Resumos
Analisa o Programa Nacional de Bolsa Escola, com base no acompanhamento das primeiras iniciativas e desdobramentos, de agosto de 2001 a novembro de 2002, procurando sustentar a opinião de que foi idealizado como proposta educacional de ampla envergadura, que ultrapassa os muros da escola. Em pelo menos três níveis essa proposta se realiza: ao favorecer o acesso e a permanência de crianças pobres à escola, empreende ações afirmativas de cunho universalista; ao exigir o desenvolvimento de ações socioeducativas, pode promover atividades que valorizem a diversidade cultural das populações locais; e ao propor o acompanhamento das ações por um conselho formado por membros da comunidade, encaminha um processo de construção da cidadania.
bolsa escola; política de ação afirmativa
The text analyses the National Programme of School Scholarships based on an evaluation of the first initiatives and their ramifications, in the period from August 2001 to November 2002. It seeks to sustain the view that the Programme was planned as a wide-ranging educational proposal, which extrapolates the school walls. The proposal seeks to contribute on at least three levels. Firstly, by favouring poor children's access to and permanence in the school, it undertakes affirmative actions of a universalistic nature. Secondly, by requiring the development of socio-educational actions, it is able to promote activities which give value to the cultural diversity of local populations. And thirdly, by proposing to follow up the actions by means of a council made up of members of the community it sets in motion a process aimed at the construction of citizenship.
school scholarship; policy of affirmative action
ESPAÇO ABERTO
O Programa Nacional de Bolsa Escola e as ações afirmativas no campo educacional
The National Programme of School Scholarships and affirmative action in the educational field
Ana Lúcia Valente
Universidade de Brasília, Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária
RESUMO
Analisa o Programa Nacional de Bolsa Escola, com base no acompanhamento das primeiras iniciativas e desdobramentos, de agosto de 2001 a novembro de 2002, procurando sustentar a opinião de que foi idealizado como proposta educacional de ampla envergadura, que ultrapassa os muros da escola. Em pelo menos três níveis essa proposta se realiza: ao favorecer o acesso e a permanência de crianças pobres à escola, empreende ações afirmativas de cunho universalista; ao exigir o desenvolvimento de ações socioeducativas, pode promover atividades que valorizem a diversidade cultural das populações locais; e ao propor o acompanhamento das ações por um conselho formado por membros da comunidade, encaminha um processo de construção da cidadania.
Palavras-chave: bolsa escola; política de ação afirmativa
ABSTRACT
The text analyses the National Programme of School Scholarships based on an evaluation of the first initiatives and their ramifications, in the period from August 2001 to November 2002. It seeks to sustain the view that the Programme was planned as a wide-ranging educational proposal, which extrapolates the school walls. The proposal seeks to contribute on at least three levels. Firstly, by favouring poor children's access to and permanence in the school, it undertakes affirmative actions of a universalistic nature. Secondly, by requiring the development of socio-educational actions, it is able to promote activities which give value to the cultural diversity of local populations. And thirdly, by proposing to follow up the actions by means of a council made up of members of the community it sets in motion a process aimed at the construction of citizenship.
Key-words: school scholarship; policy of affirmative action
Não é tarefa fácil analisar um programa social novo, como é o Programa Nacional de Bolsa Escola, com apenas dois anos de implantação. Entretanto, na condição de assessora,1 da secretaria responsável por esse programa, institucionalmente vinculada ao Ministério da Educação (MEC), acompanhei de perto as primeiras iniciativas e desdobramentos, de agosto de 2001 a novembro de 2002.
Se isso me coloca numa posição privilegiada para proceder a uma análise preliminar da proposta levada a cabo, parece-me legítimo, no entanto, indagar sobre a possibilidade de proceder a uma análise equilibrada sobre o processo de implantação e início de consolidação desse programa. Poderia ser aventado que não possuo o distanciamento necessário para isso. A meu favor, argumentaria que o exercício do ofício de antropólogo exige esse movimento, que se segue ao mergulho na situação investigada, sem contudo ser neutro. Como se sabe, é a experiência no "trabalho de campo" e o olhar treinado que permitem interpretações densas de fatos observados. Embora não tenha desenvolvido uma pesquisa sistemática, a experiência vivida, tão diferente dos embates acadêmicos, provocava imediato estranhamento da situação.2
Porém, em decorrência dessa admitida não-neutralidade, outro impedimento poderia ser listado: o fato de ter sido partícipe nessa gestão não me credenciaria para propor uma avaliação descomprometida. Em um momento em que o país respira outros ares, inaugura novo marco histórico e há expectativas de mudanças substantivas na condução das políticas na área social, passa a ser recorrente a prática de menosprezar o passado, por mais que isso seja negado no discurso.
De tempos em tempos, essa prática legitimada pelo ideário do "novo total" tende a ganhar estatuto de verdade, desconsidera o conhecimento acumulado e percebe a realidade de maneira míope e maniqueísta. Mas é reconhecida a importância que as lições do passado nos oferecem para balizar ações futuras. Mesmo porque a realidade é mais complexa e ultrapassa eventuais diferenças entre "governo" e "oposição". Para além das aparências e das divisões partidárias, importa conhecer as concepções de mundo e os compromissos sociais e políticos de setores que partilham igual posição no gradiente ideológico e se filiam à mesma linha teórica que propugna a transformação da sociedade.
Partindo dessas premissas, pretendo sustentar a opinião de que o Programa Nacional de Bolsa Escola foi idealizado como proposta educacional de ampla envergadura, que ultrapassa os muros da escola. Essa proposta se realiza em pelo menos três níveis: ao favorecer o acesso a e a permanência de crianças pobres na escola empreende ações afirmativas de cunho universalista; ao exigir o desenvolvimento de ações socioeducativas pode promover atividades que valorizem a diversidade cultural das populações locais; e ao propor o acompanhamento das ações por um conselho formado por membros da comunidade encaminha um processo de construção da cidadania. O desafio maior, para a consecução desses objetivos, se dará no âmbito da sociedade civil. No atual quadro que promete mudança na correlação de forças existentes no Estado, a expectativa é que sua proposta seja aprimorada.3
O formato do programa e o perfil da equipe de implantação
O Programa Nacional de Bolsa Escola (PNBE), herdeiro do Programa Garantia de Renda Mínima para "Toda criança na escola" (PGRM), de 10 de dezembro de 1997, foi implantado em março de 2001.4 Seu objetivo é garantir que a totalidade da população de 7 a 14 anos tenha facilitado o seu acesso à escola, mediante a concessão de bolsas que complementem o orçamento mensal de famílias pobres. Além disso, ao longo de dez anos, propôs-se a acompanhar todo o processo de escolaridade das crianças contempladas com a bolsa, na faixa de 6 a 15 anos, desde que matriculadas no ensino fundamental, em todo o país.
O critério para a seleção dessas famílias é de que tenham renda de até 90 reais per capita. O valor da bolsa, por criança em idade escolar, foi definido em 15 reais e o máximo, por família, 45 reais, ou seja, referente ao pagamento de bolsa para três crianças. O cadastramento das famílias e das crianças é de responsabilidade das prefeituras municipais, que também se comprometem, como contrapartida da adesão ao Programa, a desenvolver ações socioeducativas em horário complementar ao das aulas, sem qualquer repasse financeiro. Além disso, os responsáveis pela educação municipal responsabilizam-se pelo controle da freqüência escolar das crianças beneficiadas, devendo ser garantida sua presença em 85% das aulas previstas. Para acompanhar a gestão do programa nos municípios impôs-se a criação dos conselhos de controle social, que devem ser compostos por mais de cinqüenta por cento dos membros pertencentes à sociedade civil.
Concebido e redimensionado na área federal da educação, na perspectiva da descentralização administrativa, o PNBE reiterou a política de universalização do ensino fundamental, definida na gestão do ministro Paulo Renato Souza. Foi o programa social de maior visibilidade do governo Fernando Henrique Cardoso, mesmo que houvesse dúvidas internas, manifestadas discretamente, sobre a capacidade de mobilização das prefeituras brasileiras por uma equipe pequena, na maioria formada por jovens de 20 a 35 anos. Pouco familiarizados com a administração pública ou com conceitos formulados no campo educacional, manifestavam vontade de enfrentar desafios, tinham espírito de aventura e, em certa medida, eram movidos por ideais de mudança da situação das famílias pobres.
A Secretaria Nacional do Programa Bolsa Escola (SNPBE),5 composta por três diretorias,6 alcançou em pouco tempo o que parecia impossível: as metas de adesão e de cadastramento de famílias com crianças em idade escolar foram atingidas rapidamente. Viajando pelo País nas "Caravanas do Bolsa Escola", sensibilizando prefeitos e a comunidade em reuniões regionais, a equipe de implantação garantiu a adesão de 90% dos municípios brasileiros em oito meses.
Segundo Affonso Romano de Sant'Anna, fazendo referência ao tempo em que dirigiu a Biblioteca Nacional, "na administração pública a roda é quadrada e mesmo assim você tem de fazer a carruagem andar" (apud Gramacho, 2003). Parafraseando-o, talvez essa possa ser uma das explicações para, ao final de 2002, o PNBE contar com a adesão de 5.545 dos municípios brasileiro (99% deles) e com quase nove milhões de crianças cadastradas: o perfil da equipe constituído por jovens, sem maiores preocupações em ferir suscetibilidades políticas, mesmo porque amparados por uma proposta que favorecia diretamente a população, fez a administração pública andar, algumas vezes aos trancos, provocados pelo impacto da roda quadrada. As arestas eram aparadas pelos mais velhos e experientes.7
O impacto sobre as economias locais e sobre a gestão municipal
O Programa Bolsa Escola é capaz de intervir no processo de construção de concepções de mundo e de vida que são menos sujeitas às oscilações estruturais. De um lado, as bolsas concedidas impulsionam as economias locais, especialmente dos municípios pobres. De outro lado, o programa busca romper com a histórica relação entre políticas educacionais e práticas paternalistas e clientelistas, devolvendo à comunidade a responsabilidade na definição dos seus próprios rumos e de suas portas de saída.
O montante do dinheiro em circulação nesses municípios, antes inexistente, representa uma receita importante para o pequeno comércio. Pode potencializar, ainda, negociações vantajosas para o consumidor. Comerciantes de alguns municípios ofereciam crédito às mães ou responsáveis pelas crianças bolsistas. O uso do cartão magnético, sem intermediários, para a retirada do dinheiro referente à bolsa, conferia-lhes liberdade de compra e, em muitos casos, era usado como documento de identidade daqueles que passavam a exercitar sua cidadania.
Esse sistema de pagamento, através de cartões magnéticos, inovador em todo o mundo, operado pela Caixa Econômica Federal, com tecnologia de segurança, guarda também informações cadastrais sobre as famílias e as crianças, permitindo maior foco sobre a população pobre. Com isso, os governos federal e municipal são capazes de promover outras ações sociais voltadas para o seu interesse e necessidade.8
Durante dois anos, sem maior burocracia e intermediação do poder público, os recursos envolvidos no programa de mais de dois bilhões de reais foram parar diretamente nas mãos dessas famílias pobres. Salvo nos casos de fraude, denunciados amplamente pela imprensa, impetrada direta ou indiretamente pelo gestor municipal. Por outro lado, muitos prefeitos reclamaram das exigências do programa, que os expunha ante o eleitorado e não repassava qualquer recurso suplementar para acompanhar o necessário controle do cadastramento9 e da freqüência escolar, bem como para o desenvolvimento das ações socioeducativas.
Em ambos os casos, ante a fraude ou ante a preocupação de fazer o programa dar certo, como resposta houve a mobilização da comunidade, quer denunciando a conduta administrativa incorreta, quer mobilizando os recursos disponíveis, materiais e humanos para cadastrar famílias e cumprir as demais exigências da adesão, a se destacar o oferecimento de atividades para as crianças em horário complementar ao das aulas. Nesse último caso, na ausência de apoio para financiá-las, as ações empreendidas por professores em várias escolas passaram a merecer reconhecimento. Pode-se também verificar o envolvimento dos pais e dos moradores do município nessas atividades, muitas vezes socializando o conhecimento não-escolarizado e a cultura local, que passaram a ser valorizados.
A filiação do programa ao neoliberalismo
Desde a sua implantação, o PNBE foi alvo de discussão sobre a sua paternidade, porque inspirado em experiências anteriores, especialmente aquelas desenvolvidas em Campinas, Ribeirão Preto e Brasília. No entanto, esse programa demanda a discussão de questões conceituais que ultrapassam as divergências sobre sua paternidade, seu significado e sua projeção no tempo e no espaço. Afinal, deve-se admitir que, no âmbito federal, a responsabilidade sobre sua implantação dispensa controvérsia.
Setores da chamada esquerda, na época, foram ásperos na crítica ao valor da bolsa. Considerando-o irrisório, apelidaram o programa de "bolsa esmola" e insistiram na denúncia de seu caráter neoliberal. Tudo indica que tais setores tinham como referência as experiências de governos estaduais e municipais vinculados ao PT, que propunham valores aproximados a um salário mínimo por família, algo em torno de 180 reais. Uma análise mais detida e menos motivada pelas exigências da mobilização política militante indicaria que essas experiências pontuais não escapavam da lógica neoliberal compensatória e que as características sociais (históricas, econômicas, culturais) e ambientais diferenciadas da realidade brasileira, em conexão com a realidade global estavam sendo dimensionadas com pouca propriedade.
No tocante ao ideário neoliberal, sabe-se que ele busca justificar algumas das condições materiais do capitalismo atual, especialmente o desemprego estrutural, dissimulando o fato de serem formas contemporâneas de exploração e de dominação. Como estratégia de controle da tensão social ante esse quadro foram propostas medidas paliativas que favorecessem o ingresso de amplas parcelas populacionais no processo societário de inclusão perversa ou de exclusão, compreendidas como fazendo parte da lógica interna do capitalismo. Segundo Soares, para atenuar as críticas ao programa de transformação estrutural, adequado ao padrão de desenvolvimento neoliberal, o Banco Mundial abriu uma linha de "financiamento de programas sociais compensatórios voltados para as camadas mais pobres da população, destinados a atenuar as tensões sociais geradas pelo ajuste" (1996, p. 27).
A compreensão de que a implementação de políticas compensatórias serve aos interesses de uma lógica societária, limitando-se a aliviar tensões sociais e a propor medidas paliativas, não deve nos fazer perder de vista o espaço da contradição. De fato, essas políticas receberam apoio na gestão FHC. Contudo, isso não pode nos conduzir a negar medidas de governantes que aderiram ao ideário neoliberal. Compreender o movimento do capitalismo pode permitir o redirecionamento dessas propostas na perspectiva da transformação e garantir o controle e a influência sobre as políticas públicas. É também esse movimento que permite a compreensão do discurso governamental de democratização do ensino no Brasil e no mundo. Percebe-se que a expansão escolar tem respondido apenas à demanda quantitativa por escolas em todos os níveis de ensino. Ou seja, são multiplicados os números de escolas, sem a devida preocupação com o tipo de ensino que vem sendo oferecido.
O Programa Bolsa Escola, tal como foi concebido, buscou estabelecer a coerência entre esse discurso e a prática. Representou a possibilidade da aplicação dos recursos disponíveis em relação à demanda existente, não se circunscrevendo a alguns municípios e/ou estados, o que é indicativo da pobreza de parte bastante representativa da população brasileira. O seu alcance nacional pressupunha o conhecimento do caráter plural da realidade brasileira. Essa pluralidade exige, inclusive, que se considere o valor da bolsa na perspectiva daqueles que possuem uma renda per capita de até 90 reais. Para quem vive dessa renda, o valor da bolsa contribui decisivamente no orçamento mensal.
Com base em dados oficiais disponíveis e de algumas projeções foi possível definir uma cota de bolsas para cada município brasileiro. Muitos municípios solicitaram um número bem maior de bolsas e alguns alegaram que não havia famílias e crianças suficientes para atender aos critérios de concessão. Razões operacionais foram alegadas para que não fosse feito o remanejamento de bolsas de um município para outro, o que dificultou ainda mais a universalização do programa. Entretanto, por trás dessas razões estão: o conhecido questionamento sobre a confiabilidade desses dados e o fato de que as estatísticas são incapazes de acompanhar a dinâmica social, o que indica o progressivo empobrecimento populacional no país.
De qualquer maneira, sabe-se que há bolsões de miséria nas regiões Norte e Nordeste, onde a renda familiar, quando existe, está muito aquém de meio salário mínimo, o que exigiria um tratamento diferenciado, inclusive permitindo a concessão de bolsas com maior valor. Não se chegou a esse aprimoramento, o que tornaria a gestão do programa muito complexa e sujeita a entraves burocráticos. Implicaria envolver na definição dos critérios para a concessão das bolsas índices de desenvolvimento humano (IDH), custo de vida nas regiões brasileiras, características etnoculturais etc.
Numa situação ilustrativa quanto à atenção que deve ser dada às características específicas da população do país, pedagogos e antropólogos de Mato Grosso do Sul, envolvidos com ações para a educação escolar indígena, manifestaram preocupação com o impacto que o valor mínimo de 15 reais e máximo de 45 reais poderia provocar nas comunidades com as quais trabalham. Isso porque se tratava de quantia "alta", fora dos padrões locais, o que possibilitaria o surgimento ou a acentuação de problemas desestabilizadores da vida comunitária. Nesse caso, o valor da bolsa deveria ser menor? Vale lembrar que, sob administração petista, esse estado possui um programa de bolsa escola estadual, cujo valor é bem maior, ficando em torno de 180 reais.
Além das lacunas apontadas, das soluções pendentes e dos mecanismos de correção criados, outros desafios se impõem. As mudanças propostas no programa, no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003 - de concessão do benefício de 50 reais às famílias, independentemente do número de filhos - exigem as seguintes reflexões: a) o caráter relativo do benefício, pois, por exemplo, numa família com cinco crianças em idade escolar, o valor por criança corresponderia a 10 reais, menor do que os 15 reais anteriores e, na lógica da gestão atual, um valor ainda baixo; b) o controle da freqüência escolar, que é individual, e, na ausência de acompanhamento qualitativo da presença dos alunos, a superação do limite de faltas de uma criança, entre cinco irmãos, poderá comprometer a concessão do benefício; c) a mobilização da família para que todos os filhos em idade escolar estudem, já que o valor da bolsa independe do número de filhos; d) o controle dessas e outras situações pelo gestor municipal.
As ações socioeducativas10
A análise de como o conceito de ações socioeducativas foi construído, em particular nos documentos produzidos pelo MEC, revela, por um lado, a sua imprecisão e a falta de consenso entre as várias áreas de competência institucional; por outro, para que esse diagnóstico pudesse ser superado, impunha-se a articulação desse conceito à compreensão do que está previsto ou foi estabelecido na política educacional do país, redimensionando-o. Sabe-se que desde a formulação do suporte legal do PGRM a ação socioeducativa foi definida diferentemente, em particular no tocante à sua abrangência: da acepção sugerida pelo Estatuto da Criança, associada a medidas corretivas de atos infracionais, passando pela noção de assistência socioeducativa, até a menção às ações socioeducativas. Mesmo que o detalhamento dessas ações no PGRM não permitisse ambigüidades, inclusive porque algumas atividades foram listadas nessa rubrica, não havia consenso sobre o seu significado e sobre a sua base filosófica. No Programa Nacional de Bolsa Escola, um debate nessa direção foi encaminhado no intuito de compreender as ações socioeducativas, como:
Toda e qualquer atividade que possa desenvolver o potencial individual da criança e contribuir para que ela se torne uma cidadã consciente e participante no contexto social em que vive [...].
O objetivo destas atividades é ampliar os horizontes dos alunos, das famílias e das comunidades mais carentes, para que seja possível estruturar e construir um projeto de vida, ainda na infância e adolescência. (Brunacci, 2001)
Entretanto, ainda que essa formulação representasse um avanço, na direção de se elaborar um conceito suficientemente abrangente e genérico que abarcasse e valorizasse a diversidade de experiências educacionais existentes no país - impedindo a construção de modelos preestabelecidos que pudessem atuar como camisas-de-força, inibidoras da criatividade -, esbarrava-se em um obstáculo prático. Isso porque, em virtude da própria abrangência e generalidade dessa tentativa preliminar de conceituação, era dificultada a busca de propostas que efetivassem a implementação dessas ações, especialmente nos municípios que aderiram ao PNBE. A articulação do conceito de ação socioeducativa à política educacional, politizando-o, parecia promover a sua delimitação.
Uma forma possível de articulação era, primeiramente, tomar a política educacional como dimensão definidora de metas e objetivos que se pretendia atingir nesse campo. Nessa dimensão, impunha-se também recuperar as proposições doutrinárias que norteiam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino fundamental (DCN) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Em seguida, considerar a implementação de ações socioeducativas como dimensão executiva. Nessa direção, seria possível considerar essas ações como atividades que concretizam o que estava definido na política educacional, buscando eliminar o dualismo11 teoria-prática, na medida em que uma não pode ser pensada sem a outra.
Levando-se em conta que a política educacional do MEC, sob a gestão de Paulo Renato Souza, perseguiu o objetivo de universalizar o ensino fundamental, com qualidade,12 o PNBE seria uma ação socioeducativa. Ou, visto de outro ângulo, uma instância de mediação, entre a política educacional e a instância em que essa política se concretiza. Esse papel de mediador do PNBE deveria ser, então, partilhado por outros programas sociais do governo federal e que eram desenvolvidos tanto pelo MEC como por outros ministérios. Não por acaso, percebia-se que em todos esses programas governamentais vinham sendo desenvolvidas atividades compreendidas como ações socioeducativas no PNBE. E, na medida em que, de acordo com a LDB, o locus do processo educativo dá-se em todas as dimensões da vida e da formação humana, por "natureza" social, todas as ações ministeriais em curso, a princípio, podiam e deviam ser consideradas como socioeducativas.
Entretanto, no que diz respeito à instância na qual a estratégia se concretiza, havia que se considerar os diferentes níveis em que isso se dá. O que significa dizer que, ao se perseguir a universalização do ensino fundamental, diversas ações institucionais poderiam ser empreendidas através das instâncias de mediação, desde aumentar o número de vagas até conceder um benefício financeiro para manter as crianças na escola - meta do PNBE. Mas é plural a maneira como essa política e essas ações seriam decodificadas, na prática, nos estados e municípios da Federação, tanto no campo institucional, da sociedade política, como no campo da sociedade civil.
Em razão disso, ao se procurar politizar o conceito de ação socioeducativa, articulando-o à política educacional, não cabia tergiversar na discussão sobre o poder e sobre a conformação do Estado - envolvendo sociedade política e sociedade civil, que se dá em diferentes patamares de representação (federal, estadual e municipal) e é marcada por conflitos e por interesses antagônicos. E, nesse caso, também não valia escamotear o fato de que se devesse tomar "partido": opções políticas deveriam ser feitas sobre o sentido e o significado que se podia imprimir a essas ações.
Dito de outra forma, para se manter as crianças na escola seria possível, por exemplo, garantir que o equipamento escolar fosse adequado, e não resta dúvida de que se trataria de uma ação que concretiza a política educacional. Mas apenas num nível, talvez o mais elementar e "mecânico", em que tal política ganharia concretude. A opção política para a superação desse nível poderia ser: estabelecer que essa ação fosse revestida de conteúdo significativo que implicasse o aprendizado, para além dos mediadores institucionais locais, os municípios, e que tivesse como foco não apenas a "comunidade escolar", mas a extrapolasse. Como decorrência dessa opção, tal aprendizado deveria fazer parte do planejamento pedagógico das escolas, considerando: a) o contexto social no qual estão inseridas, com base no diagnóstico de valores locais; b) as demandas da escola, do indivíduo, da família e da sociedade envolvente, ou seja, as demandas individuais e principalmente as coletivas; c) a mobilização dessas demandas, tomadas como prioritárias em diferentes momentos e com diferentes graus de intensidade, na perspectiva de se construir um projeto coletivo, calcado em processos participativos e democráticos. Na verdade, essa opção política fora feita, se considerarmos as Diretrizes Curriculares Nacionais - "que orientarão as escolas brasileiras dos sistemas de ensino, na organização, na articulação, no desenvolvimento e na avaliação de suas propostas pedagógicas" (Brasil, Conselho Nacional de Educação, 1998, p. 31).
Definida a direção política que se pretendia imprimir às ações socioeducativas, não se poderia desconsiderar a importância de que essa opção fosse partilhada. Desse modo, seria feita uma escolha que também exigiria a intervenção sobre as concepções de senso comum da "comunidade local" onde se pretendia atuar, definindo medidas para a sua formação e procurando conhecer aquelas em andamento. No caso do PNBE, como ação socioeducativa prioritária, impunha-se a "capacitação" (e talvez a reestruturação) dos conselhos de controle social, tendo em vista que a representação da sociedade civil (tomada em sentido largo) não corresponde, necessariamente, à participação democrática na construção de um projeto que atenda aos interesses da coletividade e que deve ser garantido e respaldado pela legislação. A formação/capacitação desses conselhos não poderia ser dissociada da implementação das ações socioeducativas, não apenas porque integrava o conjunto dessas ações, mas porque essa formação seria capaz de potencializar o re-direcionamento dessas atividades e estimular aquelas que vinham sendo desenvolvidas nessa perspectiva. Outra ação socioeducativa bastante estimulada pelo programa foi a alfabetização de adultos para a criação de um clima familiar favorável à presença e permanência das crianças nas escolas.
Nesse sentido, o PNBE, por ter a sua gestão descentralizada, abriu a possibilidade de potencializar experiências de mobilização comunitária que já vinham sendo empreendidas. Ou, dito de outra maneira, onde estava organizada, a sociedade civil passou a reivindicar ao poder público a legitimação de sua prática. Algumas dessas experiências foram descritas na publicação As boas notícias que o Brasil tem para contar - ações socioeducativas (Valente, 2002b),13 e muitas delas vinham sendo desenvolvidas muito antes da implantação do programa.
Por fim, a exigência de que os municípios instituam ações socioeducativas como contrapartida de sua adesão ao Programa Bolsa Escola, com a finalidade de oferecer atividades no período complementar ao das aulas, anuncia no horizonte próximo o envolvimento de toda a comunidade municipal na sua proposição, estimulando novas identidades positivas. Aponta também o passo crucial para a reforma da educação brasileira: a adoção do horário integral.
As ações afirmativas: desdobramentos
A proposta do Programa Bolsa Escola baseia-se numa concepção educativa que afirma a importância do trabalho para a formação humana. Considerar que se garanta, no âmbito da educação escolar, que todos tenham acesso ao conhecimento, não implica mera reação à crença no trabalho como salvação para o pobre/infrator. Isso representaria a negação do valor conferido ao trabalho por segmentos socioculturais desfavorecidos. Negaria também que o locus do processo educativo dá-se em todas as dimensões da vida, como já foi dito.
Essa compreensão de modo algum invalida ou pretende desvalorizar programas de erradicação do trabalho infantil. Mas não se pode perder de vista que o desemprego estrutural, apontado por estudiosos como característica da atual sociedade globalizada, exige um questionamento mais profundo sobre a manutenção do trabalho de crianças, numa situação em que o trabalho não é nem mesmo garantido a seus pais. De qualquer maneira, programas que tenham por objetivo reduzir as desigualdades regionais e elevar a qualidade de vida das populações mais carentes do país são todos válidos, necessários e bem-vindos, assim como devem ser analisados e conhecidos nas suas dinâmicas particulares.
O Programa Bolsa Escola expressa ainda a filosofia norteadora dos Parâmetros Curriculares Nacionais, especialmente no tocante aos temas transversais, o que nos remete a duas questões sociais que merecem atenção: a questão de gênero e o respeito à diversidade cultural. No primeiro caso, a valorização da mulher decorre da decisão política de que a bolsa seja preferencialmente recebida pela mãe da criança.
No tocante à segunda questão, registre-se o impacto desse programa entre os negros e os índios, que têm sido alvo de manifestações de preconceito e fazem parte, na maioria, dos segmentos menos favorecidos da população brasileira. Através das mencionadas ações socioeducativas, esses segmentos poderão beneficiar-se de programas de alfabetização e promoção de singularidades culturais. Quanto aos índios, a posição do MEC foi mais decisiva e, desde 1999, a Secretaria de Educação Fundamental promove uma política pública educacional para as escolas indígenas.14
No que diz respeito aos negros, em que pese não ter sido uma medida intencional, mas coerente com a posição do MEC, pode-se considerar que o PNBE desencadeou ação afirmativa, de caráter universal, ao anunciar e efetivar oportunidades educacionais para esse segmento, pelo simples fato de a linha de cor se confundir com a linha de classe no Brasil. Embora não disponha de dados mais precisos, em Salvador, capital do estado com maior população negra do país, segundo informações da Secretaria Municipal da Educação e da Cultura/SMEC, 99% das crianças beneficiadas pelo programa são negras.
Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, reconhecendo a justeza das propostas para uma política de ação afirmativa que reduza a extrema desigualdade racial no país, o então ministro Paulo Renato Souza (2001) assim se manifestou:
A luta pela igualdade de oportunidades tem norteado o trabalho do Ministério da Educação. Melhorar a situação dos pobres - e, entre os pobres, os mais desiguais, que são os negros e os pardos - é sinônimo, no Brasil de hoje, de universalizar e qualificar a educação pública, atender às populações rurais, diminuir as diferenças regionais, de raça, de renda e de gênero.
Segundo o ex-ministro, garantido o acesso ao ensino fundamental, principalmente de crianças negras e nordestinas, o Bolsa Escola foi criado para assegurar sua permanência na instituição escolar. Citando dados do IBGE, afirmou que se enquadram nos critérios do Programa cerca de dois milhões de famílias brancas e perto de quatro milhões de famílias negras e pardas. Finalizando o artigo, considera que as metas de inclusão cumpridas, tanto no ensino fundamental como no médio, se poderá prescindir da instituição de cotas raciais nas universidades.
De certa forma, contrariando a posição ministerial, a SNPBE pretendeu avançar para além da política universalista. Em dezembro de 2001, encaminhou15 para o Concurso Políticas da Cor no Ensino Superior, promovido pela UERJ/FORD, uma proposta de caráter específico para o tratamento da questão racial para as escolas de ensino fundamental brasileiras. O Projeto Bolsa Escola Cores,16 resumidamente, propunha a organização de um curso para capacitar universitários - em particular negros e descendentes - dos cursos de pedagogia normal superior e demais licenciaturas das instituições de ensino superior (IES) públicas. Esses são sabidamente os cursos que têm por clientela a população mais carente e cujos formandos têm a inserção profissional mais apropriada para: a) tornarem-se orientadores-facilitadores da questão racial nos cursos de origem, para possibilitar a incorporação e a universalização da temática, no quadro curricular; b) desencadearem um processo de mobilização e de sensibilização nas IES privadas/isoladas; c) se tornarem pesquisadores-iniciantes na interface educação/relações interétnicas; d) testarem metodologia e implantarem projetos de trabalho em municípios pré-selecionados que aderiram ao Programa Nacional Bolsa Escola, desenvolvendo ações socioeducativas voltadas para o tratamento das desigualdades étnico-raciais nos estabelecimentos de ensino fundamental regular.
A estrutura curricular do curso privilegiaria temas referentes à conformação histórica das relações raciais no Brasil, especialmente no campo educacional, com aulas ministradas por professores com competência reconhecida no estudo dessas questões. As IES públicas que tivessem os referidos cursos selecionariam os alunos de cada instituição para participarem do curso de capacitação, em Brasília. Em seguida, esses alunos receberiam bolsa de estudos para multiplicarem a proposta, sendo estimulados a completar o curso universitário. Desse modo, poderia estabelecer-se uma articulação dinâmica entre o ensino superior e o ensino fundamental, com o envolvimento de várias áreas de competência da estrutura institucional e a mediação de conselho consultivo na discussão do tema, promovendo a formação de futuros profissionais da educação e daqueles que atuam como professores nas escolas municipais brasileiras.
Ao inserir-se nesse contexto, o Bolsa Escola17 pretendia contribuir para a articulação dessas políticas entre os níveis de ensino e, para isso, contar com a estrutura institucional existente. Ao promover a universalização do ensino fundamental, que vinha facilitando o acesso e a permanência de crianças negras na escola, poderia apontar o estabelecimento de uma ação socioeducativa de combate ao racismo em municípios brasileiros, a partir da capacitação de orientadores-facilitadores no ensino superior e da importante mediação do ensino médio.18
O projeto não foi aprovado. Menos do que lamentar o fato, gostaria de ressaltar que na proposição de políticas públicas, há embates, dissidências e conflitos que se explicitam num campo de negociação desfavorável, e cuja hegemonia pertence ao opositor. Para equilibrar forças políticas, não há outra saída senão valer-se de recursos táticos. Foi sinalizado, mas não necessariamente compreendido, que à luz da política educacional desenvolvida estava sendo feito um movimento interno de abertura de espaço, para que fosse cobrada do MEC uma posição favorável e efetiva ao tratamento da questão racial nas escolas de ensino fundamental.
Nota sobre políticas específicas para a educação básica
Quando o debate sobre as cotas no ensino superior vem mobilizando o país, especialmente depois da iniciativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)19 de reservar 40% das vagas dos cursos de graduação para negros e pardos,20 parece oportuno insistir na reflexão sobre as políticas afirmativas de caráter universal e específico, nos diferentes níveis de ensino. No meu entender, é uma falsa questão contrapô-las, como se fossem excludentes. Por isso, o equívoco do debate sobre as cotas não consiste apenas "em enfatizar a modalidade mais polêmica das políticas de ação afirmativa" (Silvério, 2002, p. 220). De fato, ação afirmativa e cotas são coisas diferentes.21
Percebendo a confusão semântica em colunas de jornalistas, artigos de sociólogos e declarações de autoridades em torno do debate sobre políticas voltadas para as minorias sociais, José Murilo de Carvalho (in O Globo, 12/03/2003) escreveu:
Cota é apenas uma forma de ação afirmativa entre inúmeras outras modalidades possíveis. Ação afirmativa é gênero, cota é espécie. Ação afirmativa é toda política voltada para a correção de desigualdades sociais geradas ao longo do processo histórico de cada sociedade. Baseia-se na convicção de que a justiça social exige que a igualdade não seja apenas legal e formal e que, portanto, é legítimo e, mesmo mandatório, que o poder público tome medidas para reduzir a desigualdade.
Cota é uma das aplicações práticas, uma das medidas, dessa filosofia. Ela se caracteriza por estabelecer pisos ou tetos numéricos para o acesso de pessoas oriundas de grupos minoritários a determinados bens públicos, como emprego, educação, saúde, corpos deliberativos ou decisórios etc. Na universidade, que é o campo que aqui nos interessa, o marco numérico é garantido pela introdução de desigualdade de acesso.
Ação afirmativa é coisa boa, deve ser incentivada e multiplicada em suas modalidades. Cota na universidade não é coisa boa e deve ser evitada. Não se defende cota apelando para a correção de injustiças históricas - isso é a defesa geral da ação afirmativa.
A contraposição entre políticas de ação afirmativas "universais" e "específicas", ou o estabelecimento da polêmica "em torno da oposição entre políticas de ação afirmativa e políticas universalistas/sociais mais amplas" (Moehlecke, 2002, p. 213) implica escorregar na armadilha da razão dualista, tantas vezes criticada. A afirmação de que "enquanto o ensino fundamental e médio exigem uma universalização, o ensino superior necessita de medidas que garantissem o ingresso de certos grupos dele sistematicamente excluídos [...]" (idem, p. 213-214), parece negar o acúmulo de conhecimento que se tem sobre esses níveis de ensino no tocante ao tratamento da questão racial.
Os estudos que buscaram analisar as interfaces da educação e das relações interétnicas, antes da política educacional definida no governo FHC, apresentavam dados preocupantes.22 Com base nesses estudos, podem ser destacados os seguintes indicativos: a) mantendo-se constante o nível de instrução, um maior número de brancos encontra-se empregado, em comparação ao número de negros; b) os negros possuem um percentual maior de analfabetos, quando comparados aos contingentes de pardos e brancos na mesma situação; c) os índices e a incidência de exclusão e de repetência são superiores entre os negros; d) as crianças negras que permanecem na escola têm uma trajetória irregular, marcada por um maior número de interrupções, em relação à criança branca; e) o atraso escolar é menor entre os brancos, e essa diferença vai tornando-se mais dramática à medida que aumenta a idade do aluno; f) o aluno negro ou o aluno pobre é absorvido pela rede escolar de maneira diferente do aluno de classe média ou não-pobre e, uma vez constituída essa clientela, os professores atuam no sentido de reforçar a crença de que os alunos pobres e negros não são educáveis; g)há um ritual pedagógico que exclui a história de luta dos negros, impõe um ideal de ego branco, folcloriza a cultura negra, mas, no discurso, propugna a igualdade entre as crianças, independentemente da cor; h) os livros didáticos discriminam os negros e falta material de apoio que auxilie os professores a enfrentar o preconceito e a discriminação intra-escolares; i) a escola não auxilia a formação da identidade racial e, além disso, reforça de forma negativa alguns estereótipos que prejudicam o processo socializador.
Poder-se-ia considerar que, sendo as crianças negras pertencentes às camadas mais carentes da população nacional, um contingente expressivo vem substituindo a "casa" pela "rua". Apresentando dificuldades de acesso à socialização primária, porque fazendo parte de famílias que têm sua organização afetada pela carência econômica, são constantemente acuadas pelo preconceito e pela discriminação raciais. Tratadas com suspeição, como se houvesse um potencial seguro para a delinqüência, a presença e as atitudes dessas crianças acabam por reforçar o estigma racial. Considerando-se também o baixo índice de escolaridade do negro ante outros segmentos étnicos da população brasileira, as chances de acesso à educação formal e sistemática são menores para a criança negra. Esse quadro é ainda mais grave quando se passa para o nível da educação infantil,23 considerada pelos pedagogos como degrau indispensável para o êxito nos estudos posteriores. Esse nível educacional é inacessível ao grupo negro, quer por não ser satisfatoriamente atendido pelo Estado, quer por razões econômicas quando ministrado em escolas particulares. As raras famílias negras que têm condições de arcar com os custos da educação infantil enfrentam a discriminação velada de escolas que impedem o ingresso de suas crianças. Nesse sentido, a educação infantil seria duplamente seletiva: social e racialmente (Pereira, 1987).
As dificuldades enfrentadas pelas crianças negras no sistema escolar apontavam para a necessidade de serem encontrados mecanismos de combate ao preconceito e à discriminação raciais no âmbito da socialização primária e secundária, ou seja, na família e na escola. Indicavam-se como caminhos possíveis para a superação do problema a importância de serem elaboradas novas propostas e materiais didáticos para enfrentar a questão e a construção de uma identidade negra positiva que se construa na relação com o branco e no reconhecimento da diferença. Sabia-se, ainda, que questões de classe são mais facilmente incorporadas pelo Estado, que tem o dever de garantir a escola pública para todos.
Do mesmo modo, é sabido que grande parte das propostas curriculares para o enfrentamento do preconceito e da discriminação raciais, dirigidas para o ensino fundamental e médio, volta-se para o ensino de história. Outras são desenvolvidas a partir de experiências educacionais de grupos e entidades negras organizadas, em interação com o sistema formal e oficial de ensino. Mesmo que possam ser consideradas insuficientes, o certo é que essas propostas rompem com a imobilidade. Entretanto, tais iniciativas enfrentam dificuldades de incorporação efetiva. Dentre essas dificuldades, pode-se destacar as encontradas nos cursos de formação de professores.
Apesar dos avanços promovidos pelo MEC na avaliação dos livros didáticos, para evitar preconceitos e outros equívocos, e nos Parâmetros Curriculares Nacionais, que têm um capítulo dedicado ao pluralismo cultural,24 enfatizando a "necessidade imperiosa da formação dos professores no tema" (Brasil, Secretaria de Educação Fundamental, 1997, p. 4), urge encontrar e definir medidas para os professores intervirem na questão racial.25 De nada adianta dispor de livro didático e currículo apropriados se o professor for preconceituoso, racista e não souber lidar adequadamente com a questão.26
O que essas questões não estariam a demonstrar senão a necessidade de serem implementadas ações afirmativas específicas na educação básica? Ao contrário do que pensa Silvério (2002, p. 220), as políticas universalistas não têm obtido o sucesso almejado porque não vêm sendo articuladas às ações específicas. Do mesmo modo, eventuais ações específicas no ensino superior têm grande chance de insucesso se prescindirem de medidas universais, como a experiência da PUC do Rio de Janeiro que instituiu um programa de bolsas integrais para "impedir que estudante carente fique num nível muito abaixo dos demais ou abandone o curso por razões econômicas" (Góis & Petry, 2003, p. 1).27
A discussão sobre os negros no Brasil, historicamente, tanto no senso comum como em meios acadêmicos, vem sendo conduzida de forma a polarizar a "questão social" e a "questão racial". No meu entender, trata-se de discussão há muito superada, a não ser nas perspectivas idealistas...
Há muito tempo os conceitos de "classe" e "raça"28 vêm mobilizando a preocupação de pesquisadores. A bibliografia conhecida e dedicada à temática confirma isso.29 "Raça" é ainda importante nos estudos sobre as relações entre brancos e negros, primeiramente porque corresponde a uma noção "popular" que se confunde com a noção "técnica" das ciências sociais, quando essas procuram resguardar as interpretações dos sujeitos que estuda. Por outro lado, "raça" como construção social das diferenças fenotípicas torna-se um dos aspectos mais significativos do processo de identificação étnica ou da etnicidade. Essa última, também uma construção que engloba a idéia de filiação racial, ao se referir à percepção das diferenças ou à escolha de identidades étnicas e raciais, é decisiva para a compreensão daqueles que são classificados, mas, sobretudo, daqueles que classificam. Dessa maneira, torna-se um conceito analítico importante.
Mas esse processo de identificação racial "ascende da terra ao céu" (Marx & Engels, 1986, p. 37):30 o contexto histórico no qual se manifesta é o da sociedade capitalista e das relações de classe que lhe é peculiar. Ou seja, a especificidade racial só pode ser compreendida à luz dessa organização social. Não se trata "disso ou daquilo" (outro dualismo!) ou uma combinação que pressupõe soma, mas contradição. A articulação de valores universais - isto é, valores do capitalismo, marcado por concepções de mundo antagônicas - às especificidades etnoculturais permite que o espaço político não seja fragmentado e não seja degradada a democracia, possível senão quando um direito comum regula a coexistência das liberdades individuais e particulares (Valente, 2002b, p. 77). Nessa mesma linha de reflexão, Carlos Nelson Coutinho (2002) afirma:
Temos que imaginar hoje o seguinte: talvez não se trate mais de construir "o" sujeito revolucionário, mas de construir uma intersubjetividade revolucionária, ou seja, um conjunto de sujeitos que são plurais e diferentes, mas que convergem e se unificam na luta contra o capital. Por quê? O movimento feminista vai brigar pelos direitos iguais para homens e mulheres, o movimento dos gays e das lésbicas vai brigar pelo direito civil à livre orientação sexual; o movimento negro vai brigar pela sua capacidade de influir na sociedade brasileira e ser respeitado na sua especificidade. Tudo isso é justo e progressista. Ora, mas tudo isso, se encaminhado mal, pode levar a uma nova forma de corporativismo selvagem, de tipo americano. Se cada um desses movimentos brigar apenas pela sua diferença e não por aquilo que une, nós vamos ter certamente um multiculturalismo muito simpático, mas que, em última instância, não é mais do que uma nova forma de reprodução do corporativismo neoliberal. Desculpem-me as feministas, os gays e lésbicas, os negros: esses movimentos são extremamente válidos, mas eles precisam ter a dimensão ético-política da universalidade. (p. 38)
Em resumo, valendo-me dos argumentos apresentados acima, políticas universais implicam políticas específicas, e vice-versa, em todos os níveis de ensino. Acredito, ainda, que a maior ou a menor eficácia de políticas de ação afirmativas para os negros esteja inversamente relacionada ao nível de ensino, isto é, quanto antes o racismo, a discriminação e o preconceito forem enfrentados, melhores serão os resultados educacionais.31 Exige-se, portanto, pensar na universalização da educação infantil e em programas "redistributivos", como o Bolsa Escola, que, com o ensino fundamental universalizado, permite que medidas específicas sejam implementadas nacionalmente.
Para não dizer que não falei do "fim"...
No início do artigo, mencionei a dificuldade de escrever sobre um programa que completou, em março de 2003, dois anos de existência. Para ser mais exata, o período de tempo para reflexão sobre essa experiência é menor. Isso porque a conjuntura eleitoral32 de 2002 engessou o planejamento da SPNBE, uma vez que qualquer movimentação mais contundente poderia ser confundida como campanha para o "candidato oficial".
Depois da maciça adesão dos municípios brasileiros ao programa, de praticamente concluída sua fase "operacional", que garantia o repasse de recursos financeiros para que as famílias pobres mantivessem seus filhos na escola, o elogiado fôlego da equipe de implantação não era mais suficiente para dar destaque ao caráter educacional do programa. Era chegado o momento de inverter prioridades. Em razão disso, organizou-se internamente um curso de formação para que aqueles jovens membros da equipe pudessem ter maior conhecimento sobre a política educacional vigente no país. Entretanto, é possível afirmar que não se conseguiu atingir os objetivos desejados. A perspectiva de "final de governo" era pouco motivadora, porque o futuro profissional era incerto. A contagem regressiva começara.
Na fase de consolidação, esperava-se poder contribuir para que os municípios fortalecessem as iniciativas no campo da educação, já que, garantindo a coerência da descentralização do programa, a autonomia a eles pertencia. Como disse anteriormente, as ações socioeducativas33 e os conselhos de controle social34 inscreviam-se como focos fundamentais para qualquer tática nessa direção. Por isso, a partir de agosto de 2002, foram promovidos seminários de sensibilização, oportunidade em que eram reunidos professores responsáveis pela implementação de ações socioeducativas, membros dos conselhos, representantes do Poder Executivo municipal, e do ministério público, entre outros. Nesses seminários, privilegiavam-se os depoimentos dos participantes sobre as experiências em curso, como forma de socializá-las, de estimular iniciativas coletivas e de incrementar novas ações.
Desses seminários pode-se extrair a impressão de que muito ainda há para ser feito, mas em muitos municípios vêm sendo desenvolvidos processos educativos muito interessantes e originais. Tudo indica que a gestão descentralizada do programa, ao eximi-la da tutela direta do governo federal, abre possibilidades de valorização da história e da cultura locais, e de que sejam buscadas soluções diversas, fora de padrões previamente estabelecidos, em moldes etnocêntricos.
Também nesses seminários podia-se perceber, no ar, quase tátil, a esperança no futuro. Sonhos de mudança eram contados em muitos gestos e palavras. Falava-se de um futuro diferente que se queria alcançar. Quando, exatamente, ninguém saberia precisar, mas não parecia haver disposição para retroceder. Os erros e acertos eventualmente cometidos nesse percurso ganharam, assim, outro significado. O que se espera é que tanto os erros como os acertos tenham sido objeto de aprendizado para o programa poder avançar.
O Programa Bolsa Escola, vinculado ao MEC, promoveu o esforço de integração das diversas políticas sociais. Por seu alcance nacional, mesmo que em dois anos de existência, desencadeou a necessidade de que fosse buscada a otimização das ações governamentais: os resultados obtidos forneceram a confiança para dar continuidade e investir em novos formatos. Desse modo, o Vale-Gás, sob a responsabilidade do Ministério de Minas e Energia, a partir de 2002 passou a ser creditado nos cartões magnéticos dos beneficiários desse programa. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), da assistência social, com critérios diferenciados para a concessão e o valor de recursos financeiros, não tem caráter preventivo, mas enfrenta o problema concreto e circunscrito a situações particulares, mesmo que atendendo à mesma faixa etária do Bolsa Escola. Ao Ministério da Saúde cabia a responsabilidade de atender às crianças de 0 a 6 anos, assim como ao Ministério do Desenvolvimento Agrícola coube a responsabilidade de amparar famílias que sofriam os efeitos da seca. A proposta do cadastro único perseguiu essa tentativa de unificação, sem ter sido plenamente consolidada ou compreendida a sua lógica, que não é a de sobrepor benefícios, mas de atender às necessidades das famílias pobres, através dos ciclos de vida.
Todas essas políticas desenvolvidas no governo FHC tiveram caráter universal, atendendo a demandas que respeitaram a faixa etária dos beneficiados ou a situações emergenciais. O que se espera é que se aprofunde o esforço de dar atenção às especificidades nessas políticas universais, agregando à diferença de classe a "focalização nos segmentos sociais que historicamente elas [as políticas universalistas] vêm excluindo" (Carneiro, 2003). Especialmente as diferenças étnicas e de gênero, que, como afirmei, eram preocupação presente no bojo de uma política "universalista" como o Programa Bolsa Escola. Ou seja, impõe-se a articulação intrínseca entre políticas universais e específicas quando a questão é discutir a implementação de políticas sociais.
Como foi sugerido, quando políticas universais alcançam metas previstas e resultados favoráveis torna-se conseqüência lógica e mais segura desdobrá-las para que atendam a segmentos específicos.35 Políticas universais não podem ser abandonadas, sob pretexto de serem injustas,36 por justificarem uma ordem social também injusta. Isso porque balizam o espaço político democrático, regulado pelo direito comum. Caso contrário, o risco de serem produzidas outras desigualdades é ainda maior.
No caso do Bolsa Escola, que foi capaz de gerar ações afirmativas universais, é indispensável harmonizar a universalização do acesso e da permanência ao ensino fundamental com ganhos de qualidade, sem o que a expansão da demanda pelo ensino médio e superior - imprescindível em "tempos globais" - acabará por ser neutralizada pela retenção do alunado de baixos níveis educacionais. Para tanto, entre outras coisas, é necessário resgatar o papel das universidades com a produção do conhecimento científico e tecnológico e com a promoção da cultura, para que tenham condições de oferecer um ensino de qualidade, de graduação e pós-graduação, articulado à pesquisa e à extensão, garantindo uma formação sólida aos alunos que os capacite a impactar o processo educacional em geral, e a educação escolar básica em particular, quando egressos das universidades.
Assim, seria um contra-senso defender a continuidade do sucateamento do ensino superior em direção ao desmantelamento do sistema de educação do país, em nome de uma "focalização" que desconsidere os avanços das políticas universais; que negligencie a articulação dos níveis de ensino; que pense o sistema escolar como uma empresa; que deva responder às necessidades da economia, com base em critérios de produtividade e rentabilidade; que generalize a preocupação com a avaliação e difunda o discurso sobre a qualidade e a eficiência, sem explicar o que vem a ser essa qualidade pretendida e manifestando a crença na prática distanciada da teoria. A isso se chamou "deriva neoliberal" dos sistemas educativos. A contraposição a essa tendência é possível se forem conhecidos os mecanismos que produziram essa situação; se for reinventado o sentido da escola, implicando o esclarecimento e a condução de prática e discurso desmitificadores; e, sobretudo, se a própria sociedade e as relações vividas entre os homens forem reinventadas.
No campo educacional, nos últimos anos, foram feitas opções e estabelecidas prioridades que, no entanto, também promoveram efeitos negativos em todos os níveis de ensino, especialmente o superior, que só o tempo será capaz de reverter. Pagar-se-á, certamente, um preço por isso. Mesmo assim, sem qualquer conformismo ou tentativa de justificação, restam as perguntas: o que representam esses oito anos de governo em cinco séculos de dominação, exploração e privilégios daqueles que detêm a hegemonia do poder sobre os que não a têm? Até que ponto os desejos e as expectativas de "mudança total" no Governo FHC, marcados pela subjetividade, não negligenciaram o quantum de consciência possível num período dado, que representaria um anacronismo pernicioso ao pensamento histórico? Será esse o mesmo "critério de medida" e de compromisso social de quem venceu o medo com esperança, tendo à espreita a decepção? Essas são questões que, devidamente contextualizadas, poderão balizar com maior equilíbrio e ponderação as expectativas e as reações ante os resultados das ações governamentais futuras.
Por fim, gostaria de lembrar o quanto essa breve passagem pela administração pública federal pôde contribuir para repensar a minha práxis de professora universitária e pesquisadora.37 Para além dos contatos profissionais, ali acabei estabelecendo vínculos afetivos com pessoas com as quais trabalhei e projetei perspectivas e prognósticos favoráveis para o futuro do país. Mas o mais importante é que os elementos teóricos de que dispunha foram mais uma vez confrontados com a prática social, muito mais rica e complexa. Em respeito ao compromisso com a produção do conhecimento que se pretende transformador, mesmo ante as eventuais dificuldades de análise, não renunciaria à utilização de instrumentos teórico-metodológicos capazes de proceder à crítica e à contribuição para problematizar e iluminar o que foi feito até então, mesmo se tratando de um processo inconcluso.
Entretanto, apesar de todas as dificuldades percebidas e vistas de perto e do longo caminho, muito mais longo do que o imaginado, que será preciso percorrer com "paciência histórica", continuo elegendo o Estado como alvo privilegiado para os movimentos sociais com potencial revolucionário. A sociedade civil é também Estado, porque instância de consenso, em alguns momentos antagonizando ou dialogando consigo mesma ou com uma de suas muitas faces. Nessa perspectiva, importa conferir importância à dimensão da conquista de posições no bloco histórico e a ocupação de "trincheiras" estatais (Gramsci, 1989). Pois é ainda fundamental conhecer o perfil individual, mas construído socialmente, daqueles que ocupam posições na estrutura de poder, além de suas referências teórico-práticas, para que se possa avaliar a pertinência e o alcance de políticas sociais implementadas e outras que devem ser propostas.38
Quando se estabelece como meta a transformação do Estado, e com ele a transformação/superação do capitalismo, o problema reside na crença de que o processo de construção de uma contra-ideologia possa fazer-se sem contradições, contrariando o movimento histórico. Preocupante é que esse movimento parece estar sendo negligenciado ou pouco compreendido, mesmo entre aqueles que partilham a mesma linha teórica e que se arvoram comprometidos com a transformação da sociedade. Dentro e fora da academia; no "governo" e na "oposição".
Recebido em março de 2003
Aprovado em maio de 2003
ANA LÚCIA VALENTE, doutora em antropologia social pela USP e com pós-doutorado em antropologia na Université Catholique de Louvain, na Bélgica, atualmente é professora na Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da UnB. Além de numerosos artigos, publicou: Ser negro no Brasil hoje (18ª ed., Moderna, 2002); Educação e diversidade cultural - um desafio da atualidade (Moderna, 1999). Pesquisa atual: Desenvolvimento local sustentável em área remanescente de quilombo. E-mail: alefv@uol.com.br
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Out 2006 -
Data do Fascículo
Dez 2003
Histórico
-
Recebido
Mar 2003 -
Aceito
Maio 2003