que se distingue tanto do padrão prosódico que caracteriza a fala espontânea e a narração de mitos quanto da forma melodiosa com que são executados os cantos rituais, de modo que ela assume um caráter recitativo e o aspecto de um “canto falado”.

Outra característica do gênero Mẽ icakôc xà que deve ser levada em conta é que sua execução “ideal” deve ser feita por dois cantores, que interagem no pátio da aldeia ao longo de toda a noite, realizando uma espécie de diálogo cerimonial. Ora, como se vê, tal contexto e forma de enunciação são diferentes daqueles que descrevi acima, quando pela primeira vez escutei o Kàjre jarkwa. Antes de me aprofundar na análise da poética do texto a que a performance de Tejapôc deu origem - o que constitui o propósito central deste artigo -, será preciso então recuperar alguns elementos relativos à história profunda e recente da Machadinha, pois eles nos deixarão em melhores condições de compreender algumas das características centrais do inovador evento discursivo produzido por Tejapôc, evento este que é fruto tanto do meu encontro com ele quanto de um momento particular da história de vida desse importante artefato ritual. Como dizia Tejapôc em suas reflexões apresentadas em epígrafe, a Machadinha foi obtida “ lá no Pé-do-Céu”, mas depois que foi perdida e “ devolvida”, ela e sua história se encontram “ paradas”. Para começar, vejamos então a que se referem cada um desses momentos destacados por Tejapôc.

A história da Machadinha

A Machadinha ( kàjre) é formada por uma grande lâmina de pedra polida em formato semilunar que se encontra acoplada a um pequeno cabo de madeira de onde pendem fios de algodão trançado. Apesar de atualmente somente os Krahô possuírem um exemplar em uma de suas aldeias, antigamente artefatos líticos deste tipo podiam ser encontrados por todo o território tradicional de ocupação dos povos timbira 3, que não se reconhecem como seus autores materiais e contam que seus antepassados valorizavam tanto sua posse que sua aquisição constituía um dos principais objetivos das incursões guerreiras que realizavam entre si e das viagens que faziam por terras distantes ( Melatti 1974:52).

Segundo uma importante narrativa contada pelos Krahô, a Machadinha foi obtida por seus antepassados depois de eles terem sido guiados pelo herói Hartãt em uma longa viagem até o Pé-do-Céu ( kôjkwa kat), uma enorme árvore (às vezes identificada como uma samaúma) que sustenta a cúpula celeste no extremo leste ( kỳj mã) do mundo. De acordo com a cosmografia krahô, é desta região que provém toda a luz, a fertilidade e o movimento que geram a vida, ao passo que a região oeste ( harã mã, ahpar mã) é marcada pela escuridão, pela morte e pela imobilidade, sendo nessa direção que, não à toa, se localiza Preeti, a aldeia dos mortos 4. No início dessa viagem, Hartãt ensinou o grupo de viajantes a coletar diversos tipos de alimentos e a caçar diferentes animais até que, a partir de certo ponto, avisou que dali em diante eles passariam a percorrer uma “outra terra”, uma “terra diferente”, “estranha” ( pjê cahàc), onde seria possível ouvir e compreender o canto de diversos seres. Ao longo dessa segunda etapa da viagem, Hartãt passou então a desafiar um dos viajantes - um xamã ( wajaka) que era casado com uma de suas filhas - a atravessar uma série de obstáculos encontrados pelo caminho: uma grande palmeira buriti de cujo topo saíam chamas de fogo, flechas que caíam do céu em um rio, um enorme jacaré e uma enorme teia de aranha, dentre vários outros. Esse xamã conseguiu, contudo, superar todos esses desafios, transformando-se em diferentes espécies de pássaros (bem-te-vi, beija-flor, arara, martim-pescador etc.), e cada vez que retornava para junto do grupo, dizia a Hartãt que iria conseguir voltar são e salvo para a aldeia para reencontrar sua esposa: “Sogro, nada pode acabar comigo! Os bichos nada sabem, por isso morrem! Eu vou voltar e novamente mostrar meu rosto para tua filha!”. Na sequência da viagem, o grupo de viajantes conseguiu enfim chegar ao Pé-do-Céu e lá passaram a noite ouvindo a Machadinha cantar. No dia seguinte, Hartãt foi então pedir um exemplar a seu dono, que possuía muitos e que, em certas versões da narrativa, é apresentado como um humano ( mehĩ), em outras, como um enorme Pica-Pau que ficava bicando o tronco do Pé-do-Céu com o intuito de derrubá-lo, e em outras ainda, sendo ele próprio uma Machadinha. Depois de pedir para pensar por mais uma noite no pedido que Hartãt lhe havia feito, essa entidade acabou concordando em ceder uma de suas filhas/filhos 5 ( ikra) aos viajantes, pedindo-lhes apenas que não deixassem a Machadinha guardada, pois, como dizia Tejapôc, ela não gosta de ficar parada e sim de estar sempre em movimento. 6

Já de acordo com uma segunda narrativa, registrada por volta de 1920 por um missionário batista, a Machadinha teria origem nos confrontos entre os “índios do céu” e os “índios da terra”, que viviam em guerra entre si. Em um desses conflitos, depois que os primeiros realizaram um ataque sob a forma de um raio, atingindo e queimando uma árvore, os segundos encontraram a Machadinha enterrada em um buraco debaixo dela. Eles guardaram então a arma do inimigo “como relíquia preciosa” e “até hoje, quando fazem suas festas comemorativas, [os Krahô] entoam seu hino guerreiro, cantado no momento da batalha” ( Campêlo 1957:60-62). Essa dinâmica bélica envolvendo a posse da Machadinha é, aliás, também tema de uma terceira narrativa, segundo a qual antigamente ela pertencia a um povo muito valente que vivia em guerra com os Królcamekrá, 7 uma outra “nação” timbira. Em um dos embates ocorridos entre esses dois grupos, o guerreiro que possuía a Machadinha a utilizou para matar muitos inimigos, mas acabou sendo flechado e morto por um deles, que pegou o artefato e o levou consigo para sua aldeia. No entanto, pouco tempo depois, este novo dono da Machadinha se separou de sua esposa e acabou esquecendo-a pendurada em um dos esteios de sua antiga casa, até que certa noite ela começou a conversar com a mulher: “Vamos, minha mãe, vamos embora para o pátio, vamos cantar! Eu vou dizendo e quando acaba você vai dizendo também, você acompanha”. A mulher levou então a Machadinha para o pátio e ela passou a noite cantando e lhe ensinando seus cantos 8. Enquanto isso, os antigos donos da Machadinha, inconformados com sua perda, começaram a planejar uma forma de obtê-la de volta. Eles enviaram um mensageiro à aldeia dos Królcamekrá, que foi pacificamente recebido no pátio e ali encontrou o novo dono da Machadinha, que lhe disse que só a devolveria se alguém conseguisse vencê-lo na corrida. De volta à aldeia, o mensageiro contou a seu povo o desafio que lhes tinha sido feito e eles decidiram armar uma emboscada perto da aldeia dos Królcamekrá. Assim que o dono da Machadinha se aproximou do lugar em que eles estavam escondidos, eles começaram a atacá-lo com flechas, mas ele conseguiu correr e escapar. Entretanto, um bom corredor logo saiu em disparada atrás dele e, quando conseguiu alcançá-lo e segurá-lo, os demais guerreiros rapidamente se juntaram e o mataram. Eles recuperaram então a Machadinha e a entregaram ao irmão de seu antigo dono ( Schultz 1950:114-119).

É importante lembrar que essas viagens e esses conflitos envolvendo a posse da Machadinha seguiram acontecendo ao longo do século XX, quando ocorreu um evento bem marcante em sua história. Em 1947, a Machadinha foi adquirida pelo etnólogo e colecionador alemão Harald Schultz que, em passagem pela aldeia Pedra Branca, a obteve em troca de uma espingarda. Shultz a doou em seguida ao Museu Paulista da Universidade de São Paulo (o Museu do Ipiranga), onde ela passou a integrar uma coleção de machados líticos composta por exemplares coletados entre diversos outros povos ameríndios ( Simons 1965). Por várias décadas os Krahô estiveram sem a Machadinha, até que no início dos anos 1980, certo dia, um indigenista ouviu um ancião entoando um canto que ele nunca havia escutado antes e, ao lhe perguntar o que era, soube que se tratava de uma passagem do Kàjre jarkwa. Ele se se lembrou então de já ter visto em um museu de São Paulo um objeto semelhante ao que lhe foi descrito pelos Krahô, e quando conseguiu lhes mostrar algumas fotografias, eles imediatamente reconheceram que se tratava exatatamente do mesmo artefato que lhes pertencia. Os Krahô deram então início a uma intensa mobilização por sua restituição, a qual pode ser considerada algo precursora das cada vez mais frequentes reivindicações que diversos povos autóctones ao redor do planeta têm feito pela repatriação de seus artefatos e demais bens materiais e imateriais que, ao longo dos séculos, foram levados por viajantes, missionários e pesquisadores para museus e outras instituições culturais. Essa mobilização contou com apoio de antropólogos, indigenistas e outras figuras da sociedade civil e foi encabeçada por duas importantes lideranças à época, Pedro Penõ e Aleixo Pohi, que passaram vários meses em São Paulo até que, em 1986, conseguiram que a Machadinha fosse devolvida para a aldeia Pedra Branca, tendo ela se tornado a partir de então uma espécie de emblema étnico dos Krahô perante a sociedade brasileira e outros povos indígenas 9.

Esses eventos relativos à história recente e profunda da Machadinha são fundamentais para compreendermos certos aspectos da performance do Kàjre jarkwa realizada por Tejapôc, a começar pelo fato de parte significativa de sua matéria narrativa também tratar da história da viagem ancestral ao Pé-do-Céu. Além disso, boa parte de meus interlocutores atribui à ausência da Machadinha do território krahô por cerca de quarenta anos a desarticulação da forma “ideal” de execução do Kàjre jarkwa e, consequentemente, a diminuição do número de seus conhecedores - situação que responde tanto pela afirmação de Tejapôc de que a história da Machadinha se encontra “ parada” quanto por sua decisão de realizar uma performance solo, à maneira daquele cantor que, nos anos 80, ao cantar solitariamente alguns versos acabou desencadeando o movimento de repatriação da Machadinha. Mas antes de passarmos à performance de Tejapôc propriamente dita, vejamos um pouco mais detalhadamente em que consiste essa forma “ideal” de enunciação do Kàjre jarkwa.

Um diálogo ritual krahô

A Machadinha “não gosta de ficar parada [...] não gosta de ficar no calor das casas, ela gosta de ficar alegre no pátio”, me dizia Tejapôc. Em decorrência deste gosto da Machadinha em permanecer no centro da aldeia, ele e outros cantores me explicaram que a execução de seus cantos é investida pelo dualismo que organiza parte significativa das práticas rituais timbira, sendo então realizada não por um, mas por dois cantores, que com seus corpos pintados e adornados se alternam em sua recitação em voz alta ao longo de toda a noite. Esses dois cantores desenvolvem, assim, uma performance dialógica, que pode ser compreendida como uma modalidade bastante singular de diálogo cerimonial se comparada àquelas que são conhecidas e praticadas por outros povos ameríndios.

Como diversos autores já notaram ( Rivière 1971; Urban 1986; Erikson & Becquelin 2000), os diálogos cerimoniais ameríndios costumam ocorrer quando pessoas de coletivos com grande grau de distância social se encontram para realizar transações diversas (como negociar trocas comerciais e matrimoniais, estabelecer alianças sociopolíticas etc.). Nesses ambientes intercomunitários carregados de tensão e onde a chance de eclodir um conflito é algo sempre latente, esse modo de interação verbal visa então mediar o encontro entre diferentes, ritualizando a forma de um diálogo ordinário e espontâneo para transformá-lo, como notou Urban (1986:378), em “ícone de uma relação solidária”. Ainda nas palavras deste autor:

O diálogo cerimonial, como comportamento linguístico altamente saliente, chama a atenção para si próprio e para a interação linguística para a qual ele é empregado. Simultaneamente, porque encarna um ideal linguístico de sociabilidade [...], ele sugere que essa interação linguística é em si mesma um exemplo de solidariedade social ( Urban 1986:371. Tradução minha).

Tendo isto em vista, é interessante notar, em primeiro lugar, que de acordo com uma estilização tipicamente Jê da relação com a alteridade - sistematicamente multiplicada por processos de diferenciação internos ao socius ( Coelho de Souza 2002:200) -, nesse exemplar krahô de diálogo cerimonial as diferenças postas em relação não dizem respeito aos distintos grupos (locais ou “étnicos”) a que os interlocutores pertencem, e sim a suas respectivas metades rituais, ou seja, a uma forma de segmentação imanente a todos os povos e aldeias timbira: cada um deles deve, assim, pertencer a uma das metades Wacmêjê e Catàmjê (o “povo do Verão e do Dia e o “povo do Inverno e da Noite”, como os Krahô costumam traduzir em português os nomes dessas metades cerimoniais). Desse modo, durante a execução do Kàjre jarkwa, os conflitos bélicos em torno da posse da Machadinha em que as diferentes “nações” timbira viviam envolvidas no passado (e dos quais dei breve notícia acima) são ritualmente atualizados no centro da aldeia, eclodindo de maneira controlada em seu interior por meio da forma de interação instaurada pela performance.

Em segundo lugar, é preciso notar também que diferentemente do que se verifica em outros contextos ameríndios, nessa modalidade krahô de diálogo cerimonial o interlocutor não se limita a desempenhar o papel de um mero “repetidor”, ou seja, de alguém que apenas reproduz verbatim cada uma das sílabas ditas pelo primeiro orador a fim de aprender o que está sendo narrado (o que, segundo Urban [1985], ocorre entre os Shokleng); nem é ele tampouco um simples “respondedor” ( what-sayer), alguém que pronuncia uma única e mesma palavra ( back channel responses) a fim de confirmar retoricamente o que o orador principal está narrando e de estimulá-lo a seguir adiante (como ocorre entre os Kuna e entre diversos outros povos ameríndios; cf. Scherzer [ 1983]). Ao contrário, os dois enunciadores envolvidos na performance do Kàjre jarkwa possuem o mesmo estatuto oratório, cada um deles contando longos e diferentes trechos da viagem ao Pé-do-Céu e contribuindo, portanto, tanto pragmaticamente quanto discursivamente com seu desenvolvimento narrativo ( Urban 1986). Além disso, diante dos ouvintes, que permanecem em suas casas no círculo da aldeia, os interlocutores não apenas alternam a palavra entre si como também medem suas respectivas habilidades oratórias e capacidade de permanecer de pé no pátio da aldeia, noite adentro. Assim, à maneira do que se verifica nos diálogos cerimoniais trio, jívaro e yanomami ( Rivière 1971; Gnerre 1986; Descola 2006; Luciani 2017), a execução do Kàjre jarkwa assume ares de um duelo verbal, instalando entre seus participantes uma dinâmica de interação algo similar àquela que caracteriza as célebres corridas de toras e que, como nota Perrone-Moisés (2015:- 50), são “ a expressão timbira privilegiada da noção fundante de solidariedade entre opostos” 10: lá como aqui, não há vencedores ou perdedores propriamente ditos, pois mais importante do que ganhar a disputa é ter parceiros com os quais correr/dialogar. Essa rivalidade entre os dois cantores se expressa, aliás, já na fórmula de abertura que cada um deles deve obrigatoriamente empregar quando dá início às suas intervenções depois de concluídas as de seu interlocutor:

Xy pa hanẽẽẽẽẽẽ Agora sou eu mesmo Xy pa hanẽẽẽẽẽẽ Agora sou eu mesmo Hà xy pa hanẽ rỳquê kôjkwa kat jarẽ nẽẽẽẽẽẽ Agora sou eu mesmo, sobre o Pé-do-Céu vou contar Hà rỳquê kôjkwa kat jarẽ nẽ pê mã nã mã cumã amjĩ jakrepej nã hajỹrỹ mã mãã Sobre o Pé-do-Céu vou contar, há muito tempo aconteceu, conheço muito bem

Essa fórmula de abertura manifesta, ademais, ainda uma outra característica fundamental da dialogicidade que caracteriza a performance do Kàjre jarkwa, indicando que ela não se restringe apenas a uma esfera intra-humana de interação, e sim inclui ainda outros sujeitos, criando um regime de enunciação inteiramente distinto daquele que fundamenta a transmissão da narrativa de origem da Machadinha em sua forma mito. Afinal, além dos dois interlocutores humanos presentes no pátio, há ainda um terceiro, não humano, que com seu corpo pintado de urucum também participa da configuração relacional ali instaurada: a própria Machadinha que, como vimos nas reflexões de Tejapôc e nas narrativas apresentadas acima, é um ser dotado de subjetividade, agência e linguagem. Empunhada pelo cantor que a cada momento tem a palavra, esses atributos ontológicos da Machadinha serão então ativados por meio da agência ritual, de modo que, como me explicaram os Krahô, o “eu” que enfaticamente se anuncia e se afirma nessa fórmula de abertura pode ser ouvido e compreendido tendo por referente tanto o cantor humano - que expressa que agora é ele e não mais seu interlocutor humano quem irá contar “ sobre o Pé-do-Céu” - , quanto a própria Machadinha - que reivindica a palavra para si e declara que agora é também ela, e não apenas os cantores humanos, quem irá contar sua história. Na performance do Kàjre jarkwa, a Machadinha deixa assim de ser apenas um tema narrativo para se tornar, também ela, sujeito da enunciação.

Essa instabilidade ou equivocidade referencial do sujeito da enunciação - como se sabe, uma característica marcante dos discursos xamânicos ameríndios ( Viveiros de Castro 1986; Oakdale 2005; Severi 2006; Cesarino 2011; Heurich 2016) - produz uma complexidade enunciativa que é engendrada ainda pela presença em língua krahô de expressões que correspondem tanto a um regime “deferencial” de informação quanto a um regime baseado na “ostensão” ( Déléage 2009). Assim, se na quarta linha da fórmula de abertura encontramos a expressão evidencial reportativa pê mã nã mã, sempre presente na narração de mitos e que indica a grande distância temporal do “eu” enunciativo em relação aos acontecimentos relatados (e, portanto, a impossibilidade de ele garantir por si só a veracidade do que relata), nela também encontramos a frase amjĩ jakrepej nã hajỹrỹ mã mãã, em que a presença do reflexivo amjĩ e da expressão assertiva hajỹr mã mãã indica, ao contrário, que o conhecimento ( jakrepej) do enunciador decorre de sua experiência pessoal e direta - conhecimento este que, vale dizer, inclui uma capacidade da qual os personagens míticos e os xamãs são particularmente detentores: a capacidade de se metamorfosear em outros seres. Dessa forma, nesse contexto enunciativo, a autoridade que fundamenta a comunicação sobre o que “ há muito tempo aconteceu” no Pé-do-Céu não decorre apenas do fato de o enunciador ter aprendido corretamente a sequência e o conteúdo narrativos da história de Hartãt e da Machadinha por meio da longa cadeia de transmissão oral que o precedeu. Mais do que isso, tal autoridade decorre aqui também do fato de a Machadinha, que viveu pessoalmente os eventos narrados, se encontrar presente em pessoa no pátio da aldeia no momento da execução de seus cantos, deslocando sua “função evidencial” do tempo mítico para o tempo presente da enunciação ( Severi 2008:117).

É preciso sublinhar também que se a fórmula de abertura opera essa forma extremamente forte de condensação ritual, em outros momentos do Kàjre jarkwa o cantor e a Machadinha não irão apenas ocupar simultaneamente a posição de sujeito da enunciação, mas também se alternar sucessivamente entre esta posição e as de 2ª e 3ª pessoa. Ademais, há ainda outros sujeitos que irão se manifestar ao longo do desenvolvimento narrativo da performance, como, por exemplo, Hartãt e seu genro, que também irão falar em 1ª pessoa por meio de discursos diretos embutidos na estrutura narrativa, bem como transitar entre as demais posições. Em todo caso, em razão do ritmo acelerado que caracteriza a elocução do Kàjre jarkwa (cada verso dura em média 5 segundos), nem sempre é fácil discernir com clareza quem fala, com quem e sobre quem, de modo que essa dinâmica “multiposicional” ( Cesarino 2018a) acaba inevitavelmente por tornar novamente instáveis e equívocas as identidades dos referentes do discurso. Como me dizia um de meus interlocutores krahô a respeito disto: “a linguagem do Kàjre jarkwa é assim mesmo e só quem conhece a história do Hartãt consegue entender quem está falando”. 11

Nas páginas que seguem passaremos então à análise de alguns aspectos da poética do texto produzido por Tejapôc ao longo de sua performance, que, como veremos, trata também de temas e entidades ausentes da narrativa mítica sobre a viagem ao Pé-do-Céu e que são oriundos de outros campos do pensamento e da sociocosmologia krahô.

A performance de Tejapôc

Como eu dizia no início, a ausência de um outro cantor com quem contracenar não impediu Tejapôc de executar o Kàjre jarkwa. Interessado em não deixar este sofisticado gênero de arte verbal caído no esquecimento, ele desenvolveu então uma interessante estratégia discursiva - de grande densidade poético-conceitual - para tornar sua enunciação possível: apesar de ter cantado o Kàjre jarkwa sozinho, ele recriou sua forma dialógica por meio da organização de sua performance em 12 blocos distintos, cada um deles apresentando diversas marcas linguísticas de interação e sendo iniciado pela fórmula verbal discutida acima, que expressa a circulação da palavra entre os cantores humanos e entre eles e a Machadinha. Ao longo de cerca de 400 versos, Tejapôc foi então contando diferentes episódios da narrativa de origem desse artefato: a partida dos antepassados em direção ao Pé-do-Céu, os conselhos dirigidos por Hartãt aos viajantes e àqueles que permaneceram na aldeia, os diferentes tipos de caça que ele lhes ensinou a capturar, os diversos obstáculos superados por seu genro, o encontro com o Pica-Pau e, por fim, o retorno à aldeia já de posse da Machadinha. Por razões de espaço não posso apresentar na íntegra o texto ao qual esta inovadora performance de Tejapôc deu origem, e nas páginas que seguem irei concentrar meus comentários sobre o primeiro bloco e sobre algumas passagens selecionadas de alguns dos blocos seguintes. 12

Esse material foi transcrito juntamente com Elton Hiku, professor krahô da escola da aldeia Pé de Coco, e inicialmente traduzido em parceria com ele, João Duruteu Xàj, Tito Hapykrit, Dodani Piikên, além, é claro, do próprio Olegário Tejapôc. A essa primeira etapa de trabalho se seguiram inúmeras outras, em que, me apoiando nas exegeses obtidas em campo, elaborei a versão aqui apresentada, bastante centrada no conteúdo semântico do canto, mas que também comporta certas opções tradutórias e estilísticas que são de minha inteira responsabilidade. A fim de tornar saliente a estrutura micro e macroparalelística que caracteriza a montagem do texto, apresento-o dividido em linhas, cada uma delas correspondendo a uma unidade entonacional que se inicia (quase sempre) pela partícula exortativa “ ” e se encerra com uma brevíssima pausa respiratória. Como já indicado, em geral essas unidades rítmicas se sucedem rapidamente, mas em alguns momentos Tejapôc prolonga sua duração e lhes confere uma entonação mais melodiosa por meio do alongamento da última vogal da última palavra, efeito vocal em que me apoio para dividir o texto em estrofes e que deixei sinalizado somente na transcrição em língua krahô (com exceção das linhas 16, 24, 37, em que o mantive também em português para manter algo da carga dramática da performance oral).

Kàjre jarkwa - o canto da Machadinha Bloco I 1. Xy pa hanẽẽẽẽẽẽ Agora sou eu mesmo Xy pa hanẽẽẽẽẽẽ Agora sou eu mesmo Hà xy pa hanẽ rỳquê kôjkwa kat jarẽ nẽẽẽẽẽẽ Agora sou eu mesmo, sobre o Pé-do-Céu vou contar Hà rỳquê kôjkwa kat jarẽ nẽ pê mã nã mã cumã amjĩ jakrepej nã hajỹrỹ mã mãã Sobre o Pé-do-Céu vou contar, há muito tempo aconteceu, conheço muito bem 5. Hà rỳquê ita ri mã mãã rỳquê kàjre jarẽ nẽ tahnã amjĩ to cuhhê mã rỳquê ajpên ijõ pyka wỳr De pé aqui [no pátio], sobre a Machadinha vou contar, como na minha terra ela veio parar Rỳquê mẽ aquêtjê nõ te caràr cute amjĩ mã tamã cumã hũhkra mã haxàràààààà Teus antepassados seus cantos ouviram, em suas mãos a receberam 13 Cumã tamã cumã kàj mã amjĩ to cuhhê tyj mã rỳ cute tahnã amjĩ to ipijarõ mã De pé a receberam, [em volta do Pé-do-Céu] andaram 14 Hà rỳquê ajpên kyjkyj pej ti rỳquê wỳr mã mãã cumã hopôr to cuhkwỳr curê caxàràààààà Depressa têm que caminhar, começo a cantar Cumã kàjre jarẽ nẽẽẽẽẽẽ Sobre a Machadinha vou contar 10. Hà cumã kàjre jarẽ nẽ pê mã nã mã cumã tamã cumã amjĩ jakrepej nã hajỹrỹ mã mãã Sobre a Machadinha para eles vou contar, há muito tempo aconteceu, conheço muito bem Hà rỳquê pjê kat nã cute amjĩ to ipixêr mã Em volta do Pé-da-Terra 15 ela voava Hà rỳquê wỳr mã mãã cute caràr par xà wỳr rỳ cute hopôr to cuhkwỳr curê caxàràààààà Seus cantos eles 16 ouviram, em sua direção partiram, depressa têm que caminhar, começo a cantar Hà rỳ cute hopôr to curê caxàr mã rỳquê wỳr mã mãã kyjkyj pej nẽ Começo a cantar, depressa têm que caminhar Hà rỳquê tahnã amjĩ to pỳm mã rỳquê ijatê xà kre mã rỳquê ijõ pĩhhô nã rỳquê ijõ pĩhkre nẽ Na minha toca de bicho, embaixo das minhas folhas, no meu oco de pau entraram 17 15. Hà rỳ cute amjĩ to hohhuc to mõr curê caxàràààààà Ali foram se abrigando, começo a cantar Kry xàààààà Que friiiiiiiiio Hà kry xà ti cawpa ti cunĩti te rỳquê ita ri mã mãã Com muito Frio no corpo todo, aqui [no pátio] Hà rỳquê mẽ aquêtjê nõ japuhnã hê amjĩ mã hũjakry xà cawpa nõ pê mã Depois dos teus antepassados, sem medo do Frio e da Noite Hà rỳquê hũjakry xà ti to ijõ prõkwỳj nã rỳquê to ijõkrexê te amjĩ to jomõtàràààààà O Frio e a Noite com minha mulher e meu colar enfrentei 18 20. Hà rỳquê to ijõ prõkwỳj cumã amjĩ to jomõtàrà nẽ cumã amjĩ to ixa mã Com minha mulher enfrentei, de pé na frente deles estou Hà rỳquê ipuh mã mãã rỳquê inã mã hũjakry xà ti Ao meu redor, sobre mim, o Frio e a Noite Hà hũjakry xà ti rỳ howjijin nẽ ahpar cati mã rỳquê ijarã nã mã O Frio e a Noite desceram, rumo ao poente partiram Hà rỳquê ijõ pĩ ijõ capa poo kat tyc xà kĩn xà to wỳr mã nẽ tahnã amjĩ to hohhucôôôôôô Da minha escura mata gostaram, ali se abrigaram Kry xàààààà Que friiiiiiiiio 25. Hà kry xà ti cawpa ti cumã ijõmprỳ pytẽc jarẽ nẽẽẽẽẽẽ Com muito Frio [no corpo todo] , sobre o pássaro Jacu vou contar Hà cumã ijõmprỳ pytẽc jãrẽ nẽ pê mã nã mã rỳquê prỳ kat tyc kĩn xà to Sobre o pássaro Jacu vou contar, há muito tempo aconteceu, da sua pluma preta o Frio e a Noite gostaram Hà rỳquê kat hõmõ krã kĩn xà to rỳquê cute wỳr mã amjĩ to mõr nẽ tahnã amjĩ to hohhucôôôôôô Da sua sombra gostaram, em sua direção partiram, ali se abrigaram Hà rỳquê cute amjĩ to hohhuc mã rỳquê kenpôc te wỳr mã mãã tahnã ihwỳr mã amjĩ to ihcuhkwỳr reri mã Ali se abrigaram, em sua direção devagar caminharam Hà rỳque te ihprỳ krorti rỳquê ihkĩn xà to cute amjĩ to hohhuc mã Da sua pluma pintada gostaram, ali se abrigaram 30. Hà rỳquê kyjkyj pej te rỳquê ihwỳr mã mãã cumã hopôr to ihcuhkwỳr icurê caxàràààààà Depressa têm que caminhar, começo a cantar Rỳquê ateeeeee Você Hà rỳquê ate ajpẽn japuhnã rỳquê gũjakry xà ti Você é o próximo, com o Frio e a Noite vai sofrer Hà rỳquê akenpôc te amjĩ to gohhuc mã rỳquê kyjkyj pej ti Devagar parou, depressa têm que caminhar Hà rỳquê ate amjĩ cawpa to rỳquê ate amjĩ to acrycryc pejêêêêêê Você está com medo, você está com raiva 35. Hà rỳquê ajpẽn japuhnã rỳquê mẽ aquêtjê jakàmpê rỳquê mẽ hõwrẽ kãm Você é o próximo, no lugar dos teus antepassados, seguindo seu rastro Hà rỳquê caràr nõ to amjĩ mã tamã rỳquê te hũjakry xà rỳquê to jomõtàràààààà Com seus cantos o Frio e a Noite enfrentou Kry xàààààà Que friiiiiiiiio Hà kry xà ti cawpa ti cunĩti rỳquê ajpẽn jãpuhnã rỳquê amjĩ ta pinkrên mã Com muito Frio no corpo todo, sou o próximo, de pé persisto Hà rỳquê ajpẽn japuhnã mẽ aquêtjê nõ jakàmpê rỳquê caràr to rỳquê ipẽr to te amjĩ mã jomõtàràààààà Sou o próximo, no lugar dos teus antepassados, seus cantos mostrei, com eles enfrentei 40. Rỳquê ateeeeee Você Hà rỳquê ate ajpẽn japuhnã gũjakry xà te rỳquê akenpôc te inã amjĩ to gohhuc mã Você é o próximo, com o Frio e a Noite vai sofrer, na minha frente devagar você parou Hà rỳquê ate akenpôc mã iwỳr mã mãã cumã gopôr to acuhkwỳr curê caxàràààààà Em minha direção devagar você partiu, depressa têm que caminhar, começo a cantar Mahôj mahôj Ma jêêêêêê 45. Ha jêêêêêê Haaaaaa 19

Nas quatro primeiras estrofes (linhas 1-12) desse bloco inicial, vemos então que é posto em cena o momento em que os antepassados krahô obtêm a Machadinha no Pé-do-Céu, depois de terem se dirigido até lá por escutarem seus cantos. A referência à narrativa de origem da Machadinha se encerra, contudo, nessas estrofes iniciais, pois a partir das seguintes começa a ser elaborado um outro importante tema narrativo: a presença no pátio da aldeia de hũjakry, o Frio e a Noite, que envolvem o corpo do cantor enquanto ele executa o Kàjre jarkwa. Entretanto, como mostrei em outros trabalhos ( Packer 2019a , 2020a), nos quais discuti mais detalhadamente o significado desta palavra e suas possibilidades de tradução, o Frio e a Noite não são aqui apenas fenômenos decorrentes da ausência de luz e de calor. Mais do que isso, trata-se de uma multiplicidade de seres humanoides, animados e dotados de uma densidade material própria, que partem deliberadamente do Pé-do-Céu em direção à aldeia e que às vezes são assimilados pelos Krahô às gotas de orvalho (denominadas em língua krahô awcapàt hy: “grãos” ou “sementes da noite”). Quanto a isso, vale a pena recuperar aqui algumas explicações bastante elucidativas que Vilma Chiara obteve sobre essas entidades nos anos 1960, quando registrou alguns (poucos) versos do Kàjre jarkwa:

Os Kry [“frio”] têm as mãos frias e sobem pelo corpo dos homens de noite. Nos versos dos cantos, eles acariciam o corpo do cantor que está de pé no pátio e, com suas mãos frias, o fazem tremer. O cantor permanece impassível, e canta enquanto a aldeia dorme. Os Kry adoram passear em volta da aldeia [...]. Os Awcapàt [“noite”] são seres da escuridão. Pedro Penõ explicou como eles se comportam. Uma miríade desses pequenos seres negros sai de um buraco na base de uma colina na região do Pé-do-Céu [...] e descem, correndo, em direção ao oeste. Eles são muito curiosos e, ao mesmo tempo, medrosos. Eles correm, eles se detêm; alguns são mais rápidos, outros demoram, de modo que quando o sol surge no céu a leste, ele os surpreende ainda percorrendo a Terra. Então eles se escondem nos buracos ou atrás dos objetos. É por isso que os buracos são negros e existe sombra. Pedro Penõ, que explicava as coisas com humor e muitos gestos, continuava: “ Nós temos as narinas, as orelhas e mesmo a boca cheias de Awcapàt. Quando nós pegamos um objeto e o movemos, as pequenas noites que se escondem atrás fogem da luz, assustadas. É por isso que a sombra mexe” ( Chiara 1982:125-130. Tradução minha).

Como se vê, parte dessas informações está presente no próprio enredo narrativo da performance do Kàjre jarkwa de Tejapôc, onde encontramos uma série de enunciados (diversas vezes repetidos nesse e nos demais blocos, sugerindo uma espécie de fluxo) em que são descritos os lugares onde o Frio e a Noite gostam de se abrigar antes de chegarem à aldeia: na toca dos bichos, debaixo das folhas, no oco das árvores (linha 14), na mata fechada (linha 23) e sob as penas e a sombra de um jacu (linhas 26-29). Em algumas passagens dos blocos seguintes, por sua vez, será explicitamente dito que, ao alcançarem o corpo do cantor, o Frio e a Noite o atacam com suas mãos, ao passo que em outras o Frio, em particular, será não só referido em 2ª pessoa - o que constitui mais um indício de sua personificação e capacidades agentivas -, mas também apresentado como uma entidade que quer se transformar em “gente” 20:

Trecho do bloco V Hà kry xà ti rỳquê ate amjĩ to jĩ prãm te mã rỳquê ate amjĩ ajakrepej nã hajỹrỹ mã mãã Frio, em gente você quer se transformar, você conhece muito bem

Vale notar também que essa relação intrínseca do Frio e da Noite com lugares ermos e sombrios, bem como sua agressividade e capacidade de transformação remetem à condição ontológica dos mẽcarõ, as “almas” ou “duplos” de pessoas recentemente falecidas que buscam se reaproximar de seus parentes vivos aparecendo-lhes em seus sonhos ou quando se encontram sozinhos de noite em algum lugar - como, por exemplo, os cantores no pátio da aldeia enquanto executam o Kàjre jarkwa. Como se sabe, um dos principais atributos dos mẽcarõ é sua capacidade de se transformarem em outros seres, já que, por não possuírem mais um corpo que lhes dê uma forma e contornos precisos, eles são “eminentemente instáveis” e “irresistivelmente atraídos por corpos outros” ( Coelho de Souza 2001:74). Como um ancião krahô explicou certa vez a Morim de Lima (2016:287):

O wajaka [xamã] conta que mẽcarõ fica andando, né? Quando é de dia, ele fica em algum lugar frio ou algum tronco grande, árvore grande, ele fica encostado naquela árvore. Pode se transformar em algum pássaro ou sapo também. Transforma e fica lá na sombra quietinho. Então o mẽcarõ fica ali .

Essa presença implícita da ontologia dos mẽcarõ no modo como o Frio e a Noite são elaborados no Kàjre jarkwa é reforçada ainda pela indicação de que se eles se dirigem à aldeia, seu destino final não é exatamente esta, mas mais além: depois de darem voltas ao redor do corpo do cantor (linha 21), o Frio e a Noite continuam seu percurso partindo rumo ao poente (linha 22) que, como já havia indicado, é justamente a direção para onde os mẽcarõ se dirigem depois de realizado o Pàrcahàc, a última etapa do ciclo ritual funerário, cujo propósito consiste em cortar definitivamente os laços de tristeza ( pec xà) e de saudade ( hapac xà) que continuam a ligar mortos e vivos ainda durante algum tempo após o falecimento ( Carneiro da Cunha 1978).

Ao mesmo tempo em que descrevem o comportamento e a trajetória do Frio e da Noite, essas passagens também tratam do modo como o cantor lida com a presença e os ataques dessas entidades espectrais: apesar de sofrer, ele os enfrenta sem medo, de pé e com o auxílio de seus enfeites corporais e de sua mulher (linhas 19-20) que, como me explicava Tejapôc, são aqui um modo metafórico de se referir aos próprios cantos que estão sendo executados, com a ajuda dos quais o cantor se aquece e se protege. Além disso, é importante notar que o cantor também invoca nessas passagens a figura dos ancestrais, empregando uma fórmula verbal encontrada em diversos outros gêneros de arte verbal krahô, como os “chamados” ( hocjêr xà), discursos exortativos que os anciões realizam no pátio da aldeia para incentivarem os jovens a participarem das cantorias e demais ações rituais ( Packer 2019b ). Reiteradas vezes o cantor afirma, assim, estar “depois” ou “no lugar dos antepassados” ( mẽ aquêtjê nõ japuhnã; mẽ aquêtjê nõ jakàmpê; linhas 18, 35, 39), expressões que, mais do que constituírem meras referências a uma sucessão temporal e/ou a um espaço físico, ancoram a performance em uma dimensão metafísica mais ampla e profunda: ao cantar os cantos aprendidos e ensinados pelos antepassados, o cantor não está apenas atuando como um “porta-voz” de seus conhecimentos, mas imanentizando-os em sua própria pessoa, palavras e gestos e, assim, transformando-se em um deles, em um antepassado vivo, alguém que se encontra no limiar entre dois mundos - posição que, como veremos, será aprofundada em alguns dos versos seguintes. Desse modo, se, por um lado, a poética do Kàjre jarkwa elabora, ainda que subliminarmente, a “frequência-inimiga” dos mortos por meio das figuras do Frio e da Noite e de seus ataques ao corpo do cantor, por outro, ela também elabora sua “frequência-ancestral” ( Fausto 2020), buscando gerar entre estes e os vivos a imagem de uma continuidade sociocosmologicamente produtiva, cuja importância nos regimes de conhecimento e memória ameríndios tem sido sublinhada por diversos autores nos últimos anos ( Chaumeil 2007; Lea 2012; Guerreiro 2016; Graham 2018; Cesarino 2020).

É importante sublinhar ainda que também encontramos nessas passagens sobre o Frio e a Noite novas marcas da interação dialógica que Tejapôc se preocupou em manter em sua performance, bem como novas manifestações das complexas rotações posicionais que caracterizam a tessitura discursiva do Kàjre jarkwa. Assim, enquanto em alguns momentos o enunciador do canto se refere a si mesmo em 1ª pessoa, dando a entender que quem fala é o “eu” humano - “Com muito Frio no corpo todo, aqui [no pátio] / O Frio e a Noite [...] enfrentei / Com muito Frio no corpo todo, sou o próximo, de pé persisto [...] / seus cantos mostrei, com eles enfrentei” (linhas 17-19, 38-39) -, em outros ele se refere por meio do pronome de 2ª pessoa àquele que se encontra nessa situação difícil - “Você é o próximo, com o Frio e a Noite vai sofrer / [...] Você está com medo, você está com raiva / Com seus cantos o Frio e a Noite enfrentou” (linhas 32-36 e 40-42) -, o que sugere tanto que o cantor se dirige a seu interlocutor humano (o segundo cantor que virtualmente participa da performance de Tejapôc) quanto que quem fala pela voz do cantor agora é a Machadinha, que a ele se dirige como a um interlocutor.

Essas descrições do confronto do cantor com o Frio e a Noite serão encontradas ao longo de todo o Kàjre jarkwa, indicando que, mais do que meros desvios narrativos que poderiam ser atribuídos ao desconhecimento ou a uma eventual hesitação de Tejapôc, elas constituem uma característica central da poética narrativa desse gênero de arte verbal: ao narrar as relações agonísticas estabelecidas entre os dois cantores e entre eles, o Frio e a Noite, a execução ritual da história da Machadinha produz imagens sobre suas próprias condições de enunciação, pondo em cena e dramatizando o processo de transmissão por meio do qual essa história é comunicada e, consequentemente, convocando os ouvintes a prestarem atenção não apenas aos enunciados relativos aos acontecimentos míticos, mas também à situação em que se encontram seus enunciadores. Além disso, é importante ter em mente que essa linha narrativa “lírica” e aquela que trata da viagem ao Pé-do-Céu (que, por contraste, poderíamos chamar de “épica”) não são efetivamente autônomas ou independentes entre si. Ao contrário, à medida que a performance avança, elas frequentemente se entrelaçam uma à outra, conectando as informações relativas aos personagens e acontecimentos míticos àquelas que dizem respeito às condições que os cantores humanos enfrentam enquanto a realizam no presente.

Uma importante expressão disso decorre da própria lógica de montagem paralelística do canto, que recorre a enunciados similares para se referir tanto ao deslocamento dos antepassados em direção ao Pé-do-Céu (linha 12) quanto ao deslocamento do Frio e da Noite em direção ao cantor (linha 42). A fórmula verbal “ depressa têm que caminhar”, por exemplo, é acoplada ora à descrição da primeira dessas trajetórias, ora à segunda, apressando, no primeiro caso, os viajantes para que eles retornem rapidamente à aldeia (linhas 8, 12, 13) e, no segundo, o Frio a Noite, para que eles passem logo pela aldeia (linhas 30, 33, 42), permitindo a chegada do dia e dando alívio aos cantores: como me explicava Tejapôc acerca deste trecho, “o Dia está mandando o Frio e a Noite andarem rápido, pra eles pararem de sofrer”. Atrelados à dinâmica multiposicional que discuti anteriormente, essa estrutura paralelística acaba então gerando uma sobreposição dessas duas trajetórias e dos diferentes “espaços-tempo” em que elas ocorrem.

Outro elemento responsável pela produção dessa condensação ritual entre “espaços-tempo” distintos é a ocorrência de discursos diretos ao longo de todo o Kàjre jarkwa. Como diversos autores já notaram ( Scherzer 1983; Basso 1986; Baumann & Briggs 1990, entre outros), essa estratégia retórica está bastante presente nos mais variados modos de expressão da discursividade ameríndia, cujos narradores dela se valem para conferir credibilidade e vivacidade àquilo que narram. Entretanto, diferentemente do que ocorre, por exemplo, nas narrativas míticas e pessoais krahô, em que as falas citadas, apesar de abundantes, ocorrem em contextos enunciativos que mantêm consideravelmente distintas a identidade do narrador e as daqueles que ele cita, no âmbito do dispositivo enunciativo do Kàjre jarkwa a voz dos cantores é levada a tal ponto de descentramento que tais identidades se tornam pouco a pouco indiscerníveis, gerando um ofuscamento entre o evento narrado e o evento narrativo em curso. Um elemento que contribui de modo determinante para isto é o fato de não ser empregado nenhum recurso gramatical ou vocal que forneça um enquadramento meta ou extralinguístico para as falas citadas, tal como construções citativas ou alterações na prosódia e no timbre de voz. A passagem de um locutor a outro ocorre, assim, sem qualquer descontinuidade explícita entre eles, de modo que os ouvintes devem reconhecer por si sós a voz de outrem e a constante circulação e bifurcação do “eu” enunciativo e dos demais referentes do discurso. Quanto a isto, vejamos, por exemplo, o que ocorre na seguinte passagem do bloco IX da performance de Tejapôc:

Trecho do bloco IX 1. Xy pa hanẽẽẽẽẽẽ Agora sou eu mesmo Xy pa hanẽẽẽẽẽẽ Agora sou eu mesmo Hà xy pa hanẽ cumã tamã ate amjĩ jakrepej nã hajỹrà mã mãã Agora sou eu mesmo, para eles [vou contar], você conhece muito bem Ate amjĩ jakrepej ta hajỹrà mã mãã rỳquê ate to amjĩ ta ipixô nẽ rỳquê ijõ kruwaxwa to amjĩ to hohhuc Você conhece muito bem, você se transformou, nas minhas flechas afiadas parou 5. Hà rỳquê cute amjĩ to mõr nẽ cute ijõmprỳ jara jũnre nã amjĩ ton nẽ rỳquê hikjê mã catoroooooo Ele foi, em pássaro Beija-flor se transformou, para o outro lado atravessou Hà rỳquê hikjê mã cator nẽ hapỹm mã mãã Para o outro lado atravessou e voltou Hà ijõmprỳ jara nã amjĩ to ipixêr nẽ ajrũmpê ihpỳm nẽ rỳquê cute hikjê mã amjĩ to catoroooooo Em pássaro se transformou, [das flechas] se desviou, para o outro lado atravessou Hakrepeeeeeej Ele conhece muito bem Xãm pêa pàjquêt rỳquê ijõmprỳ jara te amjĩa krekêt nã Sogro, os pássaros nada sabem 10. Hà ijõmprỳ jara te amjĩa krekêt nẽ ta amjĩ to atwỳ Os pássaros nada sabem e param Nẽ ta cumã amjĩ hõ to hamrẽ [Às flechas] se entregam e morrem Ite hajỹr nãre wa ha hapactoan nẽ ikuc ita to ijĩ ita to acaxwỳj mã amjĩ to ajpẽ nẽẽẽẽẽẽ Eu não sou assim, meu rosto e meu corpo para tua filha ainda vou mostrar Amjĩ mã amjĩ to ajpẽ nẽ rỳquê ite amjĩ mã ihcawpa nõ pê mã Ainda vou mostrar, não tenho medo Amjĩ mã ihcawpa nõ pê mã rỳquê tahnã mã ite amjĩ to ijõ hohhuc nẽ rỳquê hikjê mã icator nẽ rỳquê tahnã mã amjĩ jarẽ to icuhhê reri mã Não tenho medo, aqui cheguei, para o outro lado atravessei, de pé vou contar 15. Hà rỳquê itỳj ihêmpej to icuhkwỳr reri mã rỳquê ta amjĩ mã tamã nẽ rỳ amjĩ mã hũjakry xà cawpa nõ pê mã Vou ensinar, sem medo do Frio e da Noite Amjĩ mã cawpa nõ pê mã ite amjĩ to ijomõtàràààààà Sem medo enfrentei

Vemos aqui que nas três primeiras linhas o “eu” enunciativo - que, como já sabemos, pode se referir tanto ao cantor humano quanto à Machadinha - afirma que vai contar “ para eles” (os ouvintes) o que conhece sobre o Pé-do-Céu. Ao final da 3ª linha e na linha seguinte, esse “eu” se dirige então a uma 2ª pessoa que, por aludir a alguém que “ conhece muito bem”, se encontra diante do obstáculo das flechas e tem a capacidade de se transformar em outros seres (linha 4), entendemos ser o genro de Hartãt (além do próprio interlocutor virtual de Tejapôc, que assume assim a posição do personagem mítico). É possível compreender então que quem fala nessa linha não é nem o cantor humano, nem a Machadinha, mas sim Hartãt, que passa a assumir a posição de sujeito da enunciação. No entanto, entre as linhas 5 e 8 o genro, sua transformação em beija-flor e seu êxito em se desviar das flechas não serão mais referidos em 2ª pessoa, e sim em 3ª, o que sugere que a perspectiva enunciativa volta a ser a do cantor humano. Nas linhas 9 a 12, por sua vez, segue-se uma série de enunciados que, por empregarem o termo vocativo para “sogro” ( pajquêt) e replicarem exatamente a mesma fala que, na narrativa mítica, o genro dirige a Hartãt cada vez que supera os obstáculos encontrados ao longo da viagem, indicam que agora é ele, o genro, quem fala em 1ª pessoa (e não mais Hartãt, como era o caso algumas linhas antes): “Sogro, os pássaros nada sabem / Os pássaros nada sabem e param / [Às flechas] se entregam e morrem / Eu não sou assim, meu corpo e meu rosto para tua filha ainda vou mostrar”. Entretanto, ao final da 13ª linha e nas três seguintes vemos o referente do “eu” novamente se tornar instável e equívoco, já que ele passa a enunciar informações relativas tanto à superação do obstáculo mítico (“para o outro lado atravessei”; linha 14), sugerindo que quem fala é ainda o genro, quanto ao confronto com o Frio e a Noite, que ele afirma ter enfrentado sem medo (linhas 13-16), o que sugere que quem fala não é então apenas o personagem mítico, mas também o cantor humano: “Ainda vou mostrar, não tenho medo / Não tenho medo, aqui cheguei, para o outro lado atravessei, de pé vou contar / Vou ensinar, sem medo do Frio e da Noite / Sem medo enfrentei”.

Ao longo desse vertiginoso jogo multiposicional, vemos se produzir então um “curto-circuito”, uma “interferência cosmológica” ( Viveiros de Castro 1986:562) entre o “espaço-tempo” mítico e aquele em que se desenvolve a execução ritual da história da Machadinha no presente, o que irá ocorrer de modo ainda mais radical em outras passagens cruciais da performance de Tejapôc - como nesta apresentada abaixo, enunciada quase ao seu final:

Trecho do bloco XI 1. Kry xàààààà Que friiiiiiiiio Hà kry xà ti cawpa ti rỳquê ajpẽn japuhnã Com muito Frio [no corpo todo] , sou o próximo Hà rỳquê ita reri mã rỳquê ita jakàmpê icaràr to rỳquê ipẽr to Aqui [no pátio] , no lugar dos nossos antepassados, seus cantos mostrei Hà rỳquê ite cumã amjĩ to icatoroooooo Para eles me lembrei 5. Hà rỳquê hũjakry xà ti rỳquê amjĩ cawpa to rỳquê ipẽr to hajỹrà mã mãã Sem medo do Frio e da Noite [seus cantos] mostrei Hà rỳquê ajpẽn japuhnã rỳquê mẽ iquêtjê nõ caràr ti jê nõ to rỳquê amjĩ mã jomõtàrààààà Sou o próximo, com os cantos dos nossos antepassados enfrentei Kry xàààààà Que friiiiiiiiio Hà kry xà ti cawpa ti rỳquê ipê ijõmprỳ jara nẽ anã amjĩ to ixa mũ Com muito Frio, pássaro sou, na tua frente estou

Vemos então que após uma sequência de versos que tratam do embate do cantor com o Frio e a Noite - e, portanto, das condições de enunciação da performance -, o enunciador subitamente afirma que é um pássaro. 21 A capacidade dos antepassados de se metamorfosearem - ou, mais precisamente, a capacidade do genro de Hartãt de se transformar em pássaro - não é, assim, apenas referida como relativa a seres e a eventos distantes, e sim atualizada no presente pelo cantor, que ativa e se engaja nesse devir pássaro a fim de enfrentar a situação penosa que enfrenta enquanto canta. Ao longo da performance, o “eu” dos personagens míticos e daquele que narra seus feitos são assim intensivamente sobrepostos, atravessados um pelo outro, de modo que o agenciador discursivo do Kàjre jarkwa se torna também agente do discurso agenciado ( Nodari 2021:340) e, pouco a pouco, vai se transformando no protagonista da viagem ao Pé-do-Céu.

Considerações finais

O presente artigo pretende colaborar para a compreensão das relações entre mitologia, poética, artefatos e agência ritual nas terras baixas da América do Sul por meio do estudo etnográfico detalhado de um importante gênero de arte verbal krahô. Ao longo do percurso aqui traçado, vimos como a mitologia da viagem, da guerra e da alteridade associada à Machadinha está presente na configuração relacional instaurada pela execução ritual de seus cantos (intensamente marcada por uma dinâmica de troca e de rivalidade entre os cantores), bem como na maneira como tais conhecimentos narrativos são por ela (re)elaborados de modo sui generis: ao narrar a história de obtenção de Machadinha e a rivalidade entre Hartãt e seu genro, o Kàjre jarkwa narra também o embate travado entre os cantores, o Frio e a Noite, estes últimos sendo elaborados ao longo do canto como manifestações dos espíritos de mortos recentes, que envolvem e atacam o corpo daquele que canta na tentativa de levá-lo embora consigo. Vimos também como a performance aparentemente monológica de Tejapôc abriga, na verdade, um complexo dialogismo que, ao operar por meio de recursos linguísticos e poéticos comumente encontrados nas artes da palavra xamânica ameríndia (um ritmo especial de versificação, construções paralelísticas em abismo, jogos indexicais e posicionais, interpolação entre diferentes regimes de verdade, etc.), possibilita que a Machadinha e outros sujeitos falem.

À guisa de conclusão, gostaria então de voltar brevemente à figura de Olegário Tejapôc. Todos que tiveram a sorte de conhecê-lo sabem da grandeza e da beleza de sua pessoa, bem como da preocupação que ele tinha em transmitir e registrar ao máximo seus vastos conhecimentos sobre as práticas rituais krahô a fim de deixar um rastro por onde as novas gerações pudessem seguir caminhando. Hoje, contudo, passados quase sete anos do dia em que ele veio me pedir para gravar sua execução do Kàjre jarkwa, não posso deixar de ouvir e de ler em suas palavras também uma comovente expressão poética da intuição que talvez ele tivesse sobre sua existência naquele momento. Àquela altura, infelizmente não se podia saber que aqueles seriam os últimos meses da vida de Tejapôc, vindo ele a falecer pouco tempo depois. A ênfase que ele deu em seus versos ao confronto com o Frio e a Noite talvez tenha sido, assim, fruto da sensação que ele tinha de que a hora de sua partida para a aldeia dos mortos se aproximava, bem como uma obstinada afirmação de que os enfrentando, sem medo, ele jamais seria esquecido, transformando-se em pássaro e cantando para sempre para os vivos no pátio onde gostava tanto de estar.

Referências

  • AZANHA, Gilberto. 1984. A forma timbira: estrutura e resistência Master Dissertation, Universidade de São Paulo.
  • BASSO, Ellen. 1986. “Quoted dialogues in Kalapalo narrative discourses”. In: J. Scherzer & G. Urban (orgs.), Native South American Discourse Berlin: Mouton de Gruyter. pp. 119-168.
  • BAUMANN, Richard & BRIGGS, Charles. 1990. “Poetics and performance as critical perspectives on language and social life”. Annual Review of Anthropology, v. 88:59-88.
  • BORGES, Júlio César. 2014. Feira krahô de sementes tradicionais: cosmologia, história e ritual no contexto de um projeto de segurança alimentar Ph.D. Dissertation, Universidade de Brasília.
  • CAMPÊLO, Zacarias. 1957. O índio é assim Rio de Janeiro: Caixa Publicadora Batista/Caixa postal 320.
  • CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os mortos e os outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahô São Paulo: Editora Hucitec.
  • CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. “Lógica do mito e da ação”. 1973. In: M. Carneiro da Cunha, Cultura com aspas São Paulo: Cosac & Naify. pp. 15-50.
  • CENTRO CULTURAL KÀJRE. 2013. Hartãt jaren xà Palmas: Walprint.
  • CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2020. “Poética e política nas terras baixas da América do Sul: a fala do chefe”. Etnográfica, v. 24, n. 1:5-26. Disponível em: https://journals.openedition.org/etnografica/8109 Acesso em 15/04/2021.
    » https://journals.openedition.org/etnografica/8109
  • CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2018a. “Eventos ou textos? A pessoa múltipla e o problema da tradução das artes verbais amazônicas”. In: A. Draher (org.), Oral por escrito: a oralidade na ordem da escrita, da retórica e da literatura Chapecó/Florianópolis: Editora da UFSC. pp 217-255.
  • CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2018b. “Virtualidade e equivocidade do ser nos xamanismos ameríndios”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 69:267-288. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p267-288 Acesso em 10/06/2020.
    » https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i69p267-288
  • CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia São Paulo: Editora Perspectiva.
  • CHAUMEIL, Jean-Pierre. 2007. “Bonnes, flutes and the dead: memory and funerary treatments in Amazonia”. In: C. Fausto & M. Heckemberger (orgs.), Time and memory in indigenous Amazonia: anthropological perspectives Gainesville: University of Florida Pressa. pp. 243-283.
  • CHAUMEIL, Jean-Pierre. 1982. L’homme et l’espace chez les indiens Krahô. État de Goiás (Brésil) . Ph.D. Dissertation, École des Hautes Études em Sciences Sociales.
  • COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. 2002. O traço e o círculo: os Jê e seus antropólogos Ph.D.Dissertation, Museu Nacional/UFRJ.
  • CROCKER, William H. 1990. The Canela (Eastern Timbira). I. An ethnographic introduction Washington: Smithsonian Institution.
  • DÉLÉAGE, Pierre. 2009. Le chant de l’anaconda: l’apprentissage du chez les Sharanawa (Amazonie Occidentale) Nanterre: Université de Nanterre.
  • DESCOLA, Philippe. 2006. As lanças do crepúsculo São Paulo: Cosac & Naify .
  • ERIKSON, Philippe & MONOD-BECQUELIN, Aurore (orgs.). 2000. Les rituels du dialogue. Promenades ethnolinguistiques en terres amérindiennes Nanterre: Société d’Ethnologie.
  • FAUSTO, Carlos. 2020. Art effects: image, agency and ritual in Amazonia Lincoln: University of Nebraska Press.
  • GUERREIRO, Antonio Roberto. 2016. Ancestrais e suas sombras: uma etnografia da chegia Kalapalo e seu ritual mortuário Campinas: Editora da Unicamp.
  • GRAHAM, Laura. 2018. A performance dos sonhos: discurso da imortalidade Xavante São Paulo: Edusp.
  • GNERRE, Maurizio. 1986. “The decline of dialogue: ceremonial and mythological discourse among the Shuar and Achuar of Eastern Equador”. In: J. Scherzer & G. Urban (orgs.), Native South American Discourse Berlin: Mouton de Gruyter . pp. 307-343.
  • HEURICH, Guilherme Orlandini. 2016. Música, morte e esquecimento na arte verbal Araweté Ph.D. Dissertation, Museu Nacional/UFRJ.
  • LEA, Vanessa. 2012. Riquezas tangíveis de pessoas partíveis: os Mẽbêngokre(Kayapó) do Brasil Central São Paulo: Edusp .
  • LUCIANI, José Antonio Kelly. 2017. “On yanomami cerimonial dialogues: a political asthetic of metaphorical agency”. Journal de la Socitété des Américanistes, v. 103-1:179-214. Disponível em: https://journals.openedition.org/jsa/14892 Acesso em 10/05/2022.
    » https://journals.openedition.org/jsa/14892
  • MELATTI, Julio Cesar. 2010. Outras versões de mitos Craôs. Manuscrito. Disponível em: http://www.juliomelatti.pro.br/craodados/craomitos.pdf Acesso em 1/08/2020.
    » http://www.juliomelatti.pro.br/craodados/craomitos.pdf
  • MELATTI, Julio Cesar. 1978. Ritos de uma tribo Timbira São Paulo: Editora Ática.
  • MELATTI, Julio Cesar. 1974. Reflexões sobre algumas narrativas míticas krahô. Manuscrito.
  • MELO, Jorge Henrique Teotonio de Lima. 2010. Kàjre: a vida social de uma machadinha Krahô Master Dissertation, Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
  • MORIM DE LIMA Ana Gabriela . 2016. Brotou batata pra mim: cultivo, gênero e ritual entre os Krahô (TO) Ph.D. Dissertation, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • MORIM DE LIMA Ana Gabriela , . 2013. “Uma biografia do Kàjre, a machadinha Krahô”. In: N. P. Bitar, J.R Gonçalves & R. S. Guimarães (orgs.), A alma das Coisas. Patrimônios, materialidades e ressonâncias Rio de Janeiro: Mauad/Faperj. pp. 185-210.
  • NIMUENDAJÚ, Curt. 1946. The Eastern Timbira . Berkeley/Los Angeles: University of California Press.
  • NIMUENDAJÚ, Curt. 1939. The Apinayé Washington D.C.: Anthropological Series/Catholic University of America.
  • NODARI, Alexandre. 2021. “Aparentar-se a outro: elementos para uma poética perspectivista”. Organon, v. 36, n. 72:306-346. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/118511/65428 Acesso em 10/05/2022.
    » https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/118511/65428
  • OAKDALE, Suzanne. 2005. I foresee myself. The ritual performance of autobiography in an Amazonian community Lincoln: University of Nebraska Press .
  • PACKER, Ian. 2023. “Cantos de maracá / Cohtoj jarkwa (Krahô)”. Gratuita Vol. 4: “Animais”. Belo Horizonte: Chão de Feira.
  • PACKER, Ian. 2020a. Sobre a lenha, labaredas: poética da memória e do esquecimentos nas artes verbais krahô (Timbira/Brasil Central) Ph.D. Dissertation, Universidade Estadual de Campinas.
  • PACKER, Ian. 2020b. “Espalhar e roubar: o sistema timbira e os cantos de maracá vistos de uma aldeia krahô”. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, v. 3:1-31. Disponível em: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/maloca/article/view/13487 Acesso em 01/12/2020.
    » https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/maloca/article/view/13487
  • PACKER, Ian. 2019a. “Sobre a lenha, labareda sou: poética da memória em um canto ritual krahô”. Revista Cadernos de Tradução, v. 39, n. 4:227-247. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2019v39nespp227 Acesso em 1/12/2019.
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2019v39nespp227
  • PACKER, Ian; HIKU, Elton & KOC, José Miguel. 2019b. “ Mẽ aquêtjê jakàmpê - No lugar dos teus antepassados: um chamado ao pátio krahô”. Revista LinguíStica, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1:231-270. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rl/article/view/25568 Acesso em 01/12/2019.
    » https://revistas.ufrj.br/index.php/rl/article/view/25568
  • PERRONE-MOISÉS, Beatriz. 2015. Festa e Guerra Tese de Livre-Docência, Universidade de São Paulo.
  • RIVIÉRE, Peter. 1971. “The political structure of the Trio Indians as manifested in a system of ceremonial dialogue”. In: T. O. Beidelman (org.), The translation of culture: essays to E. E. Evans-Pritchard London: Tavistock Publications. pp. 293-311.
  • SCHULTZ, Harald. 1950. “Lendas dos índios Krahô”. Revista do Museu Paulista, v. IV:49-163.
  • SEVERI, Carlo. 2006. Le principe de la chimère: uma anthropologie de la mémoire Paris: Éditions Rue D’Ulm/Musée du Quai Branly.
  • SEVERI, Carlo. 2008. “Autorité sans auteur: formes de l’autorité dans les traditions orales”. In: A. Compagnon (org.), De l’autorité Paris: Odile Jacob. pp. 93-123.
  • SHERZER, Joel. 1983. Kuna ways of speaking: an ethnographic perspective Austin: University of Texas Press.
  • SIMONS, Bente Bittmann. 1965. “Notes on anchor axes from Brazil”. Revista do Museu Paulista, nova série, v. XVI:321-358. Disponível em: http://www.etnolinguistica.org/biblio:simons-1966-notes Acesso em 01/08/2022.
    » http://www.etnolinguistica.org/biblio:simons-1966-notes
  • URBAN, Greg. 1986. “Ceremonial dialogues in South America”. American Anthropologist, v. 88, n. 2:371-386. Disponível em: https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1525/aa.1986.88.2.02a00050 Acesso em 05/08/2020.
    » https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1525/aa.1986.88.2.02a00050
  • URBAN, Greg. 1985. “The semiotics of two speech styles in Shokleng”. In: E. Mertz & R. Parmentier (orgs.), Semiotic mediation New York: Academic Press. pp. 311-329.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté: os deuses canibais Ph.D. Dissertation, Museu Nacional/UFRJ.

Notas

  • Este artigo sintetiza e desenvolve algumas ideias presentes em minha tese de doutorado (Packer 2020a), defendida na Universidade Estadual de Campinas (SP), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp, processo no 2015/00760-0). Agradeço à Fapesp também pela bolsa de pós-doutorado (processo no 2022/14000-1) que tornou a escrita deste artigo possível, bem como ao programa Translitterae (PSL/Université de Paris). Agradeço ainda a Antonio Roberto Guerreiro Júnior, Bruna Franchetto, Ana Gabriela Morim de Lima, Vitor Aratanha, Maíra Pedroso, Adalberto Müller, Daniel Pacheco, Guilherme Gontijo Flores, Julio Cezar Melatti e Beatriz Perrone-Moisés pela leitura atenciosa de uma versão prévia deste texto.
  • 2
    Trata-se de uma corruptela do português “padre”.
  • 3
    Nos termos de Nimuendajú (1946), o Paiz Timbira, território que atualmente abrange de forma descontínua parte do norte do Tocantins, do sul do Maranhão e do sudeste do Pará. Nimuendajú registrou a existência de machadinhas entre todos os povos timbira orientais que visitou no início do século XX, e afirma ter obtido uma de uma mulher ràmkôkam kra que lhe entregou um exemplar que havia pertencido a seu falecido irmão, segundo ela um grande guerreiro que a usava como arma de combate e, ocasionalmente, a empunhava no pátio da aldeia e cantava “ Yẽẽ heyõ Kàjre Yẽẽ, assim como os nomes de seus antepassados” ( 1946:153). Em sua monografia sobre os Apinajé, por sua vez, Nimuendajú conta que eles possuíam dois tamanhos diferentes de machados de pedra: pequenos, para uso cerimonial, e grandes, para combates guerreiros ( 1939:126-128).
  • 4
    Segundo os interlocutores de Carneiro da Cunha (1978:25), esse plano cosmográfico deve ser considerado inclusive ao se posicionar o corpo para dormir: “‘a cabeça deve ficar para leste, pro Pëd (Sol) ensinar direito, pra alma ( carõ) ficar sabida [...]. Se dormir com a cabeça para oeste, fica doente e morre’, disse-nos Raul, padré [mestre ritual] da aldeia Pedra Branca, enquanto outro informante afirmava que quem fica deitado com a cabeça para oeste fica ‘ruim do juízo’”.
  • 5
    O termo de parentesco ikra empregado na narrativa para se referir à machadinha não faz distinção de gênero.
  • 6
    Elaborei esta versão resumida a partir das versões registradas por Melatti (2010), pelo Centro Cultural Kàjre (2013) e por Borges (2014), bem como em algumas que pude registrar durante minha pesquisa de campo.
  • 7
    Como demonstrou Azanha (1984), o sufixo - camekra é utilizado pelos grupos timbira para designar os coletivos com os quais eles estabelecem relações belicosas em determinado momento de sua história, enquanto aqueles com os quais estabelecem relações pacíficas de troca e aliança são designados por meio do uso do sufixo -catêjê. Cf. também Coelho de Souza (2002:200-214).
  • 8
    Apesar de essa narrativa indicar a possibilidade das mulheres cantarem o Kàjre jarkwa, meus interlocutores afirmam que ele é executado exclusivamente por homens.
  • 9
    A história do retorno da Machadinha está bem documentada e já foi tratada de modo mais pormenorizado por outros autores (cf. Melo 2010 e Morim de Lima 2013). Atualmente, a Machadinha é guardada na aldeia Pedra Branca por Martim Ikrehotyt, um dos únicos cantores locais que ainda conhece parte dos conhecimentos rituais a ela associados, mas qualquer um que que queira “estudar” com ela pode solicitá-la, já que, como disse, seu uso não está atrelado a conjuntos onomásticos, personagens rituais e relações de parentesco específicos.
  • 10
    E, com efeito, segundo Tejapôc, antigamente a disputa entre os dois cantores podia chegar a tal ponto de tensão que, caso estivessem executando o Kàjre jarkwa em noite de lua cheia, os homens de cada uma das metades podiam decidir realizar de fato uma corrida de toras, saindo em plena madrugada para ir buscá-las no cerrado e com elas correr de volta até a aldeia.
  • 11
    Além disso, muitas vezes as próprias formas pronominais ( i-, a-, cu-, pa-, etc.) são elididas da enunciação de certos nomes e verbos, tornando ainda mais difícil a compreensão do discurso produzido. Fenômeno similar foi registrado por Graham (2018) ao traduzir as narrativas oníricas de um mestre ritual xavante.
  • 12
    O leitor interessado poderá encontrar o texto completo dessa performance do Kàjre jarkwa em minha tese de doutorado ( Packer 2020a), na qual discuto mais detalhamente suas características formais e linguísticas, bem como algumas de minhas decisões de tradução.
  • 13
    “Canto” é aqui tradução que faço de caràr, forma como a palavra càr é realizada na prosódia característica do Kàjre jarkwa e que designa mais precisamente o “grito”.
  • 14
    Temos aqui uma alusão ao “dono” mítico da Machadinha que, como indiquei anteriormente, também é concebido como um Pica-Pau que fica dando voltas em torno do Pé-do-Céu com o intuito de derrubá-lo.
  • 15
    “Pé-da-Terra” ( pjê kat) é uma denominação alternativa do Pé-do-Céu ( kôjkwa kat).
  • 16
    “Eles” se refere aos antepassados, que viajaram até o Pé-do-Céu.
  • 17
    Como explico adiante, a ação descrita nessa linha e em parte das seguintes se refere ao movimento do Frio e da Noite em direção à aldeia, e não mais aos feitos dos antepassados. Vale notar também a ocorrência nesta e em outras passagens de construções gramaticais que expressam relações de posse para termos inalienáveis - i-jatê kre (1-bicho buraco): “minha toca de bicho” - e alienáveis - i-j-õ pĩh-hô(1-r-poss árvore-folha): “minhas folhas”, construções que permanecem algo misteriosas para mim. Em todo caso, sua ocorrência ao longo de todo o Kàjre jarkwa sugere que se trata de um recurso estilístico próprio à poética do discurso ritual krahô, o que deverá ser aprofundado em pesquisas futuras.
  • 18
    O verbo que traduzo por enfrentar ( homtàr) também poderia ser traduzido por “proteger” ou “defender”, no sentido de obstruir ou barrar um caminho para que alguém não passe por ele.
  • 19
    Esses enunciados não possuem valor referencial e atuam como uma fórmula de fechamento, também utilizada em um outro gênero de arte verbal krahô. Cf. Packer (2019b).
  • 20
    Ou em “corpo”, se “corporificar”. O morfema - ĩ, cuja tradução está em questão aqui, entra na composição do termo pelo qual os Krahô e demais povos Timbira orientais se autodenominam, mẽhĩ, o qual costuma ser traduzido de várias maneiras por eles e por seus etnólogos: “gente”, “corpo” ( Nimuendajú 1946: 12); “the ones with characteristics aspects”, “similar in ‘nature’ ( : jeito)” ( Crocker 1990: 57); “os de minha carne, de minha substância” ( Azanha 1984: 9).
  • 21
    O problema da tradução de enunciados como este (abundantes no mundo ameríndio) por meio do recurso à cópula ontológica foi objeto de reflexão de Cesarino (2018b).

Editado por

  • Editora-Chefe:
    María Elvira Díaz Benítez
  • Editor Associado:
    John Comeford
  • Editora Associada:
    Adriana Vianna

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2022
  • Aceito
    09 Fev 2023
location_on
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro