Resumos
O movimento hip-hop tem, em sua composição social, jovens pobres que se organizam de modos diversos. Na cidade de Recife, localizamos diferentes formas político-organizativas convivendo simultaneamente, uma associação, uma rede, inúmeras crews (posses) e grupos que não obedecem a uma territorialidade, nem buscam seguir a tradição de estar articulados em todos os elementos. O objetivo deste texto é evidenciar os conflitos sociais que tal movimento instaura, as tensões que provoca no sistema de referências com o qual se relaciona e as instabilidades que ele causa na lógica hegemônica. Para tanto, apresentamos a dinâmica do movimento, seu sistema de referências, tensões, conflitos e antagonismos com os quais ele trabalha. Identificamos três conflitos principais: a juventude pobre no contexto da sociedade de consumo; a mídia e sua relação com a indústria cultural; e a afro-descendência. Os antagonismos se colocam na formulação de um campo ético-político referente à participação convencional e não convencional.
movimento hip-hop; conflitos; antagonismos
El movimiento hip-hop, tiene en su composición social, jóvenes pobres que se organizan de diferentes maneras. En la ciudad de Recife, encontramos diferentes formas de organizaciones políticas que conviven al mismo tiempo, unas son asociaciones, otras redes, innumerables crews (tripulación) y grupos que no obedecen a un determinado territorio, ni buscan seguir la tradición de estar articulados con todos sus elementos. El objetivo de este texto es evidenciar los conflictos sociales que este movimiento instaura, las tensiones que genera en el sistema de referencias con el cual se relaciona y la inestabilidad que causa dentro de la lógica hegemónica. Por lo tanto, presentamos la dinámica del movimiento , su sistema de referencias, tensiones, conflictos y antagonismos con los cuales el trabaja. Identificamos tres conflictos principales: La juventud pobre en el contexto de una sociedad de consumo; los medios de comunicación y su relación con la industria cultural; y la afro descendencia. Los antagonismos surgen en la formulación de un campo ético y político que indica una participación convencional y no convencional.
movimiento hip-hop; conflictos; antagonismos
The hip-hop movement has in its social composition, young poor people who organize themselves in different ways. In the city of Recife, we find different political and organizational forms coexisting at the same time, an association, a network, many crews (possessions) and groups that do not follow a territorial or seek to follow the tradition of being articulated in all elements. The aim of this paper is to highlight the social conflicts that this movement establishes, the tensions that it provokes in the reference system with which is related and the instabilities in the hegemonic logic that it causes. Therefore, we present the dynamics of the movement, its system of references, tensions, conflicts and antagonisms with which it works. We identified three major conflicts: the youth poverty in the context of the consumer society, the media and its relationship with the cultural industry, and African-descent. The antagonisms are placed in an ethical political field´s formulation that is related to conventional and unconventional participation.
hip-hop movement; conflicts; antagonisms
DOSSIÊ JUVENTUDE E POLÍTICA
Posicionamentos e controvérsias no movimento hip-hop
Positions and controversies in hip-hop movement
Posicionamientos y controversias en el movimiento hip-hop
Jaileila Araújo Menezes; Mônica Rodrigues Costa
Universidade Federal de Pernambuco
RESUMO
O movimento hip-hop tem, em sua composição social, jovens pobres que se organizam de modos diversos. Na cidade de Recife, localizamos diferentes formas político-organizativas convivendo simultaneamente, uma associação, uma rede, inúmeras crews (posses) e grupos que não obedecem a uma territorialidade, nem buscam seguir a tradição de estar articulados em todos os elementos. O objetivo deste texto é evidenciar os conflitos sociais que tal movimento instaura, as tensões que provoca no sistema de referências com o qual se relaciona e as instabilidades que ele causa na lógica hegemônica. Para tanto, apresentamos a dinâmica do movimento, seu sistema de referências, tensões, conflitos e antagonismos com os quais ele trabalha. Identificamos três conflitos principais: a juventude pobre no contexto da sociedade de consumo; a mídia e sua relação com a indústria cultural; e a afro-descendência. Os antagonismos se colocam na formulação de um campo ético-político referente à participação convencional e não convencional.
Palavras-chave: movimento hip-hop; conflitos; antagonismos.
ABSTRACT
The hip-hop movement has in its social composition, young poor people who organize themselves in different ways. In the city of Recife, we find different political and organizational forms coexisting at the same time, an association, a network, many crews (possessions) and groups that do not follow a territorial or seek to follow the tradition of being articulated in all elements. The aim of this paper is to highlight the social conflicts that this movement establishes, the tensions that it provokes in the reference system with which is related and the instabilities in the hegemonic logic that it causes. Therefore, we present the dynamics of the movement, its system of references, tensions, conflicts and antagonisms with which it works. We identified three major conflicts: the youth poverty in the context of the consumer society, the media and its relationship with the cultural industry, and African-descent. The antagonisms are placed in an ethical political field´s formulation that is related to conventional and unconventional participation.
Keywords: hip-hop movement; conflicts; antagonisms.
RESUMEN
El movimiento hip-hop, tiene en su composición social, jóvenes pobres que se organizan de diferentes maneras. En la ciudad de Recife, encontramos diferentes formas de organizaciones políticas que conviven al mismo tiempo, unas son asociaciones, otras redes, innumerables crews (tripulación) y grupos que no obedecen a un determinado territorio, ni buscan seguir la tradición de estar articulados con todos sus elementos. El objetivo de este texto es evidenciar los conflictos sociales que este movimiento instaura, las tensiones que genera en el sistema de referencias con el cual se relaciona y la inestabilidad que causa dentro de la lógica hegemónica. Por lo tanto, presentamos la dinámica del movimiento , su sistema de referencias, tensiones, conflictos y antagonismos con los cuales el trabaja. Identificamos tres conflictos principales: La juventud pobre en el contexto de una sociedad de consumo; los medios de comunicación y su relación con la industria cultural; y la afro descendencia. Los antagonismos surgen en la formulación de un campo ético y político que indica una participación convencional y no convencional.
Palabras clave: movimiento hip-hop; conflictos; antagonismos.
O hip-hop não é, portanto, um movimento orgânico que produz grupos homogêneos. Ao contrário, existem várias correntes, linhas e ênfases que os diferenciam em países, cidades, bairros e estilos, já que a circulação de bens culturais não se faz nunca em uma direção unilateral (Novaes, 2009, p. 2).
A socióloga Novaes (2009) - estudiosa da temática juventude - ao tratar do hip-hop, aborda aspectos relevantes para os estudos dos movimentos sociais, que possibilitam refletir, acionar tensões e interseções. Considerando-se que o hip-hop se caracteriza como movimento social juvenil, pretendemos abordálo do ponto de vista da conflitualidade e dos antagonismos, em oposição a uma lógica pautada no confronto entre as classes sociais, que desconsidera que a luta social pode ser instaurada a partir da identidade.
Para Melucci (2001), os movimentos sociais não resultam, predominantemente, de crises conjunturais e econômicas, mas expressam conflitos que podem ser de naturezas diversas e que se expressam via ações coletivas e reconhecimento de aspectos políticos ainda não vocalizados, a exemplo da sexualidade e da vida privada, tendo como característica vínculos relativos ao reconhecimento-pertencimento.
Os vínculos de pertença contribuem para a construção de identidades coletivas. Nelas, segundo Melucci (2001), há a interação que possibilita o compartilhamento de valores e princípios que definem a cultura política do coletivo e orienta à ação. Sua constituição instaura um processo incessante de negociações, que revelam sua complexidade e pluralidade de orientações em sua relação com o contexto social.
A complexidade e pluralidade que constituem a identidade coletiva podem instaurar conflitos no seu interior e com outras identidades coletivas. A importância de caracterizar ou explorar a natureza dos conflitos é justamente identificar a heterogeneidade de um movimento social e dos conflitos que este pode acionar ao mesmo tempo. "Se o conflito não ultrapassa os limites do sistema de referência, encontramo-nos diante da competição de interesses no interior de certa ordem normativa" (Melucci, 2001, p. 36).
De outro modo, se instaura rupturas no sistema de referência, trata-se de um antagonismo (Laclau & Mouffe, 2004), que se configura pela presença do outro: "[...] la presencia del otro me impide ser totalmente yo mismo" (Laclau & Mouffe, 2004, p. 168). O antagonismo expressa, portanto, os limites da objetividade, pois subverte os limites do social e gera a impossibilidade de haver a unidade ou a totalidade do social.
O antagonismo pode emergir em diversos pontos do social, como particularistas, em diferentes espaços políticos, e criar pontos de ruptura. Pode, também, apelar a princípios universais, para demarcar o campo de construção de sua identidade (Laclau, 2001). Os princípios que orientam o hip-hop são considerados referentes comuns ao campo dos movimentos sociais e da tradição de esquerda, como: paz, união, solidariedade, liberdade, justiça e igualdade. Desse ponto de vista, os antagonismos - inclusive no âmbito dos valores que orientam a ação coletiva - colocam "[...] em questão o poder hegemônico1 1 . Segundo Laclau e Mouffe (2004) a hegemonia é uma lógica de articulação, que atua através da presença de forças antagônicas e da instabilidade das relações de poder. , seus objetivos e regras" (Mutzemberg, 2002, p. 39).
Assim, cabe perguntar: Quais conflitos o movimento hiphop instaura na sociedade e de que natureza são? O objetivo deste texto é justamente evidenciar os conflitos sociais que tal movimento instaura, as tensões que provoca no sistema de referências com o qual se relaciona e as instabilidades que ele causa na lógica hegemônica. Para dar conta de tais questões, expomos, a seguir, a dinâmica do movimento, seu sistema de referências, tensões e conflitos.
O cenário da pesquisa
Este artigo resulta de uma pesquisa que foi realizada junto aos jovens do movimento hip-hop da cidade de Recife, que, embora residam nas periferias, têm oportunidade de circular pela cidade, em razão de suas práticas artísticas e políticas. Esse fluxo de circulação impôs o desafio de melhor conhecer as dinâmicas que operam na cidade. Recife é dividida territorialmente em 94 bairros, distribuídos em seis regiões político-administrativas (RPAs). O município reconhece a existência de 66 zonas especiais de interesse social (ZEISs), que significam áreas ocupadas, em geral, pela população pobre da cidade, sem infraestrutura adequada e em situação de risco.
A lógica de gestão que vigorou no período entre 2001 a 2012 na cidade foi o orçamento participativo. A partir dele, as demandas e necessidades da população são eleitas e priorizadas para investimentos, a chamada "inversão de prioridades" - colocou a periferia em situação privilegiada de negociação -, mas não foi suficiente para reverter o quadro de desigualdade historicamente instaurado.
A questão da sobrevivência da população, especialmente da população jovem, é atualmente problematizada, tendo em vista os dados alarmantes da mortalidade juvenil na capital e no estado. Os estudos indicam que as mortes são circunscritas a aspectos estruturais da sociedade e da convivência de grupos, assim, são referentes ao contexto macrossocial. Segundo o Mapa da violência de 2012 do Instituto Sangari (Waiselfisz, 2011), em Pernambuco, dos jovens que morreram 50,1% foram por homicídio. O estado figura entre os seis em que os óbitos juvenis por homicídio estão acima da mortalidade geral juvenil.
Embora marcada por esse quadro de violência, Recife é uma cidade historicamente conhecida por sua forte tradição cultural e, desde os anos 1990, tem sido reconhecida como celeiro de produção nesse campo. Isso atrai investimentos locais e nacionais, o que gera incentivos à qualificação profissional e à criação de novos mercados.
Vale ressaltar que essa produção cultural comumente está associada a uma dimensão política peculiar. Historicamente, Pernambuco também foi celeiro de lutas sociais e movimentos político-culturais, como o movimento Armorial e, mais recentemente, o movimento Manguebeat. O termo manguebeat faz uso da palavra mangue, que reporta à ideia de um tipo de ecossistema, em que há biodiversidade, fertilidade e diversificação. O movimento utiliza tal termo para tratar criticamente da precariedade da vida das populações pobres na cidade, inspirado pelas análises de Josué de Castro2 2 . Josué de Castro foi um pernambucano estudioso e ativista do combate à fome, tem várias obras publicadas sobre o tema e é reconhecido internacional e nacionalmente por sua atuação em vários organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação [FAO] e como embaixador brasileiro na ONU. ao uso do mangue como único meio de sobrevivência da maioria da população de sua época. Conforme Tesser (2007), o Manguebeat é um movimento cultural dos anos 1990 que se afirma como alternativa às imposições da indústria cultural, por abordar as desigualdades sociais vividas nas periferias dos grandes centros urbanos, em especial da cidade do Recife, propondo o reconhecimento da potência criativa desse território e sua valorização.
Inspirada em uma metodologia que valoriza procedimentos compreensivos dos significados das práticas sociais, a produção do corpus da pesquisa se deu por meio dos seguintes procedimentos: a) conversas informais registradas durante o acompanhamento de atividades e eventos do movimento hip-hop; b) entrevistas individuais com lideranças, jovens membros do movimento e moradores das comunidades onde eles desenvolvem ações educativas por meio de suas crews3 3 . C rews - palavra em inglês que significa grupo, membro, integrante. A crew pode ser entendida como território que exprime intervenção mais ampla e coletiva de divulgação dos ensinamentos do hip-hop (Costa & Menezes, 2009). ou posses; c) relatório das observações realizadas nas situações de contato com os grupos.
Como procedimentos para registro de informações, utilizamos a observação regular e simples (Lakatos & Marconi, 1991) e acompanhamos as atividades promovidas pelo movimento hip-hop, tais como: shows de rap, mutirões de grafite, rodas de break. O trabalho de observação permitiu aproximarmonos do universo de significação dos jovens em tela e embasou a formulação dos roteiros de entrevista, com o devido ajuste de linguagem e seleção de atores sociais.
Adotamos a perspectiva da análise de discurso como o "campo" que informa sobre as práticas sociais, considerando suas condições de manutenção e ruptura por meio da linguagem (Potter, 1998). Esse procedimento de análise foi fundamental >para a percepção das tensões existentes dentro do próprio movimento, de seu entendimento sobre as relações entre ação política e cultural, e, principalmente, da estratégia linguística utilizada pelos participantes para falar das repercussões de sua participação em seu modo de ser e existir e em sua relação com os outros e com o mundo.
Utilizamos a entrevista semiestruturada para conciliar um roteiro mínimo de questões que atendessem aos objetivos da pesquisa e o acolhimento de temas trazidos pelos jovens no momento mesmo da interação. O roteiro da entrevista abordou três eixos: subjetividade, política e cultura. As questões do eixo um, sobre subjetividade, versavam sobre as mudanças na vida após a entrada no movimento, as alternativas abertas para a construção do futuro.
O eixo dois investigou a ação política do movimento em geral e nas comunidades (locais), a diversidade de posicionamentos dos grupos que participam do movimento hip-hop e suas contribuições para a construção de políticas de juventude. O eixo três, acerca da cultura, investigou o hip-hop como vocalizador da cultura local, a compreensão de cultura e sua relação com diversão, entretenimento e transformação da sociedade.
Os sujeitos dessa pesquisa foram 26 jovens entre 16 e 27 anos - cuja maioria, na época da entrevista, estava na categoria de jovem-jovem (10 entre 18-24 anos) e jovem-adulto (10 entre 25-29 anos). Dois deles estavam na categoria adolescente-jovem (entre 15-17anos). Realizamos também entrevista com quatro informantes com mais de 29 anos, por causa de suas apropriações com relação à história do movimento na cidade e suas condições de referência e liderança para a juventude atual.
Em um universo de 26 informantes, a maioria do sexo masculino (havia apenas duas garotas), com relação ao desenvolvimento de atividades escolares e profissionais: 81% trabalhavam (e 23,8% tinham como ocupação a arte) e 19% não trabalhavam; concluíram o ensino médio 52,4%, cursavam o ensino médio 9,5% e 14,3%, o supletivo; 9,5% estavam na condição de universitários e 14,3% pararam de estudar. A maioria dos jovens morava em bairros periféricos da cidade, e 74% deles residiam com os pais, 13%, sozinhos e 13% moravam com esposa e filhos (as).
Georreferenciamos a concentração dos grupos de hip-hop no cinturão periférico da cidade, com o mapeamento de grupos dedicados aos diferentes elementos da cultura hip-hop, alguns grupos mistos, outros (em sua maioria) exclusivos de meninos (ainda é uma cultura hegemonicamente masculina), em versões gospel e secular, com diferentes tipos de organização, em posses que articulam jovens da mesma comunidade ou de uma diferente. Há ainda diversidade quanto ao entendimento da relação cultura e política, nesse caso, há grupos que privilegiam a dimensão cultural e outros que trabalham na perspectiva estratégica de articulação desses campos.
Para fins de desenvolvimento deste texto, estabelecemos dois eixos de análise: o sistema de referências e os posicionamentos do movimento hip-hop; e as controvérsias do movimento na interface produção cultural, consumo e cidadania.
O sistema de referências do movimento hip-hop
Na cidade de Recife, localizamos diferentes formas organizativas convivendo simultaneamente: uma associação, uma rede, inúmeras crews e grupos que não obedecem a uma territorialidade geográfica, nem buscam seguir a tradição de estar articulados com todos os elementos. Advogamos o território como campo relacional, ou seja, campo de forças, de relações de poder espacialmente delimitadas em um contexto específico (Costa & Menezes, 2009). Nessa perspectiva, evita-se uma leitura reducionista que anule os aspectos sociais de suas vivencias espaciais.
A heterogeneidade organizativa informa diferentes possibilidades de lidar com o campo político. Em Recife, localizamos um grupo com posicionamento político que dissocia a cultura hip-hop das bandeiras ético-políticas do movimento, direcionando sua ação exclusivamente para o entretenimento. Com isso, vulnerabiliza os elementos da cultura hip-hop, que passam a trabalhar em favor de um repertório clientelista e personalista, como o financiamento dos grupos, que conduz a uma vertente que não estimula posicionamentos críticos.
Outro posicionamento pode ser representado pela Associação Metropolitana de hip-hop em Pernambuco [AMH2], que busca aglutinar os diversos grupos espalhados pela cidade e região metropolitana. Ele afirma-se como movimento social - Movimento Cultural, Político e Social hip-hop - e divulga seus objetivos em estatuto.
Nesse sentido, há clara demarcação política de seus objetivos, que atribui à Associação forte compromisso com a transformação social, no entanto, os termos de sua operacionalização ainda estão nebulosos. Prevalecem pautas de caráter emergencial, que priorizam eventos, editais, espaços para apresentação dos grupos, indicação de membros para participação em projetos e programas sociais, ou seja, ações direcionadas à garantia da vinculação desses jovens ao movimento, para sua inserção em um contexto de economia alternativa.
Tem-se aí uma ambiguidade e uma controvérsia. A ambiguidade refere-se ao fato de constar em seu estatuto o objetivo da transformação social, mas, na prática política, isso ser suplantado por uma dinâmica que esvazia o sentido político da luta pela sobrevivência de seus membros. Assim, gera-se a controvérsia: a sobrevivência deveria pautar-se em (e não concorrer com) um projeto político de transformação social qualificado pela problematização das desigualdades em que esses jovens estão imersos.
O desafio que se coloca é o reconhecimento das condições da luta política no sistema capitalista que exige, para os movimentos sociais e, no caso em tela, para o hip-hop, a constituição de um terreno de forças políticas e organizativas com dupla tarefa: problematizar as desigualdades e lutar por redistribuição.
De que modo esse desafio está sendo enfrentado? A Associação dialoga com o poder público, com pautas relativas ao fortalecimento do movimento hip-hop, à garantia de espaços de expressão e ao engajamento em iniciativas, programas e projetos que são do próprio poder público - Pró-Jovem, Escola Aberta e Círculos Populares. Ela aglutina os diferentes grupos numa dinâmica organizativa mais estruturadora e tradicional, com um esquema de participação representacional interno (diretorias, assembleia e conselho) e externo, já que é uma organização juridicamente instituída (com estatuto registrado).
Pela via da política da identidade, a Associação responde ao desafio e às tarefas nele embutidas, visando à transformação social. Os méritos dessa ação consistem em dar visibilidade a um movimento historicamente marginalizado, esforçar-se para manter suas bandeiras ético-políticas, num cenário personalista e clientelista, e pautar questões da identidade cultural, considerando o marcador: juventude pobre e negra. Ameaça sua ação política o precário vigor da problematização desses marcadores, especialmente das diversas facetas da desigualdade, considerando-se a ousadia da meta de transformação social.
Outro coletivo que se constitui no movimento hip-hop é a Rede de Resistência Solidária. Nessa forma organizativa, há maior fluidez, horizontalidade e capilaridade nas relações que se constroem entre os grupos e territórios de origem. Esse coletivo propõe a mobilização e intervenção dos jovens em suas comunidades, de modo a fazer convergir novos recursos sociais para o movimento, ao mesmo tempo em que busca a adesão de outros jovens e adolescentes ao hip-hop. Nesse processo, utiliza como recursos o mutirão de grafite, a produção de materiais (a produção de revista, CDs, exposições etc.) e o investimento em formação, para dinamizar econômica e solidariamente os jovens e a comunidade.
Mediante o acompanhamento de ações4 4 . Iniciamos o acompanhamento das ações (mutirões de grafite e reuniões de articulação) da rede no ano de 2008, na cidade de Recife. e debates da Rede de Resistência Solidária, acessamos outro universo de relações sociais, enraizadas e fluídas simultaneamente. Dois exemplos disso são emblemáticos: as relações que esses jovens engajados dinamizam nos bairros periféricos em que vivem e a organização dos grupos que praticam os elementos do hip-hop. Nos bairros periféricos, geralmente, há envolvimento das crews com a comunidade, pois os grupos organizam ações para envolver crianças, adolescentes e jovens em oficinas de grafite e de break.
As crews são, portanto, um modo de enraizar o movimento, de articulá-lo a outras organizações e de atrair outros jovens. A formação de um grupo que pratica elemento - rap, break ou grafite - não se orienta, necessariamente, por um território geográfico, no caso, um bairro em particular, pois tais grupos podem assumir configuração difusa, como alguns que agregam jovens residentes em diferentes bairros. Observamos a produção de uma dinâmica e mobilização coletivas, capazes de multiplicar, expandir e renovar o movimento.
A organização em rede possibilita certa agilidade e grande vitalidade social, expressas na problematização das relações entre os segmentos geracionais, para além da juventude, ou seja, a própria comunidade, o que pode colaborar para a desconstrução da ideia de marginalidade e periculosidade atribuída ao movimento hip-hop e a seus participantes. A rede apresenta formas alternativas ao sistema capitalista de produção, a exemplo da economia solidária, e articula-se com outros segmentos da sociedade civil organizada, como as associações de moradores. A Rede de Resistencia Solidária se mostrou avessa à participação em espaços governamentais, devido ao posicionamento crítico com relação às formas de aproximação dos políticos nas comunidades periféricas, que visam obter vantagens pessoais em detrimento de benefícios à coletividade.
Em diálogo com esse posicionamento a rede aposta em um estilo de participação política autônoma, marcado pela valorização das potências criativas das comunidades periféricas, pelo investimento em formação política sobre essa população, o que caracteriza uma intervenção fundamentada nas pautas éticopolíticas do movimento hip-hop. O investimento nestas práticas colabora para a sobrevivência e renovação do movimento hiphop, para a divulgação de expressões culturais alternativas, e o enfrentamento da estigmatização dos produtos culturais da periferia.
Mesmo reconhecendo toda a positividade dessa ação política, não podemos deixar de considerar: 1) o aspecto representativo do sistema democrático nacional requer agentes vocalizadores das demandas dos diferentes grupos; 2) a constituição de um cenário político governamental favorável a políticas públicas para a juventude demanda investimentos para sustentação de tal cenário e, por fim; 3) a distribuição dos recursos públicos implica em constituição e sustentação de pautas políticas de grupos específicos. A postura de distanciamento com relação aos espaços governamentais pode produzir um vácuo de participação na elaboração e decisão sobre as políticas públicas significativas para os jovens com direta repercussão em seus projetos de vida.
As vertentes do movimento hip-hop em Recife, acima expostas, apesar de suas diferentes formas organizativas, dialogam com o mesmo sistema de referência. Nos termos de Melucci (1989, 2001), um sistema de referência pode ser entendido como o contexto e seu campo relacional, que combina processos diversos: formas de poder, sistemas simbólicos, estruturas produtivas, sistemas de estratificação e processos decisórios. Nessa análise, localizamos como sistema de referência a dinâmica do movimento já exposta, os valores cultuados por ele, o contexto em que estão inseridos - as relações sociais nas comunidades, ser jovem pobre, as redes de apoio social - e suas relações com o poder público.
Os valores cultuados pelo movimento hip-hop
Doimo (1995), em estudo sobre os movimentos sociais pósanos 1970, afirma que suas novas configurações geram um campo ético-político que visa a influir socialmente, disputando padrões culturais. Pois bem, os princípios que orientam a ação coletiva do movimento hip-hop se situam num campo ético-político forjado por certa tradição de esquerda, de modo a pressionar o status quo do sistema capitalista e, com ele, disputam novas orientações para as relações sociais.
O campo ético-político que circula no movimento hiphop adota como princípios: liberdade, justiça, igualdade, paz, unidade, respeito e diversão, dentre outros. Isso posiciona o movimento socialmente, corroborando o campo de luta de outros movimentos sociais, e o coloca em pontos de disputa interna e externa ao movimento, à medida que o movimento negocia, tensiona, concorre com outros valores sociais alinhados ao sistema vigente.
O sistema capitalista em curso tem na lógica do mercado sua principal nutrição, mantém e agrava as desigualdades, recorre a mecanismos sutis de manutenção da autoridade e da lógica individualista. Somam-se a isso as peculiaridades da sociedade brasileira, que historicamente se assenta em relações autoritárias, paternalistas, personalistas, que marcam nossa gramática política.
O campo ético-político do movimento tem potência para gerar um "nós" em oposição ao "eles" - valores do sistema capitalista -, que garante a construção de identidade e a luta por igualdade. O "eles" é, ao mesmo tempo, constitutivo do "nós", por conta do jogo político, e uma ameaça a ele, pela via da exacerbação das individualidades, que gera disputa e rivalidade. A exacerbação das individualidades mobiliza adversidades ao "nós", que podem se expressar como agonismo ou como ruptura, quer dizer, pode haver convivência entre concepções opostas em um mesmo campo, disponibilidade para negociação, diálogo, práticas articulatórias ou sua impossibilidade. O que temos observado no movimento é a dificuldade de lidar com a face agonística da política.
A clareza sobre a condição de adversário do sistema capitalista é constantemente ameaçada pelo poder de sedução que ele exerce, já que oferece oportunidade de ganhos aos jovens, num cenário de empregabilidade precária. Nesse sentido, há certa adesão ao instituído, o que gera opacidade à leitura crítica e aos posicionamentos do movimento sobre as desigualdades.
A rede de relações sociais cotidianas
Tematizar a juventude pobre é circunscrever os campos de possibilidade e limites impostos a sua existência. Essa situação juvenil tem inscrição territorial muito clara: tais jovens ocupam as regiões periféricas da cidade, áreas degradadas ou favelas. Habitar esses espaços é ser alvo fácil da repressão policial, dada a cruel associação entre periferia-favela e violência-criminalidade. A situação complica-se quando, à marcação de classe social, somam-se aspectos étnico-raciais. Os estudos são claros, ao mostrar que a maioria da população negra ocupa as favelas, e o recorte jovem dessa população total aparece nas estatísticas de mortalidade, uma vez que os jovens negros e pardos são as maiores vítimas de homicídio (Waiselfisz, 2011).
Em condição escolar precária, participando ou não do mercado de trabalho, o jovem ainda figura como "esperança" em sua família, que oscila entre a urgência de resultados e a paciência para que, com preparo escolar, ele obtenha bom emprego. Família, escola e trabalho constituem os contextos tradicionais de inserção juvenil, mas há outros espaços de sociabilidade que propiciam experimentações alternativas a esses contextos. Falamos especificamente de grupos culturais, nos quais as relações são menos hierárquicas entre pares, há pouca interferência dos adultos e se configuram como espaços em que há maior liberdade e criatividade para o exercício da autonomia.
Com relação à condição juvenil, localizamos uma controvérsia relativa ao binômio tutela-agentividade, pois, se de um lado o jovem é visto como em preparação, por outro, há uma leitura e expectativa social de que, em termos geracionais, ele esteja em melhor condição para evocar a conflitualidade social (Melucci, 1997). A ressalva é de que essa capacidade de tematizar as desigualdades, desenvolver sensibilidade sobre as transformações sociais necessárias, não é exclusivamente geracional, tem direta relação com as experiências de reconhecimento das condições que circundam sua existência, possibilitando posicionamento antagônico ao sistema neoliberal.
No caso dos jovens participantes do movimento hip-hop, o engajamento está comumente associado às mudanças objetivas e subjetivas em suas vidas. Objetivamente, muitos relatam seu envolvimento com a produção de alternativas aos problemas da comunidade em que residem. Subjetivamente, destacam seu empoderamento, presente na capacidade de enfrentar situações de preconceito e discriminação de raça, território, de classe social e de gênero. A potência dessa participação encontra maior sustentabilidade a partir do apoio da rede de relações sociais cotidianas na qual os jovens estão imersos: parentes, amigos (outros jovens da comunidade e do movimento), comunidade escolar, vizinhos, lideranças comunitárias.
Como cidadãos ativos, os jovens dizem-se implicados em transformações em suas comunidades, no entanto, essa transformação precisa de apoio efetivo dos demais membros, pois prevalece uma percepção negativa sobre a juventude - e, no caso dos hip-hoppers, isso se agrava:
(...) a comunidade discrimina muito. Parte da base, aí já vem logo com olho diferente... não procura nem escutar a música... Aí, quem gosta de... às vezes... gosta de umas roupas mais folgadas... eu mesmo gosto.... eu viajo nessas roupas... aí, pra eles, a gente é marginal, maconheiro, entende? Tem uns que é mesmo, mas tem uns que não é. (Ne, 20 anos, comunicação pessoal, 2008)
Sobre a relação família-movimento hip-hop, localizamos pelo menos quatro posicionamentos: alguns jovens narraram a inserção no movimento por meio de familiares, outros receberam apoio após sua entrada: "(...) minha mãe que acha o rap legal... algumas bandas, né?, com letras positivas, porque tem bandas que, tu sabe, né? E inclusive minha irmã fez parte do Relato Consciente (...)" (Ne, 20 anos, comunicação pessoal, 2008).
Outros afirmaram a aceitação circunstancial da família, sendo o rendimento importante "moeda de troca" nesse processo. Ainda, houve casos de rejeição à participação dos jovens nesse movimento, seja por preconceito, discriminação ou por temor de que sejam assediados ou maltratados dentro da comunidade. No entanto, predomina o sentimento de confiança e apoio entre "irmãos" do mesmo grupo.
As relações sociais de amizade são indispensáveis, sendo o movimento e a escola apontados como contextos mais propícios a esse tipo de relação. Outro ponto a destacar é a aproximação entre o hip-hop e a escola, por meio de projetos desenvolvidos pela prefeitura e pelo governo do Estado, como o Escola Aberta. Dependendo do gestor, a escola pode, de fato, acolher o hip-hop e incentivar as culturas juvenis no contexto escolar e, com isso, contribuir para a manutenção dos jovens em espaço educativo.
Essa discussão conduz a considerar que a rede de relações é elemento primordial para o engajamento na comunidade, na escola, e para o envolvimento dos jovens em ações coletivas. Nesses termos, ela possibilita ou restringe as oportunidades de participação social e política, sustenta as iniciativas ou os constrangimentos. Na relação entre juventude e rede de relações, podemos destacar os seguintes posicionamentos: distanciamento do movimento e da comunidade; manutenção no movimento com distanciamento da comunidade; e manutenção no movimento e reformulação da rede de relações sociais.
As relações com o poder público
O último elemento do sistema de referências do movimento hip-hop é o poder público. O movimento tem apresentado diferentes posições e modos de se relacionar com o governo. Parte dos membros busca apoio e articulações para o desenvolvimento de ações, enquanto outra é refratária. Por que isso ocorre? Há uma série de aspectos que podem ser tratados como argumentos.
Há certo desencanto com a política, gerado por uma "abordagem individualista e racionalista" (Mouffe, 2001, p. 417) que visa a ganhos materiais e estratégicos, comumente utilizada por políticos que tencionam obter base eleitoral e social em favor de seus projetos pessoais. Recorrentemente, os jovens do hip-hop indicam o uso de práticas políticas dessa natureza nas periferias.
Muitos políticos que não tinham como resgatar os jovens pensavam que, pra resgatar os jovens, era só dar uma bola de futebol ou dar umas camisas, e pronto:
"Ah! o voto já é meu". Hoje em dia, eles tão vendo. Pode ver em novela, em filme, a turma tá muito na moda do
hip-hop
. Isso tá sendo a forma deles de entrar nos jovens, se aproximar mais dos jovens... isso que tão usando o
hip-hop
no meio, mas a gente tá ainda mantendo a resistência". (C., 26, comunicação pessoal, 2008)
Tais práticas personalistas contribuem para o descrédito da política, em sentido mais pleno. Dessa forma, ocorre um afastamento dos jovens do sistema político, da gestão e das instituições públicas que provoca uma rejeição a práticas relacionadas à representação política (Krischke, 2005).
As práticas políticas acima expostas, somadas à ineficácia do poder público e suas instituições ao responder às demandas sociais juvenis, provocam o distanciamento e, ao mesmo tempo, fazem emergir práticas políticas alternativas, cujo foco é o apoio entre os pares - os jovens apoiam-se mutuamente - e o apoio das comunidades, para solucionar algumas problemáticas.
O reconhecimento do hip-hop como cenário em que ocorrem significativas práticas políticas não convencionais leva a considerar as repercussões da ausência de sua participação nos espaços institucionais. Não podemos deixar de considerar a possibilidade dos ganhos para o próprio campo da política convencional, se a inventividade do movimento se presentificasse nesse espaço, e também retomamos aqui a ideia já explicitada de que, no sistema político vigente, para garantir a universalização dos direitos, a luta no campo da política institucional é fundamental.
Controvérsias do movimento hip-hop: Produção cultural, consumo e cidadania
Os jovens do hip-hop expõem, via suas expressões culturais, o rap, break e o grafite, as vulnerabilidades e privações vivenciadas pela juventude pobre. As insatisfações com o cotidiano se concretizam em demandas de caráter simbólico e instrumental, pela melhoria das condições de existência. O conteúdo do protesto é relativo à escolarização, à garantia de postos de trabalho, à remuneração digna, à segurança, à habitabilidade e ao direito à circulação na cidade com espaços para expressão e acesso à cultura.
Entendemos que acesso à cultura implica movimentos de reconhecimento e de redistribuição, investimentos para o desenvolvimento artístico dos jovens, via formações e intercâmbios. A ampliação do conhecimento artístico, em suas dimensões teórico-práticas, articula o circuito sociocultural da "cultura de elite" e o circuito "histórico-territorial", e aciona as dimensões étnicas, regionais e nacionais do patrimônio histórico e da cultura popular tradicional (Canclini, 2008).
A capacidade de desenvolver leituras críticas da realidade torna-se possível a partir da prática do quinto elemento - o conhecimento -, que norteia ético-politicamente o movimento, mediante os valores e princípios. Esse campo de valores e princípios, que se constituem em ideias-força (Scherer-Warren & Krischke, 1999) do movimento, concorre com uma cultura política pautada em práticas clientelistas, assistencialistas e personalistas.
Não podemos esquecer que as bandeiras do campo ético-político5 5 . Conforme Doimo (1995), os movimentos sociais forjam um campo ético-político contra-hegemônico ao status quo, que visa a favorecer a constituição de outros referentes para a vida social. do movimento hip-hop estão historicamente assentadas na luta racial, particularmente, na luta por direitos civis da população negra americana, que experienciou intensa segregação social. A positivação do "ser negro" tem sua origem nas organizações negras, a exemplo dos Black Panters6 6 . Conforme Andrade (1999) os Black Panters surgem como um partido que defende o povo afro-americano da violência policial, transformando sua luta progressivamente numa luta contra o racismo e lutando pelos direitos sociais e civis dessa população. , foi propagada por vários líderes da época e continua ecoando nos dias atuais, para fortalecer o enfrentamento da discriminação racial, ainda significativamente presente no cotidiano dos jovens participantes do movimento hip-hop, que carregam a dupla marcação da pobreza e da afro-descendência.
Inspirados pelo elemento conhecimento - que os informa sobre as relações históricas de poder e dominação, o processo de miscigenação, a lógica do colonizador-colonizado, os tensionamentos entre o global e o local -, os jovens podem acessar versões da história que potencializam sua agentividade e incentivam sua participação na construção de outras possibilidades para a vida em sociedade.
Mas em qual sociedade vivemos? Vivemos em uma sociedade referenciada pela globalização, processo que repercute nas dimensões econômicas, culturais, políticas e sociais e altera os cenários sociais, especialmente, a depender do modo como os países se inserem nesse processo. A globalização caracteriza-se pelo reconhecimento da interdependência econômica entre os Estados-nações, mantendo a lógica capitalista de assimetria e desigualdade. A produção é pautada nas inovações tecnológicas, o que instaura a inovação como referente do poder político que mobiliza as descobertas científicas e tecnológicas.
As revoluções de tempo-espaço instauradas pelo processo de globalização de base tecnológica repercutem no campo da produção e da circulação de informações (Giddens, 1991), de modo que essas últimas passam a ser capitais, em todos os sentidos que esse termo possa cobrir. Essas informações instauram práticas de consumo via mídias e seu poder de afetação. Os meios de comunicação (rádio, televisão), intensificados pelo uso crescente da Internet e das inúmeras possibilidades audiovisuais a explorar, são o cenário de disputa de interesses e de visibilidade das demandas.
Ironicamente, a globalização visibiliza a produção social de cultura e possibilita sua maior circulação, de modo que inflexiona as identidades pessoais e coletivas e as esferas públicas e privadas da existência. Segundo Canclini (2008), o temor anunciado da perda das identidades territoriais no cenário de globalização não adquire concretude, o que ocorre é a convivência de diferentes circuitos socioculturais: o histórico-territorial, o da cultura de elites, o da comunicação de massas e os dos sistemas restritos de informação e comunicação. O que se apresenta são identidades transterritoriais e multilinguísticas com fluxo transnacional de bens e mensagens.
Nesse terreno de disputas, o movimento hip-hop tensiona os códigos de inclusão no campo do consumo e a lógica de inserção no universo da comunicação e é tensionado por eles. A dupla posição de consumidores e cidadãos é de difícil acesso pela via da política tradicional. Os meandros institucionais da política tradicional, aos quais se referem várias demandas dos movimentos sociais, são pouco permeáveis, geralmente, mediados por paternalismo, assistencialismo e clientelismo reatualizados com parcos resultados.
Os jovens participantes do movimento hip-hop, na condição de jovens pobres, acionam a inclusão, a partir da produção cultural, via indústria cultural e mercado alternativo. A visibilidade da produção cultural, na sociedade de consumo prescinde dos meios de comunicação de massa, que num sistema capitalista de produção articula comunicação e consumo com uma referência ético-política totalmente oposta à justiça social e que estimula o hedonismo.
Qual é a controvérsia que se coloca nessa situação? Do ponto de vista do movimento hip-hop, a circulação e visibilidade de sua produção cultural pode significar pagar o preço de romper com seu campo de valores ético-políticos, que, como dito, concorre com o campo de valores do sistema capitalista. Talvez, o posicionamento a assumir seja o jogo constante de negociações para, ao mesmo tempo, regular a adesão do movimento e instaurar um campo de visibilidade para os antagonismos.
O enfrentamento de tais tensões, também tem produzido um mercado alternativo de consumo e produção cultural. Em Recife, o movimento hip-hop tem fomentado a constituição de um mercado de economia solidária, de produção e consumo de roupas em estilo hip-hop, com criação de selos independentes para produção e divulgação dos CDs, grafites em tela.
Além disso, hoje é possível intensificar a comunicação e divulgação dos produtos culturais do movimento hip-hop por meio da Internet, que, se por um lado funciona a favor da indústria cultural, por outro, favorece a circulação e visibilidade de grupos que não teriam como acessar os veículos midiáticos tradicionais para garantir o reconhecimento de suas produções nos espaços públicos.
Algumas considerações
Os conflitos sociais provocados pelo movimento hiphop colocam-se especialmente em três elementos: o primeiro deles diz respeito à questão da juventude pobre no contexto da sociedade de consumo; o segundo refere-se à mídia e à relação com a indústria cultural; e o terceiro, à afro-descendência. Há esforço para dar visibilidade às diferentes facetas que as desigualdades vivenciadas pelos jovens hip-hoppers assumem no cotidiano e que provocam diversas fragilidades e dificuldades para a garantia da sobrevivência desse segmento social.
O movimento também dá visibilidade aos diferentes posicionamentos e controvérsias dos jovens em relação à sociedade de consumo, o que mostra uma disputa por hegemonia no campo ético-político - interna e externamente -, que circunscreve diferentes ações no social. Essa postura gera antagonismo no interior do movimento e entre o movimento e a sociedade, à medida que busca incutir, em outros jovens, princípios em oposição à cultura consumista, independentemente da camada social da qual fazem parte, já que a mensagem não consegue ser totalmente controlada pela mídia.
As formas de participação sociopolíticas do movimento também se inscrevem num campo antagonístico, à medida que se afastam da política representacional e formulam alternativas de participação social. Se, por um lado, sua ação coletiva é capaz de ser criativa, estimulante, vibrante e contagiosa, por outro, navega num terreno arenoso. O que gera sua potência caracteriza sua fraqueza, dados os riscos da fragmentação, as dificuldades de manter objetivos gerais de longo prazo, a facilidade da fuga expressiva (a cultura esvaziada da dimensão política), a dificuldade de dialogar com o poder público (Melucci, 2001).
Sobre as práticas políticas articulatórias do movimento, observamos que há gasto considerável de energia na sistemática adesão de novos jovens ao movimento, que tem, portanto, diferentes níveis de entendimento acerca do que é o hip-hop como ação coletiva. Podemos considerar que essa prática exige permanentemente um nível de articulação interno no movimento, o que pode criar dificuldade para ele investir em articulações políticas com outros movimentos, o que potencializaria seu poder de negociação e interlocução junto a outras identidades coletivas e ao poder público.
Desse modo, em oposição a uma perspectiva reivindicativa ou propositiva junto ao Estado, aliás, bastante corrente entre os movimentos sociais, os diferentes grupos que compõem a identidade coletiva - movimento hip-hop - não tomam esse posicionamento como principal referente de sua identidade. Sua prática articulatória junto aos jovens pobres é atualmente o elemento relevante na composição dessa identidade coletiva, o que frequentemente coloca tais movimentos num campo de conflitualidade e de antagonismos em relação à indústria cultural e ao sistema capitalista vigente.
Notas
Recebido em 31. Jul. 12
Revisado em 30. Mai. 13
Aceito em 30. Mai. 13
Jaileila Araújo Menezes, Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professora da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. Endereço para correspondência: Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Educação. Av. Acadêmico Hélio Ramos, s/n, Cidade Universitária. CEP 50670-901 - Recife, PE - Brasil. Telefone: (81) 21268323. Fax: (81) 21268323. E-mail: leilaufrj@hotmail.com
Mônica Rodrigues Costa, Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, é professora da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: morodrigues.costa@gmail.com
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
04 Jul 2019 -
Data do Fascículo
Jun 2013
Histórico
-
Recebido
31 Jul 2012 -
Aceito
30 Maio 2013 -
Revisado
30 Maio 2013