Open-access Água e esgoto na pandemia da COVID-19: o papel da regulação e o desafio para o objetivo de desenvolvimento sustentável 6 no Brasil

Water and sanitation in the COVID-19 pandemic: regulation's role and the challenge to SDG 6 in Brazil

RESUMO

O acesso à água e ao esgotamento sanitário é fundamental para o combate à transmissão da COVID-19. Nesse contexto, o objetivo do estudo foi avaliar as condições de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto nos municípios com maior número de casos de COVID-19 no Brasil, considerando-se ainda, o papel da regulação e o desafio de atingir as metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6. A pesquisa justifica-se pela natureza inédita da promoção do conhecimento por meio de dados entre esses fatores. Inicialmente, o trabalho correlacionou o ODS 6 com o abastecimento de água e esgotamento sanitário por meio de indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), cruzando os dados com os municípios com mais casos de COVID-19 para a avaliação da performance e do papel da regulação. Assim, observando-se as cidades com maior número de casos confirmados de COVID-19, ficou evidente a ligação entre a pandemia e o ranking dos piores indicadores de água e esgoto. A falta desses serviços por si só não promove a doença, mas é um dos fatores que dificulta as medidas preventivas e pode favorecer sua dispersão, indicando a fragilidade das condições de saúde nesses locais. As porcentagens alcançadas foram de 45% para o ODS 6.1, de 25% para os ODS 6.2 e 6.3 e de 0% para o ODS 6.4, afetando principalmente as comunidades desfavorecidas com a maior proporção de casos confirmados de COVID-19. Diante disso, as agências reguladoras precisam transformar os indicadores de continuidade do abastecimento de água e esgoto no Brasil, condição aplicável aos países em desenvolvimento.

Palavras-chave: COVID-19; países em desenvolvimento; regulação da infraestrutura; saneamento; ODS 6; esgoto; abastecimento de água

ABSTRACT

Access to water and sanitation is essential to combat the transmission of COVID-19. In this context, the objective of the study was to evaluate the conditions of water supply, collection and sewage treatment in the municipalities with the highest number of COVID-19 cases in Brazil, also considering the role of regulation and the challenge of reaching the goals of the Sustainable Development Goal (SDG) 6. It is justified by the unprecedented nature of knowledge promotion through data among these factors. Initially, the work correlated SDG 6 with water supply and sanitation using indicators from the National Sanitation Information System (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS), crossing the data with the municipalities with the most cases of COVID-19 to assess performance and the role of regulation. Thus, looking at the cities with the highest number of confirmed cases of COVID-19, the link between the pandemic and the ranking of the worst water and sanitation indicators became evident. The lack of these services alone does not promote the disease, but it is one of the factors that makes preventive measures difficult and may favor their dispersion and indicate the fragility of health conditions in these places. The percentages achieved were 45% for SDG 6.1, 25% for SDG 6.2 and 6.3 and 0% for SDG 6.4, mainly affecting disadvantaged communities with the highest proportion of confirmed cases of COVID-19. Therefore, regulatory agencies need to transform the indicators of continuity of water and sewage supply in Brazil, a condition applicable to developing countries.

Keywords: COVID-19; developing countries; regulation infrastructure; sanitation; SDG 6; wastewater; water supply

INTRODUÇÃO

A COVID-19 tem causado desequilíbrios nos diversos setores dos países afetados, sensibilizando, em pequena ou grande escala, pilares essenciais para qualquer sociedade, como saúde, economia e educação. De acordo com o portal Our World in Data (2020) administrado pela Universidade de Oxford, até 17 de julho de 2020, o número de óbitos pela COVID-19 confirmados no mundo era igual a 602.757. Na mesma data, o Brasil representava 12,92% das mortes catalogadas no mundo, quando registrava o total de 77.904 vítimas (COTA, 2020).

Essa síndrome respiratória viral emergente pode ser transmitida quando uma pessoa contaminada tosse, espirra ou até mesmo fala sem nenhuma barreira de proteção respiratória, como uma máscara, por exemplo (OMS, 2020). Essas gotículas podem pousar em objetos e superfícies e permanecer nesses ambientes por determinado período, implicando a possibilidade de novas pessoas serem contaminadas. Sendo assim, a necessidade de abastecimento de água é reforçada visando à limpeza frequente dessas superfícies e, consequentemente, à segurança e à proteção da saúde humana.

O documento COVID-19 Strategy Update, divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020) em 14 de abril de 2020, recomenda a aplicação de medidas em nível global, nacional ou subnacional, visando à redução da transmissão e ao controle da COVID-19, devendo-se considerar as vulnerabilidades e desigualdades intrínsecas a cada região (OMS, 2020). Além do mencionado anteriormente, é importante levar em conta que, nas estimativas de casos positivos confinados ao diagnóstico laboratorial, a letalidade encontrada foi estimada em 3 – 4% (WANG et al., 2020).

Com base no fato de que a prevenção é uma medida essencial para conter a propagação do vírus, a OMS destaca premissas básicas para reduzir os riscos de contágio (OMS, 2020). De acordo com o documento COVID-19 Strategy Update, os bons hábitos de higiene incluem “limpar regular e completamente as mãos com uma esponja à base de álcool ou [lavá-las] com água e sabão”. Nesse sentido, a crise da atual pandemia levanta questões que devem ser vigorosamente discutidas pelas sociedades modernas, como a garantia do abastecimento de água potável de qualidade e o fornecimento de condições adequadas de esgotamento sanitário.

Ocorre que a preocupação com o acesso a água potável e esgoto pelas populações de todo o mundo ganhou destaque com a edição de uma série de agendas de sustentabilidade, a última delas ocorrida em setembro de 2015 (ONU, 2018). De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), na ocasião, os líderes mundiais concluíram as negociações da Agenda 2030 com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), compostos de 169 objetivos integrados e indivisíveis. A essencialidade da gestão sustentável da água e do esgoto, presente no ODS 6, é integrada a outros temas, como a erradicação da fome (ODS 2), a saúde de qualidade (ODS 3) e o combate às mudanças climáticas (ODS 13).

O Diagnóstico dos Serviços de Água e Esgoto (BRASIL, 2019) mostra a média de brasileiros atendidos por serviço de coleta de esgoto em 53,2%, sendo as regiões mais carentes o Norte (10,5%), o Nordeste (28,0%) e o Sul (45,2%). As demais regiões receberam mais de 50% do atendimento — o Centro-Oeste atingiu 52,9% e o Sudeste, 79,2%. Em relação ao abastecimento de água, a população brasileira com acesso a esse recurso representava percentual maior, de 83,6%. Os menores valores também foram encontrados nas regiões Norte (57,1%) e Nordeste (74,2%). A taxas crescentes, as demais regiões do país atingiram 89% no Centro-Oeste, 90,2% no Sul e 91% no Sudeste.

O abastecimento de água adequado também é necessário no que diz respeito à sobrevivência do vírus da COVID-19 (SARS-CoV-2) na água, pois, apesar da falta de relatos científicos de que ele tenha sido detectado em águas de abastecimento, uma série de estudos vem mostrando a ocorrência do ácido ribonucleico (RNA) desse vírus em estações de tratamento de águas residuais. No Brasil, pesquisadores verificaram a presença desse material genético em amostras de municípios mineiros que também apresentaram resultados positivos para COVID-19, sugerindo que tal mecanismo não deve ser descartado como potencial transmissor da doença (ANA, 2020).

Considerando-se que o abastecimento de água e esgotamento sanitário é operado sob o regime de monopólio natural, é papel da regulação promover a eficácia e a eficiência dos serviços por meio de normas, fiscalização da operação e contratos, controle das tarifas e arbitramento entre as partes para universalizar os serviços (BERTONCINI; CAVASSIN, 2019; BRASIL, 2020). Assim, é evidente o papel da regulação do saneamento para assegurar o adequado funcionamento dos serviços, sobretudo em consequência de uma pandemia que utiliza a água como recurso essencial para as medidas de proteção e controle.

Historicamente, o Brasil apresenta déficits sanitários, em que a parcela da população que não possui acesso a água tratada e esgoto é vulnerável a mortes em função de doenças como diarreia, cólera, febre tifoide e hepatite (BERTONCINI; CAVASSIN, 2019). Desse modo, o presente trabalho foi desenvolvido para avaliar as condições de abastecimento adequado e contínuo de água, coleta e tratamento de esgoto nos municípios com maior número de casos de COVID-19 no Brasil, sabendo-se que a falta desses serviços pode representar fator de risco para a disseminação da doença. Além disso, o estudo considera o papel da regulação e o desafio de atingir as metas do ODS 6 no país. A pesquisa justifica-se por seu caráter inédito, gerando informações que podem incentivar positivamente o meio acadêmico e profissional para a gestão e a regulação do saneamento, principalmente em países em desenvolvimento.

METODOLOGIA

O desenvolvimento da pesquisa considerou o problema: “As cidades mais afetadas pela COVID-19 no Brasil possuem níveis aceitáveis de abastecimento de água e esgotamento sanitário?”. Para isso, concebeu-se a hipótese de que não existam condições de abastecimento adequado e contínuo de água, coleta e tratamento de esgoto nos municípios com maior número de casos de COVID-19 no Brasil. O trabalho foi desenvolvido conforme as etapas da Figura 1.

Figura 1
Etapas utilizadas na pesquisa.

Inicialmente, o ODS 6 foi avaliado para identificar sua relação com o abastecimento de água e esgotamento sanitário. A pesquisa identificou quatro desdobramentos do ODS com relação intrínseca ao tema. Com base na dimensão dos ODS a serem examinados, buscaram-se indicadores para a avaliação quantitativa na amostra da pesquisa. A base de dados mais robusta sobre o assunto no Brasil é o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), que desde 1995 estabelece métricas a serem seguidas em todo o território nacional (BRASIL, 2019). Assim, o estudo selecionou oito indicadores de desempenho, apresentados na Tabela 1. É importante detalhar que a paralisação (IN072) é contabilizada a partir de 6 horas de interrupção no abastecimento de água por problemas nas unidades de abastecimento, incluindo reparos e cortes de energia (BRASIL, 2019). As interrupções sistemáticas (IN074) são intermitências prolongadas, iguais ou superiores a 6 horas, decorrentes de supressões no abastecimento de água por problemas de produção, pressão na rede, subdimensionamento de tubulações, manobras do sistema, entre outros, que provocam racionamento ou rodízio.

Tabela 1
Detalhamento das metas destacadas no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 e indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento relacionados.

No que se refere às condições dos serviços de água e esgoto, também é importante destacar que o Banco Mundial publicou o documento Um Guia para a Melhoria do Desempenho (SOPPE et al., 2019), com metas de desempenho. Assim, os resultados dos indicadores do SNIS 2018 foram classificados por meio dos níveis de desempenho estabelecidos pelo Banco Mundial, conforme mostra a Tabela 2.

Tabela 2
Níveis de desempenho do Banco Mundial para saneamento.

Os critérios de classificação do Banco Mundial para o abastecimento de água e esgoto foram utilizados considerando-se que as cidades que atingiram o nível mais alto, world-class, já teriam atingido as metas do ODS 6.

Na sequência, ao se identificarem as cidades com maiores números de casos de COVID-19 no Brasil, foram calculadas as taxas de letalidade e mortalidade. A letalidade foi calculada de acordo com o número de óbitos em relação ao total de casos. É importante destacar que os óbitos e os casos confirmados podem não representar a totalidade, pois o curso rápido da pandemia e o reduzido número de exames realizados no Brasil, comum em países em desenvolvimento (KAVANAGH et al., 2020), tornam impossível a precisão dessa quantificação. A baixa taxa de testagem leva à subnotificação apontada por Dias et al. (2020), que demonstrou aumento significativo no número de mortes por síndrome respiratória aguda grave (SARS) no país durante a pandemia. Por sua vez, a taxa de mortalidade foi obtida pelo quociente de óbitos confirmados sobre a população total da cidade, em termos percentuais.

Posteriormente, foi realizado um levantamento para identificar a existência de agências reguladoras no rol de municípios listados, com a investigação da contribuição promovida para o alcance dos resultados do ODS 6 em abastecimento de água e esgoto, observando-se os impactos causados pela pandemia.

Por fim, os dados foram interpretados considerando-se o Ranking do Saneamento do Instituto Trata Brasil, com a lista das 20 piores cidades, que considerou, além dos indicadores de atendimento de água, coleta e tratamento de esgoto, as taxas de perdas e investimentos (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2020). A base de dados utilizada para compor esse ranking foi o SNIS de 2018, tomando-se os cem maiores municípios brasileiros, em termos de habitantes, do referido período.

É importante frisar que o artigo não teve a intenção de afirmar que o saneamento é um determinante das taxas de infecção e/ou mortalidade da COVID-19 no Brasil, as quais são influenciadas por fatores variados, como cultura e comportamento locais, medidas de bloqueio e gestão dos serviços de saúde. As análises realizadas restringiram-se ao problema e hipóteses mencionados como uma avaliação técnica dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário e a dispersão dos casos confirmados e óbitos ocorridos nas cidades brasileiras.

RESULTADOS

COVID-19 e água e esgoto

Em levantamento realizado com casos confirmados da nova síndrome respiratória aguda no Brasil, até 17 de julho de 2020, 2.048.288 pessoas foram testadas positivamente. É importante ressaltar que, apesar do número elevado, entre os casos confirmados, não são quantificados os casos suspeitos com sintomas característicos, além dos casos com sintomas leves, assintomáticos ou oligossintomáticos. Os municípios com maior número de casos confirmados foram avaliados na Tabela 3.

Tabela 3
Municípios com maior número de casos confirmados de COVID-19 no Brasil em 17 de julho de 2020.

Pelos números oficiais, em sete cidades (35%) foram identificadas taxas de letalidade superiores às previstas na literatura — na faixa de 3 – 4% —, sendo o maior valor revelado no Rio de Janeiro (RJ), de 11,45%. Os valores referentes à taxa de mortalidade apresentaram desvio padrão de 0,03% e média de 0,08%, com proporção de 35% das cidades acima dessa média (42,86% delas faziam parte do ranking com piores indicadores de saneamento).

Analisando-se os resultados de acordo com a proporção da população que foi testada positivamente para COVID-19, observou-se que oito municípios (40%) apresentaram valores acima de 2% de infectados, sendo 87,5% deles não pertencentes ao grupo de cidades mais populosas do Brasil. Também foi avaliado o comprometimento regional, com os dados apresentados na Tabela 4.

Tabela 4
Dispersão de dados por região do país.

As regiões mais influenciadas pelos 20 municípios com mais casos confirmados de COVID-19 foram Nordeste e Norte. Avaliando-se o universo das cidades mais populosas, o mesmo padrão não se repetiu, uma vez que as regiões Sudeste e Nordeste são predominantes. Os municípios com piores indicadores de saneamento concentram-se nas regiões Norte e Sudeste. Ressalta-se que as regiões Centro-Oeste e Sul não foram as mais afetadas em nenhum dos três cenários.

Os resultados obtidos dos indicadores de desempenho do SNIS mostraram valores com grande dispersão (Tabela 5), com desvio padrão médio de 31,50. Baixas taxas de atendimento urbano (IN023) e atendimento total (IN055) estão presentes em municípios que apresentam proporção significativa de casos confirmados. Outros indicadores também demonstraram a falta de coleta e tratamento de esgoto (IN015 e IN016) em locais onde, apesar da disponibilidade de serviços, são frequentes os problemas relacionados à falta de conexão dos usuários às redes existentes e à ausência de tratamento de todos os efluentes coletados.

Tabela 5
Desempenho dos indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento da Amostra em 2018.

Os resultados dos indicadores foram inseridos em gráficos de boxplot (Figura 2), demonstrando visualmente a dispersão dos outliers que ocasionou o grande desvio padrão na maioria dos indicadores. As menores médias foram encontradas nos indicadores de cobertura de serviços de esgotamento sanitário (IN056 e IN024). Além disso, é importante ressaltar que, apesar de o IN016 indicar que o índice de tratamento de esgoto atingiu a média de 83,14%, esse valor baseia-se no esgoto que é coletado, cuja média não chega a 60%.

Figura 2
Boxplots dos indicadores do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento.

Apesar do preenchimento obrigatório das informações do IN072 e IN074, destaca-se a grande quantidade de dados inexistentes ou cujo produto foi igual a zero e o outlier identificado em Natal (RN), cuja duração média das paralisações foi relatada em 240,3 horas/dia. Assim, com a exclusão desse outlier, a duração média foi de 19,97 horas/dia para as paralisações e de 21,75 horas/dia para as intermitências.

Resultados do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6

O resultado da categorização dos índices do ODS 6 considerados no trabalho é mostrado na Figura 3. O ODS 6.1 obteve o melhor desempenho em relação ao restante, com 80% das 20 cidades atingindo níveis de world-class e well-performing, o que demonstra que seus territórios têm cobertura de serviços de água potável em pelo menos 85% da extensão. Apesar disso, a comparação desse resultado com o ODS 6,4 aponta para uma realidade preocupante quanto à continuidade do abastecimento de água, que em 80% está no nível elementary. Isso mostra que, nesses locais, a continuidade não pode ser medida ou é inferior a 8 horas por dia para uma parcela dos usuários. Diante disso, embora a maioria desses locais tenha mais de 85% de abastecimento de água, ocorrem paralisações e intermitências em níveis que podem prejudicar os hábitos de saúde e higiene, principalmente para o enfrentamento da pandemia. Soma-se a isso o fato de que, em casos de interrupção do abastecimento, pode-se ter a geração de pressão negativa na rede de distribuição e a consequente aspiração de carga poluidora externa, sobretudo em sistemas com condições precárias, como é o caso de muitas cidades brasileiras (HESPANHOL, 2019).

Figura 3
Resultados do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 nas 20 cidades pesquisadas.

O ODS 6.2 refletiu a conjuntura da cobertura de esgotamento sanitário dos municípios avaliados. Em 50% deles, o serviço é acessível a uma parcela da população que varia entre 50 e 100%, enquanto na outra metade os usuários apresentam elevados percentuais de restrição de acesso, destacando-se a proporção de 25% nos locais onde o serviço está disponível para menos de 20%. O ODS 6.3 ainda mostra que, nas localidades estudadas, há taxas significativas de falta de coleta e tratamento de esgoto, mas em valores inferiores aos do ODS 6.2. Apesar disso, a pesquisa destaca que 75% dessas cidades coletam menos de 80% e tratam menos de 90% de seu efluentes, liberando diariamente cargas consideráveis de matéria orgânica e outros contaminantes.

O cumprimento das metas do ODS 6 nos municípios analisados ocorreu de acordo com a Figura 4. Em relação ao abastecimento de água, o ODS 6.1 já foi alcançado em 45% dos municípios, enquanto outros 30% demonstraram evolução no desempenho nos últimos anos. Todavia, o ODS 6.4 ainda não foi alcançado em nenhum dos 20 municípios com mais casos confirmados de COVID-19 no Brasil, tendo evoluído apenas 10%. O acesso ao esgotamento sanitário, assim como a coleta e o tratamento desses efluentes, atingiu níveis que permitiram que 25% das cidades cumprissem os ODS 6.2 e 6.3. A parcela que ainda não atingiu a meta é significativa, mas apresentou melhora no desempenho de 65% para ODS 6.2 e de 63% para ODS 6.3.

Figura 4
Cumprimento das metas do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 nas 20 cidades analisadas.

A avaliação desse resultado foi pormenorizada considerando-se as diferenças regionais existentes no Brasil. As regiões Norte e Nordeste apresentaram os menores níveis de classificação para o cumprimento das metas dos ODS 6.1, 6.2 e 6.3; também obtiveram o maior percentual de cidades entre aquelas pertencentes ao grupo de mais casos confirmados com COVID-19 no Brasil. O Nordeste, com 50% dos municípios desse grupo, também apresentou 50% dos municípios com letalidade acima de 3 – 4% e 20% dos municípios em que os casos confirmados pela população alcançaram índice superior a 2% de infectados. O Norte constituiu 25% dos municípios com mais casos confirmados de COVID-19 e 60% deles tiveram letalidade acima de 3 – 4%, enquanto 80% apresentaram taxa de transmissibilidade superior a 2% da população local.

Por sua vez, o ODS 6.4 indicou a necessidade de melhorar o desempenho em todas as regiões, de acordo com os municípios com mais casos confirmados de COVID-19 no país. A meta, que trata de aumentar substancialmente a eficiência do uso da água em todos os setores, foi a que teve a pior avaliação na análise realizada para o ODS 6, demonstrando a precariedade da continuidade do abastecimento de água no Brasil.

Regulação do Saneamento

A pesquisa realizada sobre as agências reguladoras das 20 cidades com mais casos confirmados de COVID-19 no Brasil no portal eletrônico da Associação Brasileira de Agências de Regulação (ABAR) demonstrou que 90% possuíam entidade definida (Tabela 6).

Tabela 6
Agências reguladoras de saneamento nas cidades com casos mais confirmados de COVID-19 no Brasil.

A Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (ADASA), a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (ARSESP) e Agência Reguladora dos Serviços de Saneamento das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (ARES-PCJ) apresentaram indicadores elevados para os ODS 6.1, 6.2 e 6.3 em suas cidades reguladas. Contudo, os prestadores vinculados a outras agências reguladoras (80%) estão nas classificações iniciais da escala, com os menores índices encontrados nas cidades reguladas pela Águas e Esgotos do Piauí S.A. (AGESPISA) (75% elementary) e Agência Reguladora Municipal de Água e Esgoto de Belém (AMAE) (75% basic).

Apesar de a tabela demonstrar prestadores regulados que atingiram o patamar mais elevado (world-class) para os ODS 6.1, 6.2 e 6.3, nenhum deles obteve desempenho equivalente no ODS 6.4, tendo a maioria figurado na categoria elementary.

As cidades com agência reguladora alcançaram percentual médio de 25% na categoria world-class (W) para os quatro indicadores, ou seja, um quarto dos prestadores regulados havia alcançado os desdobramentos do ODS 6 em 2018. Em comparação à média dos dois municípios sem agência reguladora, o resultado foi idêntico, com a exceção de que esses não fizeram parte do ranking com os piores indicadores de saneamento, enquanto seis prestadores com agências reguladoras figuraram entre as 20 cidades com os piores índices: Belém (PA), Macapá (AP), Manaus (AM), Porto Velho (RO), São Luís (MA) e Teresina (PI).

DISCUSSÃO

A pandemia da COVID-19 destacou a função basilar dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário para garantir condições de higiene e saúde à população. As cidades foram afetadas na gestão de suas várias infraestruturas, principalmente saúde e saneamento, com a necessidade de direcionamento de recursos e disponibilidade de mão de obra, tendo a água se tornado um dos principais insumos para evitar a disseminação do vírus.

A análise dos indicadores do SNIS, especificamente sobre a cobertura e a continuidade dos serviços de água e esgoto, demonstrou índices preocupantes, passíveis de trazer riscos à saúde dos usuários dos municípios avaliados. Baixas taxas de cobertura de abastecimento de água e esgotamento sanitário estão presentes em cidades que apresentaram proporção significativa de casos confirmados, o que prejudica as práticas de higiene recomendadas para evitar a disseminação do contágio da doença causada por SARS-CoV-2 e outras doenças entéricas virais (ADELODUN et al., 2020). Considerando-se, ainda, que pesquisas detectaram a presença da COVID-19 no esgotamento sanitário, esses resultados favorecem a contaminação dos recursos hídricos pelo lançamento de efluentes domésticos sem qualquer tipo de tratamento (ANA, 2020). Mesmo assim, Heller et al. (2020) ponderam que esforços de pesquisa são necessários para melhor compreender a persistência e a infectividade do SARS-CoV-2 em fezes, esgoto e água não tratada, como forma de verificar o real papel das intervenções de saneamento na prevenção.

Os indicadores com resultados abaixo de 50% foram registrados nas cidades das regiões Norte e Nordeste do Brasil, todas pertencentes ao grupo com os piores indicadores de saneamento, segundo o ranking do Trata Brasil (Instituto Trata Brasil, 2020). Tomando-se os mais de 5 mil municípios que preencheram a última publicação do SNIS, as regiões Norte e Nordeste também foram listadas com as que apresentaram os maiores déficits do Brasil para a cobertura de abastecimento de água e esgoto (BRASIL, 2019).

Os indicadores com pior desempenho na pesquisa foram aqueles relacionados à continuidade do abastecimento de água. Mesmo em casos em que a cobertura de água e esgoto era alta (world-class), a maioria possuía uma disponibilidade de abastecimento menor do que 8 horas por dia ou não mensurava a continuidade. Isso demonstra que não é suficiente atingir a alta cobertura dos serviços sem regularidade do abastecimento, condição que pode ter prejudicado as medidas preventivas e favorecido a dispersão do vírus nas cidades analisadas. Mushi e Shao (2020) enfatizam a importância do abastecimento contínuo de água, incluindo a mitigação dos efeitos colaterais da COVID-19 durante a fase de recuperação de pessoas infectadas, para reduzir o risco de transmissão. É importante mencionar que esses indicadores não quantificam o número de usuários alcançados pelas paralisações e intermitências, demonstrando exclusivamente a falta de continuidade do abastecimento, conforme parâmetros do Banco Mundial e a meta do ODS 6.4.

Ainda sobre a continuidade avaliada nos indicadores IN072 e IN074, o Diagnóstico de Água e Esgoto no Brasil mencionou a presença de inconsistências que revelam a alta probabilidade de subdimensionamento ou erros de monitoramento (BRASIL, 2019). Essa informação demonstra que os valores reais, considerando-se as cidades analisadas, poderiam ser ainda piores do que o apresentado no estudo.

Apesar de a grande maioria dos prestadores de serviços ter cumprido o requisito legal brasileiro de possuir uma entidade reguladora para os serviços de água e esgotamento sanitário, 80% deles estavam nas classificações iniciais da escala do World Bank para os desdobramentos do ODS 6. Esse resultado é paradoxal aos objetivos da regulação, uma vez que ela deveria produzir efeitos diretos na expansão dos serviços de água e esgoto com qualidade e eficiência, com foco no atendimento universal (BERTONCINI; CAVASSIN, 2019), o que não foi possível comprovar na amostra analisada.

Para correlacionar as informações apresentadas, foi elaborado o diagrama de Venn (Figura 5) contendo as 20 cidades com mais casos confirmados de COVID-19, as cidades mais populosas e os piores resultados do Ranking de Saneamento do Instituto Trata Brasil.

Figura 5
Diagrama de Venn das cidades com mais casos confirmados de COVID-19, as cidades mais populosas e os piores indicadores de água e saneamento.

De acordo com o diagrama, o Brasil apresentou tendência de dispersão do vírus nas cidades mais populosas, com 60% delas no grupo de cidades com mais casos confirmados de COVID-19. O saneamento também teve relação, representando 30% dos municípios com os piores indicadores do conjunto, sendo 60% não pertencentes ao grupo de cidades mais populosas. Constatou-se, portanto, que há falta de condições de abastecimento adequado e contínuo de água, coleta e tratamento de esgoto nos municípios com maior número de casos de COVID-19 no Brasil — seis cidades figuraram entre as 20 com os piores índices de saneamento.

O ODS 6 não foi totalmente alcançado em nenhuma cidade do grupo avaliado após cinco anos do estabelecimento da Agenda 2030. Como nesse período, em condições normais de prestação de serviços, o desempenho do Brasil não foi consistente para atingir essas metas, os impactos causados pela pandemia poderão prejudicar significativamente o alcance nos anos seguintes. De acordo com a ONU (2020), “em um curto intervalo de tempo, a pandemia COVID-19 desencadeou uma crise sem precedentes, causando uma interrupção no andamento dos ODS, com os mais vulneráveis e pobres do mundo sendo os mais afetados”. O Relatório 2020 sobre Metas de Desenvolvimento Sustentável afirma, ainda, que mais de 1 bilhão de moradores de favelas em todo o mundo estão em situação alarmante, sob sério risco dos efeitos da nova síndrome respiratória aguda, sem moradia adequada, sofrendo com a ausência de água corrente em casa e compartilhando banheiros.

CONCLUSÕES

A pesquisa demonstrou que as cidades mais afetadas pela COVID-19 no Brasil também apresentaram baixos níveis de cobertura de abastecimento de água e esgotamento sanitário, principalmente no que se refere à continuidade dos serviços de água. Assim, o déficit de saneamento pode ter representado um dos fatores que dificultaram as medidas preventivas e assim, favorecido a dispersão do vírus. Os baixos índices desses serviços também constituem um indicativo da fragilidade das condições de saúde da população nas cidades.

Apesar da presença de agências reguladoras em 90% dos municípios do grupo analisado, a influência desse aspecto na melhoria dos indicadores e no cumprimento do ODS 6 não foi comprovada. A transformação da governança regulatória, bem como o conhecimento e o aprimoramento das ações direcionadas ao tema em questão, merecem pesquisas futuras para explorar o contexto e seus stakeholders, delineando caminhos para o aprimoramento da regulação perante a nova normalidade a ser estabelecida.

Por fim, nos últimos cinco anos, o Brasil teve baixo desempenho para as metas do ODS 6 nas cidades analisadas, com alcance de 45% para o ODS 6.1, de 25% para o ODS 6.2 e 6.3 e de 0% para o ODS 6.4. Desse modo, é fundamental uma articulação entre os responsáveis pela infraestrutura do saneamento — no Brasil e demais países em desenvolvimento com situação análoga — para que sejam direcionados esforços e recursos ao atendimento das metas do ODS 6, sobretudo diante do quadro pós-pandemia da COVID-19, em que é primordial fornecer melhores condições de saúde, dignidade e equidade à população.

  • Financiamento: nenhum.
  • Reg. ABES: 20200403

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Mar-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2020
  • Aceito
    03 Maio 2021
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