Open-access Orientações preliminares da Sociedade Brasileira de Reumatologia para avaliação e tratamento da tuberculose infecção latente em pacientes com artrite reumatoide na indisponibilidade do teste tuberculínico

Introdução

A detecção e o tratamento da tuberculose infecção latente (TBIL) nos indivíduos com maior risco de progressão para tuberculose doença (TB) são estratégias recomendadas pela Organização Mundial de Saúde para controle dessa enfermidade. O teste tuberculínico, que usa o PPD (do inglês purified protein derivative), é um meio amplamente incorporado à prática clínica para diagnóstico de TBIL. Pacientes com artrite reumatoide têm risco aumentado para desenvolvimento de TB ativa, sobretudo quando em tratamento com biológicos inibidores do TNF-α. O Consenso 2012 da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) para tratamento de artrite reumatoide recomenda rastreamento e, quando indicado, tratamento de TBIL em todo paciente candidato ao uso de qualquer agente biológico.

O rastreamento inclui, além de avaliação do risco epidemiológico, radiografia do tórax e teste tuberculínico. O tratamento de TBIL, após exclusão de TB doença, consiste em isoniazida, na dose de 5-10 mg/kg/dia, máximo de 300 mg/dia, por seis meses. Está indicado nos pacientes com teste tuberculínico ≥ 5 mm, positividade ao Igra (do inglês interferon-γ release assays), alterações radiográficas compatíveis com TB prévia ou contato próximo com caso de TB. O tratamento da TBIL (quimioprofilaxia) deve ser instituído pelo menos um mês antes do início do biológico, porém excepcionalmente ambos os medicamentos podem ser iniciados concomitantemente, quando a urgência sintomática da situação o exigir.

Em setembro de 2014, o Ministério da Saúde, por meio da Coordenação Geral do Programa Nacional de Controle da Tuberculose, publicou nota (n° 8 / CGPNCT / DEVEP / SVS / MS, de 10/09/2014) em que informou dificuldades na aquisição do PPD, por indisponibilidade no mercado internacional, o que deve implicar desabastecimento do sistema de saúde brasileiro, ainda sem previsão de normalização. A indisponibilidade do teste tuberculínico já é efetivamente percebida na rede assistencial. Por considerar a situação em curso, a exigir um rápido posicionamento com vistas a orientar a prática clínica, a Comissão de Artrite Reumatoide da SBR decidiu por divulgar as seguintes orientações preliminares, que foram elaboradas por consenso de especialistas. A Comissão sugere consulta às referências selecionadas, que estendem as discussões aqui desenvolvidas.1-12

As recomendações para avaliação e tratamento de tuberculose - infecção latente em pacientes com artrite reumatoide são diferentes quando do uso de inibidores do fator de necrose tumoral alfa e de biológicos com outros mecanismos de ação?

Há diferença no risco de reativação de TB quando do uso de inibidores do TNF-α, que carreiam risco aumentado – sobretudo os anticorpos monoclonais – na comparação com outros biológicos não inibidores do TNF-α. Todavia, o consenso 2012 da SBR para tratamento de artrite reumatoide, em virtude da alta prevalência de TB em nosso meio e de relatos de reativação da doença na vigência de tratamento imunossupressor, recomendou o rastreamento de TBIL ao se usarem quaisquer DMCD biológicas.

As bulas de alguns dos biológicos não inibidores do TNF-α, como o tocilizumabe e o abatacepte, também trazem recomendação para rastreamento de TBIL previamente ao uso do medicamento. Assim, por considerar até potenciais implicações médico-legais, a SBR opta, no momento, por manter recomendações idênticas para avaliação e tratamento de TBIL, quando do uso de quaisquer DMCD biológicas no tratamento da artrite reumatoide. Essas recomendações são extensíveis ao uso de corticoide em dose equivalente a prednisona ≥ 15 mg/dia, por mais de um mês, em indivíduos com mais de 65 anos.

O que deve ser considerado epidemiologia positiva para tuberculose?

O contato com caso bacilífero de TB pulmonar ou de vias aéreas é o elemento epidemiológico fundamental. O risco de adquirir TBIL mediante contato com doente bacilífero é aumentado por condições como contato intradomiciliar, especialmente entre os que compartilham do mesmo dormitório; maior tempo de exposição; exposição em locais com pouca ventilação; presença de cavitação na radiografia do tórax do caso-índice; baciloscopia direta positiva e maior quantidade de bacilos no escarro do caso-índice. São considerados indivíduos com risco epidemiológico acrescido aqueles expostos a situações de convívio com alta carga de doença, a saber, profissionais de saúde, presidiários, moradores de albergues ou asilos, usuários de drogas injetáveis.

O risco de desenvolver TB doença é maior nos primeiros dois anos após a infecção. Contatos de indivíduos bacilíferos têm risco aumentado de desenvolver TB doença quando em situações de extremos de idade (≤ 10 anos ou > 60 anos), imunossupressão, exposição intradomiciliar e exposição a doentes com baciloscopia ou cultura do escarro positiva. Teste tuberculínico ≥ 5 mm também é fator de risco para desenvolvimento de TB doença nos contatos. A principal condição clínica associada à progressão de TBIL para TB doença é a coinfecção por HIV, particularmente quando LT-CD4+ ≤ 200 cel/mm3. São outras condições clínicas de risco para progressão de TBIL a TB doença: uso de inibidor do TNF-α, diabete melito, insuficiência renal crônica dialítica, neoplasias malignas, imunossupressão associada a transplante de órgãos, desnutrição; alterações na radiografia torácica – especialmente lesões fibróticas em zonas superiores (com ou sem nódulos calcificados ou espessamento pleural) –sugestivas de sequela de TB pulmonar, sem tratamento prévio.

Pacientes com artrite reumatoide, quando do uso de imunobiológicos, com história positiva de contato com caso de tuberculose pulmonar devem receber tratamento para tuberculose - infecção latente sem teste tuberculínico?

Sim. Recomenda-se proceder com o tratamento de TBIL sem o teste tuberculínico nos contatos de casos de TB pulmonar, quando do uso de inibidores do TNF-α. Também devem receber tratamento para TBIL, independentemente do teste tuberculínico, os indivíduos em uso de inibidor do TNF-α, com radiografia sugestiva de sequela de TB pulmonar prévia, não tratada. Considera-se que o benefício da prevenção de TB doença nesses casos supera os riscos do tratamento preventivo.

Pacientes com artrite reumatoide, quando do uso de imunobiológicos, com história negativa de contato com caso de tuberculose pulmonar devem receber tratamento para tuberculose - infecção latente sem teste tuberculínico?

Uma história negativa de contato não exclui TBIL. Recomenda-se, nesses casos, a feitura de Igra para diagnóstico da infecção latente, na falta do teste tuberculínico. Indisponíveis ambos os testes, a decisão de tratamento de TBIL deve ser individualizada e considerar riscos e benefícios. Na avaliação do potencial benefício do tratamento, considerar os elementos discutidos (acima) na questão sobre epidemiologia positiva para tuberculose. Particularmente, avaliar risco epidemiológico acrescido (alta carga de doença no ambiente de convívio) e sinergismo de fatores de risco para progressão a TB doença.

Na valoração do risco associado ao tratamento, considerar o potencial hepatotóxico da isoniazida, especialmente nos indivíduos com idade > 35 anos, em usuários frequentes de álcool, nos pacientes com provas hepáticas previamente anormais e naqueles em uso concomitante de outras drogas hepatotóxicas. Entretanto, no geral, hepatopatia por isoniazida não é frequente. E o uso concomitante de drogas hepatotóxicas não é contraindicação absoluta à isoniazida. Todavia, requer-se monitoração das provas de função hepática.

Por fim, deve-se considerar o potencial para indução de resistência microbiana pelo uso indiscriminado de isoniazida. Caso, mediante avaliação, julgue-se desnecessário tratar TBIL, recomenda-se monitoração clínica mensal para detecção precoce de TB ativa, com especial atenção para sinais como tosse, febre, sudorese e perda de peso. A investigação dos pacientes sintomáticos deve ser estendida, para incluir no mínimo radiografia do tórax, além de baciloscopia e cultura do escarro; considerar avaliação especializada (por pneumologista, tisiologista ou infectologista).

O desempenho do Igra para diagnóstico de tuberculose - infecção latente é comparável ao do teste tuberculínico?

A acurácia do Igra é semelhante ou superior à do teste tuberculínico para diagnóstico de TBIL. Há potencial vantagem do Igra nos indivíduos vacinados com BCG e nos imunodeprimidos em decorrência de doença e/ou tratamento, situações em que a acurácia do teste tuberculínico diminui em razão de falsos positivos e falsos negativos, respectivamente. Existem questionamentos sobre o desempenho do Igra em populações com alta prevalência de TB. Há também a possibilidade de resultados indeterminados, que devem ser avaliados com cautela, diante dos quais a conduta do tratamento de TBIL deve ser considerada. Apesar de tais considerações, ante a atual indisponibilidade do teste tuberculínico, a SBR propugna a incorporação do Igra no rol de procedimentos do Sistema Único de Saúde e da saúde suplementar.

Na falta do teste tuberculínico, se houver disponibilidade de Igra, esse está indicado para diagnóstico de tuberculose - infecção latente, em todos os pacientes com artrite reumatoide, quando do uso de imunobiológico?

Sim. O Igra está indicado nas mesmas situações em que estaria o teste tuberculínico e o substitui. Portanto, caso disponível, recomenda-se usar Igra para rastreamento de TBIL em todo paciente com artrite reumatoide, quando do uso de inibidor do TNF-α, na falta do teste tuberculínico. Se houver disponibilidade limitada, recomenda-se priorizar a feitura do IGRA nos pacientes com história negativa ou incerta de contato com caso de TB pulmonar.

Com o uso prolongado do inibidor do fator de necrose tumoral alfa ou se houver troca de biológicos, nos pacientes que completaram tratamento para tuberculose - infecção latente no passado, há necessidade de repetir o tratamento com isoniazida?

Em regra, uma vez tratada de forma completa e eficaz, TBIL não requer retratamento. Exceção ocorre quando há conhecida reexposição ao M. tuberculosis. Nesse caso o retratamento é indicado. Pode-se, com base em opinião de especialistas, considerar o retratamento periódico, a cada dois ou três anos, em regiões de alta prevalência de TB, quando há persistência do estado de imunodepressão.11 Todavia, um estudo brasileiro avaliou a eficácia de longo prazo do rastreamento e tratamento de TBIL em 202 pacientes com artrite reumatoide em uso de diferentes inibidores do TNF-α.13 Nesse protocolo, não houve retratamento periódico para TBIL ou repetição do teste tuberculínico em pacientes assintomáticos, que assim permaneceram durante mais de três anos de acompanhamento.

Pacientes sintomáticos respiratórios, com história positiva de contato com caso de tuberculose pulmonar, devem receber tratamento para tuberculose - infecção latente, quando do uso de inibidor de fator de necrose tumoral alfa?

Os esquemas profiláticos são contraindicados ante a possibilidade de TB doença, por ineficácia e/ou potencial indução de resistência microbiana. O tratamento de TBIL pressupõe exclusão de TB ativa em todos os casos. Contatos sintomáticos respiratórios requerem investigação estendida. Recomenda-se, nesses casos, avaliação por especialista em TB (pneumologista, tisiologista ou infectologista), com tratamento pleno, quando indicado, previamente ao uso do TNF-α.

Pacientes com história de contato com caso de tuberculose multirresistente, uma vez excluída tuberculose doença, devem receber tratamento para tuberculose - infecção latente, quando do uso de drogas modificadoras do curso da doença biológica?

Não se recomenda tratamento de TBIL em contatos de TB multirresistente. Nos contatos sintomáticos, deve-se investigar tuberculose. Nos assintomáticos, excluída TB, recomenda-se acompanhamento clínico mensal e radiográfico semestral, nos primeiros dois anos. Não fazer profilaxia com isoniazida. Considerar uso de biológico não inibidor do TNF-α, nesses casos, independentemente de teste tuberculínico ou Igra.

Referências

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    » http://www.projetodiretrizes.org.br/ans/diretrizes/tuberculose_infeccao_latente-tratamento.pdf.
  • 11 Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Sociedade Brasileira de Infectologia. Sociedade Brasileira de Reumatologia. Diretrizes clínicas na saúde suplementar. Tuberculose infecção latente: diagnóstico. 2011. Disponível em: http://www.projetodiretrizes.org.br/ans/diretrizes/tuberculose_infeccao_latente-diagnostico.pdf [Acesso em 27/10/2014].
    » http://www.projetodiretrizes.org.br/ans/diretrizes/tuberculose_infeccao_latente-diagnostico.pdf
  • 12 Souto A, Maneiro JR, Salgado E, Carmona L, Gomez-Reino JJ. Risk of tuberculosis in patients with chronic immune-mediated inflammatory diseases treated with biologics and tofacitinib: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials and long-term extension studies. Rheumatology (Oxford). 2014;53:1872-85
  • 13 Bonfiglioli KR, Ribeiro ACM, Moraes JCB, Saad CGS, Souza FHC, Calich AL, et al. LTBI screening in rheumatoid arthritis patients prior to anti-TNF treatment in an endemic area. Int J Tuberc Lung Dis. 2014;18:905-11

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2015
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