Open-access Eco-hidrologia integrada ao manejo dos recursos hídricos em áreas úmidas: caso do Banhado do Taim, RS

Ecohydrology integrated to the water resources management in wetlands: the Taim Wetland case, RS, Brazil

RESUMO

A eco-hidrologia busca integrar os conhecimentos da hidrologia aos da ecologia, criando uma abordagem mais ampla para a compreensão da dinâmica dos recursos hídricos, facilitando o planejamento e as ações de programas de gestão. Uma das formas de integrar hidrologia à ecologia é por meio da elaboração de índices de adequabilidade de hábitat (IAHs), processo que tem se destacado por fornecer informações relevantes sobre áreas úmidas. O IAH é obtido pela relação entre as informações sobre espécies bioindicadoras e as condições eco-hidrológicas necessárias à sua sobrevivência, permitindo a avaliação de impactos sobre as espécies. O desenvolvimento de IAHs, integrados a processos de modelagem hidrodinâmica e sistemas de informação geográfica (SIGs), proporciona a obtenção de imagens de adequabilidade de hábitat, que permitem obter informações espacializadas sobre a qualidade do hábitat de determinada espécie, ou grupo de espécies, colaborando para o aperfeiçoamento das estratégias de gerenciamento dos recursos hídricos e a conservação da biodiversidade de áreas úmidas. A fim de melhor elucidar o processo de desenvolvimento de IAHs e sua aplicação, é apresentada a metodologia utilizada para avaliar a adequabilidade do Banhado do Taim, inserido na Estação Ecológica do Taim, importante área úmida localizada no sul da planície costeira do Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: índices de adequabilidade de hábitat; modelagem ecológica; gerenciamento de recursos hídricos; Banhado do Taim

ABSTRACT

The ecohydrology aims at integrating the concepts of hydrology and ecology, creating a broader approach to understand the water resources’ dynamics, facilitating the plan and management of resources. One way to integrate hydrology with ecology is by developing Habitat Suitability Index (HSI), a process that stands out by providing relevant information on wetlands. HSI is obtained by relating the information about the bioindicators and ecohydrological conditions necessary to ensure these species’ survival, enabling to evaluate the impacts on them. The development of HSIs integrated with hydrodynamic modeling and Geographic Information Systems (GIS) allows us to obtain spatialized habitat suitability information, that provide information about the quality of a species’ (or group of species’) habitat, contributing to the improvement of water resources management strategies combined with the biodiversity conservation in wetlands. Regarding this, the present article presents the HSI’s development process and its application to evaluate the suitability of the Taim Basin, inserted in Taim Ecological Station, an important Southern Coastal wetland located in the State of Rio Grande do Sul.

Keywords: habitat suitability index; ecological modeling; water resources management; Taim Wetland

INTRODUÇÃO

A disponibilidade hídrica e a sua qualidade são de fundamental importância para a sobrevivência dos seres vivos, bem como para o funcionamento adequado dos ecossistemas. Entretanto, a integridade dos recursos hídricos mundiais está sob crescente ameaça, em razão do aumento da população humana e da expansão de atividades industriais e agrícolas, em um cenário no qual mudanças climáticas poderão provocar grandes alterações no ciclo hidrológico (ANA, 2011).

A interferência humana nos ecossistemas de água doce tem modificado as características físicas e biológicas naturais dos ambientes, alterando a sua produtividade e capacidade de resiliência (NILSSON et al., 2007). Nesse sentido, a eco-hidrologia busca integrar os conhecimentos da hidrologia aos da ecologia, criando uma abordagem mais ampla para a compreensão da dinâmica dos recursos hídricos, facilitando o planejamento e as ações de programas de gestão (ANA, 2011).

Segundo Marengo e Silva Dias (2006), há grandes limitações no conhecimento científico no que diz respeito ao estabelecimento de relações funcionais entre hidrologia, solo, clima e biodiversidade nos principais ecossistemas do Brasil. A integração dessas informações é essencial para realizar a modelagem da distribuição espacial das comunidades ecológicas, determinar a estrutura física do ambiente e sua biota, quantificar os recursos naturais e fornecer suporte para projeções de cenários futuros. Os autores afirmam também que, no Brasil, as relações entre biodiversidade e regime hídrico ainda são pouco conhecidas em ecossistemas sazonalmente alagados, como as áreas úmidas.

As áreas úmidas constituem toda a extensão de pântanos, charcos e turfas, ou superfícies cobertas de água, de regime natural ou artificial, permanentes ou temporárias, contendo água parada ou corrente, doce, salobra ou salgada, incluindo áreas marinhas com profundidade até seis metros em maré baixa (BRASIL, 2010). A distribuição e a diversidade das espécies nesses ambientes variam de acordo com os diferentes hábitats dispostos ao longo do gradiente de inundação em razão do hidroperíodo, que oscila conforme a intensidade, a sazonalidade e a permanência das inundações (MITSCH; GOSSELINK, 1993).

Ambientes de áreas úmidas foram considerados, durante muito tempo, como improdutivos economicamente, sendo incentivados a sua drenagem ou aterro (BURGER, 2000). Como consequência, mais da metade das áreas úmidas mundiais foi perdida. Como as flutuações do nível de água e os padrões de fluxo desempenham papel definitivo na criação e na manutenção dos diferentes hábitats, qualquer atividade que altere o hidroperíodo ao qual a área alagada está submetida pode ocasionar mudanças também no ecossistema (MOTTA-MARQUES; IRGANG; GIOVANNINI, 1997; ZEDLER; KERCHER, 2005).

Dessa forma, o gerenciamento dos recursos hídricos de áreas úmidas é uma das maneiras de garantir as flutuações dos níveis de água e mitigar ações que provoquem alterações no hidroperíodo. O gerenciamento de um recurso ambiental natural, econômico ou sociocultural consiste na articulação de um conjunto de ações de diferentes agentes, objetivando compatibilizar seu uso, controle e proteção e disciplinando as respectivas ações antrópicas, de acordo com a política estabelecida para o mesmo, de modo a atingir o desenvolvimento sustentável (SILVA; PRUSKI, 2000).

Como o processo de gestão de áreas úmidas envolve atores de diferentes esferas, muitos são os interesses, comumente divergentes, que o movem (MENDONÇA NETO; PINTO; CAMPOS, 2011). Além disso, em muitos casos, as políticas e práticas de gerenciamento não levam em conta as interconexões e interdependências entre água e ecossistema. A importância dos recursos hídricos e das áreas úmidas precisa ser reconhecida e integrada às tomadas de decisão a fim de atender futuras necessidades sociais, econômicas e ambientais.

Uma das formas de integrar hidrologia à ecologia é por meio das modelagens, especialmente a de nicho ecológico e de adequabilidade de hábitat (também chamadas ou denominadas “modelagem preditiva de distribuição de espécies”) (GIANNINI et al., 2012; LOBO; JIMÉNEZ-VALVERDE; REAL, 2008), que relaciona as variáveis ambientais e a probabilidade de ocorrência das espécies (HIRZEL; LAY, 2008). Juntamente com esses processos, a elaboração de índices de adequabilidade de hábitat (IAHs) tem se destacado por fornecer informações relevantes sobre as condições ambientais das áreas úmidas.

O IAH é obtido por meio da relação entre as informações sobre as espécies bioindicadoras e as condições eco-hidrológicas necessárias à sua sobrevivência, permitindo a avaliação de impactos sobre as espécies. Por meio do uso de IAHs é possível identificar áreas apropriadas para a distribuição das espécies, prever mudanças de comportamento frente a alterações ambientais e contribuir na resolução de questões ambientais e sociais sobre o uso da terra, colaborando também para a revisão e o aprimoramento das estratégias de gestão dos recursos hídricos e a conservação da biodiversidade.

O desenvolvimento de IAHs, integrados a processos de modelagem hidrodinâmica e sistemas de informação geográfica (SIG), proporciona a obtenção de imagens com a espacialização da adequabilidade de hábitat. Como o objetivo da utilização de IAH é avaliar estratégias para a manutenção da estabilidade de um ambiente e conservar suas funções, é importante que sejam utilizados organismos bioindicadores representativos do ecossistema em estudo, visto que um impacto às populações dos bioindicadores pode afetar também toda a comunidade.

Assim, como os fatores ambientais podem afetar diferentes espécies de formas distintas, a escolha de uma espécie indicadora é tarefa determinante para a criação dos IAHs, pois deve cumprir requisitos como a representação da comunidade, a sensibilidade ao estresse, a importância ecológica, o valor para a sociedade humana e a disponibilidade de informações para efetuar a modelagem (LUZ, 2002).

Espécies indicadoras

A presença e o sucesso de um organismo, ou grupo de organismos, dependem de um conjunto de condições, e qualquer fator que se aproxime ou exceda os limites de tolerância passa a ser um limitante (PRIMACK; RODRIGUES, 2001). Exemplos de fatores limitantes são a temperatura, a umidade, o pH, a salinidade, a concentração de poluentes e a água (PERONI; HERNÁNDEZ, 2011). A água é considerada fator determinante para ambientes terrestres ou aquáticos nos quais sua quantidade está sujeita a grandes flutuações (ODUM, 2004), como as áreas úmidas.

Além dos limites de tolerância às variações ambientais, o desenvolvimento dos organismos pode apresentar níveis ótimos de aproveitamento, que podem ser entendidos como aqueles em que o organismo tem seu melhor desempenho. Do ponto de vista evolutivo, o nível ótimo é aquele para o qual o organismo está mais adaptado, ou seja, no qual há maior sobrevivência e deixam o maior número de descendentes (PERONI; HERNÁNDEZ, 2011). A distribuição da biota em ambientes naturais, porém, não se restringe a hábitats efetivamente “ótimos” (ODUM, 2004), podendo ocorrer variabilidade espacial, de acordo com as condições ambientais.

Para melhor conhecimento da distribuição da biota em ambientes naturais, muitas vezes são utilizados bioindicadores. O termo ­bioindicadores ou indicadores ecológicos (ODUM, 2004) está relacionado a organismos ou comunidades de organismos que refletem prontamente o estado biótico ou abiótico de um ambiente, representando, assim, o impacto das mudanças ambientais sobre o hábitat, comunidade ou ecossistema. Esses organismos possuem características específicas, como sensibilidade a pequenas mudanças ambientais, pequenos limites de tolerância, fácil identificação, serem bem estudados (biologia e ecologia) e terem pouca mobilidade.

Gerhardt (2002) classifica os organismos bioindicadores em três categorias:

  1. indicadores ambientais, que respondem de maneira previsível a mudanças e perturbações no ecossistema (auxiliando na formulação de políticas ambientais);

  2. indicadores ecológicos, sensíveis à poluição, fragmentação de hábitats ou outro estresse ambiental (a resposta do indicador é representativa para toda a comunidade);

  3. indicadores de biodiversidade, nos quais a riqueza de um táxon é utilizada como indicador da riqueza de espécies de uma comunidade.

A utilização de vertebrados como indicadores ambientais, por exemplo, tem sido realizada para a avaliação de distintos ecossistemas, justificando-se pela fácil visualização e identificação dos indivíduos, pelo fato de as populações serem mais estáveis, além de exigir menor tempo e esforço para o desenvolvimento de estratégias de gestão (BAKER; SCHONEWALD-COX, 1986; ODUM, 2004).

Outro processo importante é o mapeamento da área de distribuição da espécie de interesse na região em estudo, onde exista conhecimento prévio do fator de estresse analisado, como a água, por exemplo. Esse recurso facilita os processos de modelagem eco-hidrológica e espacialização das informações hidrológicas.

Índice de adequabilidade de hábitat

O índice de adequabilidade de hábitat, método de modelagem de nicho ecológico, foi desenvolvido na década de 1980 pela U.S. Fish and Wildlife Service (U.S. FISH AND WILDLIFE SERVICE, 1980). Essa instituição elaborou uma série de IAHs com o intuito de restaurar a região dos Everglades, na Flórida, importante território de área úmida no sul dos Estados Unidos, ameaçado pela degradação ambiental que, por consequência, ocasionou a perda de metade de sua área natural, danos a bens e serviços, além da extinção local de espécies (CISRERP, 2014).

Para o desenvolvimento do IAH, podem ser utilizadas como parâmetros de condições eco-hidrológicas a quantidade e qualidade da água, as flutuações nos níveis de água, a magnitude da inundação, a frequência e a duração das inundações, a topografia local, a distribuição e a cobertura vegetal (LUZ, 2002; MORA; MAGER III; SPIELES, 2011; TARBOTON et al., 2004), entre outros.

Uma vez selecionadas as espécies indicadoras e as variáveis ambientais que as afetam, são estabelecidas funções que variam em uma faixa entre 0 (ambiente desfavorável para o indicador) e 1 (ambiente totalmente favorável para o indicador), em função da variável adotada (BROWN; HARTWICK, 1988; TARBOTON et al., 2004), como exemplificado na Figura 1 para uma espécie hipotética de peixe.

Figura 1 -
Esquema que representa a relação entre a variável ambiental profundidade de água e o índice de adequabilidade de hábitat (IAH) de uma espécie hipotética de peixe.

Em alguns casos, pode ser necessário que, para uma mesma espécie, seja estabelecida mais de uma função de IAH para distintas variáveis, como disponibilidade de alimento, distância de um corpo d´água, profundidade e porcentagem de área não inundada. Essas variáveis podem ser combinadas de forma a compor um único valor (TARBOTON et al., 2004).

A utilização de mais de um IAH para avaliar a qualidade do hábitat é uma tentativa de reproduzir da forma mais fiel as condições ambientais, que são o resultado de diferentes atributos locais. No entanto, elaborar índices compostos é um processo difícil em razão da necessidade de amplo conhecimento da espécie e de sua dependência dos fenômenos complexos que ocorrem entre as variáveis (TASSI, 2008).

Uma vez definido o IAH de cada bioindicador, essas informações podem ser incorporadas a um SIG por meio de algoritmos (sequências finitas de comandos, executados por meio de códigos escritos em linguagem de programação) específicos para a modelagem preditiva de distribuição (GIANNINI et al., 2012). Como resultado, são obtidos mapas temáticos em uma escala de cores que indicam maior ou menor grau de adequabilidade ambiental para determinada espécie em determinada área, em função das variações do parâmetro limitante definido (SIQUEIRA, 2005).

Os IAHs têm sido desenvolvidos e empregados com sucesso em distintos biomas, em diversos países, sendo que muitas pesquisas buscam avaliar os impactos da influência antrópica nesses ambientes. Esses estudos, em sua maioria, utilizam como indicadores animais vertebrados, como peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos, além de invertebrados e da vegetação nativa (ARMITAGE; FONG, 2004; BRATTEBO et al., 2009; BROTONS et al., 2004; DONAVAN et al., 2011; DUBERSTEIN et al., 2008; GUTZWILLER; ANDERSON, 1987; LARSSON, 2003; RALEIGH; ZUCKERMAN; NELSON, 1986).

METODOLOGIA

A fim de melhor elucidar o processo de desenvolvimento de IAHs, é apresentada a metodologia elaborada por Tassi (2008) e Xavier (2015) para avaliar a adequabilidade do Banhado do Taim a diferentes bioindicadores. O Banhado do Taim está inserido na Estação Ecológica do Taim, importante área úmida localizada no sul da planície costeira do Rio Grande do Sul.

Seleção de biondicadores

Os processos empregados na definição das espécies indicadoras do Banhado do Taim, bem como no reconhecimento de condições ambientais favoráveis e da distribuição e localização das populações no ambiente de área úmida, são apresentados no Quadro 1.

Quadro 1 -
Processos e materiais utilizados na definição das espécies indicadoras do Banhado do Taim.

A observação dos espécimes no Banhado do Taim se deu a partir do deslocamento a pé, ao longo da BR-471 (trecho de 16 km, como ilustrado na Figura 2), rodovia que margeia a Estação Ecológica (ESEC) do Taim, com auxílio de binóculo e coleta de informações da localização geográfica (coordenadas) por receptor de sistema de posicionamento global (GPS), registro fotográfico e filmagem com câmera digital (Sony Cyber-Shot DSC-HX1 Semiprofissional), além da descrição dos locais observados.

Figura 2 -
Localização do Banhado do Taim e detalhes do entorno.

O produto do levantamento de dados, associado a informações sobre a distribuição das espécies no local, obtidas de estudos prévios realizados na ESEC Taim, subsidiou a delimitação das áreas consideradas como hábitats no interior do banhado para as espécies aptas a serem adotadas como indicadoras no presente estudo. O mapeamento das áreas dos hábitats foi realizado com auxílio do SIG.

Elaboração dos índices de adequabilidade de hábitat

Para cada espécie indicadora, foi elaborado um índice de adequabilidade de hábitat em função da altura de lâmina de água necessária para garantir a conservação da espécie.

Para avaliar os IAHs, foi utilizado o registro histórico dos níveis de água no Banhado do Taim, considerando-se a premissa de que as espécies indicadoras são o resultado de condições hidrológicas observadas no passado. Sua manutenção pode ser assegurada, portanto, se o mesmo comportamento se reproduzir no futuro.

Posteriormente, os IAHs foram integrados ao modelo para avaliação da qualidade ambiental desenvolvido por Tassi (2008). Esse modelo permite que sejam avaliadas, mensalmente, as condições espaciais de adequabilidade de hábitat no Banhado do Taim por meio da geração de imagens que refletem o IAH. Nesse processo foi utilizado o registro histórico mensal dos níveis de água no Banhado do Taim referente a um período de 44 anos (janeiro de 1960 a dezembro de 2003), obtido a partir de dados de campo e de modelagem hidrológica-hidrodinâmica (TASSI, 2008), resultando em 528 imagens distintas. A resolução espacial (pixel) dessas imagens é de 101,86 × 101,86 m, sendo que para cada pixel há a determinação de sua adequabilidade para cada espécie avaliada em determinada condição hidrológica.

Validação do índice de adequabilidade de hábitat

Como forma de aperfeiçoamento do processo de modelagem, foi realizada a validação por meio da conferência entre as informações do IAH, da distribuição da espécie no ambiente e dos resultados das imagens geradas pelo modelo de avaliação da qualidade ambiental. Como forma de apresentação, foram escolhidas quatro imagens representativas de diferentes condições hidrológicas, conforme o Quadro 2.

Quadro 2 -
Período hidrológico das imagens de qualidade ambiental do Banhado do Taim selecionadas para o processo de validação.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para exemplificar o resultado dos processos de elaboração de IAHs aplicados ao Banhado do Taim, é apresentado o IAH desenvolvido para a espécie indicadora cabeça-seca (Mycteria americana). Essa ave é visitante residente da ESEC Taim durante a estação quente, gregária e abundante na Região Sul. Para a definição do IAH dessa espécie foi utilizada como fator hidrológico a profundidade da lâmina de água.

Espécie indicadora

A ave cabeça-seca (M. americana) foi determinada como indicadora do Banhado do Taim por sua sensibilidade, restrição às variações dos níveis de água, disponibilidade de informações hidrológicas e avistagem em campo. Indivíduos dessa espécie alimentam-se principalmente de peixes, em profundidade restrita (0,15 a 0,50 m), e apresentam como estratégia de forrageamento a “sondagem tátil”, com seletividade de presas em movimento rápido por meio do tato, dependendo do toque perceptivo do bico e não apenas de sua capacidade visual (DEPKIN; COULTER; BRYAN JR., 1992; SICK, 1997; VAN METER, 1985).

A identificação da distribuição da espécie no ambiente do Banhado do Taim e a delimitação da sua área de hábitat foram efetuadas por meio de saída a campo (realizada em 20 de fevereiro de 2014), como representado pela Figura 3.

Figura 3 -
Exemplificação do processo de mapeamento de hábitat por meio da representação da distribuição de Mycteria americana no Banhado do Taim.

Elaboração do índice de adequabilidade de hábitat para a espécie indicadora Mycteria americana

Por meio de levantamento bibliográfico, foram obtidas informações eco-hidrológicas sobre a altura da lâmina de água necessária para a M. americana (Quadro 3). Essas informações foram utilizadas como referência na elaboração do IAH para a espécie (Figura 4).

Quadro 3 -
Informações sobre a altura de lâmina para Mycteria americana.

Figura 4 -
Índice de adequabilidade de hábitat (IAH) desenvolvido para a espécie Mycteria americana no Banhado do Taim.

O índice busca expressar o hábito de forrageamento da espécie, que se utiliza de presas que ocorrem em profundidade específica entre 0,15 e 0,50 m e que emprega a estratégia de “sondagem tátil” realizada com o bico. Profundidades de lâmina de água menores que 0,10 m acarretariam a redução do número de presas, principalmente espécies de peixes. Já lâminas de água maiores que 0,60 m prejudicariam o processo de alimentação dos indivíduos, pois o comprimento do seu bico não seria longo o suficiente para capturar as presas.

Além da alimentação, as populações de M. americana apresentam ciclos reprodutivos sincronizados com as flutuações periódicas do nível das águas (GAWLIK et al., 2010; LO GALBO et al., 2012). Intensas modificações no hidroperíodo da região dos Everglades, Estados Unidos, acarretaram a redução populacional dessa espécie (VAN METER, 1985), tornando-a ameaçada de extinção naquele país (U.S. FISH AND WILDLIFE SERVICE, 2014). A ave realiza movimentos migratórios entre áreas reprodutivas e áreas de alimentação e, apesar de haver poucos estudos sobre esses deslocamentos, a principal orientação para a conservação dessa espécie seria a manutenção das condições ambientais e da disponibilidade de alimento (COULTER et al., 1999).

Validação do índice de adequabilidade de hábitat

Ao integrar as informações do IAH elaborado para M. americana e da delimitação da área de hábitat ao modelo para avaliação da qualidade ambiental do Banhado do Taim, foram obtidas as imagens de adequabilidade para a espécie (Figura 5). As imagens analisadas referem-se a um mês de cheia (Figura 5A), seca (Figura 5B), nível médio (Figura 5C) e à média de todos os 528 meses analisados (Figura 5D).

Figura 5 -
Adequabilidade de hábitat para Mycteria americana no Banhado do Taim: (A) período de cheia; (B) período de seca; (C) período com níveis de água compreendidos na média; (D) média da adequabilidade dos 528 meses.

Ao analisar um mês cujos níveis de água estão compreendidos na média da série histórica de dados do Banhado do Taim (Figura 5C), é possível visualizar a boa relação do índice com a distribuição da espécie, apresentando adequabilidade entre 0,5 e 1, especialmente no local próximo à Lagoa Jacaré (coloração verde-escura). Na imagem de estiagem (Figura 5B), a região próxima à Lagoa Jacaré é a que permanece mais favorável para as atividades de forrageamento da espécie, com adequabilidade entre 0,2 e 0,6 (laranja, amarelo e verde-claro). Em período de cheia (Figura 5A), não se verifica nenhum local favorável à ocorrência da espécie (adequabilidade 0) na mancha de distribuição dos indivíduos observados, dada a exigência de lâminas de água de cerca de 0,25 m.

A imagem de representação da adequabilidade média do Banhado do Taim (Figura 5D) não revelou condições médias de longo prazo satisfatórias para M. americana, apresentando adequabilidade entre 0,12 e 0,24 (coloração alaranjada). Devem ser levados em consideração a imprecisão da representação topográfica de fundo do Banhado do Taim na região próxima ao canal paralelo à BR-471 e o fato de que esse cenário representa uma média de longo prazo, na qual períodos críticos, não coincidentes com a época da presença da espécie no local, foram considerados.

É possível verificar também que, desconsiderando-se a região delimitada como área de hábitat de M. americana, foram identificadas diversas áreas no interior do Banhado do Taim onde ocorrem condições favoráveis para a espécie. A confirmação da presença dessa espécie no interior do Banhado do Taim fica comprometida pela dificuldade de acesso e visualização dos espécimes, devido à densa vegetação aquática emergente.

Deve-se considerar também que a distribuição das espécies em um ambiente não está condicionada apenas a um parâmetro, como a profundidade da lâmina de água, e sim a diversos fatores ambientais, como o tipo de solo, a velocidade do fluxo da água, a disponibilidade de alimento, a ocorrência de predadores e a disponibilidade de abrigo (KREBS, 2001). Assim, no futuro, novos elementos podem ser incorporados ao IAH dessa espécie, de maneira a aprimorar os resultados obtidos nesta avaliação.

A partir da análise desses cenários, é possível consultar as cotas dos níveis de água limitantes que condicionam as profundidades de lâmina de água adequadas ou não à espécie indicadora (cotas mínima e máxima suportadas pela espécie), podendo ser incluídas em processos de gerenciamento de recursos hídricos da região.

CONCLUSÕES

Estudos eco-hidrológicos permitem relacionar informações abióticas à biota, fatores interdependentes, possibilitando melhor compreensão dos ecossistemas aquáticos. No caso das áreas úmidas, os IAHs têm se mostrado uma importante ferramenta para estabelecer a relação entre hidrologia e biodiversidade local.

A metodologia proposta neste artigo foi aplicada ao Banhado do Taim, considerando apenas um indicador biológico, para exemplificar a possibilidade de seu uso como ferramenta na gestão de conflitos dos recursos hídricos. Sua aplicação, no entanto, não é restrita a uma única espécie e parâmetro de análise, como a lâmina d’água. A utilização de mais de um IAH é uma tentativa de reproduzir, da forma mais fiel, as condições ambientais, que são o resultado de diferentes atributos locais. Em alguns casos, pode ser necessário que, para uma mesma espécie, seja definida mais de uma função de IAH, as quais podem ser combinadas de maneira a compor um único valor. Destaca-se também que essas funções têm caráter adaptativo, podendo ser alteradas à medida que mais conhecimento sobre o assunto é obtido.

Ao aliar a elaboração de IAHs a processos de modelagem, é possível obter imagens de qualidade ambiental, que possibilitam analisar condições hidrológicas em função da espécie indicadora, identificando condições favoráveis e críticas para a sua conservação. Os processos de modelagem podem auxiliar na previsão de alterações hidrológicas das áreas úmidas, bem como na determinação dos níveis de água adequados a serem mantidos, assegurando a sobrevivência das espécies indicadoras e da comunidade aquática. No caso do Banhado do Taim, foi possível determinar cotas de nível de água mínima e máxima que podem ser associadas a processos de gerenciamento dos usos d’água, contribuindo para o manejo sustentável, garantindo a conservação e preservação do ecossistema e a manutenção de suas funções

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CNPq/CAPES) pelo auxílio financeiro concedido por meio de bolsas de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Ambiental e de Iniciação Científica da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

REFERÊNCIAS

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    Reg. ABES: 147356

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Feb 2019

Histórico

  • Recebido
    18 Mar 2015
  • Aceito
    28 Nov 2017
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