Resumos
O presente artigo explora contribuições e limites da psicologia e, mais especificamente, da clínica psicológica, no enfrentamento do sofrimento psíquico advindo do desemprego. Sintetiza idéias construídas a partir de um conjunto de pesquisas que vem sendo desenvolvido pelo Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho e Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Baseia-se em pesquisas empíricas sobre as representações de estagiários de psicologia, o lugar do desemprego nas queixas psicológicas, representações da clientela a respeito do sofrimento psíquico e desemprego e sobre as representações e práticas de desempregados sobre temporalidade e desemprego, e em pesquisa teórica sobre as noções de situação e morada. Tais reflexões encaminham-se para uma focalização crítica da visão utilitarista do trabalho, procurando responder de que maneira e em que circunstâncias uma abordagem psicológica pode constituir representações e práticas de ajuda contra-hegemônicas em relação ao utilitarismo.
desemprego; trabalho; clínica psicológica; psicologia do trabalho; utilitarismo
This article explores contributions and limits of psychology, and more specifically, of clinical psychology, coping with psychological suffering concerning unemployment. It is based upon some studies about unemployment representations and psychological suffering developed by the Center of Work Applied Psychology and by the Counseling Center of Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo. These data have permitted to focus, in a critical way, the utilitarian conception of work, trying to answer how and under which circumstances a psychological approach may build contra-hegemonics representations and assistance practices in opposition to utilitarian conception of work.
unemployment; work; clinical psychology; work psychology; utilitarian conception
ESPECIAL DOSSIÊ
Psicologia do Trabalho e Psicologia Clínica: um ensaio de articulação focalizando o desemprego
Work Psychology and Clinical Psychology: an essay of articulation focusing the unemployment
Leny Sato; Maria Luisa Sandoval Schmidt
Universidade de São Paulo
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco A CEP: 05508-900 Tel.: (11) 3091-4184 Fax: (11) 3091-4460 E-mail: lenysato@usp.br
RESUMO
O presente artigo explora contribuições e limites da psicologia e, mais especificamente, da clínica psicológica, no enfrentamento do sofrimento psíquico advindo do desemprego. Sintetiza idéias construídas a partir de um conjunto de pesquisas que vem sendo desenvolvido pelo Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho e Serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Baseia-se em pesquisas empíricas sobre as representações de estagiários de psicologia, o lugar do desemprego nas queixas psicológicas, representações da clientela a respeito do sofrimento psíquico e desemprego e sobre as representações e práticas de desempregados sobre temporalidade e desemprego, e em pesquisa teórica sobre as noções de situação e morada. Tais reflexões encaminham-se para uma focalização crítica da visão utilitarista do trabalho, procurando responder de que maneira e em que circunstâncias uma abordagem psicológica pode constituir representações e práticas de ajuda contra-hegemônicas em relação ao utilitarismo.
Palavras-chave: desemprego; trabalho; clínica psicológica; psicologia do trabalho; utilitarismo
ABSTRACT
This article explores contributions and limits of psychology, and more specifically, of clinical psychology, coping with psychological suffering concerning unemployment. It is based upon some studies about unemployment representations and psychological suffering developed by the Center of Work Applied Psychology and by the Counseling Center of Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo. These data have permitted to focus, in a critical way, the utilitarian conception of work, trying to answer how and under which circumstances a psychological approach may build contra-hegemonics representations and assistance practices in opposition to utilitarian conception of work.
Keywords: unemployment; work; clinical psychology; work psychology; utilitarian conception
Em 1999 iniciou-se uma colaboração entre o Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho (CPAT) e o Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP), ambos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, buscando articular psicologia do trabalho e psicologia clínica em torno dos temas trabalho e desemprego. Esta iniciativa foi motivada pela identificação de demandas por ajuda psicológica dirigidas ao SAP por clientes que viviam dificuldades no trabalho e os efeitos do desemprego.
A primeira atividade conjunta buscou identificar, por um lado, como o trabalho e o desemprego se apresentavam nas chamadas queixas psicológicas e, por outro, como os estagiários, estudantes do 5º ano de psicologia, acolhiam e lidavam com estas queixas na posição de atendentes de um serviço clínico-psicológico (Menezes Junior et al., 1999)1. Esta aproximação empírica do tema foi disparadora do questionamento sobre a construção de objetos historicamente confinados em áreas específicas da psicologia, neste caso, psicologia do trabalho e psicologia clínica, recortando a experiência de indivíduos e grupos em esferas isoladas e relativamente incomunicáveis entre si. As práticas de intervenção e de formação da psicologia reproduzem e expressam esta fragmentação.
A tentativa de superação desta fragmentação requereu uma aproximação dos modos como as temáticas do trabalho e desemprego aparecem e/ou são silenciadas nas leituras hegemônicas na psicologia do trabalho e nas teorias psicoterápicas.
O pensamento clínico-psicológico dominante localiza o trabalho e o desemprego no pano de fundo sócio-econômico: o trabalho e o desemprego, como fenômenos, são objetos da psicologia do trabalho, da economia, da sociologia, e o trabalho categoria fundamental para a concepção ocidental moderna de homem (Antunes, 1995) é conceito periférico nas teorias psicoterápicas.
No atendimento psicológico realizado pelo SAP predominam duas posições polares que ora tomam a experiência do cliente desempregado ou com dificuldades no trabalho como frutos de peculiaridades psicológicas do indivíduo dinâmica da personalidade, problemas motivacionais, conflitos inconscientes, bloqueios emocionais, entre outros ora como frutos dos determinantes sócio-econômicos que tornam o indivíduo "mais uma vítima do sistema"2.
Por outro lado, a visão hegemônica sobre o trabalho na psicologia do trabalho sofre a influência de uma concepção utilitarista: "aquilo que tem valor, não em si mesmo, mas como meio para um fim julgado bom, de qualquer ponto de vista" (Lalande, 1999, p. 1182). E, segundo o mesmo autor, utilitarismo é "toda doutrina que faz do útil (...) o princípio de todos os valores, na ordem do conhecimento assim como na da ação" (p. 1182).
Por este viés, a psicologia do trabalho restringiu o trabalho à força de trabalho que a gestão de "recursos humanos" precisa domar. Nesta perspectiva, o desemprego não é uma questão.
Essa vertente da psicologia do trabalho é socialmente reconhecida e legitimada como sendo a psicologia organizacional e do trabalho, construindo um espaço de aplicação dos conhecimentos da psicologia e, sustentada nessa tecnologia, abrindo um importante campo de atuação profissional (Prillelntensky, 1994).
O caráter utilitarista está claramente posto, tanto para o trabalho humano em geral como para o trabalho dos psicólogos e psicólogas, em particular, ou seja, trabalhar é um meio para a busca de eficiência e produtividade do negócio. Trabalhar é uma atividade humana que não tem valor em si, mas apenas na medida em que se configura como meio para finalidades de lucro. Como dizia Marx (1980), na sociedade capitalista, trabalho é mercadoria. A psicologia abraça esse ramo de atividade e explica-se a si mesma e aos outros através de uma ideologia profissional que considera que psicologia é ciência, que a ciência é neutra e boa para todos, indistintamente. Além disso, vê o mundo do trabalho desprovido de conflitos e, caso estes emerjam, são considerados problemas individuais que apenas se expressam no espaço de trabalho (Prilleltensky, 1994).
É interessante notar como os lugares do trabalho na psicologia do trabalho e na clínica pautadas pelas idéias anteriormente explicitadas, embora isolados, convergem para a circunscrição de suas questões e seus problemas à esfera individual, atuando de forma complementar: a psicologia do trabalho selecionando a força de trabalho "mais adequada" e a clínica "recuperando" e adaptando os indivíduos para o trabalho útil.
Outras leituras de psicologia social têm sido empreendidas nas quais os problemas humanos no trabalho são o foco. Estudos sobre a alienação no trabalho (Weil, 1996), sobre a saúde dos trabalhadores (Borges, Moulin, & Araújo, 2001; Dejours, Abdoucheli, & Jayet, 1994; Kalimo, El-Batawi, & Cooper, 1987; Kristensen, 1995; Sato, Lacaz, & Bernardo, 2004; Seligmann-Silva, 1994; Silva Filho & Jardim, 1997), sobre a identidade e a subjetividade (Fonseca, 2000; Mello, 1988; Rodrigues, 1978; Tittoni, 1994) também encontram abrigo confortável nessas leituras, que mantêm diálogo com a antropologia, a sociologia, a economia política e a saúde coletiva. Muito embora essa vertente esteja há muito presente, é possível que não tenha sido considerada uma perspectiva da psicologia do trabalho e das organizações porque foge a uma determinada concepção sobre a formação e a profissionalização em psicologia; foge, em suma, de uma determinada concepção utilitarista da ciência e da prática profissional. Para abordagens utilitaristas, a intervenção é norteada pela racionalidade instrumental, enquanto as que se afiliam à psicologia social entendem a intervenção no contexto da chamada pesquisa-ação (Thiollent, 1988), na qual conhecimento e ação são construídos de modo compartilhado entre psicólogos e trabalhadores (Oddone et al., 1986).
Também na esfera da psicologia clínica, idéias e práticas de uma clínica social vêm sendo desenvolvidas. Delas, cabe destacar, no plano teórico, a concepção de subjetividade como articulação dos chamados mundo interno e externo e, no plano das práticas de atendimento, a necessidade de sustentar a tensão entre estas polaridades, propiciando que a interrogação sobre quem o indivíduo é se torne ligada àquela sobre onde ele está. Na clínica social o contexto de vida atual é tema e não apenas as idiossincrasias individuais. Trata-se de proposta que, no âmbito mais restrito da psicoterapia, busca facilitar um processo no qual o cliente, ao interrogar-se sobre si mesmo, interroga, também, o mundo em que vive. Nesse processo, espera-se que re-significações do indivíduo e do contexto de vida formem a base de um ponto organizador: o situar-se. Não se busca, aqui, identificar a clínica social com um movimento ou com linhas teóricas. Trata-se do uso do termo social como modo de adjetivar uma clínica cuja atenção ao indivíduo pressupõe a atenção e a compreensão de seu contexto de vida e de sua inserção social. Social refere-se, também, nessa medida, a uma clínica ampliada que não se restringe à psicoterapia, individual ou de grupo, mas que busca, principalmente por meio da pesquisa sobre demandas e representações da clientela que busca auxílio psicológico, criar modos plurais e singularizados de atenção psicológica. Nesta visão, trabalho e desemprego podem ser focalizados, deixando de ser panos de fundo.
Visão utilitarista do trabalho e sofrimento psíquico
O trabalho compreendido como atividade genérica é uma forma de relação com coisas e pessoas e, por isso, forma identidades, jeitos de ser e existir num mundo compartilhado. O desemprego e a insatisfação no trabalho estão, muitas vezes, na origem de experiências de desenraizamento, solidão, desamparo e desespero, como atestam as queixas trazidas por uma parte da clientela do SAP. Tratá-las desvinculadas do contexto de vida seria uma abstração (Menezes Junior et al., 1999; Terra, Carvalho, Azevedo, Venezian, & Machado, 2003).
O viés utilitarista, ao mesmo tempo em que reforça esta abstração, restringe a própria noção de trabalho, ensejando representações que explicam as vivências de sofrimento relacionadas ao desemprego. Ou seja, só é considerado trabalho, o trabalho remunerado.
O trabalho, na visão preponderante, é um dever. Trabalhar é condição sine qua non para viver. Não o é, apenas, para viver materialmente, mas para que alguém seja socialmente confiável. Ser confiável é ter o testemunho de outro que lhe atribui existência social.
É interessante notar que não apenas em países como o Brasil (Seligmann-Silva, 1997), mas mesmo em países de capitalismo central, nos quais há, ainda, um Estado protetor que assegura ao desempregado o direito à vida por meio do seguro-desemprego, o dever de trabalhar explica vivências de sofrimento (Castel, 2003; Forrester, 1997; Jahoda, 1982). Pesquisas realizadas por estudantes de psicologia junto ao SAP e CPAT evidenciaram que tais vivências atingem pessoas situadas em distintos segmentos do espaço social: ex-empresário, ex-gerente, ex-secretária, ex-operária, entre outros (Terra et al., 2003).3
Sendo a impossibilidade de cumprir com esse dever entendida como um problema cuja gênese é individual - preguiça, vadiagem, falta de qualificação, etc. -, o desemprego é tomado como algo que diz respeito à esfera privada e sua superação é responsabilidade dos indivíduos isoladamente, denunciando a força da ideologia burguesa do trabalho.
Com muita indignação e surpresa, Forrester (1997) mostra como os desempregados buscam desempenhar a tarefa que a sociedade lhes atribui, qual seja, a de procurar emprego numa sociedade na qual se anuncia o fim dos empregos. Assim, diz ela:
continuamos com rotinas bem estranhas. Não se sabe se é cômico ou sinistro, por ocasião de uma perpétua, irremovível e crescente penúria de empregos, impor a cada um dos milhões de desempregados e isso a cada dia útil de cada semana, de cada mês, de cada ano a procura "efetiva e permanente" desse trabalho que não existe. Obrigá-lo a passar horas, durante dias, semanas, meses e, às vezes, anos se oferecendo todo dia, toda semana, todo mês, todo ano, em vão, barrado previamente pelas estatísticas. (p. 14)
Forrester (1997) evidencia que a sociedade determina tarefas as quais já não são possíveis de serem cumpridas. Nesse hiato, nesse anacronismo entre realidade simbólica (ideologia do trabalho) e realidade material (fim dos empregos) reside a tragicomicidade da situação.
A partir da interiorização do controle social reproduz-se a sociedade. E é nessa situação, em que o reconhecimento como pessoa e o direito à vida vêm por meio do emprego e/ou do trabalho útil, que se dá o que Forrester (1997) denomina de violência da calma e que, segundo ela,
É a mais perigosa, a que permite que todas as outras se desencadeiem sem obstáculo; ela provém de um conjunto de opressões oriundas de uma longa, terrivelmente longa, tradição de leis clandestinas. "A calma dos indivíduos e das sociedades é obtida pelo exercício de forças coercitivas antigas, subjacentes, de uma violência e de uma eficácia tal que passa despercebida", e que, no limite, não é mais necessária, por estar inteiramente integrada; essas forças nos oprimem sem ter mais que se manifestar. Só aparece a calma a que fomos reduzidos antes mesmo de nascer. Essa violência, escondida na calma que ela própria instituiu, sobrevive e age, indetectável. Ela cuida, entre outras coisas, dos escândalos que ela própria dissimula, impondo-os mais facilmente e conseguindo suscitar uma tal resignação geral que já não se sabe mais ao que se está resignando: de tão bem que ela negociou seu esquecimento! (p. 18)
Viviane Forrester (1997), após ter trazido vários argumentos para defender o absurdo de tal situação posta por uma lógica utilitarista, questiona-se: "será 'útil' viver quando não se é lucrativo ao lucro?" (p. 15).
Paul Lafargue (1999) já alertara, na segunda metade do século XIX, que seria suficiente, àquela época, trabalhar 3 horas por dia durante seis meses do ano. Em seu panfleto O direito à preguiça, em tom bastante provocativo, desafiava a classe trabalhadora a ter na preguiça uma virtude e não um vício, como nos fez crer, por exemplo, a ética protestante enraizada no espírito do capitalismo descrita por Max Weber (1989). Para Lafargue (1999) era "sandice" a adoração ao trabalho, ao trabalho alienado. Importante frisar que o trabalho como atividade genérica não é, em si, considerado como um mal para a humanidade. Segundo Chaui (1999), Marx e Lafargue consideravam que
o trabalho, em si mesmo, é uma das dimensões da vida humana que revela nossa humanidade, pois é por ele que dominamos as forças da natureza e é por ele que satisfazemos nossas necessidades vitais básicas e é nele que exteriorizamos nossa capacidade inventiva e criadora o trabalho exterioriza numa obra a interioridade do criador. (p. 33)
Se de um lado, a "sandice" do trabalho é para os trabalhadores a obrigação de trabalhar cada vez mais, produzir cada vez mais, sem direito a consumir; de outro, como diz Lafargue (1999), a burguesia vê-se obrigada ao superconsumo:
As mulheres da "sociedade" levam uma vida de mártires. Para provar e dar sentido às toaletes feéricas que os costureiros se matam fazendo, de manhã à noite elas mudam de vestido; durante horas entregam suas cabeças ocas aos artistas capilares que, a todo preço, querem dar largas a suas paixões pelos andaimes de falsos carrapitos. Encerradas em seus espartilhos, apertadas em suas botas, decotadas a ponto de fazer corar um frade de pedra, rodam noites inteiras em seus bailes de caridade a fim de juntar alguns centavos para os pobres. Santas almas! (p. 91)
Antes, ainda, no século XVI, Etienne de La Boétie (1997) escreve o Discurso sobre a servidão voluntária. Ali, o ataque tem como mira o feudalismo e sua indignação é dirigida contra os homens que não querem a liberdade. Amante da liberdade, La Boétie escreve, em tom inconformado, que a servidão é um vício.
Que vício, que triste vício será este: um número infinito de pessoas não só a obedecer mas a servir, não governadas, mas tiranizadas, sem bens, sem pais, sem filhos, sem vida a que possam chamar sua? Suportar a pilhagem, as luxúrias, as crueldades, não de um exército, não de uma horda de bárbaros, contra os quais dariam o sangue e a vida, mas de um só? (p. 19)
E mais à frente, La Boétie, na forma de questionamento, afirma que o poder do tirano é extraído dos tiranizados:
Onde iria ele [o tirano] buscar os olhos com que vos espia se vós não lhos désseis?
Onde teria ele mãos para vos espancar se não tivesse as vossas?
Os pés com que esmaga as vossas cidades de quem são senão os vossos?
Que poder tem ele sobre vós que de vós lhe não venha?
Como ousaria ele perseguir-vos sem a vossa própria conivência?
Que mal poderia ele fazer-vos se vós não fôsseis encobridores daquele que vos rouba, cúmplices do assassino que vos mata e traidores de vós mesmos? (La Boétie, 1997, p. 25)
Hoje, o discurso da competência, expresso, por exemplo, em revistas vendidas em bancas de jornais, como a Você S.A.4, dentre outras, se põe a serviço da violência da calma, dando "dicas" sobre como sobreviver nesse mundo competitivo, prescrevendo desde cursos e MBAs até modos de apresentação pública por ocasião de uma entrevista de seleção para o emprego. Mesmo nos momentos de lazer, dizem essas revistas, deve-se buscar a atualização profissional. O lazer, afinal, pode, também, ser capitalizado para o trabalho.
Frente à ameaça do desemprego é possível suportar trabalhar em empregos e em atividades nos quais é difícil identificar qualquer traço de dignidade, de humanidade. E, ainda, naturalizar a dor e o sofrimento impostos pelas condições de trabalho, como evidenciado, por exemplo, no depoimento de uma trabalhadora com lesão por esforço repetitivo (LER) que dizia ter sentido uma "dor normal" no início da síndrome. Esse contexto torna-se propício ao não-estranhamento de situações degradantes de trabalho, tais como passar 8 horas por dia cortando a asa direita do frango ou catando papel e latinhas na rua. Se se aceita trabalhar e ver pessoas trabalhando nessas condições é porque a ética protestante é forte o suficiente para sustentar a calma, nesta violência.
A violência da calma é sintônica com aquilo que Dejours (1987) chama de ideologia da vergonha, a qual visa encobrir o fato de se estar doente e faz suportar condições adversas de trabalho em nome do corpo útil ao trabalho útil.
Uma pesquisa desenvolvida por alunos de graduação em psicologia mostrou que o discurso da competência alcança os estratos populares (Ackermann et al., 2003). Neles, há pessoas que passam de dois a três dias por semana procurando emprego em serviços públicos de recrutamento; outras, ainda, dedicam-se a fazer vários cursos de requalificação profissional. É possível pensar que essas atividades protegem os indivíduos da angústia frente à ausência de emprego, ocupando-lhes o tempo que seria dedicado ao trabalho, mas, simultaneamente, servem ao tamponamento da reflexão e apreensão crítica de sua situação. Alguns entrevistados manifestavam incômodo e receio quando solicitados a pensar sobre o seu desemprego, configurando a suspensão do cotidiano de busca por emprego propiciado pela entrevista como momento de angústia.
O mesmo discurso da competência está por trás da competição instaurada entre parte dos indivíduos que vivem o desemprego. É de se supor que a solidão e a competição incrementem o sofrimento, reforçando as explicações que culpabilizam o indivíduo, fechando o círculo que retém a pessoa na busca de soluções individuais.
No entanto, esta mesma pesquisa mostrou que há outros modos de enfrentamento do desemprego, norteados por outra lógica, em que a solidariedade, as redes de apoio e o uso do tempo - ausência de dicotomia entre tempo de trabalho e tempo de lazer; uso do tempo, igualmente, em atividades consideradas úteis ou não - se contrapõem ao discurso da competência.
Estas formas contra-hegemônicas calcadas na cooperação, na solidariedade, na vinculação a redes de apoio, na não-dicotomização de trabalho e lazer, útil e não-útil são preciosas como inspiração para uma psicologia do trabalho e uma clínica psicológica também contra-hegemônicas.
O sofrimento no desemprego advém do fato de se viver num mundo em que a ideologia burguesa de trabalho é a explicação hegemônica. Será que haveria sofrimento relacionado à ausência de emprego numa sociedade na qual o tempo livre, a preguiça e o ócio fossem virtudes?
A centralidade do trabalho para explicar a sociedade e para compreender a identidade e a subjetividade precisa recuperar a largueza do trabalho como atividade genérica em que o homem inscreve a sua subjetividade no mundo, furtando-se à visão utilitarista.
Psicologia, clínica psicológica e desconstrução da visão utilitarista do trabalho
Diante dos dois problemas apresentados até aqui, ou seja, o da visão utilitarista do trabalho e o do engajamento da psicologia nessa visão por meio de discursos e práticas adaptativos, cabe perguntar de que maneira e em que circunstâncias a psicologia e, mais especificamente, a clínica psicológica podem contribuir para a desconstrução da concepção utilitarista do trabalho. A resposta a essas questões teria, necessariamente, ressonâncias nos modos de compreender e enfrentar o sofrimento psíquico advindo do desemprego quando as pessoas buscam ajuda psicoterápica. Ao mesmo tempo, estas indagações permitem explorar as possibilidades e os limites das atuações psicológicas na abordagem das mazelas afetivas e emocionais relacionadas à insatisfação no trabalho e ao desemprego, uma vez que os indivíduos que vivem estas situações e as psicologias que a eles se dirigem são partícipes de um mesmo mundo social, cultural e político, no nosso caso, caracterizado como capitalista periférico.
Uma contribuição que está ao alcance, também, da psicologia, diz respeito à explicitação das representações hegemônicas do trabalho e ao oferecimento de outras representações, contra-hegemônicas.
Partindo-se do fato de que o imaginário social constrói a realidade e norteia as práticas sociais, a psicologia pode ser instrumento de acesso e crítica a conteúdos significativos deste imaginário. Por exemplo, o desemprego entendido como conseqüência de "deficiências" e/ou de dificuldades do indivíduo motiva e sustenta práticas que atuam sobre as mesmas buscando ultrapassá-las. Nesse caso, o lugar que ocupam tais "deficiências" é um conteúdo simbólico a ser questionado.
Como as ideologias sobre trabalho e desemprego são também alimentadas por valores e idéias produzidos pelas teorias psicológicas, o movimento que questiona tais ideologias coloca à prova essas próprias teorias.
Esta contribuição pode ser modestamente traduzida, no plano da clínica psicológica, por meio da noção winnicottiana do situar-se entre polaridades. (Winnicott, 1975). Para o trabalho psicoterapêutico, trata-se de sustentar uma posição de tensão entre representações polares que simplificam e reduzem a experiência dos indivíduos como, por exemplo, aquelas que os culpabilizam ou os vitimizam. Polaridades como estas evocam a convencional dicotomia entre mundo externo/mundo interno cara às psicologias. O que se quer aqui indicar é a pertinência do situar-se como ponto organizador de uma ajuda psicológica voltada para o universo do trabalho e do desemprego, na qual o setting psicoterapêutico se constitua como oportunidade de interrogação sobre quem se é, indissociável da interrogação sobre onde se está. Ou seja, para o psicoterapeuta significa poder sustentar e, mesmo facilitar, que o cliente interrogue-se a si mesmo, interrogando, ao mesmo tempo, o mundo em que se move.
Uma outra contribuição pertinente à psicologia diz respeito à criação de micro-espaços coletivos propícios à apreensão pública, e não privada, do desemprego e sua vivência por indivíduos concretos, bem como à inserção de práticas psicológicas nas redes de apoio que podem se constituir em torno dos desempregados. De modo mais amplo, as iniciativas voltadas à geração de trabalho e renda, tais como as cooperativas populares de trabalho, são também uma ocasião para a inserção do psicólogo, ao mesmo tempo em que aglutinam pessoas desempregadas (Sato & Esteves, 2002; Singer, 2002).
Para os indivíduos, a referência de um grupo5 no qual podem compartilhar suas experiências pode ser decisiva tanto para relativizar as posições polares de vítima e culpado, quanto para ressignificar o trabalho, refletir sobre o tipo de relação que se estabelecia com o trabalho e sobre as condições nas quais o trabalho se realizava, pensar-se na situação de desemprego e receber e dar "dicas" de como lidar com ela.
No plano das práticas psicoterápicas, considera-se que as mesmas possam se tornar uma referência quando articuladas às redes de apoio formadas espontaneamente em diferentes ambientes sociais tais como família, amigos, ex-colegas de trabalho, comunidades religiosas e, até, o bar (Ackermann, et al., 2003).6
Esta referência em que a psicoterapia pode se transformar recebe, aqui, o nome de morada, ou seja, possibilidade de repouso e suporte para a situação existencial de desenraizamento, desamparo e desesperança desencadeada pelo desemprego. O setting psicoterapêutico pode se apresentar como contraponto à inospitalidade, à adversidade e à ameaça que rondam os indivíduos que perderam seus empregos. Parece que um lugar imaginado e digno para a psicoterapia, no contexto das ações e discussões sobre o desemprego, deve ensejar um acolhimento que proteja e separe, por um tempo, os indivíduos do perigo e do risco (Schmidt, no prelo).
Um olhar psicológico pode, também, ser importante para salientar que as mudanças existenciais e psicológicas que são, muitas vezes, experimentadas pelos desempregados pedem cuidados que ultrapassam sua mera recolocação no mercado de trabalho. A proteção e o amparo psicológicos estendem-se, ainda, na apreciação das tentativas de retorno ao emprego, uma vez que se considera que este retorno, em condições adversas de trabalho, para um indivíduo fragilizado, pode tender mais ao prejuízo psicológico do que ao benefício (Schmidt, 2004).
Com as contribuições aqui elencadas não se está querendo afirmar que a psicologia, e mais especificamente a psicologia clínica, resolva a grave questão do desemprego, pois esta resolução depende das políticas macro-sociais, das políticas públicas de corte social (desemprego, saúde, educação, entre outras) e dos movimentos sociais. Por esse motivo, muitas vezes a atuação psicológica assume um caráter emergencial, procrastinador e remediativo, embora de valor subjetivo para aqueles que sofrem.
Conclusão
Nesse ensaio buscou-se ilustrar os desdobramentos teóricos e empíricos de uma profícua articulação entre a prática da psicologia clínica e a psicologia do trabalho nascida de uma imposição da realidade: a emergência do tema desemprego nos atendimentos do SAP. Essa referência à realidade do sofrimento e das práticas em suas possibilidades e limitações confere à interlocução uma ancoragem concreta que visa aprimorar o atendimento imediato a situações de grave sofrimento emocional geradas pelo desemprego em suas implicações materiais e simbólicas. Sabendo que a atenção psicoterápica é apenas um item na batalha contra as adversidades provocadas pelo desemprego, esse tipo de articulação pode angariar conhecimentos que subsidiem o delineamento de políticas públicas comprometidas com as dimensões psicológicas e afetivas relacionadas a trabalho e desemprego.
Ao mesmo tempo, tal articulação mostra que a superação da fragmentação das áreas da psicologia pode produzir efeitos não apenas para o conhecimento, mas também nortear ações políticas.
Notas
Leny Sato, doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, é coordenadora do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho (CPAT), Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, no mesmo Instituto.
Maria Luisa Sandoval Schmidt, doutora em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, é coordenadora do Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP) no mesmo Instituto. E-mail: liana@macbbs.com.br
Referências bibliográficas
- Ackermann, K., Amaral, M. A., Silva, J. C. B., Geraldes, A. L., Lima, T. N., Lombardi Júnior, M., Mendes, A., & Scandiucci, G. (no prelo). O desemprego do tempo: narrativas de trabalhadores desempregados em diferentes ambientes sociais. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
- Antunes, R. (1995). Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses do trabalho e a centralidade do mundo do trabalho São Paulo: Cortez.
- Borges, L. H., Moulin, M. G., & Araújo, M. D. (2001). (Orgs.). Organização do trabalho e saúde: múltiplas dimensões Vitória: Editora UFES.
- Castel, R. (2003). As metamorfoses da questão social - uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.
- Chaui, M. (1999). Introdução. In P. Lafargue (Org.), O direito à preguiça (pp. 9-56). São Paulo: Editora UNESP/Hucitec.
- Dejours, Ch. (1987). A loucura do trabalho - estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Oboré.
- Dejours, Ch., Abdoucheli, E., & Jayet, C. (1994). (Orgs.). Psicodinâmica do trabalho - contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho São Paulo: Atlas.
- Fonseca, T. M. G. (2000). Gênero, subjetividade e trabalho. Petrópolis: Vozes.
- Forrester, V. (1997). O horror econômico. São Paulo: Editora UNESP.
- Guimarães, E. V. (2003). Executivos em revista. Discursos de e para executivos e aspirantes a executivo Dissertação de Mestrado não-publicada, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
- Jahoda, M. (1982). Empleo y desempleo: un análisis socio-psicologico Madrid: Montana.
- Kalimo, R., El-Batawi, M., & Cooper, C. L. (Orgs.). (1987). Psychosocial factors at work and their relation to health. Londres: World Health Organization.
- Kristensen, T. S. (1995). Demand-control-support model: methodological challenges for future research. Stress Medicine, 11, 17-26.
- La Boétie, E. (1997). O discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa: Antígona.
- Lafargue, P. (1999). O direito à preguiça. São Paulo: Editora UNESP/Hucitec.
- Lalande, A. (1999). Vocabulário técnico e crítico de Filosofia São Paulo: Martins Fontes.
- Marx, K. (1980). O Capital (Crítica da Economia Política). Livro 1 - O processo de produção do capital São Paulo: Civilização Brasileira.
- Mello, S. L. (1988). Mulheres no campo e na periferia. São Paulo: Ática.
- Menezes Junior, A., Ramos, C. H. G., Fernandes, D. L., Ruzzante, G., Koga, R., Oliveira Neto, S., & Oliveira, T. A. (1999). O problema do desemprego - como ele é trazido até o serviço de Aconselhamento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP Relatório de estágio não-publicado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
- Oddone, I., Marri, G., Gloria, S., Briante, G., Chiattella, M., & Re, A. (1986). Ambiente de trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde São Paulo: Hucitec.
- Prilleltensky, I. (1994). The moral and politics of psychological discourse and the status quo Nova York: New York State University Press.
- Rodrigues, A. M. (1978). Operário, operária São Paulo: Símbolo.
- Sato, L., Araújo, M., Udihara, M. L., Franco, F. N., Daldon, M. T. B., Settimi, M. M., & Silvestre, M. P. (1993). Atividade em grupo com portadores de LER e achados sobre a dimensão psicosocial. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 21(79), 49-62.
- Sato, L., & Esteves, E. (2002). Autogestão - possibilidades e ambigüidades de um processo organizativo peculiar São Paulo: Central Única dos Trabalhadores/ Agência de Desenvolvimento Solidário.
- Sato, L., Lacaz, F. A. C., & Bernardo, M. H. (2004). Psychology and the workers' health movement in the state of São Paulo (Brazil). Journal of Health Psychology, 9(1), 121-130.
- Schmidt, M. L. S. (2004). Clínica psicológica e desemprego: uma interlocução esclarecedora, Manuscrito não-publicado, Universidade de São Paulo, São Paulo.
- Schmidt, M. L. S. (no prelo). A clínica psicológica, trabalho e desemprego. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
- Seligmann-Silva, E. (1994). Desgaste mental no trabalho dominado Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Cortez.
- Seligmann-Silva, E. (1997). A interface desemprego prolongado e saúde psicossocial. In J. Silva Filho & S. Jardim (Orgs.), A danação do trabalho: organização do trabalho e sofrimento psíquico (pp. 20-63). Rio de Janeiro: Te Corá.
- Silva Filho, J., & Jardim, S. (1997). A danação do trabalho: organização do trabalho e sofrimento psíquico Rio de Janeiro: Te Corá.
- Singer, P. (2002). Introdução à economia solidária São Paulo: Fundação Perseu Abramo.
- Terra, C. P., Carvalho, J. A. S., Azevedo, J. E. A., Venezian, L. A., & Machado, S. B. (2003). Desemprego: discurso e clínica. Como o desemprego se comunica com o sofrimento psíquico, entre os clientes do Serviço de Aconselhamento Psicológico do IPUSP, Manuscrito não-publicado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.
- Thiollent. M. (1988). Metodologia da pesquisa-ação São Paulo: Cortez.
- Tittoni, J. (1994). Subjetividade e trabalho: a experiência no trabalho e sua expressão na vida do trabalhador fora da fábrica Porto Alegre: Ortiz.
- Weber, M. (1989). A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo: Pioneira.
- Weil, S. (1996). A condição operária e outros estudos sobre a opressão São Paulo: Paz e Terra.
- Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade Rio de Janeiro: Imago.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Jun 2005 -
Data do Fascículo
Ago 2004