RESUMO:
A comunicação é a base para todo o processo de ensino e aprendizagem de qualquer pessoa. Para o sujeito com surdocegueira, especialmente a de natureza congênita, é um desafio permanente que exige dos profissionais conhecimentos específicos, atuação adequada e bem fundamentada. Dessa forma, este estudo teve como objetivo identificar, na perspectiva de profissionais que atuaram com um sujeito com surdocegueira congênita, aspectos do uso de vias remanescentes simultâneas ou isoladas, para o estabelecimento da comunicação. Para tanto, considerando os princípios de uma pesquisa qualitativa do tipo descritiva, utilizou-se como procedimento de coleta de dados entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram transcritas na íntegra e tratadas a partir de seu conteúdo para a obtenção de subtemas que foram, posteriormente, agrupados e convertidos em categorias. Especificamente para essa análise, a categoria apresentada foi a de Comunicação Multimodal. A análise de dados permitiu identificar as perspectivas dos profissionais em relação ao uso de vias remanescentes simultâneas ou isoladas, para favorecer o estabelecimento de uma comunicação. De modo geral, observou-se que as perspectivas dos participantes estiveram relacionadas à combinação nas formas de antecipação das atividades e/ou ações por meio da utilização de diferentes vias sensoriais, com predominância dos sentidos gustativos e olfativos, enquanto o proprioceptivo e o cinestésico foram descritos em menor proporção. Além disso, os relatos indicaram tentativas de associação entre objetos concretos e sinais, buscando, assim, de acordo com os participantes, uma comunicação em nível menos elementar.
PALAVRAS-CHAVE: Educação Especial; Inclusão educacional; Comunicação sensorial
ABSTRACT:
Communication is the basis for any person’s teaching and learning process. For the deafblind subject, especially of the congenital nature, it is a permanent challenge that demands of the professionals a specific knowledge, adequate and well-founded performance. Thus, this study aimed to identify, from the perspective of professionals who worked with a subject with congenital deafblindness, aspects of use of the remaining pathways, simultaneous or isolated, for the establishment of communication. For that, based on the principles of a qualitative descriptive research, the semi-structured interview procedure was used as data collection. The interviews were transcribed in full and treated from their content to obtain subthemes that were later grouped and converted into categories. Specifically for this analysis, the category presented was the Multimodal Communication. Data analysis allowed to identify the professionals’ perspectives regarding the use of simultaneous or isolated remnant pathways, in order to favor the establishment of a communication. In general, it was observed that the participants’ perspectives were related to the combination of ways of anticipating activities and/or actions through the use of different sensory pathways, with a predominance of gustatory and olfactory senses, while proprioceptive and kinesthetic were described in a smaller proportion.
KEYWORDS: Special Education; Educational Inclusion; Sensorial communication
1 Introdução
Consideramos que a escola regular deve ser um dos espaços responsáveis por proporcionar ao aluno com surdocegueira a ampliação do conhecimento de mundo e das relações interpessoais, por meio de um trabalho com estratégias diferenciadas e sistematizadas que preconizem as suas potencialidades, independentemente de suas condições (Maia et al., 2010).
Com essa perspectiva e de modo a contribuir para a produção científica na área de Educação Especial, este estudo teve como objeto a surdocegueira, temática consideravelmente restrita, se comparada aos estudos envolvendo outras condições de desenvolvimento (Araóz & Costa, 2008; Glat et al.; 2014; Masini, 2011; Santos & Evaristo, 2015).
De acordo com Cader-Nacimento e Costa (2010), a surdocegueira é conceituada como
o comprometimento, em diferentes graus, dos sentidos receptores à distância (audição e visão). A combinação desses comprometimentos pode acarretar sérios problemas de comunicação, mobilidade, informação e, consequentemente, a necessidade de estimulação e de atendimentos educacionais específicos. (p. 18)
Em geral, concorda-se que a associação da perda auditiva e visual, independentemente do grau de privação, gera limitações nas respostas a estímulos externos, comunicação e interação social e, ainda, comprometimentos de caráter emocional, físico e educacional (Cader-Nascimento & Costa, 2010; Maia et al., 2009; McInnes, 1999; Reyes, 2004). A associação das privações em limiares mais altos, embora relativamente rara, como a surdocegueira total, acarreta maiores implicações. No entanto, essas implicações dependerão de outros fatores como: o período de surgimento da deficiência, a causa e, principalmente, as intervenções e os atendimentos específicos na área da educação (Cader-Nascimento & Costa, 2010).
Dentro dessa combinação, temos os casos de surdocegueira congênita e as condições adquiridas. Referimo-nos à condição congênita quando o indivíduo nasce ou a adquire antes da apropriação de uma linguagem simbólica; e a condição adquirida quando o indivíduo adquire a surdocegueira após a apropriação de uma linguagem simbólica, seja ela na modalidade oral e/ou visoespacial (Costa, 2014; Reyes, 2004).
A literatura especializada indica que, para as crianças com surdocegueira, especialmente a de natureza congênita, as experiências que envolvem o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem, a comunicação, a informação, a educação e a vida social são os maiores desafios (Cormedi, 2011; Miles & McLetchie, 2008). Ainda sobre esse aspecto, Cormedi (2011) enfatizou que as dificuldades de maior complexidade para uma pessoa com surdocegueira congênita seriam as de comunicação, desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, da aprendizagem.
Nesse sentido, a observação do comportamento da criança com surdocegueira e suas ações comunicativas é um ponto de extrema relevância, pois, a partir dela, o adulto pode manter consistência em suas respostas e favorecer o estabelecimento de uma comunicação efetiva e autônoma. Nessas oportunidades, as possibilidades de aquisição da linguagem serão potencializadas, quanto maior for o tempo de exposição em situações efetivas de comunicação com parceiros eficientes (Viñas, 2004).
As formas de comunicação são específicas, conforme as características de cada sujeito com surdocegueira, mas, para que haja sucesso, é fundamental a presença de parceiros que sejam sensíveis e receptíveis aos indícios que a criança oferece. Nesses casos, o processo de comunicação inicia-se com formas mais elementares como toque, expressões e movimentos corporais. À medida que a criança demonstra compreensão e fornece respostas, essa comunicação poderá ser ampliada com formas mais abstratas e simbólicas (Costa, 2014).
Diferentemente das crianças sem limitações sensoriais, nas quais o processo de aquisição de linguagem ocorre de forma natural por meio da comunicação e da interação, as crianças com surdocegueira precisam de um ensino sistematizado para o desenvolvimento da comunicação (McLetchie & Riggio, 2002; Reyes, 2004). Além disso, necessitam de demasiada motivação para estabelecer contato com o mundo exterior, já que a surdocegueira afeta de forma significativa a habilidade em interagir com o meio (Amaral, 2002). Para as crianças com essa condição, a interação e a comunicação devem ocorrer pelos sentidos proximais e pelos sentidos remanescentes visuais e/ou auditivos se tiverem (Viñas, 2004).
Desse modo, considerando que a comunicação será a chave para todo o desenvolvimento e os processos de ensino e de aprendizagem, é fundamental que os profissionais que atuam com sujeitos com surdocegueira, especialmente a congênita, busquem possibilidades e forneçam suporte para o seu desenvolvimento por meio do uso de diferentes sistemas5 que englobem ou não o uso da fala e/ou da Língua de Sinais na modalidade visual ou tátil (Amaral, 2002). Esses diferentes sistemas de comunicação podem ser considerados Comunicação Suplementar e/ou Alternativa (CSA), subárea da Tecnologia Assistiva, que engloba, também, adaptações, ferramentas e equipamentos especiais em diferentes áreas do desenvolvimento (motora: de acesso a computadores, de postura, dentre outros) e aciona diferentes possibilidades nos contextos de inclusão social e escolar (Braccialli, 2007; Deliberato, 2007).
De acordo com Von Tetzchener (2018), a CSA, uma forma de comunicar-se com o uso de recursos tais como imagens, símbolos gráficos e outros, oferece às crianças com necessidades complexas de comunicação e comprometimento motor possibilidades de expressar-se, o que é fundamental para sua participação social, aprendizagem e para o próprio desenvolvimento linguístico. Em relação ao desenvolvimento da CSA, Von Tetzchner et al. (2005) explicam que ele ocorre de maneira bastante diferente do desenvolvimento linguístico natural; contudo, o objetivo final é o de que as crianças usuárias de sistemas alternativos de comunicação consigam, assim como os falantes (orais ou em sinais), se comunicar com os seus pares e adultos sobre diferentes assuntos.
São muitos os desafios no processo de aquisição da linguagem dos sujeitos que precisam de um sistema alternativo de comunicação, especialmente voltados à diferença em relação ao input (visual e gestual, dentre outros) de linguagem com que eles recebem as informações; a necessidade de uma comunicação multimodal e a desvinculação dessa linguagem de um sistema linguístico natural. Em relação a esse último desafio, os interlocutores que favorecem esse sistema também se sentem desafiados, por não terem uma estrutura (forma, função e uso) a ser priorizada (Deliberato et al., 2014).
A comunicação multimodal ou multimodalidade, caracterizada pela combinação de diferentes formas de comunicação, de maneira simultânea ou sequencial, para veiculação de informações, é, de acordo com Nunes (2003), uma das características marcantes da CSA. Alguns estudos apontam que a multimodalidade dentro do processo de desenvolvimento da comunicação de crianças com surdocegueira é bastante adotada, já que, com a privação dos sentidos receptores a distância, deve-se recorrer, potencialmente, às formas alternativas de comunicação, por meio dos sentidos remanescentes, a fim de que consigam estabelecer laços com o meio (Maia & Araóz, 2001; Reyes, 2004). Assim, o processo de aprendizagem da comunicação para as crianças com surdocegueira exige apoio especializado e condições educacionais planejadas e de qualidade (Cader-Nascimento & Costa, 2010).
De acordo com Villas-Boas (2014), são escassas as informações sobre as formas de aprendizagem, atenção e comunicação de crianças com surdocegueira congênita e deficiência múltipla sensorial; logo, conhecer as formas de comunicação desses sujeitos e as suas características é fundamental para uma assistência profissional mais efetiva.
Hersh (2013), a partir de entrevistas realizadas com surdocegos de seis países, discutiu questões relacionadas à comunicação, à independência e ao isolamento. Os dados obtidos evidenciaram a importância do desenvolvimento de um sistema que permitisse aos sujeitos se comunicarem efetivamente com outras pessoas, pois a dificuldade na comunicação, mesmo para aqueles com um grau menor de perda visual e/ou auditiva, configurava-se como um grande obstáculo para a participação social, levando-os ao isolamento. Os dados obtidos no estudo de Hersh (2013) destacaram, ainda, o fato de, devido à necessidade de apoio para comunicação e mobilidade, muitos profissionais e/ou acompanhantes de pessoas com surdocegueira tirarem todas as possibilidades de independência e de vida ativa desses sujeitos. Maguvhe (2014) investigou as perspectivas de professores de surdocegos acerca da elaboração do currículo, a implementação e o envolvimento da família no processo de escolarização. Sobre o primeiro aspecto investigado, os participantes indicaram grande distância entre o currículo para os alunos surdocegos nas escolas especiais e o currículo nacional. Alguns fatores foram apontados como possibilidade de melhora no atendimento escolar desse público, especialmente para o desenvolvimento da comunicação e, consequentemente, para a aprendizagem dos demais conteúdos escolares, como a matemática e as ciências naturais, por exemplo. Os fatores foram: profissionais de apoio com formação na área, formação regular em serviço para os professores e provisão de recursos adequados e suficientes para o ensino dos alunos com surdocegueira.
Em relação ao envolvimento da família no processo de escolarização dos alunos com surdocegueira, Maguvhe (2014) afirmou que, embora os professores participantes do estudo destacassem conhecimento acerca da importância dessa participação, especialmente para o estabelecimento de formas de comunicação, na prática o contato era restrito. Os participantes apontaram como uma possibilidade a criação de um grupo de pais que impulsionassem a participação de outras famílias a partir de ações e de intervenções educativas apropriadas.
Na mesma perspectiva da educação escolar para alunos com surdocegueira, Charles (2014), a partir de um estudo descritivo realizado em uma escola de surdocegos no Quênia, o qual teve como objetivo investigar as características dos professores que atuavam com esse grupo, afirmou que a competência dos professores relacionada ao conhecimento e à experiência na área, interferem positivamente no apoio ao aluno surdocego e, por conseguinte, no seu desenvolvimento. O autor destacou como fundamental a habilidade do professor que atua com alunos com surdocegueira em avaliar, interpretar e responder às formas pré-simbólicas que um aluno surdocego pode utilizar para se comunicar, a fim de aumentar o seu desenvolvimento de comunicação e interação social.
Considerando a escassez de estudos nacionais com essa temática e os pontos até aqui abordados, a problematização desta pesquisa girou em torno da seguinte pergunta: Quais seriam as perspectivas de profissionais que atuaram com um sujeito com surdocegueira total congênita, acerca do uso da comunicação multimodal em diferentes contextos de atendimento?
De modo a desenvolver parte dessa problematização e com o objetivo de traçar um panorama científico nacional de produção de teses e de dissertações sobre a surdocegueira, realizamos um levantamento das pesquisas finalizadas até o primeiro semestre de 2019. Para tanto, utilizamos, como base, estudos que recensearam as produções científicas sobre surdocegueira em períodos distintos desde a defesa da primeira dissertação da área no ano de 1999 (Araóz & Costa, 2008; Masini, 2011; Santos & Evaristo, 2015) e dados da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, no portal de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) a partir do descritor “surdocegueira”.
Os resultados obtidos foram: 27 pesquisas produzidas em programas de Pós-Graduação em nível de Mestrado e 11 em nível de Doutorado, o que evidenciou ainda mais a relevância científica do presente estudo, em relação às necessidades investigativas na área da Educação Especial. Os estudos encontrados destacaram, inclusive, a necessidade emergente dessas investigações, considerando aspectos do desenvolvimento dos sujeitos com surdocegueira, especialmente em relação ao desenvolvimento da comunicação.
Diante desse panorama, este estudo possui características que lhe conferem elementos de inovação nessa produção, com especial atenção aos aspectos de desenvolvimento da comunicação do sujeito-alvo da pesquisa desenvolvida. Para reforçar esse aspecto, mencionamos que esta pesquisa também inaugurou a temática no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus Marília, São Paulo.
Não podemos conferir ou inferir traços de completo ineditismo em razão de considerarmos a produção internacional como importante alavanca para a área e, também, para esta análise, ainda que o nosso foco em relação ao estado da arte tenha sido a produção nacional, respeitando-se os aspectos socioculturais e a diversidade da pesquisa científica brasileira. Por fim, considerando que, em relação à educação, a comunicação é fundamental para o desenvolvimento e os processos de ensino e de aprendizagem (Oliveira et al., 2017) e, no caso de alunos com surdocegueira, um desafio permanente (McLetchie & Riggio, 2002), bem como a prioridade no processo educacional das pessoas com surdocegueira deve ser a potencialização das habilidades comunicativas (Reyes, 2004), este estudo, realizado com profissionais que atuaram com um sujeito com surdocegueira congênita teve como objetivo identificar, na perspectiva desses profissionais, aspectos do uso de vias remanescentes simultâneas ou isoladas, para o estabelecimento da comunicação.
2 Método
O presente estudo configura-se como uma pesquisa de natureza qualitativa, do tipo descritivo, caracterizada por Godoy (1995) como uma investigação que surge de questionamentos e focos amplos de interesse, nos quais os dados são apresentados de forma descritiva e pretendem atingir a compreensão de fenômenos, com base em diferentes perspectivas dos sujeitos envolvidos.
Participaram deste estudo sete profissionais que atuaram com um sujeito que se tornou surdocego total nos primeiros meses de vida em decorrência de complicações por prematuridade extrema, denominado ficticiamente de Mike. Esses profissionais atuavam em três instituições nas quais Mike foi atendido, formalmente, dos primeiros anos de vida até os 17 anos, a saber: Centro de Especialidades, Programa de Equoterapia e a escola regular.
O Quadro 1 apresenta a caracterização desses profissionais participantes do estudo, por ordem sequencial de atendimento ao sujeito.
O procedimento de coleta de dados adotado nesta investigação foi o de entrevista semiestruturada, com um roteiro contendo perguntas abertas. Durante a realização da entrevista, houve alterações na ordem das perguntas e inclusão de questões complementares, visando o melhor entendimento do fenômeno estudado (Manzini, 2012). Após a elaboração, os roteiros, com o objetivo de adequação do instrumento de coleta, foram enviados para apreciação de juízes externos, reelaborados de acordo com as sugestões propostas e segunda apreciação desses juízes (Manzini, 2004).
Participaram como juízes três profissionais da área da Educação Especial – duas pedagogas e uma fonoaudióloga – todos com experiência acadêmica na realização de entrevistas. Além dos roteiros, os juízes receberam uma breve descrição da pesquisa, almejando a adequação desse roteiro em relação ao objetivo do estudo, da linguagem utilizada nele, da forma e da sequência das perguntas, conforme orientado por Manzini (2003).
As entrevistas foram realizadas em dias previamente agendados com os participantes, em seus respectivos ambientes de trabalho. Os áudios das entrevistas foram gravados e posteriormente transcritos, na íntegra. Após a transcrição, os dados passaram por adequações e ajustes ortográficos (Manzini, 2012, 2014).
Neste texto, utilizamos itálico para as falas dos relatos dos profissionais na apresentação dos resultados. Foram utilizados, nas transcrições, os seguintes sinais: reticências entre colchetes, para indicar supressões no início, meio e/ou final dos trechos; parênteses, para observações e comentários feitos pela pesquisadora; e aspas, para os momentos nos quais o participante empregou a fala de outra pessoa em sua própria fala.
Após a transcrição, os dados foram tratados a partir de seu conteúdo, com base em Bardin (2011). Adotou-se como critério para seleção dos dados a temática “comunicação” e, em seguida, foram estabelecidos subtemas. Para Bardin (2011), a expressão análise de conteúdo compreende
[u]m conjunto de técnicas de análises das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (p. 42)
Assim, para o processo de obtenção de temas, foram considerados, inicialmente, os relatos que indicavam as perspectivas dos profissionais, isoladas (um único participante) ou recorrentes (mais de um participante), sobre aspectos do desenvolvimento da comunicação, no sujeito com surdocegueira congênita. Os relatos foram classificados em subtemas, em função dos aspectos emergidos nesse primeiro momento. Em seguida, esses subtemas foram agrupados e convertidos em cinco categorias7, a saber: Primeiras tentativas de comunicação; Desenvolvimento de conceitos; Comunicação multimodal; Linguagem receptiva; e Linguagem expressiva. Todas essas categorias encontram-se detalhadas em Mata (2017), tanto em relação às suas definições quanto aos seus resultados. Para a análise deste artigo, foi priorizada a categoria de Comunicação Multimodal.
3 Resultados e discussão: comunicação multimodal
Uma das possibilidades de criação de oportunidades para as crianças com surdocegueira congênita é a integração dos diferentes caminhos sensoriais (Turiansky & Bove, 1991). Logo, nessa categoria, foram englobados os relatos dos profissionais, conforme o Quadro 2, que explicitaram o uso de vias remanescentes simultâneas ou isoladas, para favorecer o estabelecimento de uma comunicação. Foram considerados, ainda, relatos que apontaram esse uso, associado a um dos aspectos (sinais isolados8) da Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Observa-se que, de modo geral, as perspectivas dos participantes, nessa categoria, estiveram relacionadas à combinação nas formas de antecipação das atividades e/ou ações por meio da utilização de diferentes vias sensoriais. As participantes Beatriz e Michele apontaram percepção de possibilidade de uso de um sentido distal, a audição, mas sem indícios de uso funcional. Os sentidos gustativos e olfativos estiveram presentes na maior parte dos relatos, enquanto o proprioceptivo e o cinestésico, em menor proporção. Há relatos que revelaram tentativas de associação entre objetos concretos e sinais, buscando, assim, uma comunicação em um nível menos elementar.
Em consonância aos dados apresentados que evidenciam o emprego dos sentidos para o desenvolvimento da comunicação, Maia et al. (2009) destacaram que as experiências táteis são formas de adquirir informações sobre o mundo; a utilização do canal olfativo auxilia na interpretação do meio e na atribuição de significados; o olfato e o paladar ajudam a compreender melhor o mundo, especialmente por ser o olfato um sentido de recepção da informação à distância; e, por fim, o uso dos sentidos cinestésico e proprioceptivo favorecem a organização corporal e os movimentos.
Especificamente no caso de Mike, os relatos de Beatriz e Michele pareceram ressaltar a possibilidade de um resíduo auditivo.9 Quanto a essa questão, Amaral (2002) afirmou que o uso da audição residual é muito importante para a criança com surdocegueira complementar as informações recebidas pelos outros sentidos. A autora defende que o papel do profissional, aludindo especificamente ao professor, é fornecer todos os meios possíveis de estímulos sensoriais, tornando-os significativos e integrando-os aos outros sentidos; sublinha que o conhecimento das formas de potencialização do uso dos resíduos auditivos deve ser considerado, na formação dos profissionais que atuam com pessoas com surdocegueira (Amaral, 2002). Nota-se, ainda, nos relatos dos participantes, perspectivas positivas em relação às formas alternativas de comunicação envolvendo o uso dos sistemas gustativo, olfativo, cinestésico, proprioceptivo e tátil.
De maneira enfática, pesquisadores defendem ser primordial, na trajetória inicial do desenvolvimento da comunicação e da linguagem para crianças com surdocegueira, o uso de todas as formas possíveis e recursos para comunicação, já que somente a fala ou a língua de sinais, mesmo quando há resíduos funcionais, em muitos casos, não é suficiente (Cader-Nascimento & Costa, 2003; Turiansky & Bove, 1991). No entanto, é importante atentar para o desafio de facilitar na criança com surdocegueira o desenvolvimento da linguagem e aquisição de uma língua, geralmente a língua de sinais10 (Cormedi, 2012).
Para Cormedi (2012), a utilização de todas as formas possíveis de comunicação – objetos de referência, gestos e sinais isolados – tem como objetivo “possibilitar que surdocegos possam fazer simbolizações e representações e, se possível, apoderar-se de uma língua” (p. 180).
Em relação ao emprego da língua de sinais, os participantes mencionaram a introdução de sinais isolados da Língua Brasileira de Sinais. Sobre esse aspecto, Almeida (2008) e Cader-Nascimento e Costa (2003) realizaram estudos que demonstraram possibilidades de apropriação dessa língua. Almeida (2008) descreveu a trajetória da comunicação de “J” que, de acordo com a autora, começou a perceber e estabelecer relação entre sinal e significado, a partir da persistência da mãe. Aos cinco anos de idade, aprendeu o significado do primeiro sinal “água”, após a mãe por diversas vezes, durante o banho, jogar água em seu corpo e fazer o sinal de forma coativa. Em outro momento, apresentou o mesmo sinal, ao oferecer água para tomar (Almeida, 2008).
Cader-Nascimento e Costa (2003) trataram dessa apropriação, no contexto escolar. As autoras discutiram o desenvolvimento linguístico de uma aluna com surdocegueira que manifestava vontade de ir ao banheiro, posicionando-se na sala de aula e abaixando a calça. A profissional que a acompanhava passou a observar os movimentos que antecediam essa ação e, nesse momento, realizava o sinal de banheiro, no braço da aluna, e a guiava ao banheiro. No banheiro, repetiam o sinal de forma coativa e contextualizada e, em seguida, a incentivava a fazê-lo sozinha.
Associando os dados com os estudos descritos, foi possível notar que alguns aspectos são importantes para que o sujeito com surdocegueira consiga se apropriar de um signo: que a sua introdução e utilização sejam significativas, portanto contextualizadas; que sejam efetuadas sempre da mesma forma, deixando, por exemplo, o sujeito perceber a realização do sinal pelo interlocutor e depois ser ajudado a fazê-lo; e que o sujeito seja estimulado a realizar o sinal de maneira independente.
Ainda nessa perspectiva da utilização dos sentidos remanescentes para o estabelecimento da comunicação, a participante Heloá referiu-se a formas que abordam os sistemas tátil e proprioceptivo. Os dados apresentados pela participante assemelham-se às indicações de uso de movimentos coativos, descrito por Van Dijk (1968). Sobre esse aspecto, Cader-Nascimento e Costa (2010) destacaram o seguinte:
Sua abordagem parte do princípio de que as atividades/ações propostas precisam ser realizadas em conjunto, ou seja, o mediador (professor, cuidador, pais, parentes ou amigos) e a criança devem realizar movimentos e ações simultaneamente. (p. 43)
Ainda sobre a utilização dos sentidos tátil e proprioceptivo, a participante Heloá citou estratégias como exploração do objeto e seu movimento de forma simultânea (com a bola de basquete) e oferta de modelo de movimento (pulando na cama elástica). Turiansky e Bove (1991) salientaram que movimentos do corpo inteiro são eficazes para o fornecimento de modelos mais completos para imitação, já Andreossi et al. (2012), referindo-se à construção da consciência corporal em crianças com surdocegueira, enfatizaram que atividades lúdicas facilitam o desenvolvimento dessa consciência e a compreensão do seu corpo e dos movimentos executados por suas diferentes partes. De acordo com o autor, esse é um dos desafios para os profissionais, já que, em virtude das limitações visuais e auditivas, as habilidades de imitação dos padrões de movimentos são comprometidas.
De modo geral, compreende-se que, devido aos desafios impostos pela surdocegueira, é imprescindível para o desenvolvimento da comunicação de sujeitos com essa condição recursos adequados e parceiros comunicativos eficientes. Considera-se eficaz, nesse processo, uma abordagem de comunicação baseada na multimodalidade, ou seja, por meio de estímulos dos sentidos remanescentes como olfato, paladar, proprioceptivo, cinestésico e tátil e, à medida que o sujeito responder ou fornecer indicadores de compreensão, esses interlocutores devem priorizar padronizações nessa comunicação.
4 Conclusões
Ao longo de todo o processo de desenvolvimento e de ensino e de aprendizagem de qualquer sujeito, a comunicação é fundamental. No caso daqueles com surdocegueira, trata-se de um desafio permanente para os diferentes profissionais (McLetchie & Riggio, 2002). Dentro desse contexto, este estudo teve como objetivo identificar, na perspectiva de profissionais que atuaram com um sujeito com surdocegueira congênita, aspectos do uso de vias remanescentes simultâneas ou isoladas, para o estabelecimento da comunicação.
Os resultados obtidos no estudo permitiram-nos considerar alguns pontos: as perspectivas dos participantes estiveram relacionadas à combinação nas formas de antecipação das atividades e/ou ações por meio da utilização de diferentes vias sensoriais; há a percepção de possibilidade de uso de um sentido distal, a audição, mas sem indícios de uso funcional; há presença dos sentidos gustativos e olfativos na maior parte dos relatos, enquanto o proprioceptivo e o cinestésico, em menor proporção; e há tentativas de associação entre objetos concretos e sinais, buscando, assim, uma comunicação em um nível menos elementar.
Consideramos que o estudo trouxe contribuições para as pesquisas voltadas à área do desenvolvimento da comunicação e da linguagem em pessoas com surdocegueira congênita. Esperamos, desse modo, que essa contribuição se estenda a investigações futuras, tendo em vista a necessidade emergente de trabalhos que abordem essa temática, especialmente no contexto das escolas de ensino regular.
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5
De acordo com Cader-Nascimento e Costa (2010), os principais sistemas alternativos de comunicação para a pessoa com surdocegueira são: Língua de sinais tátil, língua de sinais adaptada (redução do campo de articulação, por exemplo), sistema Braille (convencional e digital), escrita ampliada, escrita alfabética na palma da mão, tadoma e objetos de referência.
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6
Monitores no município cujo estudo foi realizado são profissionais que atuam com os estudantes do público-alvo da Educação Especial e têm como função geral executar atividades relacionadas às práticas de estimulação, apoio, avaliação, registro, sob a supervisão e a orientação de docentes, do professor coordenador e do núcleo gestor da unidade educacional.
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7
Essas categorias e as suas respectivas classificações passaram por apreciação de dois juízes externos com formação na área de Educação Especial, em nível de Doutorado.
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8
De acordo com Cormedi (2012), sinais isolados funcionam como palavras isoladas; embora não estejam organizados conforme a estrutura linguística da língua de sinais, conseguem, de forma contextualizada, expressar o significado do todo.
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9
Nos registros do sujeito, não foram encontrados exames audiológicos e, nos relatos da mãe usados para contextualização do caso, não foram observadas quaisquer referências à possibilidade de existência de resíduos auditivos.
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10
Para muitas pessoas com surdocegueira, devido à ausência ou redução de percepção visual, a língua de sinais não será realizada no espaço, mas na mão (Cormedi, 2012).
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Jul 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
10 Jan 2020 -
Revisado
09 Abr 2020 -
Aceito
21 Abr 2020