RESUMO
Este artigo teve por objetivo analisar aspectos que estão contidos na motivação de professores formadores que lecionam Filosofia da Educação no curso de Pedagogia. Como campo empírico da pesquisa foram definidos os cursos de Pedagogia de duas universidades públicas, escolhidas em razão da tradição na oferta desse curso, ou seja, uma desde 1939 e outra desde 1984. A pesquisa dirigiu-se pela análise de conteúdo das falas em forma de entrevistas de oito professores de Filosofia da Educação. As análises foram desenvolvidas com base em quatro eixos interpretativos: a escolha pela docência; a docência como atividade inventiva; do ensino de Filosofia ao ensino de Filosofia da Educação: entre liberdade e imposição; ser professor formador de Filosofia da Educação. As constatações da pesquisa indicaram que a opção pela Filosofia deu-se: i. por vocação; ii. por motivação advinda de dentro e fora do processo de escolarização; iii. por mediação de um professor.
Palavras-chave: Professor Formador; Docência; Subjetivações Docentes; Filosofia da Educação; Pedagogia
RESUMEN
Este artículo tuvo como objetivo analizar aspectos que están contenidos en la motivación de los formadores de profesores que enseñan Filosofía de la Educación en la carrera de Pedagogía. Como campo empírico de investigación se definieron las carreras de Pedagogía de dos universidades públicas, escogidas por la tradición en ofrecer esta carrera, es decir, uno de 1939 y otro de 1984. La investigación estuvo guiada por el análisis de contenido de los discursos en forma de entrevistas con ocho docentes de Filosofía de la Educación. Los análisis se desarrollaron a partir de cuatro ejes interpretativos: la elección de la enseñanza; la enseñanza como actividad inventiva; de enseñar Filosofía a enseñar Filosofía de la Educación: entre la libertad y la imposición; ser profesor de Filosofía de la Educación. Los hallazgos de la investigación indicaron que la opción por la Filosofía se dio: i. por vocación; ii. por motivaciones provenientes de adentro y de afuera del proceso escolar; iii. a través de la mediación de un maestro.
Palabras clave: Formador de Profesores; Enseñanza; Subjetivaciones del Profesorado; Filosofía de la Educación; Pedagogía
ABSTRACT
This article analyzes aspects of the motivation of teacher trainers who teach philosophy of education in pedagogy programs. The empirical research field is formed by the pedagogy programs at two public universities, chosen because of their tradition in this program, i.e., one since 1939, and the other since 1984. The study was based on the content analysis of accounts in form of interviews with eight professors of philosophy of education. The analyses were developed around four main interpretive topics: the choice for teaching; from teaching philosophy to teaching philosophy of education: between freedom and imposition; being a teacher trainer of philosophy of education. The findings indicate that respondents chose philosophy: i. by vocation; ii. by a motivation from both within and outside the schooling process; iii. through the mediation of a teacher.
Keywords: Teacher trainer; Teaching; Teacher subjectivations; Philosophy of education; Pedagogy
INTRODUÇÃO
Este artigo teve por objetivo analisar aspectos contidos nas motivações de professores formadores que ensinam Filosofia da Educação no curso de Pedagogia, além de discutir, a partir desses mesmos aspectos, o processo de constituição da docência em Filosofia à docência em Filosofia da Educação. A abordagem pauta-se por uma ênfase no professor formador, aqui delimitado em torno daqueles que atuam na formação de futuros professores, considerando suas trajetórias de formação e de atuação profissional, com vistas a identificar as razões subjetivas e objetivas que se constituíram como fundantes para a opção pela Filosofia e sua posterior docência. Em razão disso, entende-se que a dimensão pedagógica da formação filosófica do professor de Filosofia só poderá ser tematizada, em suas problemáticas, mediante o entendimento dos aspectos da sua trajetória pessoal, escolar e profissional, uma vez que o conhecimento dessas experiências é de extrema importância para o reconhecimento das possíveis implicações dos diversos modos de docência.
Nessa direção, o artigo se organiza em torno de aspectos pontuais e decisivos que interferiram no processo de constituição da docência de professores de Filosofia da Educação que, de uma formação centrada especificamente no ensino de Filosofia, em função das circunstâncias, precisou se direcionar para um ensino de Filosofia da Educação - que exigiu, portanto, uma articulação com a problemática educacional.
Ao se pensar os problemas educacionais, no que diz respeito à formação de professores (foco nas questões que envolvem o ensino) e na perspectiva de superação de suas lacunas, não se pode ignorar o dado de que muitas docências são tecidas com base na forma como se foi estudante, nos acentos da formação inicial (teórico e/ou pedagógico) e no olhar atento de como os professores ensinaram. Como diz Cerletti (2009), parte do que se é como professor tem relação com a forma como se foi estudante, na observância de como procederam os professores, ou seja, o estudante aprende como se ensina, vendo a forma como os professores lhe ensinam. Para Cruz e Magalhães (2017) é inegável a influência do professor formador no processo de constituição identitária do futuro professor, ou seja, a prática observada serve como parâmetro de definição da própria prática do estudante em formação.
Assim sendo, a identidade do professor se institui na confluência de aspectos plurais, sendo, portanto, um processo de invenção em cada situação concreta (Altet, 2017). Isso reforça o entendimento de que a formação de professores, em seus dilemas, não pode encontrar possibilidades de aperfeiçoamento e de eficácia nas questões que envolvem o ensino, tanto no aspecto macropolítico quanto no processo de constituição da docência singular de cada professor, sem o esforço de compreender, naquilo que se faz possível, o universo das motivações dos professores. Portanto, o escopo deste artigo é compreender as lógicas subjetivas que conduziram os professores formadores de Filosofia da Educação à opção pela docência.
METODOLOGIA
O campo empírico da pesquisa que serviu de base a este artigo foi definido em torno dos cursos de Pedagogia de duas universidades públicas, com características regionais, geográficas e culturais bastante distintas, além da forte tradição acumulada na oferta do referido curso, ou seja, uma desde 1939 e outra desde 1984. Uma localiza-se no interior do estado da Bahia e a outra na capital do estado do Rio de Janeiro. Cumpre esclarecer que a ideia de tradição que conduziu a escolha refere-se à perspectiva de continuidade e permanência da experiência formativa, traduzida em forma de tempo acumulado na oferta do curso de Pedagogia. Uma das instituições é reconhecida como uma das mais antigas na oferta desse curso no Brasil, e a outra, além de contar com quatro décadas de ministração desse curso, tempo suficiente para lhe conferir tradição na formação desse profissional, foi selecionada pela sua condição regional.
A entrevista representa a estratégia metodológica definida como meio de construção dos dados. A sua escolha pautou-se nas contribuições de Szymanski, Almeida e Prandini (2004), no que se refere à relevância dos saberes da experiência recolhidos no processo da entrevista, assim como em face da necessidade de escutar os atores do ensino de Filosofia (da Educação) no que eles dizem acerca dos motivos que os levaram à docência.
Entende-se que a entrevista, conforme nos diz Bueno (2005), é um instrumento valioso de investigação em virtude de seu potencial heurístico, quer seja utilizada como fonte ou como dispositivo de formação, mesmo diante dos riscos, como nos advertiu Altet (2007), da prática declarada ser divergente da prática constatada/efetivada. Outro critério que também justificou a escolha da entrevista encontra assento nas ideias de Silveira (2002), quando compreende a entrevista como um evento discursivo complexo. A complexidade desse evento, portanto, não se deve apenas àquilo que é pensado/interpretado/forjado na relação entrevistador/entrevistado, mas também aos atravessamentos de imagens, convicções, parâmetros e expectativas, que terminam por ser elementos que se colam às narrativas produzidas nas entrevistas, tanto do lado do entrevistador quanto do entrevistado.
Os sujeitos desta pesquisa foram escolhidos em consonância com o objetivo da investigação e o campo empírico. Trata-se de professores das instituições definidas com vínculo empregatício de natureza efetiva, em sua maioria mestres e doutores e que possuem regime de trabalho de dedicação exclusiva (DE). O corpo docente da instituição A, situada no Nordeste, responsável pelo ensino de Filosofia da Educação, no curso de Pedagogia, é constituído de 12 professores, sendo nove homens e três mulheres, enquanto que o corpo docente da instituição B, situada no Sudeste, é constituído de 17 professores, sendo 14 homens e três mulheres. Assim sendo, definiu-se o seguinte critério para a escolha dos sujeitos dessa pesquisa: professores que mais lecionaram componentes curriculares obrigatórios de Filosofia (da Educação) no curso de Pedagogia. Em razão desse critério, definiu-se quatro professores de cada instituição investigada.
O Quadro 1 apresenta os professores de Filosofia da Educação de cada instituição que participaram do estudo, o qual foi submetido e aprovado pelo Conselho de Ética e Pesquisa (Cep) da instituição à qual se vincula. Em conformidade com o Registro de Consentimento Livre e Esclarecido, assinado pelos entrevistados para assegurar o anonimato, utilizou-se de codinomes por meio da referência a personagens da mitologia grega para designar cada participante. Pelos mesmos princípios éticos, optou-se também por não identificar as instituições, nomeadas de A e B, sendo A-Nordeste e B-Sudeste.
A interpretação dos dados construídos com as entrevistas se deu por meio da análise de conteúdo de Bardin (2016), permitindo assim a emergência das categorias nativas ou êmicas, ou seja, dos conceitos e teorias que nascem dos próprios sujeitos participantes que, por sua vez, servem para superar ou ampliar uma ideia existente acerca do objeto de análise. A análise foi desenvolvida com base em quatro eixos interpretativos, a saber: a escolha pela docência; a docência como atividade inventiva; do ensino de Filosofia ao ensino de Filosofia da Educação: entre liberdade e imposição; ser professor formador de Filosofia da Educação.
A ESCOLHA PELA DOCÊNCIA
No que diz respeito à identificação dos aspectos que configuram a identidade docente dos professores de Filosofia, em sua forma de ensino, foi possível depreender, a partir dos professores entrevistados, aquilo que Altet (2017, p. 1199) designa como abordagem plural resultante de uma combinação de variáveis “psicológicas, pedagógicas, didáticas, contextuais, métodos e olhares para apreender a complexidade das práticas”. Ao descreverem o processo de escolha pela Filosofia, que entre os professores entrevistados se deu dentro e fora do processo de escolarização, foi possível inferir que a docência não tem nenhuma relação com a ideia de vocação (vocare), de alguém que é chamado para um ofício de natureza divina, embora três professores tenham externalizado tal possibilidade.
Quando comecei a ler Filosofia, paralelamente, ia crescendo a Filosofia e a Agronomia ia sumindo. [...] E quando entrei no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) para cursar Filosofia parecia que estava entrando em um lugar que já conhecia. Não sei se é espiritismo, algum lugar do passado que eu já estive (Professor Apolo).
Costumo dizer que não escolhi a Filosofia, fui escolhido por ela. Ia caminhando, sem saber bem em que direção estava indo, quando, de repente, encontrei-me prisioneiro da sua teia. [...] Em relação à Filosofia, eu a escolhi sem ter certeza do que ela me reservaria. Ainda bem que, depois de ter feito um longo percurso, tendo-a ao meu lado, tenho que reconhecer: não poderia ter encontrado companhia melhor. Foi o que aconteceu comigo (Professor Cronos).
Foi nesse momento, mais ou menos em 1996, que me aproximei das Ciências Humanas, como já estava querendo desde 1993, que entrei na Filosofia. E a minha vida se abriu (Professor Sísifo).
No curso de suas falas, esses mesmos professores trouxeram à tona aspectos que contradizem essa ideia de “ser chamado” pela Filosofia, na medida em que dão indicativos pessoais, psicológicos e sociais que apontam para causas históricas que intervieram nessa escolha. O professor Cronos sinaliza posteriormente que seu encontro com a Filosofia se deu por meio da Literatura, já que sempre gostou de ler, embora não tenha sinalizado de que maneira se aproximou desse campo. Um dado que merece destaque é quando ele sinaliza que não sabia que ao estudar Literatura já se encontrava na Filosofia.
Meu encontro com a Filosofia deu-se de forma indireta: através da Literatura, ela me foi apresentada. Gostava de ler. Desde cedo, adquiri o hábito da leitura, lia de tudo. [...]. Com o passar do tempo, fui me tornando mais criterioso nas minhas escolhas literárias. Não demorou muito, eu estava lendo algo que, ao mesmo tempo, era Literatura e Filosofia. Em algum lugar, escrevi sobre o meu primeiro encontro com Sartre, através do seu livro A náusea. Sem saber, lendo Literatura, já estava estudando Filosofia. Então, o amor aos livros foi criando pontes que me levaram a acessar a Filosofia e, através dela, fui levado à Educação (Professor Cronos).
Essa afirmação de ler Literatura e se descobrir na Filosofia corrobora a ideia de liberdade primordial da Filosofia - em se tratando do Filosofar - de Kohan (2009). Apesar de ser um campo constituído, o filosófico não tem proprietário e pode emergir em quaisquer situações e espaços, sejam eles institucionalizados ou informais. No caso do Professor Apolo, que optou por Agronomia, no primeiro momento, a migração para a Filosofia se deu em razão da descoberta de uma Agronomia voltada para o agronegócio e não para o Humano como era de seu desejo. E na biblioteca da universidade onde estudava, ao se deparar com a notícia da morte do filósofo Sartre e com um livro de Filosofia do André Vergez e Huisman, decidiu por estudar o campo, ou seja, Morar na Filosofia.
Um dia estava na biblioteca circulando, vi a área de Filosofia no cantinho. Tinha acabado de falecer o Sartre e saia muitas notícias no jornal: ‘’faleceu o filósofo’’. Fiquei com aquilo na cabeça: “filósofo! filósofo!”. Fui ler! Peguei um livrinho de Filosofia tão interessante, hoje ele é considerado ultrapassado, mas para mim ele foi uma luz: ‘’História da Filosofia’’ de André Vergez e Huisman. São franceses! Bem manual, mas eu adorei. Eu falei: ‘’que curso interessante, será que tem isso em faculdade?’’ Aquele livro me tocou (Professor Apolo).
O professor Sísifo, em diversas passagens de suas falas, relatou inúmeros aspectos de matriz histórica (social e familiar) que estiveram presentes na sua escolha pela Filosofia - que até então habitava no rol geral das Ciências Humanas. A família burguesa, por ele nomeada, queria a Medicina, porém ele sempre se julgou inclinado noutra direção. Prestou sem sucesso o vestibular para Medicina e optou pelo curso de Direito, mas a dimensão pragmática do curso lhe trouxe decepção. Como seu pai sempre lhe apoiou nos estudos, independentemente de ser ou não o que ele julgava melhor, depois de um encontro com um professor de Filosofia e de um amigo aspirante também ao campo, Professor Sísifo decidiu por ingressar na Filosofia de maneira terminante.
Decidi que ia fazer Ciências Humanas. Então, prestei o vestibular e fiz Direito na Universidade Federal de Goiás [...] Sempre pensei em fazer um curso mais da área de Humanas, mas voltado mesmo para Ciências Humanas, porque me decepcionei muito com o Direito. Não é um curso que foca no aspecto sociológico ou filosófico do Direito. Então, fui para o Direito nessa expectativa e no Direito você se torna manipulador de código (Professor Sísifo).
Os professores entrevistados sinalizaram a força, em termos de direção, que o hábito de leitura e a intervenção de professores tiveram na escolha pela Filosofia. Quanto à intervenção de um professor na escolha profissional de um estudante, que fazia escola técnica, a fala do professor Prometeu é assaz contundente:
Tive contato com a Filosofia no 2o grau, ainda no curso científico. Fui para a escola técnica e tinha um professor que, na época, não me lembro se era a disciplina Moral e Cívica ou OSPB, que no primeiro dia de aula disse: “oh, a disciplina é essa, mas a gente vai ter aula de Filosofia”. E aí começou, fez uma digressão em relação ao programa e a proposta da disciplina e a gente teve aula de Filosofia. Isso foi na escola técnica. Eu fiz o curso de mecânica industrial. Não cheguei a concluir os 4 anos de curso, porque vi que a área técnica não tinha muito a ver comigo e muito por influência dessas aulas de Filosofia, resolvi fazer algo na área de Humanas e acabei chegando na Filosofia (Professor Prometeu).
As falas dos professores entrevistados, que apresentam indícios de uma marcação sobre a influência da leitura e da mediação de um professor como pedra de toque para uma determinada escolha, fazem referência àquilo que Cerletti (2009) diz sobre intervenção filosófica. Para este autor, o ensino de Filosofia ocorre sempre mediado por um professor (em suas opções filosóficas contida em seus supostos), por meio dos textos filosóficos em suas problemáticas tradicional e contemporânea, contanto que essa mediação não abra mão de sua dimensão crítica. Assim sendo, a escolha pela Filosofia e, posteriormente, o desenvolvimento de sua atividade (Filosofar) não podem ocorrer sem uma dialogia. Por essa razão, em se tratando de ensino de Filosofia, os estudantes precisam ter espaços para problematizar sua realidade. Sem uma problematização situada, as reflexões filosóficas incorrem em recognição e não na criação de conceitos, alvo do ensino que quer ser filosófico (Deleuze e Guattari, 1992).
Ainda sobre a importância da mediação de um professor na escolha por uma determinada área de atuação/profissão por parte dos estudantes e, posteriormente, enquanto professor formador, é possível inferir, como nos dizem Cruz e Magalhães (2017), que a relação entre professor e aluno aparece como fundamental no processo de ensino e aprendizagem. A figura do professor formador, na maior parte dos professores entrevistados, apareceu como um divisor de águas desde a mediação pela escolha do curso até os desdobramentos do próprio processo de formação inicial, o que faz lembrar dos estudos de Bressoux (2003) sobre o efeito professor, que faz com que os alunos aprendam, não só porque domina os conteúdos, mas porque sabe ensinar esses conteúdos em conexão com as várias etapas que compreendem a Educação Básica.
O professor Zeus, em suas falas, fez questão de afirmar, à sua maneira, que a escolha pela Filosofia (enquanto atitude crítica) se deu fora do processo de escolarização formal. Isso atesta, sem hesitar, a dimensão pública e não institucional da Filosofia enquanto atitude (Filosofar), que pode acontecer nos momentos e lugares mais imprevisíveis, mesmo que ainda não se nomeie como Filosofia. O professor Zeus enfatizou que a escolha pela Filosofia se deu pela via da Literatura (acessada por conta própria e pela mediação dos amigos) e que foi uma contraposição ao ensino técnico que ele até então vivenciava. A escolha pela Filosofia, segundo ele, sempre esteve associada a uma dimensão mais lúdica e não oficial da vida, que fazia contraposição ao que era prefigurado pela lógica tecnicista (formal). Nota-se, pela fala desse professor, que o despertar para o Filosofar se deu pela mediação de amigos, da literatura e por livros de Filosofia, com destaque para os filósofos Nietzsche e Schopenhauer. A ambiência cultural com amigos artistas também foi decisiva para a escolha da Filosofia e, posteriormente, para o seu ensino institucional enquanto profissão docente.
Só que o contato com a Filosofia é anterior, não ocorreu no Ensino Médio, mas fora da própria escola. [...] Sempre tive interesse por Literatura, Poesia, Filosofia. Então, isso aparecia como caminho alternativo ao caminho técnico. Na hora da escolha de um curso superior, a via alternativa falou mais alto do que fazer, por exemplo, um curso de Administração, de Engenharia ou qualquer outro curso. Quando fiz a escolha para a licenciatura em Filosofia, fiz mais como se fosse o lado não oficial, que predominou mais forte na própria decisão de fazer o vestibular. [...] A partir do momento que entrei no curso de licenciatura, me senti mais à vontade, o ambiente era mais vinculado ao que eu queria do ponto de maior tempo para as leituras. A formação mais técnica foi me deixando lentamente, porque não prossegui (Professor Zeus).
Na mesma direção, Professora Athena afirmou que não conseguia estabelecer uma relação direta entre a formação recebida na Educação Básica e a opção pela Filosofia, pois sempre se reconheceu com uma pessoa crítica e engajada com as questões políticas estudantis. E dentre as razões apresentadas, era de que na Filosofia poderia problematizar o Humano. Pensou em fazer Psicologia e Educação Artística, mas reconheceu que a Filosofia se aproximava com mais anseio dessa busca pelo Humano. Aqui, a título de relação, faz-se importante lembrar do Professor Apolo, que não seguiu a Agronomia (embora a tenha concluído) em razão da ausência de uma visão humanista da área.
Nesse meio tempo, decidi fazer a Filosofia, porque me interessava problematizar, não tinha um vínculo, uma descoberta de uma vocação. [...] Depois, na verdade, na própria universidade, fui afirmando esse lugar. Escolhi Filosofia (licenciatura), porque era uma área das Ciências Humanas que problematizava o Humano, até alguma área mais estrutural, que é a Psicologia, porém, escolhi esse curso (Professora Athena).
As falas dos professores entrevistados, ao fazerem a escolha pela Filosofia, a partir de diferentes princípios e representações, evidenciam que não existe nenhum elemento que incorra numa ideia de “destinação lógica” para a Filosofia e, consequentemente, para o exercício profissional de seu ensino. Nota-se que a Filosofia surge como escolha a partir do próprio olhar sobre si mesmo e das atitudes reflexivas acerca da própria realidade (construída dentro e fora do processo de escolarização). E desse olhar sobre si mesmo, em razão das representações construídas, em suas várias vias de acesso, a Filosofia é vista como um espelho, ou seja, como um curso que traduz, dentro dos temas e das preocupações do campo, num prolongamento daquilo que se quer ser.
Professora Athena e Professor Apolo procuraram, por diferentes caminhos, um lugar em que pudessem abordar e compreender o Humano. Esse Humano, reclamado pelos entrevistados em sua opção pela Filosofia, tem a ver com a ideia de Kohan (2009) que a toma como, antes de um provável exercício profissional, como autoformação, autoeducação e cultivo de si. Tais relatos serviram para se inferir que a escolha pela Filosofia se deu, de forma equilibrada, em todos os casos, dentro e fora do processo de escolarização básica. Não há como demarcar precisamente esses “dentro e fora”, porque se trata de vivências que reúnem um certo nível de opacidade.
A DOCÊNCIA COMO ATIVIDADE INVENTIVA
Do processo nada linear de escolha da Filosofia até o exercício da profissão, foi possível observar nos professores entrevistados que a docência não é algo dado e se encontra em constante processo de construção de sua identidade. Não de uma identidade, no sentido da metafísica clássica, de uma essência que não muda apesar das modificações exteriores, mas de uma identidade que se compreende no fluxo e no reconhecimento da diferença. A “identidade” do professor, segundo a perspectiva aqui assumida, só pode ser pensada como um processo inacabado e determinado pelo curso da história - diferente em cada sociedade. Foi possível perceber que a consciência em torno da destinação profissional, ao se optar pela Filosofia, foi se dando ao longo dos atravessamentos pessoal, social e cultural.
Os professores foram formados em contextos diversos e a sua visão de docência (singular e irrepetível) vai se erigindo por diferentes modos e caminhos. E essa mesma docência é também tecida diante das ineficiências das instituições na estruturação dos cursos. Por conseguinte, a entrada dos professores entrevistados no exercício profissional é marcada por um conjunto de determinações presentes em sua trajetória (Bueno, 2005).
Outro aspecto depreendido das análises é quanto ao fato de que a docência, em grande parte dos professores entrevistados, surgiu não por uma decisão deliberada, mas por consequência das situações concretas da época. Dois professores entrevistados, a saber, Circe e Prometeu, em diferentes perspectivas, afirmaram que a pesquisa era o alvo para o qual sempre compreenderam sua formação. Mesmo reconhecendo que a pesquisa era algo forte em seu processo formativo e não tendo contato profissional com a Educação Básica de forma mais prolongada, exceto nos componentes curriculares ligadas ao curso, esses professores pareciam não compreender, tanto quanto deveriam, que a docência era um caminho inevitável, porque mesmo na universidade, ainda que o ensino tenha um menor prestígio, ele existe (na formação em licenciatura) ainda enquanto um dos seus tripés de sustentação.
Essa experiência, na verdade, da minha relação com a Filosofia sempre foi atrelada em uma perspectiva, digamos assim, da pesquisa ou do interesse inicial da pesquisa. Ao ingressar na Universidade Federal da Bahia, tendo atuação no campo do estágio, em grupos de estudos e pesquisas, comecei a me vincular com o interesse na área de ensino. A minha carreira é toda construída praticamente no Ensino Superior (Professora Circe).
O professor Prometeu, ao falar do seu ingresso na Filosofia e na docência, relatou que optou pelo bacharelado, porque não queria dar aula. Em seu depoimento, o mesmo reconhece que tinha desconhecimento das diferenças que envolviam os cursos de bacharelado e de licenciatura, mas devido a sua representação negativa sobre o ensino, optou pela “outra coisa” que seria o bacharelado. Narrou sobre sua não afinidade com a experiência docente no Ensino Médio e de sua identificação com o Ensino Superior. Isso sinalizou que, dentro do processo de conscientização de sua própria prática, esse entrevistado não estabeleceu um nível de problematização com relação ao que compreende por docência e os saberes que são necessários para ensinar em cada etapa da escolaridade básica até o ensino superior e seus desdobramentos na pós-graduação.
A fala do professor Prometeu deixou perceber que há uma representação vigente, sobretudo entre os professores de Filosofia, embora isso se aplique também aos professores de outras áreas, de que no Ensino Superior a docência não reúne grandes complexidades e exigências, por se tratar de um ensino para adultos, ou seja, adultos aprendem sem maiores dificuldades. Segundo essa representação, os problemas de atenção, de motivação e de interesse não se constituem mais em entrave no Ensino Superior como é mais corrente na Educação Básica. Conforme Pereira (2000), há um falso entendimento de que entre adultos, nas questões que envolvem o ensino de Filosofia, o erudito é comunicável tranquilamente. Nessa direção, quando ocorre algum nível de resistência durante as aulas, a causa é sempre a falta de motivação do estudante ou o discurso, igualmente corrente, de que ele não foi preparado para acompanhar e atender as demandas da vida universitária.
Não se pode ignorar que esses professores, na medida em que não se abrem para o fato de que a docência entre adultos exige certos conhecimentos, terminam por lhes negar o conhecimento teórico do seu respectivo componente curricular, gerando uma situação de negação, de fechamento ou de abandono, não por uma falta de empatia com os conteúdos, mas com relação à forma como esse componente curricular é apresentado. Mesmo no contexto da docência em universidade, segundo Mialaret (1981, p. 16), os professores precisam compreender razoavelmente, em função das condições de tempo, as origens, os ambientes, as maneiras de viver e de pensar dos seus estudantes sob pena de tornar mais difícil o estabelecimento da autêntica comunicação que define, por conseguinte, a verdadeira Educação. Esses professores também, em função de seu processo de formação, dissociam ensino e pesquisa. Não conseguem perceber que a docência não se separa da investigação. Dito de outro modo, não se separa professor de Filosofia do professor pesquisador, porque eles estão juntos na mesma pessoa. Isso também se aplica as demais áreas do conhecimento que encerram a docência.
O professor Sísifo apesar da não experiência profissional como docente na Educação Básica, em suas falas, deixa a conhecer o fato de que a observância de como os professores ensinavam terminou por lhe conferir uma familiaridade com a docência, quando começou a atuar em universidade. Em nenhum momento, em seu discurso, apareceu qualquer tipo de resistência à docência como possibilidade. E sua inserção profissional inicial na docência em universidade terminou por lhe aproximar da reflexão sobre os meandros da docência.
Porque a minha relação na escola, com os professores, sempre foi de muita observação e interação. [...] Sempre tive uma relação positiva e sempre tive muita observação em relação aos professores. Isso me facilitou em dar aula de maneira tardia, pois já tinha quase 30 anos (Professor Sísifo).
O professor Apolo, de igual maneira, não demonstrou qualquer tipo de reação inicial quanto ao fato de ensinar. Após a conclusão do seu curso, reconhecia a docência como algo familiar em função de sua militância cristã (como catequista de crisma e primeira comunhão) paralela à sua formação acadêmica. Uma inclinação construída sobre a docência já estava posta em sua trajetória pregressa à universidade que, sem hesitar, foi um requisito importante, que se assomou às outras experiências no contexto da formação acadêmica e pedagógica. A docência é sempre marcada por eventos que são anteriores à entrada na universidade, sendo, portanto, um processo de construção híbrido.
Eu era de militância cristã. Era católico. Fui catequista e professor de crisma. Então, eu tinha já uma familiaridade com aula paralelo a isso tudo. Então, gostava de ensinar. Então, decidi que iria fazer. Os colegas diziam que aqui era ruim, mas eu adorei. E eu achei o contrário. [...] Então, adorei aqui e falei: “bom, acho que meu negócio vai ser dar aula” (Professor Apolo).
Ainda a comentar sobre o professor Apolo, vale apontar um dado em sua trajetória profissional, mas especificamente a passagem da Educação Básica para o Ensino Superior. Essa passagem se deu em função da sua aprovação no concurso para professor de uma universidade pública e um manifestado interesse em cultivar um clima acadêmico na pós-graduação em Educação. Nesse discurso, nota-se aspectos de uma transição tranquila, sem grandes conflitos, com o fato de ensinar na Educação Básica. Em todo o depoimento do respectivo professor é possível identificar um pertencimento à docência e um livre trânsito no que diz respeito a qualquer etapa da Educação.
Durante sua trajetória, o professor Zeus não acumulou nenhuma experiência profissional na Educação Básica. Apenas cursou as disciplinas pedagógicas e os estágios. Em suas falas, embora isso não traduza totalmente seu entendimento sobre as relações entre teoria e prática no curso de Filosofia, sinalizou que fez um estágio voluntário, antes mesmo do estágio oficial, com vistas a ter um maior contato com os aspectos que envolvessem a docência. E o estágio, segundo o seu próprio relato, foi bastante significativo como uma preparação para o exercício da docência.
Só que eu estava querendo entrar no campo, que é uma maneira de ficar mais próximo também das atividades de leitura e, ao mesmo tempo, dialogar com outro ambiente, com outros lugares. Fiz esse estágio antecipado e depois fiz o estágio, que é o estágio mesmo da própria licenciatura. E logo em seguida, terminei a graduação no final de 1996. A universidade atrasou um pouco por questão de uma greve e só fui terminar mesmo o curso no início de 1997. Só que aconteceu que, no início de 1997, assim que terminei a licenciatura, entrei como professor substituto. Então, foi muito rápido a passagem. O Ensino Médio e o contato antes do contato com ensino superior foram uma grande preparação. Foi um momento de contato com um grupo de jovens amigos, ao mesmo tempo, sem acesso a Filosofia, e meu esforço era exatamente como tornar a Filosofia acessível àquele grupo que era jovem e curioso, que ao entrar em contato com uma leitura muito densa se sentia perdido, mas uma leitura transformada em diálogo transformava. Então, o Ensino Médio, na verdade, nesse período de estágio, foi minha grande escola (Professor Zeus).
De igual maneira, o professor Cronos também fez a marcação de que não teve experiência profissional como docente na Educação Básica, mas tinha clareza de que a opção pela Filosofia o levaria à docência, ainda que a etapa em que isso ocorreria só tenha se dado posteriormente, em função das oportunidades profissionais que surgiram ao ingressar no Ensino Superior. O mesmo aspecto observa-se na trajetória profissional do professor Zeus. Em seus depoimentos, não houve qualquer indício de um estranhamento com relação ao fato de ensinar na Educação Básica como um caminho de possibilidade quanto ao curso. O fato de uma representação positiva quanto ao ensino não significou, na maioria dos entrevistados, uma vinculação voluntária de sua área de atuação com a Educação (ensino), mesmo em se tratando de um curso de licenciatura.
A fala dos professores entrevistados, quanto ao ingresso na carreira docente, dá testemunho inequívoco de que a opção pela Filosofia e a posterior docência se materializaram por uma codeterminação de vários aspectos (pessoal, social e cultural) de um modo sempre a posteriori, ou seja, a docência é construída, segundo Bueno (2005), por lógicas subjetivas que estão na gênese das representações, sem nenhuma previsão pronta e acabada acerca do vir-a-ser. Isso reforça o entendimento de que a docência (e as didáticas que ela encerra) em seus diversos atravessamentos (da escolarização até a formação em nível superior) é algo sempre dinâmico e não determinado.
Todos os entrevistados, mesmo aqueles que tiveram uma curta passagem pela Educação Básica no estágio supervisionado, deram indicativo das contribuições desse momento para o aprendizado da docência que seria assumida posteriormente. Isso atesta que os cursos de formação de professores, pelas razões legais que os normatizam, têm um vínculo indissociável com a Educação Básica como condição constitutiva. Cochran-Smith e Litle (1999) adverte-nos que, no contexto da formação inicial, o conhecimento prático dos professores serve como objeto de exame e de reflexão dos conhecimentos implícitos em sua prática pelos estudantes (futuros professores). Elas ainda destacam que os professores formadores, que não tiveram experiência com a Educação Básica, dependendo do que apresentam aos seus estudantes, podem evidenciar experiências de sala de aula menos enriquecedoras.
DO ENSINO DE FILOSOFIA AO ENSINO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO: ENTRE LIBERDADE E IMPOSIÇÃO
Foi possível depreender das falas dos professores entrevistados que lecionar Filosofia da Educação foi uma consequência da escolha pela profissão docente mediante as características dos editais de concursos. A própria natureza das pesquisas que esses professores entrevistados realizaram, da graduação ao doutorado, na maioria dos casos, não dialogava com essa subárea da Filosofia, a saber, a Filosofia da Educação. O que atesta que, ainda que a contragosto, esses professores tiveram que se construir como professores formadores de Filosofia da Educação, em suas especificidades, evitando sua transformação num componente curricular de Filosofia Geral. A fala abaixo do professor Cronos traduz claramente a ideia de um inicial não pertencimento à Educação - no sentido de estar vinculado às suas reflexões - e de uma não relação entre a pesquisa realizada na formação continuada e as demandas docentes comuns aos professores que ensinam nos cursos de licenciatura.
Entretanto, vale ressaltar, que isso não me colocava no território da Educação, encontrava-me presente nela, mas não como um pensador da Educação, simplesmente, ministrava as disciplinas de Filosofia que eram ofertadas aos diversos cursos, de bacharelados e licenciaturas, inclusive no de Pedagogia. Aqui, vale uma ressalva: trabalhava com a Educação, mas ela não era o objeto das minhas reflexões, nem mesmo das minhas pesquisas acadêmicas, mesmo quando, mais tarde, comecei a minha qualificação docente, fazendo o meu mestrado e o meu doutorado (Professor Cronos).
Igualmente, a fala do professor Prometeu é oportuna para destacar, mais uma vez, o fato de que os professores formadores entrevistados, no que diz respeito ao ensino de Filosofia da Educação (quase sempre tratada como um componente curricular de Filosofia Geral), tiveram que se construir em razão da não afinidade com o componente curricular, diante dos cursos em que ela se inscreve e das exigências das ementas que pedem um diálogo com a Educação. Essa mobilização é compreensiva em razão da própria formação recebida na universidade, que separa os saberes disciplinar e pedagógico e subalterniza a dimensão do ensino, e também porque é uma exigência do próprio ingresso na universidade trabalhar com componentes curriculares de Filosofia diversos, independente de uma empatia ou não.
Quando concluí o curso, acabei sendo impulsionado para o Ensino Superior. [...] Uma das dificuldades que tive foi, exatamente, em cursos de Pedagogia. Tinha que dar aula de ensino da Filosofia e, na época, a gente tinha Filosofia da Educação e era uma área que não tinha nenhum interesse e também não tinha nenhuma experiência. Vinha do curso de bacharelado e tive que entrar nisso forçado (Professor Prometeu).
O professor Cronos, mesmo não se reconhecendo como um professor vinculado à Educação, dado seus interesses de pesquisa, revelou uma certa abertura à sua inserção no curso de Pedagogia. É notório, entre os entrevistados, que adentrar como docente nas licenciaturas não implica em um necessário vínculo com a Educação em sentido estrito. Por isso, os professores entrevistados falavam de uma suposta liberdade, que quando não incorre em silenciamento de temas ligados à Educação, materializa-se numa perspectiva teórica da Educação ligada à Grécia Antiga - da Filosofia como Paideia - e não da Educação em seus dilemas contemporâneos. O professor Cronos, em seu depoimento, mostrou-se cônscio da implicação que a Filosofia passa a ter no cenário da formação de professores, descontruindo essa representação, muito corrente na formação em Filosofia, de que uma vinculação muito acentuada com as questões da área de Educação termina por enfraquecer a atividade filosófica “genuína”. O professor Cronos mostrou compreensão acurada de que a aproximação com a Educação não lhe subtraiu a Filosofia, porque são dois campos historicamente vinculados.
A Filosofia me tornou dependente desse espaço privilegiado (a Educação). Ao longo do tempo, fui descobrindo que o exercício do magistério, em qualquer circunstância, requer o saber filosófico. Qualquer que fosse o território de reflexão - Humanas ou Exatas - tinha de requerer o exercício do pensamento. Feita esta escolha, sempre estaria próximo da Filosofia (Professor Cronos).
Assim sendo, a fala do professor Cronos traduz uma relação pacífica em seu processo de conscientização dos desdobramentos que são inevitáveis a um professor de Filosofia, que inicia a docência na universidade, em seus cursos de licenciatura, e que compreende que terá que atender às demandas de ensino de componentes curriculares de Filosofia que reúnem certas especificidades, como por exemplo, além da Filosofia da Educação, Filosofia da Ciência, Filosofia da Linguagem etc. Esses componentes curriculares, portanto, não podem ser suprassumidos ou negligenciados numa perspectiva de ensino de Filosofia Geral, que possui um caráter mais apropriado de introdução à Filosofia. Na medida em que os concursos, na tradição para a qual se olha, não incorporam certos critérios para o ingresso desses professores, tendo em vista essas especificidades, o professor de Filosofia terá, em função das prerrogativas do ensino na universidade, seja por liberdade ou por imposição da necessidade institucional, que se construir como professor de Filosofia da Educação pela mobilização de saberes e fazeres que permitam assegurar um ensino que leve em consideração a especificidade e a articulação com a Educação.
SER PROFESSOR FORMADOR DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
A professora Athena trouxe um dado relevante, pois além de apontar situações em que a docência é vista como algo em construção contínua, também induz a uma possível discussão sobre o processo de inserção profissional inicial no Ensino Superior do professor nos cursos de licenciatura. Ao narrar sua formação filosófica, a professora fala de sua “pesquisa particular” no âmbito da Estética (nos estudos de Walter Benjamin) e de seu processo de solidão por ocasião de seu ingresso na universidade. Tinha como objetivo dar aula de Estética no curso de Filosofia ou de Artes, mas em função das possibilidades profissionais teve que atuar no curso de Pedagogia e desenvolver suas próprias metodologias para encontrar sentido na atuação em Educação.
Outro aspecto observado é o fato de que muitos professores de Filosofia, que atuam no Ensino Superior, gostariam de estar atuando nos cursos de Filosofia e a migração não voluntária (em função das especificidades dos concursos, em seus cursos e componentes curriculares, e a necessidade do trabalho) terminou por fazer uma exigência de adaptação. Porém, os resultados mostram, ao longo do processo de análise, que a docência foi assumida com responsabilidade, apesar do desejo inicialmente contrariado. E o senso de responsabilidade aí identificado não significou, necessariamente, na maioria das falas dos entrevistados, uma implicação do professor de Filosofia (da Educação) com um ensino que extrapolasse a História da Filosofia e propusesse uma articulação com as questões educacionais - objetivo do componente curricular (Filosofia da Educação).
Quando eu vim para o Rio de Janeiro, o que queria, em termos de Estética, era dar aula em uma universidade, ou na Filosofia, ou em algum Instituto de Artes. Então, cheguei a fazer um concurso na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e não passei, que era para o Instituto de Artes. Quando eu vim fazer para Filosofia da Educação, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, não era o que eu queria. Eu fui substituta dessa disciplina na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, fui vendo que podia usar os recursos conceituais da Escola de Frankfurt para uma espécie de metodologia, também em termos de conceitos, mas em uma dinâmica... pensar questões metodológicas na Educação (Professora Athena).
Conhecer as falas dos professores entrevistados, acerca do seu percurso formativo até chegar à condição, nem sempre tão clara, de professor formador, no aspecto da formação filosófica de base (teórica), foi importante para a constatação de que todos assumem a postura de um ensino por acentos. Isso poderia conferir uma certa tranquilidade se, o ensino por acentos não incorresse, no caso da Filosofia da Educação, em seu modo de organização e finalidade, como sinaliza Saviani (2013), em dispersão que, em geral, imprime uma perspectiva panorâmica ao curso, sem que seja assegurado seus níveis de aprofundamento com a questão educacional. É claro que, as práticas declaradas (Altet, 2017) dos professores, em maior e menor proporção, revelam um esforço de uma entrada na Educação, mas numa análise de conjunto, não se pode inferir com exatidão se a discussão de Kant, em seus escritos sobre Educação, ultrapassa o nível de uma História da Filosofia, em sua dimensão pedagógica apresentada, articulando essa reflexão aos problemas da Educação contemporânea da sociedade.
Uma discussão sobre a perspectiva de um filósofo sobre a Educação, sem se perguntar sobre o que seu texto tem a contribuir para pensar uma outra sociedade que não é igual à sua, mas que possui problemas semelhantes, num esforço de estabelecer aproximações e distanciamentos que ajude no enfrentamento dos dilemas (problematização + resolução de problemas), termina por reduzir o ensino de Filosofia da Educação, como adverte Ceppas (2004), a uma história das ideias pedagógicas, subtraindo-lhe o potencial de uma forma de denúncia da organização educacional de uma determinada sociedade. A fala do professor Prometeu, em seus movimentos didáticos, revela seu cuidado com a articulação entre Filosofia e Educação.
Por exemplo, eu dou uma atenção muito grande, no curso de Filosofia da Educação, a Platão. Aí você diz, por exemplo: “Pô, você tem uma formação de interesse mais fenomenológico e trabalha com o idealismo? Por quê?” Porque foi quem tratou bem dessa questão, quem deu uma atenção específica à Educação. Eu acho que Platão teve. Acho até de forma inaugural que ele fez esse papel. Pego textos clássicos, como por exemplo, as pessoas dizem: “Pô você vai trabalhar Kant na Filosofia da Educação? Por quê?” Porque acho que o que ele escreve sobre a Pedagogia é um texto que tem que ser visto. Por quê? Porque ele pensa um processo educativo de alguma forma. Vou fazendo assim: quem falou da Educação aqui? Nietzsche, crítica as nossas instituições de ensino, então, “o que que tem a ver? O cara estava pensando a Educação na Alemanha no tempo dele”. Você sabia que a gente tem influência alemã na estrutura do nosso sistema educacional? Nós importamos coisas de lá. Então, vamos tentar aqui ver se tem alguma coisa. Às vezes, a gente se surpreende, inclusive, para pensar o que que a gente tem feito e observar o que foi herdado e daí a falta de êxito dos nossos sistemas de ensino. Porque, a gente importa as coisas e as ideias e não pensa. Como isso seria, aqui, na nossa prática, com a nossa diversidade, com tudo que a gente tem aqui? (Professor Prometeu).
Os professores entrevistados, em seu percurso de formação e atuação profissional, deram indícios de que se construíram como professores formadores, ainda que sem um devido aprofundamento do que essa classificação encerraria, em razão de sua vinculação aos cursos de licenciatura. Esse termo “professor formador” não apareceu de forma explícita nas declarações dos professores entrevistados, mas os fatos trazidos dão testemunho de um universo de saberes mobilizados para o enfrentamento das situações impostas pela docência de Filosofia da Educação que, em princípio, teria que reunir um planejamento que aproximasse o saber professado (com acento na formação teórica/História da Filosofia) da exigência de uma ênfase e de uma articulação com a Educação.
A ideia de planejamento, portanto, para além das razões da escolha do componente curricular, permitiu a construção de uma docência em Filosofia para a Filosofia da Educação, ou seja, o ensino de Filosofia da Educação, em termos profissionais, surgiu por uma consequência das exigências de um colegiado, das demandas de sobrevivência e de uma agenda profissional e não de uma ligação pessoal com a proposta do componente curricular. Os professores tiveram que buscar as formas possíveis de articulação do saber filosófico com o saber pedagógico.
Sobre a não relação entre “pesquisa particular” na formação inicial, a opção feita pela via do concurso e a atuação em outros cursos que não são de Filosofia, sobretudo nas licenciaturas, a fala do professor Cronos é contundente.
Então, o movimento departamental não é tão simples. Quando você faz concurso, você é locado num departamento, e este, com o tempo, torna-se a sua prisão. É claro que você pode, com muito esforço, mobilizar-se e fazer a transição entre departamentos da própria instituição. Mas, no meu caso, eu fiz concurso para uma universidade que é, prioritariamente, voltada para a Educação. Em qualquer departamento que eu escolhesse, estaria voltado para a Educação. Além do mais, a minha própria graduação, uma licenciatura, já indicava, em certa medida, a direção de minha caminhada profissional. Ao escolher fazer licenciatura, estava escolhendo ser professor. A universidade na qual eu ensino, só recentemente, criou o curso de Filosofia, motivo pelo qual quase sempre ensinei Filosofia para não filósofos, para graduandos em outros cursos: geógrafos, historiadores, pedagogos, entre outras licenciaturas. Então, todo o meu percurso, de certa forma, foi voltado para as licenciaturas, não necessariamente em Pedagogia, mas em outros campos do conhecimento, mas sempre trabalhando com a formação de futuros professores (Professor Cronos).
Como diz Cerletti (2009), em se tratando de docência, a formação inicial, por melhor que seja, não pode suprir tudo. O que permite inferir que a docência nunca pode ser concebida como algo terminante, exigindo investimentos diários e diferenciados de seus atores (professores), para garantir níveis cada vez mais elevados, em sua prática, que justifiquem a eficácia do ensino - que é a especificidade da docência. Por isso, faz-se importante, ao compreender as formas de docência, ter a ideia dessa mesma docência como algo sempre singular, embora constituída e construída por atravessamentos coletivos, porque cada professor formador, em função de suas trajetórias (pessoal, escolar, acadêmica e profissional) é resultado de um processo híbrido, resultante de inúmeros fatores conhecidos e opacos acerca de si mesmo. A composição da docência, enquanto processo singular, vai se dando nesse movimento de hibridização que, como diz Cerletti (2009), vai ter a ênfase relacionada ao que foi mais predominantemente presente na formação inicial. Dito de outra maneira, a ênfase estará associada ao grau da dimensão teórica e pedagógica recebida. Isso, sem dúvidas, irá refletir na forma como se ensina. E como essa combinação se dá no plano subjetivo, torna-se passível apenas de ser observada e não mensurada na prática do professor.
CONCLUSÃO
Após o processo de análise das falas dos professores entrevistados que lecionam Filosofia da Educação, olhando para os aspectos da formação inicial e da atuação profissional, foi possível inferir que a escolha pela Filosofia e, por conseguinte, pela Filosofia da Educação, conforme Altet (2007, p. 1199), designa uma combinação de variáveis “psicológicas, pedagógicas, didáticas, contextuais, métodos e olhares para apreender a complexidade das práticas”.
Num primeiro momento, foi possível depreender que o processo de escolha pela Filosofia deu-se dentro e fora do processo de escolarização e que docência não tem nenhuma relação com a ideia de vocação, na medida em que os professores entrevistados deram indicativos pessoais, psicológicos e sociais que apontaram para causas históricas que intervieram nessa escolha. Outro aspecto que se assomou à compreensão histórica dos elementos que levaram à docência em Filosofia foi a procura de um curso que problematizasse o Humano e os entrevistados viram a Filosofia como esse lugar/curso por excelência. Ainda nesse percurso de apresentação dos aspectos históricos/concretos que interferiram na escolha pela docência em Filosofia, destaca-se que alguns dos entrevistados apontaram a Literatura, o convívio com os amigos e a mediação do professor como determinantes para o desejo de morar/lecionar na Filosofia.
Num segundo momento, da escolha pela Filosofia (da Educação) para a docência, foi possível inferir que entre os entrevistados ela não se deu por uma decisão deliberada, mas por consequência das situações concretas da época (sobrevivência, especificidade do curso de licenciatura, editais de concurso, imposição do colegiado e questões geográficas). Também, constatou-se que o processo de conscientização em torno da destinação profissional, ao se optar pela Filosofia (da Educação), foi se dando ao longo dos atravessamentos pessoal, social e cultural. Os professores entrevistados, ainda que a revelia do seu próprio desejo, tiveram que se construir como professores formadores de Filosofia da Educação, em suas especificidades, evitando sua transformação num componente curricular de Filosofia Geral, ou seja, tiveram que aprender a mobilizar diferentes saberes e fazeres que permitissem assegurar um ensino de Filosofia (da Educação) que considerasse a especificidade e a articulação com a Educação.
Portanto, o movimento de pesquisa, sintetizado neste artigo, possibilitou a compreensão, ainda mais, de que a docência não é algo dado e se encontra em constante processo de construção de sua identidade, sempre singular e autoral, embora sempre constituída por aspectos coletivos, sendo materializada por uma codeterminação de vários aspectos de um modo sempre a posteriori. Retomando Bueno (2005), a docência é construída historicamente e é plasmada por meio de lógicas subjetivas que estão na gênese das representações, sem nenhuma previsão pronta e terminante acerca do que pode vir-a-ser.
REFERÊNCIAS
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Como citar este artigo:
PEDREIRA, André Luiz Simões; CRUZ, Giseli Barreto da. Trajetórias formativas em cena: razões da docência em filosofia à docência em filosofia da educação. Revista Brasileira de Educação, v. 29, e290015, 2024. https://doi.org/10.1590/S1413-24782024290015
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Financiamento:
O estudo não recebeu financiamento.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
13 Set 2022 -
Revisado
02 Fev 2023 -
Aceito
13 Fev 2023