Resumo
Introdução:
o trabalho terceirizado no setor elétrico tem peculiaridades que demandam consideração no que concerne à segurança dos trabalhadores.
Objetivo:
analisar os impactos da terceirização na precarização do trabalho e na segurança dos trabalhadores do setor de distribuição de energia elétrica.
Métodos:
estudo qualitativo, descritivo, realizado em três etapas: pesquisa documental, entrevistas em profundidade e análise de um caso de acidente fatal. Utilizou-se análise de conteúdo para exploração do material levantado, tratamento e interpretação dos dados.
Resultados:
identificou-se que fatores como jornada de trabalho extensa, baixos salários, más condições de trabalho, equipes reduzidas e falta de supervisão são importantes para caracterizar a precariedade que coloca em risco a integridade física e mental dos trabalhadores terceirizados. Também foi observado que, apesar da periculosidade desse tipo de atividade, não se pratica o direito reservado a todo assalariado de se recusar a fazer um trabalho que coloque a sua vida em risco.
Conclusão:
os resultados sugerem que a terceirização no setor elétrico representa aumento do risco de ocorrência de acidentes graves e aprofunda desigualdades em razão das diferenças entre o tratamento oferecido aos terceirizados e o reservado aos empregados da empresa primária.
Palavras-chave:
trabalho; serviços terceirizados; setor elétrico; precarização do trabalho; saúde do trabalhador
Abstract
Introduction:
outsourced work in the electric power sector has peculiarities that demand consideration regarding worker’s safety.
Objective:
to analyze the outsourcing impacts on labor precariousness and workers’ safety in the electricity distribution industry.
Methods:
qualitative, descriptive study, carried out in three stages: documentary research, in-depth interviews and analysis of a fatal accident case. We used content analysis to explore the material collected, data treatment and interpretation.
Results:
we identified that long working hours, lower wages, poor working conditions, reduced teams and lack of supervision are important to characterize the precariousness that puts the physical and mental integrity of outsourced workers at risk. We also identified that, despite being a hazardous activity, the outsourced workers do not exercise the right guaranteed to all employees to refuse to do an activity that puts their life at risk.
Conclusion:
the results show that outsourcing in the electric power sector represents an increased risk of serious occupational accidents and deepens inequalities due to the differences between the treatment given to outsourced workers and the reserved for those directly employed by the company.
Keywords:
work; outsourced services; power sector; precarious employment; occupational health
Introdução
A sociedade brasileira, em um momento em que muito se discutia os benefícios e malefícios da terceirização, deparou-se, em 31 de março de 2017, com a aprovação da Lei Federal nº 13.429/201711. Presidência da República (BR). Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017 [Internet]. Brasília (DF); 31 mar 2017 [citado em 9 ago 2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13429.htm
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. Seu conteúdo dispõe, principalmente, sobre a permissibilidade de terceirizar todos os setores de uma empresa, inclusive as atividades-fim, que anteriormente não podiam ser externalizadas. No mesmo sentido, a Lei nº 13.467/201722. Presidência da República (BR). Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017 [Internet]. Brasília (DF); 14 jul 2017 [citado em 9 ago 2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm
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, aprovada logo em seguida, realizou modificações substanciais na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), permitindo a transferência a empresas terceirizadas da execução de suas atividades principais, por meio do art. 4º-A.
Na ocasião, a terceirização no setor elétrico nacional vinha assumindo grandes proporções e a maior concessionária de distribuição de energia elétrica de Minas Gerais, a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig), havia reduzido consideravelmente o quadro de funcionários próprios, chegando a terceirizar, já no ano de 2013, 68,51% de sua força de trabalho. Ao atuarem na construção e na manutenção de redes elétricas energizadas, os eletricistas terceirizados realizam atividades de risco33. Rabelo LBC, Castro MLGL, Silva JMA. Dublês do setor elétrico: reflexões sobre identidade e trabalho terceirizado. Rev Psicol Organ Trab. 2016;16(2):166-75.. Esse crescimento importante do número de trabalhadores terceirizados no setor elétrico exige uma análise pormenorizada e crítica a respeito dessa modalidade de trabalho. Especialmente porque diversos estudos apontam a precarização do trabalho como uma das consequências da terceirização, ao levar à diminuição do salário e dos benefícios, ocasionar maior rotatividade dos empregados e gerar aumento da jornada44. Cassundé FR, Barbosa MAC, Costa JRM. Terceirização e precarização do trabalho: levantamento bibliométrico sobre os caminhos críticos da produção acadêmica em administração. TPA. 2016;6(1):172-94.),(55. Pereira MER, Tassigny MM, Bizarria FPA. Terceirização e precarização do trabalho na Política Pública de Assistência Social. Adm Pub Gest Social. 2017;9(3):171-81.. Além disso, o empregado terceirizado nesse setor, quase sempre, apresenta menor grau de instrução e recebe menos treinamento para executar sua função, o que contribui para expô-lo a um risco maior de sofrer acidente33. Rabelo LBC, Castro MLGL, Silva JMA. Dublês do setor elétrico: reflexões sobre identidade e trabalho terceirizado. Rev Psicol Organ Trab. 2016;16(2):166-75..
Ademais, quando se trata de segurança no trabalho, é importante salientar o direito que possui o trabalhador de se recusar a realizar determinada atividade que coloque em risco sua saúde ou integridade física66. Chagas GLT. Legislação de direito internacional do trabalho e da proteção internacional dos direitos humanos. Salvador: JusPodivm; 2010.. Tudo indica que, no caso do terceirizado, a dificuldade de usufruir desse direito é ainda maior devido à insegurança das formas contratuais77. Borges A, Franco A. Mudanças de gestão: para além dos muros da fábrica. In: Franco T, editor. Trabalho, riscos industriais e meio ambiente: rumo ao desenvolvimento sustentável? Salvador: Edufba; 1997. p. 63-116.. Considerando esse panorama, este estudo teve por objetivo analisar os impactos da terceirização na precarização do trabalho e na segurança dos trabalhadores do setor de distribuição de energia elétrica.
Métodos
O presente estudo é qualitativo e de caráter descritivo88. Triviños ANS. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas; 1987.),(99. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2007.. Os dados foram coletados em 2018, inicialmente por meio de uma pesquisa documental, utilizando-se documentos jurídicos como fonte de informação1010. Fonseca JJS. Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC; 2002.. Em seguida, para se obter dados complementares, foram realizadas entrevistas em profundidade1111. Lakatos EM, Marconi MA. Técnicas de pesquisa. 3a ed. São Paulo: Atlas; 1996.. As entrevistas forneceram elementos para a análise de um caso envolvendo um trabalhador terceirizado vítima de um acidente fatal1212. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 3a ed. Porto Alegre: Bookman; 2005.. Cada etapa permitiu abordar um aspecto do problema e, ao mesmo tempo, oferecer subsídios para a etapa subsequente: os achados obtidos na pesquisa documental foram retomados em um segundo momento durante as entrevistas individuais que, por sua vez, ofereceram novas informações a serem exploradas no caso do acidente fatal estudado.
A pesquisa documental foi realizada a partir de 58 processos judiciais trabalhistas analisados em sua fonte primária, todos envolvendo trabalhadores terceirizados, tomando por base os documentos de depoimentos, sentenças, laudos, petições e contratos que compunham esses processos.
Com roteiro baseado nos dados coletados dos processos, foram realizadas entrevistas abertas e em profundidade no escritório do pesquisador com sete eletricistas de empresas terceirizadas. A principal finalidade dessa etapa foi identificar elementos que permitissem verificar a existência ou não de precarização no trabalho, bem como seus impactos na saúde e segurança. Os sujeitos foram escolhidos de forma intencional dentre os autores dos processos citados em que o pesquisador atua como advogado, de acordo com a acessibilidade. Assim, levou-se em conta o fato de serem terceirizados da empresa em questão e seu consentimento em participar do estudo. Quanto ao número total de entrevistas, o critério adotado foi o de saturação, ou seja, assim que os dados começaram a se repetir, foi interrompida a coleta, respeitando-se o mínimo de seis e o máximo de doze indivíduos1313. Cherques HRT. Saturação em pesquisa qualitativa: estimativa empírica de dimensionamento. PMKT. 2009;3:20-7..
Foi também estudado um caso de acidente fatal, com base em análise documental da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), do laudo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), dos relatórios realizados pelo perito oficial nomeado pelo(a) juiz(a) do trabalho e pelo assistente técnico da empresa terceirizada, além da reclamação trabalhista proposta pela esposa do acidentado contra a empresa terceirizada e a primária.
Em cada uma das etapas (análise documental, entrevistas e análise do caso fatal) foi utilizada a análise de conteúdo1414. Almeida IM, Vilela RAG. Modelo de análise e prevenção de acidentes de trabalho - MAPA [Internet]. Piracicaba (SP): Cerest; 2010 [citado em 9 ago 2021]. Disponível em: http://www.cerest.piracicaba.sp.gov.br/site/images/MAPA_SEQUENCIAL_FINAL.pdf
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visando identificar, descrever e interpretar o material coletado e seus significados, levando em conta as diversas formas de comunicação, além de tentar compreender as características, as estruturas ou os modelos que estão por trás dos fragmentos de mensagens dos laudos, das decisões judiciais e dos discursos dos entrevistados.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Unihorizontes, conforme protocolo 01/2018 de 10 de fevereiro de 2018.
Resultados
A análise documental: os processos judiciais
Foram analisadas 58 ações trabalhistas, propostas por integrantes de equipes (eletricistas, ajudantes de eletricistas e encarregados de eletricistas) contra empresas terceirizadas e a Cemig, visando buscar informações sobre o trabalho que realizavam e sobre os motivos que os levaram a essas ações. Os processos foram movidos por trabalhadores de três empresas terceirizadas distintas, no período de 2007 a 2018. Das ações, quarenta se referiam à empresa que prestou serviços no período entre junho de 2007 e junho de 2011 (Empresa A); catorze foram em face da empresa que prestou serviços no período de julho de 2011 a junho de 2016 (Empresa B); e quatro foram dirigidos contra a empresa que prestou serviços terceirizados de julho de 2016 até junho de 2018, final do período deste estudo (Empresa C).
Processos em face da empresa A
Os eletricistas da empresa A alegavam ser subordinados aos funcionários da Cemig, recebendo ordens diretas através de um computador de bordo chamado autotrack, que transmite as mensagens a partir do Centro de Operações e Comando (COD).
Com relação à jornada de trabalho, a alegação é que trabalhavam em jornadas incertas, de acordo com as ordens das empresas terceirizada e primária, podendo durar das 7 horas da manhã às 22 horas, com intervalo intrajornada de 15 a 20 minutos. Além disso, em muitas oportunidades eram requisitados para realizar atendimentos de emergência aos sábados, domingos e feriados, em um sistema de sobreaviso, e em finais de semana alternados. Ficavam, portanto, à disposição da empresa por meio do celular, não podendo sair das imediações de sua residência. Embora as horas extras efetivamente laboradas fossem de cerca de 90 por mês, apenas 42 horas eram registradas nos cartões de ponto, sendo as restantes anotadas em planilhas e pagas por fora, sem constarem na folha de pagamento.
Uma testemunha, que se aposentou na Cemig e atuou também na empresa A, ofereceu diversos esclarecimentos acerca do trabalho dos eletricistas das duas empresas. Em seu depoimento, ressaltou a forte similaridade entre os trabalhos realizados pelos eletricistas da empresa A e os da Cemig, informando que ambas tinham equipes que faziam cortes, religações, ligações novas, manutenções de iluminação pública, trocas de poste, construções e manutenções da média e da alta tensão. Afirmou ainda que não havia qualquer diferença entre aquilo que realizava como empregado direto da Cemig e o que passou a fazer após se aposentar e ser contratado pela empresa A, sendo enfático ao dizer que “as tarefas eram rigorosamente as mesmas”. Quanto à capacitação dos trabalhadores da empresa A e da Cemig, a testemunha afirmou que os eletricistas da empresa primária faziam um curso de quatro a seis meses, enquanto os terceirizados realizavam apenas um treinamento com duração de 30 a 40 dias.
Os juízes foram unânimes em reconhecer a similitude das funções dos eletricistas da empresa A e aquelas realizadas na empresa primária, concluindo que os empregados de ambas deveriam ter os mesmos direitos assegurados, sendo estes previstos nos acordos coletivos estabelecidos entre a Cemig e o Sindicato dos Eletricistas.
Em decorrência disso, foram deferidos aos eletricistas da empresa A os direitos inerentes aos eletricistas da Cemig, todos previstos na Convenção Coletiva de Trabalho desta última, tais como diferenças salariais, horas extras quitadas por fora, intervalo intrajornada, horas de sobreaviso, participação nos lucros e resultados, gratificação Maria Rosa (uma gratificação especial paga aos funcionários da empresa primária), ajuda de custo para férias, gratificação de função acessória por direção de veículo, tíquetes-refeição e lanche e tíquetes extras no valor único de 670 reais.
Processos em face da empresa B
Neste segundo lote de processos, referente à empresa B, observou-se grande similaridade em relação às solicitações, sendo que a maioria envolvia diferenças salariais e benefícios citados no tópico anterior. No que concerne à jornada de trabalho, os trabalhadores da empresa terceirizada informaram trabalhar, em média, das 7 às 18 ou 19 horas, de segunda a sexta-feira, com 15 a 20 minutos de intervalo para descanso e alimentação. Também trabalhavam em alguns sábados, domingos e feriados no atendimento de emergências, submetidos ao regime de sobreaviso em finais de semana alternados.
Com relação à qualificação profissional e às atividades exercidas pelos eletricistas e suas equipes na empresa B e na Cemig, foram realizadas perícias técnicas de forma a identificá-las. Os laudos apontaram diferenças entre os critérios de contratação adotados pelas empresas, afirmando que algumas atividades eram reservadas exclusivamente aos funcionários da empresa cliente e concluindo que o trabalho realizado pela equipe da empresa B era apenas parcialmente semelhante ao que cabia à equipe da Cemig. Além disso, declararam que as qualificações e capacitações exigidas para ingresso no quadro das equipes de eletricistas da Cemig se diferenciavam significativamente do que era requerido do pessoal da empresa B, geralmente com baixa escolaridade e sem cursos na área. Ressaltaram ainda que o eletricista da empresa cliente deve possuir uma escolaridade mínima de ensino fundamental, acrescida de qualificação no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) ou em instituição equivalente, além da realização de exames de conhecimento, da capacitação de 620 horas e dos cursos previstos pela NR-10 (Curso Básico e Curso Complementar, ambos de 40 horas).
Processos em face da empresa C
A análise do bloco de processos relativos à empresa C apresentou, além dos pleitos de diferenças de salários e benefícios citados nos tópicos referentes às empresas A e B, algumas alegações específicas dos trabalhadores acerca da falta de pagamentos de horas extras, sobreaviso e vales-transportes, bem como da supressão parcial dos intervalos para descanso e alimentação. Além disso, se queixaram das más condições de trabalho, ressaltando a inoperância do banheiro químico localizado nos caminhões das equipes, uma vez que este era utilizado para guardar ferramentas.
Quanto à jornada, os trabalhadores alegaram que durante os primeiros oito meses trabalharam das 7 às 22 horas. Após esse período, passaram a trabalhar entre 7 e 19 horas, com intervalos de apenas 15 a 20 minutos diários. Alegaram também que ficavam de sobreaviso entre as 17 horas da sexta-feira e as 7 horas da segunda-feira, em finais de semana alternados, sem o devido recebimento.
Síntese da análise dos processos
Os aspectos apontados pelos eletricistas das três empresas pesquisadas sugerem uma precarização de seu trabalho, tendo em vista que, embora exercessem atividades similares, o valor dos salários e os benefícios concedidos aos terceirizados eram inferiores aos recebidos pelos trabalhadores da Cemig. Ademais, as três empresas destacaram que a jornada de trabalho da empresa terceirizada é superior à da Cemig, tendo sido consenso entre os trabalhadores das empresas B e C a ocorrência de uma redução importante dos intervalos para descanso e alimentação.
O Quadro 1 oferece informações acerca do que os referidos direitos representam em valores monetários. Pode-se observar também o alto valor dos juros legais pela mora no pagamento, bem como valores referentes à Previdência Social e ao imposto de renda.
No Quadro 2 estão expostos os indicadores da existência da precarização no trabalho das equipes de eletricistas das empresas A, B e C.
Os dados expostos no Quadro 2 permitem observar que a empresa A era a que apresentava o maior número de sinais de precarização, com seis indicadores, embora as empresas B e C tenham apresentado cinco. Porém, questões essenciais como salários e benefícios inferiores, bem como jornadas de trabalho extensas, repetiram-se em todas as empresas terceirizadas. Tudo isso vai ao encontro das conclusões de Rabelo, Castro e Silva33. Rabelo LBC, Castro MLGL, Silva JMA. Dublês do setor elétrico: reflexões sobre identidade e trabalho terceirizado. Rev Psicol Organ Trab. 2016;16(2):166-75. quando apontam que a terceirização no setor elétrico tende a contribuir para a precarização do trabalho, e os elementos que permitiram tal conclusão corroboram, em grande medida, os resultados aqui reportados: a diminuição do salário e dos benefícios do terceirizado, o aumento da jornada de trabalho e a maior rotatividade nas empresas terceiras.
Análise das entrevistas
Foram realizadas entrevistas com sete eletricistas, sendo que um deles trabalhou para a Cemig e para a empresa A e os demais trabalharam para as empresas A, B ou C. Os relatos obtidos permitem identificar diversos aspectos que corroboram os dados colhidos nos processos. Todos os entrevistados concordaram sobre a existência de diferenças salariais e de benefícios concedidos pela empresa terceirizada em relação à primária. Para eles, o salário não é adequado, assim como os demais benefícios, a exemplo do vale-refeição e da assistência médica. Apesar de considerarem adequado o horário descrito no contrato de trabalho, os trabalhadores percebem uma discrepância entre o que a empresa propõe ao contratá-los e a jornada efetivamente desempenhada, sempre mais extensa, podendo chegar a 14 horas. Alguns disseram já ter trabalhado durante toda a noite, sendo que, dependendo da demanda, perdem o horário do almoço.
Esta questão foi analisada por Almeida e Vilela1414. Almeida IM, Vilela RAG. Modelo de análise e prevenção de acidentes de trabalho - MAPA [Internet]. Piracicaba (SP): Cerest; 2010 [citado em 9 ago 2021]. Disponível em: http://www.cerest.piracicaba.sp.gov.br/site/images/MAPA_SEQUENCIAL_FINAL.pdf
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, do ponto de vista da precarização, que concluíram que o cumprimento de jornadas excessivas, com realização de horas extras acima do legalmente permitido e um procedimento ineficiente de compensação de horários e turnos para revezamento, juntamente com o cansaço físico e psicológico do trabalhador, são elementos que fazem parte do cenário de precarização, contribuindo para o aumento dos acidentes. Eles concluem que, geralmente, esse cenário envolve o risco do desemprego, o aumento da informalidade e a descontinuidade do emprego.
A escolaridade apareceu também como um fator importante entre as diferenças constatadas, uma vez que a maioria dos terceirizados possui apenas o ensino fundamental, algumas vezes incompleto, enquanto a empresa primária exige mais formação dos seus empregados. Essa diferença repercute na qualidade do trabalho realizado pelo terceirizado, sendo que a este problema soma-se a carência de um bom treinamento.
Em consonância com o que foi constatado na análise dos processos, observou-se nas entrevistas que a qualidade e a quantidade de treinamento entre os empregados terceirizados são insuficientes. Enquanto os terceirizados recebem um treinamento de apenas de 20 a 30 dias, os empregados da Cemig são submetidos a uma formação de aproximadamente seis meses, sendo que o mínimo deve ser de três meses. Observaram-se ainda diferenças em termos de qualidade e profundidade dos conteúdos e das práticas no treinamento oferecido a cada grupo, expondo os trabalhadores terceirizados a um risco maior.
A baixa qualidade dos equipamentos de proteção utilizados pelo trabalhador terceirizado em relação aos adotados pelos empregados da Cemig sugere que a segurança dos terceirizados não é observada com a mesma atenção pela empresa por eles responsável. Tudo isso permite concluir que esse grupo se encontra mais suscetível aos acidentes, especialmente por se tratar de um setor considerado de alta periculosidade.
Ademais, a partir das entrevistas, foi possível refletir sobre problemas relativos ao direito de se recusar a fazer um trabalho que coloque a vida em risco. A legislação brasileira prevê esse direito, mas isso não garante que ele seja posto em prática, uma vez que a recusa pode ser seguida de algum tipo de retaliação. Nesse sentido, os trabalhadores expressaram que o temor de possíveis punições podia levá-los a executar uma ordem, mesmo cientes de expor suas vidas a riscos. Assim, embora a legislação brasileira atente ao fato de não ser permitido coagir o trabalhador a se expor a práticas que representem perigo grave e iminente a sua vida ou integridade1515. Gomes O, Gottschalk E. Curso de direito do trabalho. Rio de Janeiro: Forense; 1971., o fundamento do direito de recusa quase nunca é utilizado pelos assalariados, sendo isso mais frequente no contexto do trabalho terceirizado, por todos os aspectos já assinalados1616. Delgado MG. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr; 2010..
Para ilustrar os aspectos aqui expostos, será apresentada a análise de um caso de acidente fatal, ocorrido com um trabalhador terceirizado.
Análise de caso fatal
Para compreender o acidente ocorrido, foi realizada uma análise dos documentos relativos ao fato, em especial da CAT, do laudo do MTE, dos relatórios realizados pelo perito oficial nomeado pelo juiz do trabalho e pelo assistente técnico da empresa terceirizada, bem como da reclamação trabalhista proposta pela esposa do acidentado em face das empresas A e Cemig.
Relato do acidente
O caso relatado é o de um eletricista da empresa A. Era um jovem oriundo de um meio humilde, sendo arrimo de uma família numerosa. Tinha baixa escolaridade, com o ensino fundamental incompleto. Quando se acidentou tinha pouco mais de seis meses de trabalho na empresa, sendo considerado inexperiente pelo próprio parceiro com quem fazia dupla no dia do acidente, ocorrido em uma noite de domingo, após cerca de oito horas de trabalho. Ao final do expediente, o eletricista e seu parceiro foram acionados pelo Centro de Distribuição (COD) da empresa primária para atenderem a um chamado de cabo partido. No entanto, ao chegarem ao local, se depararam com algo diferente, uma chave sobre a qual não tinham conhecimento.
Ao tentarem solucionar o problema, o eletricista, que estava sem os equipamentos de proteção necessários, sofreu uma descarga elétrica e veio a óbito. É importante ressaltar que, em nenhum momento, a vítima ou seu parceiro de trabalho foram comunicados que os cabos estavam energizados ou receberam ordens de serviço específicas com a descrição detalhada da atividade, informações indispensáveis à segurança do empregado. Foram comunicados apenas sobre a necessidade de realizar o reparo de uma linha, sem qualquer planejamento e com informações imprecisas, com o agravante de estarem retornando de uma jornada de oito horas de trabalho.
Tudo isso sugere um ambiente organizacional propício a falhas e acidentes, remetendo aos apontamentos de Llory1717. Llory M. L'accident de la centrale nucléaire de Three Mile Island. Paris: L'Harmattan; 1999. quando afirma que as causas profundas dos acidentes não devem ser buscadas nos erros em si ou nas falhas dos operadores de campo, mas sim percebidas como um produto da organização e de suas políticas. A Cemig preconizava que equipes formadas por três eletricistas eram as mais adequadas, no entanto, a necessidade de aumentar o número de equipes levou a empresa terceirizada a utilizar duplas, formadas por um eletricista experiente e um novato, o que tem sido considerado como um fator de aumento do risco da atividade, sobretudo em reparos em redes elétricas energizadas1818. Castro MLGL. Quando as luzes não se apagam... A gestão coletiva dos riscos na manutenção em rede energizada [Dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2017. 240 p..
Análise do caso com base na documentação judicial
No dia seguinte ao acidente, a empregadora emitiu a CAT, qualificando-o como um acidente típico de trabalho que resultou em morte por exposição à energia elétrica. Após dois dias, o MTE foi comunicado sobre o fato e foi a campo para emitir um “Laudo Técnico de Análise de Acidente do Trabalho”1 1 Processo 00682-2008-074-03-00-6, Laudo MTE 31-37. , no qual informou a lavratura de dezoito autos de infração referentes às irregularidades quanto à jornada de trabalho, períodos de descanso e Normas Regulamentadoras (NR) 7, 10, 18 e 242 2 A NR 7 apresenta as diretrizes do programa de controle médico de saúde ocupacional com enfoque geral, enquanto a NR 10 é mais específica e regulamenta a segurança em instalações e serviços em eletricidade. Já a NR 18 delimita as condições e meio ambiente de trabalho na indústria da construção, e a NR 24 delimita as condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho. . Foram propostas as seguintes causas para a ocorrência do acidente: 1) iluminação insuficiente; 2) circuito desprotegido, pois a chave que poderia interromper a energia no poste estava a quilômetros de distância; 3) modo operatório inadequado à segurança, já que o acidentado não realizou a medição da tensão; 4) falha na antecipação, detecção do risco ou perigo, pelo mesmo motivo alegado anteriormente; 5) falta de planejamento e de preparação do trabalho; 6) ausência ou insuficiência de supervisão; 7) equipe numericamente insuficiente para a execução da atividade; 8) meio de comunicação ineficiente, pois não foram informados acerca da localização da chave interruptora do poste onde ocorreu o acidente; 9) tolerância da empresa ao descumprimento de normas de segurança; 10) falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e não prescrição desses equipamentos para a atividade, pois não houve fornecimento de vestimentas que contemplassem a condutibilidade, inflamabilidade e influências eletromagnéticas, que poderiam ter evitado a morte.
A conclusão do laudo técnico foi que se tratou de uma
alarmante situação de desrespeito à legislação de proteção, segurança e saúde no trabalho […] corroborando, cabalmente, de modo trágico e irreparável, a necessidade de se eliminar a terceirização de atividades-fim na Cemig3 3 Processo 00682-2008-074-03-00-6, Laudo MTE 31-37. .
A perícia técnica4 4 Processo 00682-2008-074-03-00-6. Laudo da Perícia Técnica 330/341. ocorreu nos autos da reclamação trabalhista promovida pela viúva e pelos filhos do acidentado, tendo sido requerida pela empresa terceirizada a um engenheiro mecânico e um engenheiro de segurança do trabalho, indicados pelo juiz local, como é de praxe nesses casos. O laudo chegou às seguintes conclusões: os dois eletricistas não executaram procedimentos básicos de segurança; não utilizavam equipamentos de segurança obrigatórios, tais como luvas de borracha isolantes, proteção dos elementos energizados e vestimenta que comportasse a condutibilidade; e não fizeram uma análise preliminar de riscos. De acordo com o perito, o técnico da empresa primária informou que uma equipe com duas pessoas não era suficiente para a realização do serviço, sendo que a vítima e seu colega de trabalho deveriam ter recusado o serviço. Nesse sentido, o parecer do assistente contratado pela empresa terceirizada5 5 Processo 00682-2008-074-03-00-6. Laudo da Ré 286/309. destoou completamente dos anteriores, tendo sido pautado em uma investigação acerca da responsabilidade da empresa que o contratou, a partir da qual refutou os argumentos do perito oficial.
Assim, ao contrário do que foi dito anteriormente, esse parecerista apontou para a adequação dos equipamentos utilizados, concluindo que o acidente ocorreu exclusivamente pela ausência de análise prévia do serviço e de padrões das operações, tais como abrir, sinalizar, testar e aterrar a rede. Segundo ele, a dupla apresentava todas as condições técnicas para realizar o serviço, sendo a vítima a maior responsável pelo acidente, por desrespeito aos procedimentos. Acrescentou ainda que, ao constatarem as dificuldades, a vítima e seu colega deveriam ter suspendido o serviço, afirmando que o comportamento adotado fugiu a qualquer tipo de controle do empregador. Nos seus próprios termos:
[…] a equipe tinha todas as condições técnicas, operacionais e capacitantes de desenvolver corretamente o serviço […]. E ainda, [os eletricistas] na constatação da dificuldade não só podiam como deveriam suspender os serviços. Tinham conhecimento, eram treinados para tanto, mas desrespeitaram os procedimentos. […] são circunstâncias ou condições ou comportamento da vítima que escapam a qualquer controle ou diligência do empregador, não se vislumbrando o nexo de causalidade, nem o dever de indenizar6 6 Processo 00682-2008-074-03-00-6. Laudo da Ré 286/309. .
Apesar disso, o juiz entendeu ter ficado evidente no conjunto probatório que “a empregadora do obreiro falecido agiu com culpa no evento que o vitimou”. Para tanto, fundamentou sua sentença nas conclusões do laudo do perito oficial e do fiscal do MTE, transcrevendo grande parte deles, em especial as causas elencadas anteriormente, e rechaçando a tese apresentada pelo assistente técnico da empresa terceirizada.
Ressaltou ainda o depoimento do eletricista que acompanhava o colega acidentado, entendendo ter ficado demonstrado que, de fato, “nem o obreiro falecido e nem seu colega de trabalho foram comunicados de que os cabos estavam energizados. Não receberam ordens de serviço específicas para data e local, com a descrição detalhada da atividade”.
Em seguida, enfatizou a culpa do empregador em virtude da ausência do cumprimento do dever legal de fiscalizar a correta execução dos serviços, em condições adequadas de segurança e higiene, julgando ser “inconcebível a ideia de que o falecido pudesse estar desenvolvendo uma tarefa de forma completamente alheia à empresa”, até mesmo porque o colega de trabalho da vítima informou ser comum a não realização das referidas análises preliminares. Por fim, o magistrado condenou as empresas primária e terceirizada, de forma solidária, pelos danos materiais e morais suportados pela família da vítima, apresentando tanto a responsabilidade objetiva quanto a subjetiva baseada na culpa, sendo a decisão mantida nos Tribunais Superiores.
Discussão
Os resultados expostos anteriormente refletem alguns elementos importantes observados no novo cenário social do trabalho e que emergiram a partir do capitalismo global, resultando, entre outras coisas, na chamada precarização do trabalho1919. Antunes R. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez; 1999.)(2121. Santos SDM. A precarização do trabalho docente no ensino superior: dos impasses às possibilidades de mudanças. Educ Rev. 2012;(46):229-44.. Nesse sentido, pode-se dizer que as mudanças provenientes da reestruturação produtiva, da interação mundial dos mercados financeiros, da economia internacionalizada, da desregulamentação e da abertura de mercados, adicionadas à ruptura das barreiras protecionistas, com todas as suas causas e consequências sociais e políticas, atuam também como fatores de desequilíbrio de vários setores da classe trabalhadora2222. Costa MS. Terceirização no Brasil: velhos dilemas e a necessidade de uma ordem mais includente. Cad EBAPE.BR. 2017;15(1):115-31.. Cabe ressaltar, no entanto, que não se está tratando aqui de algo novo, uma vez que o trabalho precário existe desde que se instaurou a lógica do assalariamento, mas o que se constata é a sua intensificação no decorrer das últimas décadas. Trata-se, na realidade, como afirma Hugues2323. Hugues E. Le drame social du travail. Actes rech sci soc. 1996;2(115):94-9., de um fenômeno multifacetado, com influências políticas, econômicas, jurídicas e morais, que sofre transformações no decorrer do tempo, de acordo com o país ou a região, mediante a atividade econômica empregada.
O que importa trazer aqui é a constatação frequente a respeito de um aumento importante da terceirização, isto é, da externalização de atividades até então realizadas pela empresa, nesse contexto comumente chamado de precarização do trabalho. Ou seja, essa medida tende a contribuir para o aumento da precariedade sempre que leva à diminuição do salário e dos benefícios, ocasionar maior rotatividade dos empregados, gerar aumento da jornada e incrementar os riscos de acidentes e de danos à saúde do trabalhador. Portanto, pode-se dizer que o estudo exposto colocou em evidência uma relação estreita entre a política de terceirização adotada pela empresa e a precarização do trabalho do eletricista, sendo que este resultado corrobora os achados de outras pesquisas em torno do tema, algumas voltadas também para o setor elétrico33. Rabelo LBC, Castro MLGL, Silva JMA. Dublês do setor elétrico: reflexões sobre identidade e trabalho terceirizado. Rev Psicol Organ Trab. 2016;16(2):166-75.),(44. Cassundé FR, Barbosa MAC, Costa JRM. Terceirização e precarização do trabalho: levantamento bibliométrico sobre os caminhos críticos da produção acadêmica em administração. TPA. 2016;6(1):172-94.),(2424. Feitosa RL, Montenegro AV. Considerações sobre terceirização e precarização no contexto brasileiro: uma revisão. Revista de Psicologia da UFC [Internet]. 2015 [citado em 30 ago 2021];6(2):76-89. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/2583.
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)(2727. Pialarissi R. Precarização do trabalho. Rev Adm Saude. 2017;17(66):1-12..
Para efeito de ilustração, pode-se citar uma pesquisa sobre o tema, promovida pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em 20172828. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos. Terceirização e precarização das condições de trabalho: condições de trabalho e remuneração em atividades tipicamente terceirizadas e contratantes. Nota Técnica n. 172 [Internet]. São Paulo: Dieese; mar 2017 [citado em 9 ago 2021]. Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2017/notaTec172Terceirizacao.pdf
https://www.dieese.org.br/notatecnica/20...
, cujos resultados indicam que em setores normalmente terceirizados o salário é de 23% a 27% inferior, e a taxa de rotatividade anual chega a 57,7%, enquanto nos serviços não terceirizados este índice é de 28,8%. Em outros termos, a terceirização, nos moldes em que é praticada em nosso país, tende a ser mera estratégia de transferência de ônus para os “parceiros”, ao transmitir os custos variáveis por meio da redução dos postos de trabalho, de modo a manter uma quantidade pequena de trabalhadores com contrato direto para realização das atividades-fim2929. Peixe JCMDS, Stampa IT. Terceirização no Brasil: tendências, dilemas e interesses em disputa. Riga: Novas Edições Acadêmicas; 2015.. Foi por esse motivo que passou a ser considerada como fator de exclusão social, pois priva um número crescente de trabalhadores de um vínculo empregatício e, portanto, do acesso ao mínimo de direitos trabalhistas e de proteção sindical3030. Marcelino P. Afinal, o que é terceirização? Em busca de ferramentas de análise e de ação política. Pegada. 2007;8(2):55-71.. Suas consequências maiores consistem, assim, na piora das condições gerais de trabalho e no rebaixamento do salário de várias classes de trabalhadores que, anteriormente, faziam parte dos efetivos da empresa, cujas relações de trabalho eram mais seguras e legalmente protegidas2222. Costa MS. Terceirização no Brasil: velhos dilemas e a necessidade de uma ordem mais includente. Cad EBAPE.BR. 2017;15(1):115-31..
Quanto ao contexto macroeconômico que favoreceu esse processo, os padrões neoliberais, sobretudo aqueles que passaram a prevalecer a partir de meados dos anos 1990, envolvendo, entre outras coisas, a flexibilidade do mercado de trabalho, permitiram o crescimento generalizado da terceirização por intermédio de modalidades atípicas de contrato temporário. Desde então, ocorreu uma explosão desse modelo contratual na forma de trabalho sem carteira assinada, atividades clandestinas, intermediação de mão de obra, além das falsas cooperativas3131. Thébaud-Mony A, Druck G. Terceirização: a erosão dos direitos dos trabalhadores na França e no Brasil. In: Dreuck G, Freanco T, organizadores. A perda da razão social do trabalho. São Paulo: Boitempo; 2007. p. 2358.. No contexto brasileiro, logo ficou evidente que a terceirização não consistia em uma estratégia de especialização da mão de obra, mas sim em um mecanismo de redução dos custos de trabalho, visto que possibilita, às empresas, transmitirem sua responsabilidade de contratação para terceiros. Ademais, sua propagação foi favorecida pelo contexto político dos anos 1990, que permitia grande liberdade para as empresas contratarem e demitirem, legitimando os contratos de trabalho flexíveis, regulamentados ou não2323. Hugues E. Le drame social du travail. Actes rech sci soc. 1996;2(115):94-9..
Uma evidência da generalização dessa modalidade de trabalho veio da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que concluiu, no início dos anos 2000, que cerca de 60% da força de trabalho no mundo já era precária, sendo que vinha ocorrendo uma inconstância nos contextos laborais que impedia o trabalhador de organizar sua vida pessoal, sobretudo em decorrência dos baixos salários, em um ambiente instável e sem qualquer forma de reconhecimento social, vivendo sem condições mínimas2727. Pialarissi R. Precarização do trabalho. Rev Adm Saude. 2017;17(66):1-12..
Assim, ao se considerar a caracterização da Organização Internacional do Trabalho (OIT) a respeito do trabalho precário como sendo todo aquele mal pago, inseguro, desprotegido e com nível inadequado de renda3232. Kalleberg AL. Crescimento do trabalho precário: um desafio global. Rev Bras Ci Soc. 2009;24(69):21-30., não é difícil identificá-la nos resultados aqui expostos. É importante atentar ainda que a precariedade pode se manifestar não apenas pela sensação de risco enfrentada em algumas ocasiões de trabalho, mas também pela insatisfação com o que se faz, pelo sentimento de desvalorização pessoal e pelo sofrimento ocorrido nos ambientes de trabalho. Entende-se, assim, que uma “relação subjetiva com o trabalho como ofício, com as atividades e conteúdo de uma ocupação ou profissão, constitui […] uma dimensão crucial para apreender a precariedade do trabalho”3333. Vargas FB. Trabalho, emprego, precariedade: dimensões conceituais em debate. Caderno CRH. 2016;29(77):313-31. (p. 315). É também nesse sentido que se concorda com Organista3434. Organista JHC. Trabalho criativo ou (des)emprego involuntário: informalidade na sociedade contemporânea. Perspectiva Sociológica. 2009;(3):1-14., quando conclui que a maneira de analisar o trabalho precário na sociedade contemporânea se relaciona com a valorização de uma ocupação e do local onde ela é realizada. Logo, segundo ele, a precariedade do trabalho não pode ser avaliada como uma ciência exata, empregando indicadores objetivos e operacionais, uma vez que é preciso a observação atenta do indivíduo em seu ambiente de trabalho, além da interpretação à luz das relações sociais.
Finalmente, cabe ressaltar que a abordagem adotada para a realização deste estudo resultou em uma espécie de redundância positiva, isto é, cada etapa confirmava os achados da anterior, tendo sido confirmados os sinais de precarização nos três momentos da pesquisa. Foi possível, então, elucidar melhor os motivos alegados pelos trabalhadores terceirizados quando interpõem ações trabalhistas, além das causas dos acidentes que ocorrem no setor estudado. Em outros termos, enquanto a pesquisa avançava, os traços de um trabalho precário emergiam com mais clareza, bem como sua relação com os acidentes frequentemente observados nesse contexto. Ademais, ficou evidente a submissão dos trabalhadores terceirizados a situações de risco, uma vez que o direito de recusa não é posto em prática, sobretudo por esse grupo, devido às formas contratuais que o colocam em situação de vulnerabilidade.
Portanto, a precarização dessa forma de trabalho apareceu de forma consistente em todas as etapas do estudo, a começar pelos resultados da análise dos processos judiciais, uma vez que essa revelou a presença importante de elementos que caracterizam o trabalho precário nas três empresas, em especial pelas diferenças de salários e de benefícios, mas também pelo aumento da jornada e as más condições de trabalho.
Ademais, o estudo do acidente fatal colocou ainda mais em evidência as disfunções organizacionais, como as falhas na comunicação entre quem determinou a realização do serviço e os trabalhadores que receberam a ordem3535. Llory M, Montmayeul R. L'accident et l'organisation. Bordeau: Préventique; 2012., além da extensão excessiva da jornada de trabalho, as equipes reduzidas e o despreparo do trabalhador terceirizado para realizar tarefas que envolvem risco.
Tais achados corroboram Almeida e Vilela1616. Delgado MG. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr; 2010., que apontam, entre as causas dos acidentes de trabalho, o fato de que as empresas não vêm investindo de maneira adequada em EPI, no fortalecimento dos coletivos de trabalhadores ou em outras medidas preventivas, sugerindo um aparente desinteresse por esses aspectos, bem como pelo processo de inspeção do trabalho. Tudo isso pode resultar no aumento excessivo da jornada, com realização de horas extras acima do legalmente permitido e um procedimento ineficiente de compensação de quadro de horários e turnos para revezamento, culminando na fadiga física e mental do trabalhador.
Em suma, a precarização parece ser uma das características marcantes dessa modalidade de trabalho, reduzindo direitos legais dos trabalhadores, inclusive o de se recusar a realizar uma tarefa para a qual não estejam preparados, expondo sua vida a um risco que pode ser fatal. Nada disso, no entanto, tem impedido que a terceirização ganhe cada vez mais espaço no país, principalmente com a Lei Federal nº 13.429/2017 e a modificação na Lei nº 13.467/2017, restando evidente o desencontro entre os elementos legais e a realidade vivida pelos trabalhadores. Tudo indica que essa modalidade contratual é inseparável de condições precárias e patogênicas de trabalho, sobretudo ao colocar os direitos trabalhistas mediados por duas instituições distintas, em uma combinação idiossincrática entre o público e o privado, podendo descaracterizá-los e impedir seu pleno exercício.
Referências
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2Presidência da República (BR). Lei n. 13.467, de 13 de julho de 2017 [Internet]. Brasília (DF); 14 jul 2017 [citado em 9 ago 2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm
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3Rabelo LBC, Castro MLGL, Silva JMA. Dublês do setor elétrico: reflexões sobre identidade e trabalho terceirizado. Rev Psicol Organ Trab. 2016;16(2):166-75.
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21Santos SDM. A precarização do trabalho docente no ensino superior: dos impasses às possibilidades de mudanças. Educ Rev. 2012;(46):229-44.
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22Costa MS. Terceirização no Brasil: velhos dilemas e a necessidade de uma ordem mais includente. Cad EBAPE.BR. 2017;15(1):115-31.
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23Hugues E. Le drame social du travail. Actes rech sci soc. 1996;2(115):94-9.
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24Feitosa RL, Montenegro AV. Considerações sobre terceirização e precarização no contexto brasileiro: uma revisão. Revista de Psicologia da UFC [Internet]. 2015 [citado em 30 ago 2021];6(2):76-89. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/psicologiaufc/article/view/2583
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25Marcelino P, Cavalcante S. Por uma definição de terceirização. Cad CRH. 2012;25(65):331-46.
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26Vargas FB. Trabalho, emprego, precariedade: dimensões conceituais em debate. Cad CRH. 2016;29(77):313-31.
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27Pialarissi R. Precarização do trabalho. Rev Adm Saude. 2017;17(66):1-12.
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28Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos. Terceirização e precarização das condições de trabalho: condições de trabalho e remuneração em atividades tipicamente terceirizadas e contratantes. Nota Técnica n. 172 [Internet]. São Paulo: Dieese; mar 2017 [citado em 9 ago 2021]. Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2017/notaTec172Terceirizacao.pdf
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29Peixe JCMDS, Stampa IT. Terceirização no Brasil: tendências, dilemas e interesses em disputa. Riga: Novas Edições Acadêmicas; 2015.
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30Marcelino P. Afinal, o que é terceirização? Em busca de ferramentas de análise e de ação política. Pegada. 2007;8(2):55-71.
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31Thébaud-Mony A, Druck G. Terceirização: a erosão dos direitos dos trabalhadores na França e no Brasil. In: Dreuck G, Freanco T, organizadores. A perda da razão social do trabalho. São Paulo: Boitempo; 2007. p. 2358.
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32Kalleberg AL. Crescimento do trabalho precário: um desafio global. Rev Bras Ci Soc. 2009;24(69):21-30.
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33Vargas FB. Trabalho, emprego, precariedade: dimensões conceituais em debate. Caderno CRH. 2016;29(77):313-31.
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34Organista JHC. Trabalho criativo ou (des)emprego involuntário: informalidade na sociedade contemporânea. Perspectiva Sociológica. 2009;(3):1-14.
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35Llory M, Montmayeul R. L'accident et l'organisation. Bordeau: Préventique; 2012.
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1
Processo 00682-2008-074-03-00-6, Laudo MTE 31-37.
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2
A NR 7 apresenta as diretrizes do programa de controle médico de saúde ocupacional com enfoque geral, enquanto a NR 10 é mais específica e regulamenta a segurança em instalações e serviços em eletricidade. Já a NR 18 delimita as condições e meio ambiente de trabalho na indústria da construção, e a NR 24 delimita as condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho.
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3
Processo 00682-2008-074-03-00-6, Laudo MTE 31-37.
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4
Processo 00682-2008-074-03-00-6. Laudo da Perícia Técnica 330/341.
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5
Processo 00682-2008-074-03-00-6. Laudo da Ré 286/309.
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6
Processo 00682-2008-074-03-00-6. Laudo da Ré 286/309.
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7
Trabalho baseado na dissertação de mestrado de Rodrigo Castro Oliveira, intitulada “Terceirização no setor elétrico: estudo de caso com trabalhadores terceirizados de uma cidade do interior de Minas Gerais”, defendida em 2018 no Mestrado em Administração do Centro Universitário Unihorizontes.
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9
Os autores informam que o trabalho não foi apresentado em evento científico.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Set 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
14 Out 2019 -
Revisado
06 Fev 2020 -
Aceito
02 Mar 2020