Open-access Indução do padrão citoplasmático em forma de "bastões e anéis" através do tratamento da hepatite C: relato de caso

Resumos

Paciente do sexo feminino, queixando-se de astenia e dor em hipogastro, foi admitida no pronto-socorro do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP). Durante a anamnese relatou tratamento de infecção crônica pelo vírus da hepatite C (VHC) com inteferon peguilado e ribavirina. Dentre os exames laboratoriais solicitados, a pesquisa de autoanticorpos contra antígenos celulares (PAAC-HEp-2), conhecido tradicionalmente como fator antinúcleo (FAN), apresentou fluorescência em forma de bastões e/ou anéis no citoplasma das células. Esse padrão é caracterizado por bastões de 3-10 µm e anéis com 2-5 µm de diâmetro espalhados através do citoplasma da célula. Portanto, esse novo padrão tem sido designado como "bastões e anéis" (traduzido do inglês: Rods and Rings, RR). O alvo antigênico dessa reação foi identificado como inosina-5'-monofosfato desidrogenase tipo 2 (IMPDH2) que é uma enzima chave na síntese de nucleotídeos púricos. A enzima IMPDH2 agregada ou modificada em forma de RR nos pacientes tratados com ribavirina pode tornar-se antigênica e induzir uma resposta autoimune. É possível que o interferon alfa estimule a ocorrência de reatividade anti-RR aparentemente induzida pela ribavirina. Até o momento não se sabe por que o padrão RR em células HEp-2 ocorrem apenas em uma fração de pacientes portadores do VHC. Os dados apresentados em trabalhos anteriores possibilitam afirmar que esses anticorpos associados ao padrão RR estão fortemente relacionados com o tratamento da hepatite C. Além disso, pode-se afirmar que a ocorrência de reatividade anti-RR é promovida pela terapia combinada com interferon alfa e ribavirina.

Hepatite C; Autoanticorpos; Bastões e anéis; Padrão citoplasmático


Female patient, complaining of weakness and pain in hypogastric, was admitted to the emergency department of the University Hospital of the West of Paraná (HUOP). During the interview reported treatment of chronic infection with hepatitis C virus (HCV) with peginterferon and ribavirin. Among the laboratory tests ordered, the search for self-antibodies against cellular antigens, traditionally known as antinuclear factor, showed fluorescence shaped like rods and/or rings in the cytoplasm of cells. This study attempts to clarify the relationship between this pattern not yet completely understood and the clinical picture of the patient. This pattern is characterized by 3–10 µm rods or rings with 2–5 µm in diameter scattered throughout the cytoplasm of the cell. Therefore, this new standard has been designated as "rods and rings" (RR). The antigenic target of this reaction was identified as inosine-5'-monophosphate dehydrogenase type 2 (IMPDH2) which is a key enzyme in the synthesis of purine nucleotides. The IMPDH2 enzyme aggregated or modified shaped RR in those patients treated with ribavirin may become antigenic and induce an autoimmune response. It is possible that interferon alpha stimulates the occurrence of anti-RR reactivity apparently induced by ribavirin. So far it is not known why the standard RR in HEp2 cells occurs only in a fraction of patients with HCV. Previous studies presented in this paper allow affirming that these antibodies associated with the standard RR are strongly related to hepatitis C. Moreover, it can be stated that the occurrence of anti-RR reactivity is promoted by combination therapy with interferon and ribavirin.

Hepatitis C; Self-antibodies; Rods and rings; Cytoplasmic pattern


Introdução

O vírus da hepatite C (VHC) é um vírus RNA da família Flaviviridae, gênero Hepacivirus, com uma alta taxa de replicação hepática, é envelopado, com tamanho entre 30 e 40 nanômetros.1-3 O VHC foi inicialmente isolado no soro de uma pessoa com hepatite não-A e não-B, em 1989, por Choo et al.4 Desde então, a hepatite C ganhou especial relevância entre as causas de doença hepática crônica no mundo. Em 1992 foi desenvolvido o primeiro teste para identificação do anticorpo contra o VHC, proporcionando maior segurança em transfusões sanguíneas.1,2

A transmissão do VHC ocorre pelo contato com sangue infectado em virtude de exposição percutânea, transfusão de sangue e/ou hemoderivados e transplantes de doadores infectados. Embora alguns pacientes com infecção aguda por VHC tenham um sistema imune capaz de eliminar o vírus, 55%-58% dos pacientes desenvolvem infecção crônica, definida como a persistência da infecção pelo tempo mínimo de seis meses, com somente 10%-15% dos casos alcançando a cura espontânea. A injúria hepatocelular vista na infecção crônica pelo VHC parece não estar relacionada diretamente a um efeito citopático viral, estando relacionada a mediadores imunológicos, com as células natural killer e linfócitos TCD8+ tendo um papel central na patogenia.1,2

O tratamento da infecção pelo VHC tem como objetivo controlar a progressão da doença hepática inibindo a replicação viral. Além disso, a redução da atividade inflamatória impede a evolução para cirrose e carcinoma hepáticos. A terapia recomendada para tratar a infecção crônica pelo VHC é uma combinação de uma formulação de interferon alfa e ribavirina.3

O interferon é uma citocina que compõe a resposta inata do hospedeiro humano. A adição de uma molécula de polietilenoglicol à molécula do interferon prolonga a ação, eleva a velocidade de absorção, aumenta à meia-vida e reduz o clearence do interferon. A ribavirina é um antiviral análogo de nucleosídeo utilizado por via oral com amplo espectro de ação contra patógenos virais. A ribavirina também tem efeito modulador da resposta imune.2,3 Mori et al. recentemente demonstraram que a ribavirina em doses terapêuticas inibe a replicação do RNA do VHC, e propuseram que esta atividade anti-VHC é mediada pela inibição da inosina-5'-monofosfato desidrogenase (IMPDH).5

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, queixando-se de astenia e dor em hipogastro, foi admitida dia 04/10/2011 no pronto socorro do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP), na cidade de Cascavel-PR. Durante a anamnese relatou tratamento de infecção crônica pelo vírus da hepatite C com interferon alfa peguilado e ribavirina, com início no dia 07/12/2010 e conclusão no dia 01/11/2011, neste período a paciente apresentou pancitopenia grave em decorrência dos efeitos adversos da medicação. No momento da internação foram realizados exames laboratoriais admissionais de rotina, e os resultados obtidos apresentaram alterações importantes nos índices hematimétricos, sendo que o hematócrito de 23% associado a valores normais de HCM (hemoglobina corpuscular média) juntamente com os dados clínicos obtidos na ocasião da anamnese, levantaram a hipótese diagnóstica de anemia autoimune. Na tentativa de confirmar o diagnóstico de doença autoimune foi solicitada a pesquisa de autoanticorpos contra antígenos celulares (PAAC-HEp-2), conhecido tradicionalmente como fator antinúcleo (FAN), que apresentou fluorescência em forma de bastões e/ou anéis no citoplasma das células. Essa descrição de caso clínico tem como objetivo trazer informações atuais a respeito desse padrão de fluorescência encontrado em células Hep-2, ainda não compreendido completamente, na tentativa de compreender sua relação com o quadro clínico da paciente.

Discussão

Recentemente um novo padrão citoplasmático na PAAC-HEp-2 foi reportado em pacientes portadores do VHC. Esse padrão é caracterizado por bastões de 3-10 µm e anéis com 2-5 µm de diâmetro espalhados no citoplasma da célula (fig. 1). Portanto, esse novo padrão tem sido designado como "bastões e anéis" (traduzido do inglês: "Rods and Rings", RR).6

Figura 1
Bastões de 3-10 µm e anéis com 2-5 µm de diâmetro espalhados no citoplasma da célula.

Seelig et al., ao realizarem a PAAC-HEp-2, detectaram o padrão RR no soro de uma paciente, o alvo antigênico desta reação foi identificado através de pesquisas em bancos de dados como IMPDH tipo 2, que é uma enzima chave na síntese de nucleotídeos púricos.7 No trabalho de Carcamo et al., culturas de células tratadas com ribavirina mostraram que esse medicamento tem habilidade de induzir a formação do padrão RR, já nos testes in vivo 25% dos pacientes VHC positivos tratados com ribavirina e interferon alfa tinham anticorpos anti-RR, enquanto nenhum dos não tratados desenvolveram este padrão.8

Nos mamíferos existem duas isoformas dessa enzima: a IMPDH1 e a IMPDH2. Enquanto a IMPDH1 é expressa constitutivamente em células normais, a expressão e a atividade da IMPDH2, por outro lado, está aumentada em células malignas.8 Sendo assim, as células HEp-2 por serem originadas de carcinoma laríngeo humano, apresentam expressão e atividade aumentadas da enzima IMDH2.

A enzima IMPDH2 agregada ou modificada em forma de RR, nesses pacientes tratados com inibidores da enzima, como a ribavirina, pode tornar-se antigênica e induzir uma resposta autoimune. É possível que o interferon alfa estimule a ocorrência de reatividade anti-RR aparentemente induzida pela ribavirina.6-8

Keppeke et al. realizaram um estudo longitudinal e analisaram amostras de 597 pacientes utilizando a técnica de IFI em lâminas HEp-2. O padrão RR foi observado em 14,1% dos 342 pacientes portadores do VHC, e nenhum dos 117 pacientes não portadores do VHC apresentou tal padrão. Em relação ao tratamento, anticorpos anti-RR estavam presentes em 38% dos 108 pacientes recebendo interferon alfa e ribavirina, mas nenhum dos 26 pacientes recebendo interferon alfa ou ribavirina isoladamente, nem os 166 pacientes não tratados apresentaram RR. Neste estudo observou-se a presença de anticorpos anti-RR apenas após o início do tratamento, começando a aparecer já no primeiro mês em 6% dos pacientes, porém no sexto mês mais de 47% das amostras testadas apresentaram o padrão RR. Outro dado relevante deste trabalho foi que entre os pacientes anti-RR positivos, 77% não responderam ao tratamento, já entre os anti-RR negativos a taxa foi de 64%, sendo assim esse padrão não está relacionado ao sucesso da terapia medicamentosa.8

Quando se trata do padrão RR, existe discrepância nos resultados obtidos na PAAC-HEp-2 por IFI utilizando lâminas de diferentes fabricantes, e isso permanece sendo uma questão não resolvida completamente, mas podem advir de diferenças nas condições de cultura, processamento das amostras, ou ambos.7,8 Essa dificuldade foi encontrada também em nosso laboratório, já que ao se deparar com tal padrão, até então desconhecido, foi necessário confirmá-lo com lâminas de diversas marcas comerciais, porém observou-se a formação do padrão RR apenas nas lâminas de uma das marcas utilizadas, gerando assim, dúvida quanto à sua relevância. De fato, na maioria das lâminas HEp-2, amostras de soros positivos para o padrão RR produzem um padrão citoplasmático pontilhado não específico ou não apresentam nenhuma reação relevante.6

A identificação de um novo autoanticorpo associado a uma dada patologia pode contribuir para o entendimento da sua fisiopatologia e pode enriquecer o arsenal de testes diagnósticos para essa doença.6 Por isso, é importante que novos estudos sejam realizados, afim de compreender o significado clínico desse padrão citoplasmático.

Os dados apresentados neste trabalho mostraram que esses anticorpos associados ao padrão RR estão fortemente relacionados com o tratamento da hepatite C e que a ocorrência de reatividade anti-RR é promovida pela terapia combinada com interferon alfa e ribavirina e sua frequência aumenta de acordo com a duração do tratamento. Porém, o mesmo não se observa quando esses fármacos são utilizados separadamente. Além disso, trabalhos anteriores mostraram que não há relação entre esse padrão e parâmetros demográficos, duração do diagnóstico de VHC, padrão de resposta ao tratamento, genótipo do VHC ou carga viral.8

Referências

  • 1Silva AL, Vitorino RR, Esperidião-Antonio V, Santos ET, Santana LA, Henriques BD, et al. Hepatites virais: B, C e D: atualização. Rev Bras de Clin Med. 2012;10:206–18.
  • 2Ministério da Saúde (Org.). Protocolo Cínico e Diretrizes Terapêuticas para Hepatite Viral C e Coinfecções. Brasília, 2012.
  • 3Hoofnagle JH, Seeff LB. Peginterferon and Ribavirin for Chronic Hepatitis C. N Engl J Med. 2006;355:2444–51.
  • 4Choo QL, Kuo G, Alter HJ, Gitnick GL, Redeker AG, Purcell RH, et al. An assay for circulating antibodies to a major etiologic virus of human non-A, non-B hepatitis. Science. 1989;244:362–4.
  • 5Mori K, Ikeda M, Ariumi Y, Dansako H, Wakita T, Kato N. Mechanism of Action of Ribavirin in a Novel Hepatitis C Virus Replication Cell. Virus Res. 2011;157:61–70.
  • 6Carcamo WC, Satoh M, Kasahara H, Terada N, Hamazaki T, Chan JY, et al. Induction of Cytoplasmic Rods and Rings Structures by Inhibition of the CTP and GTP Synthetic Pathway in Mammalian Cell. PloS ONE. 2011;6:1–12.
  • 7Seelig HP, Appelhans H, Bauer O, Bluthner M, Hartung K, Schranz D, et al. Autoantibodies against Inosine-5'-Monophosphate Dehydrogenase 2 - Characteristics and prevalence in Patients with HCV-Ifection. Clin Lab. 2011;9:753–65.
  • 8Keppeke GD, Nunes E, Ferraz ML, Silva EA, Granato C, Chan EK, et al. Longitudinal Study of a human drug-induced model of autoantibody to cytoplasmic rods/rings following HCV therapy with ribavirin and interferon-α. Plos ONE. 2012;7:1–9.
  • Trabalho realizado no Serviço de Apoio diagnóstico e Terapêutico (SADT) do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP-Unioeste).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2013
  • Aceito
    28 Jan 2014
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