Resumo
Objetivo: descrever três indicadores de saúde bucal - as proporções de perda dentária, de consulta ao dentista e de frequência de escovação dentária - segundo o tipo de inserção na força de trabalho, no ano de 2019.
Métodos: estudo descritivo realizado com dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019. Foram incluídos indivíduos empregados ou desempregados, com 18 anos ou mais. Foram calculados os indicadores de saúde bucal, assim como seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%).
Resultados: a amostra foi composta por 54.343 trabalhadores, sendo 29.889 (53,9%) do sexo masculino. A proporção de perda de 13 ou mais dentes foi maior no setor informal [10,5% (IC95%: 9,8;11,2)]. A proporção de pessoas que não consultaram um dentista nos últimos 12 meses foi maior no setor informal [51,9% (IC95%: 50,8;53,0)] e entre os desempregados [52,4% (IC95%: 49,6;55,2)]. Menor frequência de escovação dentária foi observada no grupo com vínculo informal de emprego [5,2% (IC95%: 4,7;5,6)] e entre indivíduos do sexo masculino [7,5% (IC95%: 6,8;8,2)].
Conclusão: piores indicadores foram encontrados entre os trabalhadores do setor informal ou desempregados e foram observadas desigualdades entre os sexos.
Palavras-chave: epidemiologia descritiva; inquéritos de saúde bucal; saúde bucal; emprego; saúde do trabalhador
Abstract
Objective: to describe three oral health indicators-the proportions of tooth loss, dental visits, and toothbrushing frequency-according to job market insertion in 2019.
Methods: a descriptive study with data from the 2019 Brazilian National Health Survey (PNS). We included individuals aged from 18 years or older, irrespective of employment status. We calculated the oral health indicators, as well as their respective 95% confidence intervals (95%CI).
Results: the sample was composed by 54,343 workers, 29,889 (53.9%) being male. The proportion of 13 or more teeth loss was higher in the informal employment sector [10.5% (95%CI: 9.8;11.2)]. The proportion of people that did not consult a dentist in the previous 12 months was higher in the informal sector [51.9% (95%CI: 50.8;53.0)] and among unemployed [52.4% (95%CI: 49.6;55.2)]. Lower toothbrushing frequency was observed in the informal workers’ group [5.2% (95%CI: 4.7;5.6)] and among male workers [7.5% (95%CI: 6.8;8.2)].
Conclusion: worse oral health indicators were found among informal and unemployed workers, in addition to gender inequalities.
Keywords: epidemiology, descriptive; dental health surveys; oral health; employment; occupational health
Introdução
As doenças e os agravos à saúde bucal afetam quase metade da população mundial1, ainda assim são absurdamente negligenciados2. Os mais comuns são as cáries dentárias, as doenças periodontais, a perda dentária e o câncer da cavidade oral3. Essas condições crônicas são distribuídas desigualmente nas populações e nos territórios3)-(6. A publicação dos resultados dos inquéritos de saúde nacionais e locais confirmam essa realidade no Brasil, bem como esclarecem os determinantes sociais das desigualdades observadas6),(7.
Renda e escolaridade têm sido as variáveis explicativas mais exploradas nos estudos sobre a determinação social da saúde bucal. Acredita-se que as pessoas com mais anos de estudo compreendam mais facilmente a relevância dos hábitos de higiene bucal, como trocar a escova de dente periodicamente ou usar o fio dental. Mais escolarizadas, essas pessoas são mais sensíveis às orientações para diminuir o consumo de alimentos açucarados ou abandonar o tabagismo8. Maior renda, por sua vez, propicia às pessoas recursos para adquirir os materiais de higiene oral ou buscar os serviços odontológicos9. No Brasil, a relação de renda e escolaridade com doença periodontal8),(10, edentulismo e prótese dentária11 foi examinada. Esses estudos não abordaram a ocupação, terceira variável clássica da sociologia interessada em investigar a situação socioeconômica das populações12. Na literatura específica, contudo, foi mencionado o limite da variável renda como medida de posição social13.
De acordo com o tradicional esquema Erikson-Goldthorpe-Portocarero (EGP), a posição ocupacional, ou seja, a função e o tipo de inserção do indivíduo no mercado de trabalho, influencia o acesso a recursos e recompensas12),(14. Nas pesquisas sobre a determinação social da saúde, a variável ocupação tem sido abordada como a origem da renda, ao mesmo tempo em que é considerada como reflexo da escolaridade15.
Emprego é um determinante da saúde porque é o principal elo de acesso e organização da vida em sociedade16. Trajetórias de emprego formal, permanente e em tempo integral produziram efeito protetor para vários indicadores de saúde bucal em uma coorte de idosos estudada no Chile17. Além do emprego, a atividade de trabalho é mais uma dimensão da inserção do indivíduo na força de trabalho cujas características foram relacionadas a estilos de vida saudáveis de trabalhadores no Brasil18.
Desde o clássico estudo dos anos 1990, intitulado “Odontologia brasileira: tecnicamente elogiável, cientificamente discutível, socialmente caótica”19, até os dias que correm, houve constatada evolução nos indicadores de saúde bucal no país20. Sete anos depois da implantação da Política Nacional de Saúde Bucal, denominada, em 2004, Brasil Sorridente, foram observadas mudanças positivas no perfil epidemiológico, por exemplo, redução de 50% do número de adolescentes e adultos com relato de perda dentária e aumento do número de pessoas com acesso à água com flúor21. Mas os desafios persistem. Em 2013, 11% dos brasileiros com 18 anos ou mais informaram perda de todos os dentes, sendo maior a proporção entre as mulheres (13%)6. Em 2017, o Brasil foi posicionado entre os países com alta carga de doença bucal, além de figurar entre os dez primeiros com maior necessidade de tratamento das doenças que foram estudadas, por meio de comparação interpaíses1.
Afecções nas estruturas da boca, da gengiva e dos dentes produzem desconforto, dor e prejuízos para a qualidade de vida22. As doenças bucais, como a doença periodontal, influenciam a expressão facial, as habilidades comunicacionais e a estética facial, que, por sua vez, são aspectos valorizados socialmente, com repercussões sobre a empregabilidade23.
A intervenção estatal que visa reformular as relações de trabalho ganhou força nas últimas décadas no Brasil e no mundo, aumentando o número de trabalhadores vinculados a empregos informais, nos quais é frequente a exposição a piores condições laborais24. Indivíduos desempregados carecem de recursos para comprar os serviços de saúde e de direitos políticos para ter acesso a esses serviços enquanto cidadãos16. Trabalhadores empregados no setor informal estão expostos aos riscos de estresse mental, desgaste, adoecimento, acidentes e morte25.
Neste contexto, o objetivo deste trabalho é descrever três indicadores de saúde bucal - as proporções de perda dentária, de consulta ao dentista e de frequência de escovação dentária - segundo o tipo de inserção na força de trabalho, no ano de 2019.
Métodos
Desenho do estudo e fonte dos dados
Foi realizado estudo descritivo com dados da segunda edição da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2019. A PNS é um inquérito de saúde de base domiciliar, de âmbito nacional, realizada pelo Ministério da Saúde em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cuja primeira edição foi realizada em 2013.
O plano amostral da PNS foi feito por conglomerados em três estágios de seleção, com estratificação das unidades primárias de amostragem (UPAs), representada por setores censitários ou conjuntos de setores. No primeiro estágio, a seleção das UPAs foi realizada por amostragem aleatória simples. No segundo estágio, um número fixo de domicílios particulares permanentes foi selecionado aleatoriamente em cada UPA selecionada no estágio anterior. No terceiro estágio, dentro de cada domicílio da amostra, um morador foi selecionado com equiprobabilidade, a partir de uma lista de moradores elegíveis construída no momento da entrevista, para responder à entrevista individual26. Essas e outras informações sobre a PNS podem ser acessadas na plataforma com os dados da pesquisa (https://www.pns.icict.fiocruz.br/bases-de-dados/).
Participantes
Para esta pesquisa, foram consideradas elegíveis as pessoas com 18 anos ou mais, incluídas na população economicamente ativa (PEA), ou seja, empregados e desempregados. Os empregadores foram considerados inelegíveis.
Construção dos indicadores de saúde bucal
A seguir, são apresentados os três indicadores de saúde bucal analisados e as respectivas perguntas utilizadas para sua construção.
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1. Proporção de pessoas de 18 anos ou mais de idade que perderam 13 ou mais dentes:
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U23a. “Lembrando-se dos seus dentes permanentes de cima, o(a) Sr.(a) perdeu algum?”;
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U24a. “Lembrando-se dos seus dentes permanentes de baixo, o(a) Sr.(a) perdeu algum?”;
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2. Proporção de pessoas de 18 anos ou mais de idade que não consultaram um dentista nos últimos 12 meses:
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J13a. “Quando o(a) Sr.(a) consultou um dentista pela última vez?”;
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3. Proporção de pessoas de 18 anos ou mais de idade que escovam os dentes menos de duas vezes por dia:
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U1a. “Com que frequência o(a) Sr.(a) usa a escova de dentes para a higiene bucal?”.
Para o indicador da perda dentária, foi adotado o ponto de corte da perda de 13 ou mais dentes, número a partir do qual se considera a dentição não funcional5.
Variáveis
A variável tipo de inserção na força de trabalho foi classificada em três categorias: emprego formal, emprego informal e desemprego. Para a classificação dos empregados e desempregados, foram utilizadas as seguintes perguntas-filtro:
E11. “Quantos trabalhos tinha na semana de 21 a 27 de julho de 2019 (semana de referência)?”;
E22. “No período de 28 de junho a 27 de julho de 2019 (período de referência de 30 dias), tomou alguma providência para conseguir trabalho, seja um emprego ou um negócio próprio?”;
E26. “Se tivesse conseguido um trabalho, poderia ter começado a trabalhar na semana de 21 a 27 de julho de 2019 (semana de referência)?”; e
E23a. “No período de 28 de junho a 27 de julho de 2019 (período de referência de 30 dias), qual foi a principal providência que tomou para conseguir trabalho?”.
Foram considerados empregados aqueles que responderam à pergunta E11. Já os desempregados foram aqueles que responderam positivamente às perguntas E22 e E26 e que relataram ter tomado alguma providência efetiva para conseguir um emprego na pergunta E23a.
Os respondentes empregados foram subclassificados de acordo com o tipo de vínculo de emprego: formal ou informal. No grupo dos empregados formais foram incluídos: (1) trabalhador doméstico com carteira de trabalho assinada; (2) militar; (3) empregado do setor privado com carteira de trabalho assinada; e (4) empregado do setor público estatutário ou com carteira de trabalho assinada. Já no grupo dos vinculados informalmente ao emprego foram incluídos: (1) trabalhador doméstico sem carteira de trabalho assinada; (2) empregado do setor privado sem carteira de trabalho assinada; (3) empregado do setor público em regime não estatutário e sem carteira de trabalho assinada; (4) trabalhador por conta própria; e (5) trabalhador não remunerado que ajuda membro do domicílio ou parente.
As covariáveis incluídas no estudo foram: sexo (masculino, feminino), idade em anos (18-34, 35-44, 45-59 e ≥ 60); raça/cor da pele autodeclarada (branca e não branca); e escolaridade (≥ ensino médio, ≤ ensino fundamental completo e sem instrução). A raça/cor da pele não branca incluiu as categorias preta, amarela, parda e indígena.
A renda domiciliar per capita em salários mínimos (SMs), analisada em três categorias (> 3, ≥ 1 e ≤ 3, < 1 SM), foi calculada a partir da variável VDF003 (rendimento domiciliar per capita). O cálculo foi realizado dividindo o valor obtido na renda domiciliar per capita pelo valor do salário mínimo vigente em 2019 (R$ 998,00).
Não houve perdas por falta de respostas às perguntas das quais derivaram as variáveis.
Análise dos dados
As análises foram realizadas por meio do programa estatístico Stata versão 16.0. Considerando-se o desenho amostral complexo da pesquisa, as análises foram realizadas levando-se em conta os estratos, as UPAs e os pesos amostrais mediante o uso do módulo survey (svy). Análises descritivas foram realizadas, e as proporções e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) foram estimados e apresentados na seção “Resultados” como [proporção (IC95%)]. A comparação entre sexos foi analisada pelo teste qui-quadrado, considerando o nível de significância de 5%.
Considerações éticas
A PNS foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) em agosto de 2019, sob o parecer nº 3.529.376, e obedeceu à Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, assegurando aos participantes da pesquisa sua voluntariedade, seu anonimato e a possibilidade de desistência a qualquer momento do estudo26.
Resultados
Participaram da pesquisa 54.343 indivíduos economicamente ativos, sendo 29.889 (53,9%) do sexo masculino e 24.454 (46,1%) do feminino, após a exclusão dos inelegíveis (n = 1.869). Não houve perdas nas respostas às perguntas utilizadas para formular os indicadores de saúde bucal.
As características da amostra estão apresentadas na Tabela 1.
A situação de emprego informal foi a mais frequente, tanto para o sexo masculino (49,0%) quanto para o feminino (47,6%). Em relação ao emprego formal, 44,7% dos homens e 41,9% das mulheres se tinham carteira assinada; e quanto ao desemprego, estavam nessa situação 6,3% dos homens e 10,5% das mulheres. Predominaram indivíduos na faixa etária de 18 a 34 anos de idade (38,4%), que se declararam não brancos (57,7%), com nível de escolaridade igual ou acima do ensino médio e que informaram renda per capita menor que um SM (47,1%).
A proporção de perda de 13 ou mais dentes foi de 6,9%, sendo superior no sexo feminino (7,8%) em relação ao masculino (6,0%) (Tabela 2). No geral, a proporção de perda de 13 ou mais dentes foi maior no setor informal [10,5% (9,8;11,2)]. Nesse grupo, o indicador teve valores mais elevados entre os indivíduos do sexo feminino [12,6% (11,4;13,8)], com idade igual ou superior a 60 anos [38,7% (35,9;41,5)], de raça/cor da pele branca [11,0% (9,7;12,3)], sem instrução escolar [21,1% (19,5;22,6)] e com renda domiciliar per capita entre um e três SMs [12,6% (11,4;13,7)] (Tabela 1).
A proporção de trabalhadores que não consultaram um dentista nos últimos 12 meses foi de 46,9%, sendo superior no sexo masculino (56,0%) em relação ao feminino (39,8%) (Tabela 3). Não ter consultado um dentista nos últimos 12 meses predominou no setor informal [51,9% (50,8;53,0)] e entre os desempregados [52,4% (49,6;55,2)]. Quanto ao sexo, a proporção foi maior entre os homens do setor informal [57,6% (56,2;58,9)] e homens desempregados [61,7% (57,5;65,9)].
A proporção de baixa frequência de escovação dentária foi de 3,7%, superior no sexo masculino (5,5%) em relação ao feminino (1,6%) (Tabela 4). No grupo com vínculo informal de emprego, esta proporção foi de 5,2% (IC95% 4,7;5,6)], maior em indivíduos do sexo masculino [7,5% (6,8;8,2)], não brancos [5,5% (5,0;6,0)], sem instrução [9,5% (8,6;10,4) e com renda inferior a um SM [6,5% (5,8;7,2)].
Acréscimos dos percentuais nos três indicadores foram observados com o aumento da idade. Em relação à raça/cor da pele autodeclarada, os piores indicadores estão concentrados no grupo dos indivíduos não brancos, à exceção da perda dentária.
Discussão
A distribuição de indicadores de saúde bucal em adultos economicamente ativos, em 2019, evidenciou diferenças de acordo com o tipo de inserção na força de trabalho. Foi observada pior situação para os três indicadores estudados entre trabalhadores do setor informal e na população desempregada, bem como foram observadas diferenças entre os sexos. Esses resultados originais contribuem para suprir a lacuna do conhecimento quanto às condições e às práticas de saúde bucal entre adultos economicamente ativos, conforme o tipo de inserção na força de trabalho.
O estudo foi baseado em dados de uma amostra representativa da população brasileira. No recorte estudado, evidenciou-se a predominância na força de trabalho de homens, jovens, não brancos, escolarizados27 e com renda domiciliar per capita inferior a um SM por mês. Entre 1980 e 2018, o número de pessoas desempregadas decuplicou no Brasil28. No segundo semestre de 2021, a taxa de desemprego no país era de 14,1%29. Coincidindo com a elevação do desemprego nacional, observa-se a desregulamentação do emprego24. Os empregos remunerados que mais cresceram foram no setor informal, cuja participação relativa ocupada na PEA passou de 14%, em 1980, para quase 20%, em 2018. Em contrapartida, houve decrescimento do peso relativo do emprego formal28.
Sobre as diferenças entre os sexos na distribuição dos indicadores de saúde bucal, as mulheres perderam mais dentes do que os homens, mas são elas que relataram atitudes e comportamentos mais protetores à saúde bucal, como maior frequência de escovação e visitas aos serviços odontológicos. Como explicar esse aparente paradoxo? A perda dentária foi associada ao acesso aos serviços odontológicos, é a denominada espiral da morte do dente1. Então, como as mulheres visitam mais frequentemente o dentista, não é inesperada a predominância de autorrelato de perda de dentes entre elas.
As disparidades raciais encontradas não são surpreendentes. As piores condições de saúde bucal afetam mais frequentemente os indivíduos não brancos30),(31. No Brasil, a proporção de consultas odontológicas motivadas por dor ou extração dentária foi maior entre os indivíduos de raça/cor da pele preta e parda32. As condições socioeconômicas que são determinantes da situação de saúde se somam às condições gerais de moradia, que são desfavoráveis para a população de raça/cor da pele preta/parda adotar as medidas de higiene necessárias à saúde bucal: 17,9%, versus 11,5% da população branca, não contam com o abastecimento de água por rede; 42,8%, versus 26,5% da população branca, moram em áreas sem esgotamento sanitário por rede33.
Os piores resultados observados no grupo dos trabalhadores e trabalhadoras do setor informal eram esperados. As relações e as condições laborais no emprego informal e seus diversos formatos, como o vínculo temporário, têm sido considerados prejudiciais à saúde bucal, incluindo a perda dentária34 e seus fatores de origem, como a cárie não tratada35. No setor informal, é provável que haja maior percepção de insegurança, que, por sua vez, é um fator estressante. Sabe-se que o estresse ocupacional é considerado um mediador dos resultados de saúde, uma vez que está associado à busca de “amortecedores” negativos daquela situação ansiogênica, por exemplo, o consumo de substâncias como álcool e tabaco25. Alterações fisiológicas causadas pelo estresse, em segundo lugar, explicariam a redução do fluxo salivar, que propicia a evolução de doenças periodontais e suas consequências34),(35. Em terceiro lugar, no mercado informal, a renda dos trabalhadores e trabalhadoras geralmente é menor do que no mercado formal, bem como a possibilidade de acesso aos planos de saúde. Essa realidade é particularmente preocupante, haja vista as insuficiências estruturais da cobertura dos serviços odontológicos públicos no Brasil8 e no mundo3.
Observou-se, como esperado, que as visitas ao dentista foram menos frequentes nos grupos dos informais e dos desempregados. A interpretação desse resultado convoca uma reflexão em via dupla. Em primeiro lugar, conforme aventado anteriormente, o acesso a esses serviços é oneroso, uma vez constatada a deficiência da oferta pelo sistema público de saúde1. Essa situação seria impactante para a força de trabalho desempregada36. No caso do setor informal, é menos provável o acesso a planos de saúde. Além disso, sendo corrente a jornada prolongada e mais frequentes os horários atípicos16, seriam mais restritas as margens, em função da falta de tempo, para adesão aos cuidados e busca pelos serviços de saúde36),(37.
Este estudo tem limitações que devem ser consideradas na interpretação dos resultados apresentados. A possibilidade de viés de informação não pode ser descartada, uma vez que a aceitação social influencia a resposta dos participantes quando são inquiridos sobre comportamentos saudáveis. Por exemplo, é comum as pessoas responderem que escovam os dentes três vezes ao dia, apesar de não o fazerem, apenas porque reconhecem que esta seria a resposta mais correta ou aceitável socialmente. Nesse caso, os nossos resultados foram subestimados.
Não foi possível analisar o acesso a serviços de saúde bucal apenas com o indicador “consulta ao dentista nos últimos 12 meses”, uma vez que a percepção de necessidade de tratamento também pode influenciar a procura por serviços de saúde38, portanto, outros indicadores devem ser incluídos em investigações futuras.
Ademais, a descrição das frequências brutas e relativas, por um lado, é indicada para elucidar situações pouco exploradas, como é o caso da saúde bucal em adultos economicamente ativos, com ênfase no emprego. Mas, por outro lado, sem estudos analíticos não é possível verificar se os resultados estão relacionados ao efeito da duração da situação de desemprego. Por exemplo, sobre a pior situação das mulheres desempregadas, considerando a discriminação de gênero no mercado de trabalho, as mulheres desempregadas da amostra do nosso estudo estariam a mais tempo nessa situação, se comparadas aos homens desempregados? Sabe-se que a crise do desemprego nos últimos anos afetou mais as mulheres do que os homens39. Esses resultados instruem delineamentos futuros, uma vez que a duração do desemprego não foi considerada entre as variáveis do nosso estudo.
Embora a validade da informação sobre a perda dentária autorreferida possa ser questionada, já foi demonstrada a validade dessa medida quando comparada com sua medida clínica40.
Em que pese esse conjunto de limites, a principal força deste estudo reside na utilização de uma amostra representativa dos adultos brasileiros. Além disso, a PNS permitiu cobrir lacunas no campo da saúde do trabalhador, pois, além dos módulos sobre situação de saúde, estilos de vida, acesso a serviços de saúde etc., os resultados fornecem informações sobre a situação no emprego e as condições de trabalho. O desenho da amostra da PNS garante a representatividade para o Brasil de maneira a permitir uma caracterização confiável das condições de saúde dos adultos na força de trabalho41. A versão da PNS de 2019 agregou perguntas sobre a situação previdenciária dos indivíduos ocupados. A resposta a essas perguntas beneficiou a caracterização do tipo de inserção na força de trabalho.
No começo do século XXI, viu-se despontar uma produção ampla sobre a situação de saúde bucal das populações e a relevância das políticas nesse âmbito e em escala mundial. A situação dos trabalhadores e trabalhadoras no país traz elementos relevantes para continuar a refletir e criticar as desigualdades sistêmicas na distribuição dos indicadores avaliados. A interseção entre as ações de prevenção das doenças, a mudança dos comportamentos de risco, as políticas de proteção ao emprego formal e a diminuição do desemprego seria uma estratégia vantajosa para mudar a posição do Brasil no ranqueamento dos indicadores em saúde bucal. Essa estratégia se fortaleceria, se revestida das preocupações com as assimetrias relacionados ao sexo no mercado de trabalho.
Conclusão
A avaliação da distribuição dos indicadores de saúde bucal na força de trabalho brasileira evidenciou piores resultados no grupo inserido no setor informal ou no de desempregados. Desigualdades entre os sexos foram observadas, sendo maiores a proporção de perda dentária no sexo feminino e as proporções de baixa frequência de escovação dentária e de idas ao dentista em indivíduos do sexo masculino. Os locais de trabalho são ambientes adequados para desenvolver ações de prevenção e acompanhamento da saúde. Esses resultados são relevantes para alimentar políticas setoriais de proteção do emprego e fóruns sobre acesso universal ao emprego protegido e ao cuidado em saúde bucal. Ainda, podem subsidiar o aprimoramento de políticas de saúde bucal, como a ampliação da oferta de consultas odontológicas no Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo horários diferenciados (estendidos) para trabalhadores.
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Este trabalho é baseado na tese de doutorado de Nayara Silva Alves intitulada Saúde bucal no Brasil: desvantagens no emprego e diferenças de gênero, PNS, 2019, em fase de desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Minas Gerais.
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3
As autoras informam que este estudo não foi apresentado em evento científico.
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Declaração de disponibilidade de dados
Os autores declaram que o conjunto de dados anonimizados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível publicamente no repositório “Microdados IBGE” no endereço: https://www.pns.icict.fiocruz.br/bases-de-dados/.
Disponibilidade de dados
Os autores declaram que o conjunto de dados anonimizados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível publicamente no repositório “Microdados IBGE” no endereço: https://www.pns.icict.fiocruz.br/bases-de-dados/.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
19 Ago 2022 -
Revisado
29 Dez 2022 -
Aceito
30 Dez 2022