RESUMO:
O objetivo deste texto é debater como infância, criança, surdez e experiência visual têm se configurado como temas investigativos na Educação, detendo-se em uma análise sobre o olhar das crianças surdas e como sua experiência visual produz e é produzida pelo olhar. Realizou-se um levantamento bibliográfico no Banco de Theses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e nos trabalhos aprovados nas reuniões nacionais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) – GT Educação Especial, tendo como vetor decisivo pesquisas que tinham a infância e/ou a criança surda como temas centrais. Na análise das 23 pesquisas encontradas, verificaram-se três recorrências: a criança ou a infância surda como conceitos abrangentes, pouco abordados em suas singularidades; a experiência visual da criança surda assumida como secundária à aquisição, seja de outras linguagens (como, por exemplo, a escrita), seja da Língua Brasileira de Sinais (Libras), portanto, como experiência suplementar; o conceito de aprendizagem da criança surda vinculado à imagem como recurso didático. Com base nisso, percorreram-se pesquisas e trabalhos que rompem com essas recorrências e, assim, indicam caminhos para a construção de uma agenda de pesquisa sobre criança e infância surda.
PALAVRAS-CHAVE: Infância surda; Criança surda; Experiência visual; Surdez
ABSTRACT:
The purpose of this text is to discuss how childhood, children, deafness and visual experience have been configured as research themes in Education, focusing on an analysis of the gaze of deaf children and how their visual experience produces and is produced by the gaze. A bibliographic review was carried out in the Theses and Dissertations Database of the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES) and in the approved papers for the national meetings of the National Association of Research and Graduate Studies on Education (ANPEd) –Special Education Work Group), having as a decisive vector research that had childhood and/or deaf child as central themes. In the analysis of the 23 studies founded, three recurrences were verified: deaf child or childhood as general concepts, not assumed in their singularities; the visual experience of the deaf child assumed to be secondary to the acquisition, whether of other languages (such as writing), or the Brazilian Sign Language (LIBRAS), therefore, as a supplementary experience; the concept of learning for the deaf child linked to image as a didactic resource. Based on that, research and work that break with these recurrences have been investigated and thus indicate ways for the construction of a research agenda on children and deaf childhood.
KEYWORDS: Deaf childhood; Deaf child; Visual experience; Deafness
1 Introdução
A imagem que trazemos para dar início a este texto (Figura 1) é de autoria da artista visual surda Susan Dupor. Como um dos traços marcantes da “arte surda4” – especialmente nos termos daquilo que, como arte, é produzido a partir de uma relação singular com o mundo –, a artista busca em seus trabalhos dar ênfase aos movimentos, aos gestos e, de modo mais amplo, às distintas práticas que afirma serem constitutivas de uma “experiência surda [ênfase adicionada]” (Dupor, s.d.). Sobre as imagens que produz – geralmente pinturas –, Dupor indica que, nelas, ganham relevo as singularidades da cultura surda e, com isso, as “ironias de ser surdo” em um mundo preparado e organizado para a audição. Investidas dessas ironias, algumas de suas obras mostram sua própria experiência infantil, bem como sua visão sobre as crianças surdas que passam por processos de treinamento da fala ou por processos de colocação de prótese auditiva; mostram, igualmente, a relação de comunicação da criança surda com a família ouvinte ou mesmo com outros adultos ouvintes (professores/as, por exemplo).
Coação, como é intitulada a imagem, traz, em uma sutileza cortante, gestos sintomáticos de muitas dessas práticas: em primeiro plano, uma mão adulta que força o rosto de uma criança surda e, com efeito, acaba por mostrar sua expressão de desconforto e de resistência (as múltiplas linhas diagonais que envolvem a cabeça da criança, tanto aquelas alaranjadas como, mais diretamente, aquelas acinzentadas, indicam, senão isso, talvez, pelo menos, a força do próprio movimento). Ao combinar esses elementos, a imagem nos convida a fazer algumas interrogações: Para onde a mão tenta levar o rosto da criança surda – e, mais do que isso, seu olhar? À que “coação” a artista se refere? Resistência à quê faz a criança por meio de um olhar voltado para o lado oposto àquele a que a mão lhe conduz?
Menos do que responder diretamente a cada uma dessas questões, propomos aqui pensar a partir delas na medida em que tomamos a imagem de Susan Dupor como uma espécie de metáfora às resistências, aos tensionamentos e, ainda, aos processos que visam a normalização como dimensões constitutivas de nosso objeto central de discussão, qual seja, a criança surda como sujeito do olhar. Ainda que, neste texto, não operemos com problemáticas ligadas à coação como gesto definidor, sobretudo em relação ao modo como a infância surda é produzida, entendemos que a obra da artista nos lança metaforicamente a movimentos emblemáticos acerca do objetivo mesmo deste texto, neste caso, implicado em debater como infância, surdez e experiência visual têm se configurado como temas investigativos no campo da Educação no Brasil nos últimos anos5.
Nesse sentido, podemos situar a relevância desse debate junto aos resultados do trabalho desenvolvido por Ramos (2017), intitulado Educação de surdos: estudo bibliométrico de teses e dissertações (2010-2014): o minucioso e denso levantamento que a autora realiza indica que, no Brasil, as pesquisas que problematizam a infância surda se mostram em número ainda tímido (oito teses apenas). No período analisado, o tema foi encontrado “apenas pontualmente” (p. 127) junto a outros, também periféricos – como, por exemplo, a surdez em comunidades rurais ou sobre a história da educação de surdos em determinados municípios brasileiros. Em seu conjunto, esses temas (tão diversos entre si) compuseram não mais do que 16% da amostra (Ramos, 2017). Como evidenciaremos, esse dado, de fato, se reafirma junto àquele que resulta do levantamento que também realizamos, pois, mesmo considerando dados mais recentes (no caso, até 2021), as pesquisas sobre infância surda se apresentam como um campo em emergência no país.
Para tanto, organizamos este texto em três seções: na primeira delas apresentamos detalhadamente, e em termos metodológicos, as etapas centrais que compuseram o levantamento bibliográfico realizado e a forma que ele foi elaborado quanto à sua dinâmica e critérios; em seguida, e já operando com a análise dos dados, discutimos o que vem se mostrando como recorrências no tratamento do tema da infância em relação à surdez e da criança surda, no campo da Educação. Nessa análise, concedemos especial atenção ao modo como a temática do olhar e das imagens emerge – haja vista termos definido esse relevo como central, especialmente por ele se mostrar como dimensão singular na constituição da criança surda no contemporâneo –; por fim, na terceira seção, tomamos os resultados obtidos com o levantamento para propor um debate sobre o tema da infância surda (e da criança surda) a partir de algumas pesquisas e trabalhos que vêm apontando brechas, rupturas importantes a essas recorrências e que, justamente por isso, podem nos mostrar importantes tendências e perspectivas no campo. Em seu conjunto, assumimos que a discussão desses dados, em sua sistematização e atenção quanto aos aspectos teórico-epistemológicos que eles apresentam, pode abastecer o próprio campo de formação de professores que atuam com crianças surdas, bem como nos auxiliar a compor uma espécie de agenda de pesquisa sobre infância surda.
2 Metodologia de pesquisa
Para dar conta de nossos objetivos, realizamos um levantamento de pesquisas que tinham como temática, direta ou indiretamente, a problemática da infância surda em dois bancos de dados. O primeiro deles foi o Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, por entendermos que se trata de um banco de dados que nos permite ter acesso ao corpo investigativo atual e também histórico dos trabalhos acadêmicos produzidos no país. Nesse caso, a pesquisa foi feita por meio da inserção de descritores específicos e seus cruzamentos, tais como: infância [AND] surda; infância [AND] surdez; criança [AND] surdez. Optamos por filtrar as buscas detalhando os campos “Doutorado (teses)”6 e “área de conhecimento”, limitando os resultados para as áreas de “Educação” e de “Educação Especial”, sem restrição temporal.
Além disso, vale mencionar que, mesmo após a filtragem nos campos acima referidos, procedemos ainda a um último refinamento: aquele de leitura dos títulos, palavras-chave, resumo, sumário e introdução de todos os trabalhos. Essa leitura tinha como objetivo verificar a relevância das pesquisas encontradas em relação a nossos propósitos; nesse caso, na medida em que assumimos como critério de seleção para a composição do corpus de análise aqueles trabalhos nos quais a criança e/ou a infância se apresentasse/apresentassem como tema central.
Assim, nessa primeira etapa da composição da amostra, indicamos que: I – assumindo os descritores “infância surda” [infância AND surda] [568.084 resultados iniciais], e, em seguida, utilizando os refinamentos de busca mencionados, a plataforma nos apresentou um total de 25 pesquisas. Destas, e feitas as análises de título, resumo, sumário e introdução de cada uma delas, selecionamos seis para a composição de nosso corpus: Camatti (2017), Conceição (2019), Karnopp (1999), Oliveira (2018), Sales (2013) e Silva (2008). II – Inseridos os descritores “infância” [OR] “criança” e [AND] “surdez”, e aplicados os filtros, obtivemos como resultado 955 trabalhos. Destes, e extraindo as ocorrências duplicadas, os seguintes trabalhos correspondiam às discussões propostas: Dantas (2012), Formozo (2013), Mendes (2018), Resende (2015), Soares (2017) e Vargas (2011). III – Por fim, apenas com o descritor “surdez” foram encontrados 1.477 resultados7. Aplicados os filtros acima referidos, chegamos a 71 pesquisas. Destas, e excluindo-se as repetições, compreendemos que sete estavam em consonância com as discussões objeto deste trabalho: Fonte (2010), Gesueli (1998), Oliveira (2009), Rabelo (2018), Ramos (2018), Razuck (2011) e Taveira (2014).
Junto a esse primeiro levantamento realizado no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, recorremos também a outro banco de produções derivadas de pesquisas na área de Educação reconhecido nacionalmente: aquele dos trabalhos aprovados e/ou apresentados em reuniões da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)8, precisamente no Grupo de trabalho (GT) Educação Especial (já que é esse GT que concentra o maior número de trabalhos sobre educação de surdos). Dos 138 trabalhos publicados entre 2011 e 2021, analisando os títulos, bem como os resumos das produções que abordam a temática da surdez, apenas quatro trabalhos traziam em suas discussões a infância surda – o que, em si, já se apresenta como um dado importante. São eles: Bastos (2017), Lacerda e Lodi (2007), Lebedeff (2007), Lopes e Guedes (2008).
Assim, no total, entre as teses encontradas no banco da Capes e os trabalhos publicados nos sites das reuniões da ANPEd e aprovados no GT Educação Especial, chegamos ao número de 23 pesquisas. A partir da leitura na íntegra das 23 pesquisas, nossa análise voltou-se a duas questões precisas e ligadas aos aspectos teórico-epistemológicos: (1) O que os materiais trazem sobre a infância surda, em suas especificidades e singularidades – em outras palavras, como conceito e pressuposto? (2) Como a temática do olhar e/ou da imagem se encontra aí vinculada? É, pois, em relação àquilo que emergiu como recorrências que nossa análise se produziu.
3 A criança surda como sujeito do olhar: recorrências quanto aos modos (investigativos) de ver a infância surda
Gostaríamos de apresentar três recorrências presentes entre as pesquisas que compõem nosso corpus, considerando o recorte operado e assumindo-as, desde já, como categorias de análise dos dados. São elas: 1) a criança surda e/ou a infância surda trazidas como conceitos abrangentes, pouco abordados em sua singularidades e nuances; 2) a experiência visual da criança surda assumida como secundária à aquisição de outras linguagens (como, por exemplo, a escrita), e da Língua Brasileira de Sinais (Libras) – fazendo dessa experiência, portanto, um elemento suplementar/auxiliar de debate; 3) o conceito de aprendizagem (da experiência visual) da criança surda em vinculação mais imediata ao uso da imagem como recurso didático.
Assim, a primeira recorrência refere-se à conceituação sobre infância surda e sobre criança surda9. Em um primeiro momento, observamos que, em grande parte dos trabalhos, apesar de operarem com a temática da infância/criança surda, nem sempre foi possível encontrar discussões específicas e próprias para tal problematização ou mesmo uma sistematização particular (até mesmo manifesta) sobre esses conceitos. Menos do que uma questão meramente formal, entendemos que tal escolha nos coloca ainda frente a um importante dado: o ato de se operar investigativamente com a infância surda, tratando-a, muitas vezes, de forma generalizada. De algum modo, isso deriva do fato de que, ao se abordar a infância surda e/ou a criança surda, geralmente são utilizadas fontes bibliográficas que operam com uma noção de infância e/ ou de criança de forma ampla, nem sempre articulada com particularidades desse sujeito e dessa experiência – o que faz com que, nos trabalhos levantados, frequentemente sejam utilizados termos como “o sujeito”, “o surdo”, “o aluno surdo” etc., sem se recorrer a especificidades que os próprios aportes podem (ou poderiam) sugerir no sentido de um reconhecimento efetivo de que as crianças surdas vivenciam a experiência da infância de modo singular.
Se, de um lado, encontramos trabalhos que, mesmo tendo a infância como categoria central, não chegam a desenvolver discussões sobre o conceito, de outro, encontramos aqueles que se valem dos aportes teóricos de campos já consolidados – como os da Sociologia da Infância e da Pedagogia da Infância, entre outros – ainda assim, sem necessariamente dinamizá-los e mobilizá-los na direção da construção de um conceito de infância surda que dê conta de elementos particulares (como muitos desses mesmos campos reivindicam).
Um exemplo disso pode ser visto em uma das pesquisas encontradas, voltada a pensar sobre as práticas docentes utilizadas para com as crianças surdas na Educação Infantil – como aquelas ligadas à aquisição linguística, à aprendizagem dos números, de conceitos e de como o ensino é mediado pelos educadores a fim de levarem os “alunos surdos” (Dantas, 2012, p. 16) a adquirir e desenvolver os conceitos cotidianos. Na pesquisa, de fato, conceitua-se criança como cidadã, “sujeito histórico e construtora de conhecimentos na interação com o seu meio” (p. 68) e, ainda, a partir de pressupostos piagetianos relativos aos estágios do desenvolvimento infantil – ainda que, na discussão teórica, não emerjam nuances relativas à criança surda e sua infância.
Da mesma forma, em pesquisa direcionada a tratar sobre as alternativas de letramento para crianças surdas, diversas vezes é o termo “surdos” que ganha prevalência quando se aborda as dificuldades de aquisição do português das crianças. No texto, “criança surda” emerge facilmente intercambiável a outros termos como “surdo”, “aluno surdo”, “indivíduo”: “uma outra recorrência de artificialização da língua, muito comum nas escolas é a de simplificar a escrita do português para os surdos [ênfase adicionada]” (Lebedeff, 2007, p. 3); “pode-se concluir, portanto, que tem negado – a escola –, também, a capacidade linguística em língua de sinais dos alunos surdos [ênfase adicionada]” (p. 4).
Algo semelhante pode ser visto em pesquisa que discute sobre a Libras como disciplina na educação básica (Bastos, 2017), na qual se afirma que, “com o número crescente de surdos [ênfase adicionada] que chegam, cada vez mais, em nossas escolas, devemos ter como ponto de partida uma proposta pedagógica que contemple as necessidades e especificidades desse público” (p. 5). Já na pesquisa que investiga os “efeitos do diagnóstico precoce da surdez nos processos de escolarização de alunos surdos”, mostra-se que “o diagnóstico precoce da surdez tem operado na articulação de técnicas regulatórias que geram efeitos na constituição do sujeito surdo [ênfase adicionada] e em seus passos de escolarização” (Camatti, 2017, p. 9).
Ao trazer esses excertos, busca-se dar ênfase ao fato de que “surdos”, “alunos surdos”, “indivíduos”, “estudantes com surdez” parecem corresponder a uma e mesma categoria: criança surda – e isso nos diz menos de uma necessidade estilística de escrita (que visa não repetir termos) e mais de uma lacuna quanto a discussões teóricas precisas.
Longe de emergir como uma recorrência circunscrita, tal dado coincide com aquilo que a própria Sociologia da Infância vem manifestando como uma de suas preocupações: a insistência em se operar com as problemáticas das crianças e de sua existência somente na qualidade de “aluno” – ou o que, nos termos de Marchi (2010), podemos chamar de “ofício aluno” (p. 185) –, que, em muito, obstaculiza o reconhecimento da infância como um grupo social que tem cultura própria. No caso da infância surda, não se trata de mera questão formal, ou necessariamente um “problema” imediato, mas o indicativo de uma discussão que se mostra relevante: ao se valerem dos termos “surdo”, “indivíduo surdo”, “aluno surdo”, “estudante com surdez”, escapa-se de mostrar uma infância surda naquilo que ela tem de singular – e que as categorias voltadas para adultos ou mesmo jovens surdos nem sempre conseguem dar conta.
Tal conclusão parece convergir com outras questões específicas do campo, como, por exemplo, as variações que a palavra “surdo” vem apresentando semanticamente ao longo da história (Morgenstern & Witchs, 2015). Mais precisamente, entendemos que as derivações do termo “surdo” trazidas nos trabalhos anteriormente citados nos indicam, de fato, uma certa “marca surda” utilizada para se referir aos sujeitos – sejam eles infantis ou adultos – que participam de uma comunidade com características bem definidas. Dentre essas características, o sentimento de pertencimento, a utilização da língua de sinais, o convívio entre iguais em espaços comuns (associação de surdos, a própria escola de surdos). No entanto, se considerarmos tanto a construção de nossos campos de pesquisa, como, ainda, o ato mesmo de fazer pesquisas com crianças surdas, há singularidades que se compõem não apenas como meras informações, meras ressalvas, mas como elementos constitutivos quanto à construção das identidades infantis.
A segunda recorrência encontrada nos trabalhos derivados de nosso levantamento é aquela relativa à temática da aquisição da Libras (e de outras linguagens, como a língua portuguesa escrita) na qualidade de discussões que marcam, decisivamente, o que se entende por uma experiência visual da criança surda. Ou, dizendo de outro modo, a experiência visual, mesmo quando emerge como um tema de pesquisa, é construída sob o viés da aquisição linguística – construção, portanto, que se faz ainda em grande parte em dependência direta da aquisição linguística. Não se trata de um achado trivial. Para Quadros (2003), “muito da experiência visual é confundida [ênfase adicionada] com a experiência linguística visual, ou seja, com a utilização da língua de sinais” (p. 94) – algo que, para Lebedeff (2007), é considerado, inclusive, um reducionismo. Se tomamos essa como uma recorrência suscetível ao debate é porque, tal como Quadros (2003), afirmamos a importância de que a experiência visual deixe de ser “relegada a um segundo ou terceiro plano”, e que passe a ocupar “o centro das atenções, pois ela é base do pensamento e da linguagem dos surdos” (p. 102). Dessa compreensão que apenas vincula experiência visual à língua de sinais (ou à aquisição de uma linguagem) deriva um movimento teórico fundamental: o olhar sendo tomado como relegado à língua. Desse modo, algo que pode ser resumido pela seguinte questão: para além de sua importância fundamental para o aprendizado da Libras e mesmo da escrita, que outros aprendizados, que outras formas de conhecimento a dimensão do olhar produzem, não como dimensão facilitadora, mas constitutiva da experiência mesma de ser criança surda? O que a experiência visual da criança surda diz de sua maneira de estar no mundo de modo qualitativamente incomparável àquela de uma criança ouvinte?
Nesse sentido, atentamos para o modo como, muitas vezes, opera-se no reforço de certas lógicas que sustentam as discussões sobre a criança surda como sujeito visual: como se a visualidade pudesse ser ensinada e, ainda, desenvolvida em paralelo à aquisição de outras aquisições linguísticas. Como exemplo do processo de instaurar uma relação entre o ato de ver com um tipo de aprendizagem (no caso, da aquisição da língua da língua escrita), destacamos a pesquisa que desenvolve uma proposta de avaliação das formas de compreensão e registro da escrita de alunos surdos. Nela, propõe-se uma avaliação para acompanhamento e apreciação da escrita pautada pelas formas de registro de alunos surdos, usuários da Libras (Resende, 2015), concluindo-se que os alunos que “fazem leitura contextual estão tendo a oportunidade de um letramento visual e percebendo o uso social e funcional da escrita” (p. 32). Uma das técnicas utilizadas para esse letramento visual é, justamente, a memória visual de glossários em português, cujo uso visa um “adensamento de textos trabalhados arduamente em Libras e depois relacionados à modalidade escrita do português” (p. 32).
Da mesma forma, em pesquisa que trata de compreender a constituição do pensamento da criança surda por meio da experiência visual e como se efetivam, a partir disso, as práticas pedagógicas para o letramento visual dessas crianças numa perspectiva bilíngue, argumenta-se que, para o letramento de crianças surdas, diversos instrutores surdos têm utilizado em sua “prática pedagógica o uso do imagético, do visual” (Taveira, 2014, p. 35). Assim, o trabalho sustenta-se em propor a sistematização de uma prática bilíngue por meio do letramento visual da criança surda – e entendendo-se por “letramento visual” seu sentido tradicional, qual seja, como prática de “se ler a imagem como texto” (p. 65). Também nessa direção, destacamos uma pesquisa que busca compreender como se dá a escrita da língua portuguesa do aluno surdo, por meio da Libras. A pesquisa defende que o visual é “imprescindível” para a aquisição de habilidades de escrita, ou seja, à criança é necessário “um estímulo rico em linguagem visual de modo amplo e mais especificamente em sinais, a fim de reconhecer e discriminar os aspectos visuais dessas duas modalidades linguísticas” (Oliveira, 2009, p. 18).
Por que trazemos esses fragmentos? Porque, como referido, buscamos nos agregar a esses trabalhos não apenas repetindo suas conclusões, mas argumentando sobre como certas tendências investigativas podem nos conduzir a outras perguntas. Assim, ao traçarmos essa segunda recorrência, não rejeitamos a importância decisiva da experiência visual para a aquisição linguística pelas crianças surdas, mas, antes, e como já mencionado, cabe-nos problematizar a que lógicas essa experiência vem respondendo – já que sendo uma língua, “uma maneira de estar no mundo”, ela “não é algo que seja externo [aos surdos], mas sim deles constitutivo” (Peluso & Lodi, 2015, p. 64).
Chegando à terceira recorrência delineada a partir da leitura dos trabalhos, observa-se que, em sua grande maioria, eles vinculam as imagens ao desenvolvimento de habilidades, geralmente escolares. Nesse caso, tais habilidades não dizem respeito diretamente àquela do olhar ou a uma experiência visual ampla do mundo, mas antes a um conceito específico de aprendizagem – geralmente ligado a algo imediatamente “escolarizado”, a conteúdos previstos em uma noção de currículo formal. Com isso, a problemática do olhar da criança surda acaba sendo concebida no interior de estratégias didáticas (já que a imagem aqui é tomada como recurso) – o que, com efeito, acaba impregnando a própria noção de aprendizagem aí envolvida.
Podemos citar, neste sentido, a pesquisa que investigou como a visualidade do sujeito surdo é fator contribuinte para a aprendizagem de matemática. Nas palavras do autor, foram pensadas em “atividades que privilegiassem os aspectos visuais dos conceitos matemáticos para analisar como os alunos surdos se desenvolvem durante essas atividades” (Sales, 2013, p. 18). Para além do fato de que, na pesquisa, aprender sobre imagens é aprender sobre imagens tradicionalmente escolares (ou, ainda, escolarizadas), é por meio delas (das imagens) e da relação que as crianças estabelecem com elas que se projeta a própria aprendizagem: observou-se “sinais de aprendizagem [ênfase adicionada] por parte dos alunos, em que estes construíram conceitos, fizeram inferências e generalizaram – cada uma em seu ritmo e a seu modo – em relação à apropriação dos entes geométricos” (p. 160). Também em relação ao ensino da matemática, porém agora quanto à composição aditiva e à contagem, em sua pesquisa, Vargas (2011) mostra que a “modalidade visual é certamente fundamental para os alunos surdos, e, dependendo do tipo específico da tarefa viso-espacial utilizada, eles têm desempenho melhor, pior ou igual aos alunos que ouvem” (p. 47).
De modo semelhante, ainda que em relação a outro campo de conhecimento, ao investigar sobre alunos surdos inseridos em escolas regulares e que vivenciam diferentes situações em relação à aprendizagem de Ciências, Razuck (2011) buscou, em sua pesquisa, compreender como se tecem as relações pedagógicas, bem como os processos de avaliação que os professores de Ciências utilizam para com esses alunos. Os resultados da pesquisa apontam que os “alunos surdos” têm aprendido mais pela visualização: “os conceitos que foram trabalhados visualmente como a distribuição eletrônica (...), ligações químicas (...) e tabela periódica foram melhor compreendidos” (p. 219).
Os fragmentos que trazemos, para além de nos ajudar a compor os argumentos relativos à terceira recorrência, são também elucidativos quanto às conclusões a que chega Formozo (2013) em sua pesquisa sobre o que chama de “pedagogias surdas” – entendidas como aquelas pedagogias “constituídas nas práticas diárias de professoras surdas em escolas de surdos” (p. 6). Em seu trabalho, investido de uma etapa de observação em sala de aula com crianças dos primeiros anos do ensino fundamental em uma escola de surdos, pôde-se constatar “várias atividades baseadas na experiência visual do surdo, como o uso de figuras e de brinquedos pedagógicos para ensinar sinais” (p. 94). Tal como vimos tentando argumentar, o debate ultrapassa a mera relação entre criança surda e experiência visual, estratégias de ensino e noções de aprendizagem, mas o que se produz a partir dessa articulação. A autora mostra, por exemplo, que, nesses espaços institucionalizados e por meio de discursos postos em circulação pelos próprios surdos, a experiência visual acaba sendo “capturada e pedagogizada”, sobretudo porque, de um lado, ela se limita às “estratégias didáticas” (p. 94) e, de outro, porque se coloca a experiência visual “em uma lógica binária de compensação da falta de audição” (p. 95).
Ao apresentar tais discussões, destacamos o quanto o olhar tem sido, em muito, pensado em sua relação com um recurso voltado para a aquisição de habilidades, de conteúdos escolares. Entendemos, ao mesmo tempo, que não é porque os surdos aprendem pelo visual, que necessariamente os materiais visuais terão impacto positivo em sua aprendizagem, principalmente se tais materiais forem elaborados em uma perspectiva ouvinte. Lebedeff (2017) afirma que, em função de os profissionais da Educação não terem sido ensinados e preparados em sua formação para atenderem alunos surdos, “a tendência maior é a de reprodução de atividades e experiências ouvintes” (p. 231), buscando-se, quando muito, fazer algumas adaptações para os surdos. Tal prática sugere uma “imposição de formas de aprender baseadas na cultura oral, na perspectiva do professor ouvinte” (p. 231). Esses modos de utilizar a experiência visual do surdo acabam por não valorizar a especificidade desses sujeitos, já que tomam essa experiência como mero “elemento inspirador de ferramentas e estratégias de apoio” (p. 248).
As contribuições de Formozo (2013) e Lebedeff (2017) nos ajudam no necessário distanciamento dos pressupostos que tornam a experiência visual da criança surda como vinculada a um discurso compensatório (no caso, de uma visão mais desenvolvida devido à perda auditiva) e sua, digamos, consequência pedagógica: a vinculação a uma discursividade inapelável de que as crianças surdas aprendem mais e melhor com imagens – algo que, para Peluso e Lodi (2015), acaba produzindo uma ideia específica e banalizada do que se entende como a “visualidade” dos surdos, produzindo uma visualidade “imposta e equivocada” (p. 65).
Mais uma vez, não negamos a importância das imagens nos percursos e nas proposições pedagógicas e, sabemos, não há como separar o olhar da criança surda das questões que perpassam as línguas e as formas de aprender dessa criança no âmbito escolar (aliás, é isso que reivindicamos), mas é possível (e, diríamos, desejável) deslocarmos as formas de investigar esse olhar para outros espaços, com vistas a outras possibilidades de aprendizado que eles podem promover (bem como noções outras de aprendizagem que daí podem emergir). É precisamente a interlocução com as pesquisas mencionadas que nos permite problematizar as dinâmicas sobre a infância surda a partir de uma concepção da criança surda como sujeito do olhar nos termos da seguinte questão: Como o campo tem também produzido escapes, fraturas a essas recorrências, e assim dado contornos e sentidos sobre as noções mesmas de infância e sobre a experiência visual da criança surda que podem balizar?
4 A criança surda como sujeito do olhar: escapes e fraturas na direção de um outro olhar sobre e para a infância surda
Se até agora vimos discutindo as recorrências presentes nos trabalhos recuperados por nosso levantamento e as formas pelas quais o campo tem se ocupado, em grande medida, do tema da criança/infância surda e de sua experiência visual, nesta seção, nosso objetivo é percorrer algumas pesquisas que abordam outras formas de configuração do olhar na infância surda – e fazemos isso valendo-nos de nosso levantamento, mas também indo além dele. Dessa forma, buscamos, neste momento, explorar trabalhos que nos propõem “fraturas”, “escapes” justamente a essas e dessas recorrências. Trata-se, assim, de promover um debate que resulta de nossa análise, a partir dela.
As “fraturas” e os “escapes” a que nos referimos dizem respeito a pesquisas que tomam o olhar da criança surda como forma primeira de conhecimento de mundo e compreensão da realidade; assumem o olhar como ferramenta decisiva utilizada pela criança surda para compor sentidos às coisas à sua volta, lançando mão de elementos diversos, como, por exemplo, a língua, o corpo, as expressões, a produção e o consumo da literatura, do teatro, da música etc. Com isso, sustentamos um argumento importante em relação à imersão exigida por nossa leitura: o campo de Estudos Surdos vem também produzindo dados incontornáveis para a compreensão acerca de como a criança surda se produz como sujeito e, ainda, sobre a infância surda como experiência com marcas e contornos próprios – mesmo naqueles trabalhos que a criança e a infância surdas não se efetivam como temas proeminentes.
Considerando o universo de pesquisas que destaca como o olhar da criança surda é constituído desde a mais tenra idade, no caso, no convívio com familiares surdos, Karnopp (1999), em sua tese de doutorado, analisou a aquisição fonológica de crianças surdas filhas de pais surdos – e fez isso por meio de um estudo de imersão com uma criança surda, em específico. Sobre a pesquisa realizada há mais de 20 anos, Karnopp (2019) narra que, desde muito pequena, a família dessa criança já procurava estabelecer uma relação por meio do olhar diretamente para com ela e entre ela e as coisas à sua volta. Entendemos, já de início, que o ato de ver consiste em formas singulares de ser efetivamente educado e, nessa condição, convidam o sujeito a aprender a ver, a experienciar os objetos, as sensações, as falas, os movimentos de modo diverso e bastante específico. E é essa forma de aprendizagem do olhar, contínua, paulatina e dinâmica, que compõe a experiência visual dos surdos ao longo da vida.
Como forma de educar o olhar da criança surda, Karnopp (2019) nos traz um exemplo de sua pesquisa: “a criança estava ali com o pai, e ele puxava o rosto dela e dizia ‘olha para mim’, para então começar a sinalizar com ela”. Enquanto a criança não voltasse seus olhos e sua atenção para o pai, este não começaria a sinalizar. O estabelecimento do olhar para determinada direção e sua atenção para as coisas ou pessoas são, pois, determinantes para a compreensão do que se passa à sua volta, do que seus pares sinalizam, das ações decorridas nos ambientes. Trata-se de elementos que nos fazem compreender uma série ampla e complexa que sustenta o aprendizado do olhar para um sujeito surdo (algo que se estabelece desde a infância), daquilo a que ele dá lugar e favorece, possibilita, mas também nega.
No trabalho de Ramos (2016), ainda que tenha como objetivo, basicamente, analisar filmes, o pesquisador nos dá indícios de como a experiência visual da criança surda se constitui no ambiente familiar, na escola e nas interações sociais – e é tomada por meio de outras sensibilidades e vivências, fazendo ver justamente suas dimensões mais amplas de aprendizagem e, acima de tudo, de constituição dos modos de ser criança surda. A partir de uma das cenas dos filmes analisados, Ramos (2016), que também é surdo, passa a narrar uma lembrança de sua infância: uma viagem de carro com seus pais (ouvintes). Ele conta que, nessas viagens, “ficava olhando a paisagem, a estrada, o caminho, admirando e observando detalhes” (p. 65); conta, ainda, que a família ficava conversando entre si enquanto ele olhava pela janela do carro aquilo que se passava do lado de fora. Quando retornavam da viagem, ele lembrava, com detalhes, tudo o que havia visto na estrada: “nomes de estabelecimentos, a forma das tendas dos alimentos, os detalhes do caminho, a mudança das paisagens” – aspectos que, nas palavras dele, seus “pais, primos, outras pessoas que estavam na viagem não tinham observado” (p. 65). A memória de eventos como esse lhe permite concluir que a experiência da viagem (como trajeto) era vivida por cada um de formas diferentes, já que, para ele, tais lembranças se produziam fundamentalmente a partir de sua experiência visual, enquanto aquelas dos familiares se concentravam muito mais nas conversas e músicas que escutavam. Isso permite ao autor afirmar algo paradigmático sobre a construção da experiência visual das crianças surdas: o fato de que ela é uma “experiência visual [que] não diz respeito apenas à percepção sensorial das coisas através da visão [ênfase adicionada], mas ao modo de aprender, de organizar o conhecimento, de produzir cultura, arte, narrativas, de interagir com outros saberes” (Ramos, 2016, p. 78). Esses modos particulares de descrever a construção da experiência visual singularizam o olhar da criança surda e permitem entender o sentido mesmo de o próprio campo da infância operar com esse conceito no plural – infâncias –, já que, como se percebe, essa experiência não é homogênea, por exemplo, entre crianças surdas e ouvintes.
Em sua pesquisa – que buscou compreender a recepção da mídia televisiva por parte dos sujeitos surdos –, ainda que mesmo sem tratar especificamente da infância surda, Reichert (2006) apresenta momentos de sua própria infância, particularmente sobre a relação entre seu olhar e a mídia televisiva – e é esse ponto que nos interessa. O autor admite que se valia (e se vale até hoje) de outras formas de percepção da imagem por meio de um olhar implicado a seu corpo por inteiro, na medida em que sentia (e sente) as vibrações do som. O autor, ao nos apresentar as formas de os surdos acessarem a determinadas informações presentes na mídia televisiva (falas, músicas, assobios, gírias, entre outros), confirma mais uma particularidade do olhar da criança surda com relação à forma de dar sentido àquilo que vê, inclusive a partir de outras sensibilidades e experiências familiares e afetivas:
eu estava a toda hora perguntando a minha mãe o que estava se passando na televisão. Um dia ela resolveu “entrar em meu mundo” e desligou o som da televisão, eu até pensei que poderia estar no baixinho, mas coloquei a mão no aparelho e não havia vibração de som. Neste momento ela me disse que eu a ajudaria a entender [por que] eu era melhor em leitura labial do que ela. (p. 20)
O que essas afirmações e depoimentos nos mostram é que o corpo da criança surda, bem como a língua de sinais dão contornos às formas de olhar e assim vão permitindo a construção de significados sobre si, sobre sua surdez e sobre o mundo. A intervenção da criança surda para um adulto a fim de que lhe explique o que está sendo dito em um noticiário, em um filme sem legenda etc. (“eu estava a toda hora perguntando a minha mãe o que estava se passando na televisão”), são modos de compreender o que está sendo dito. Da mesma forma, o corpo-olho da criança surda se volta às imagens televisivas, mas se direciona também a outros elementos que compõem as informações da tela a fim de compreender as imagens. Tais elementos podem ser os mais variados, como as mudanças de expressão nos rostos das demais pessoas que assistem ao programa, sua linguagem corporal, a dinâmica do ambiente e a leitura labial das pessoas que conversam sobre o assunto que está sendo apresentado na televisão ou mesmo o que invisivelmente reverbera fisicamente do aparelho televisivo (Reichert, 2006).
Outra pesquisa que também aponta para algumas peculiaridades do olhar da criança surda é aquela produzida por Souza (2016), intitulada A poética do olhar: a cultura visual surda no contexto amazônico. Nela, a autora mostra que o olhar da criança surda “escuta o visível, suas cores, seu movimento, sua influência e agir. É o nascimento de novos saberes de um modo totalmente contrário ao da maioria (...). De forma vagarosa vai aprendendo, interpretando e significando o silêncio das palavras” (p. 55-56). O que permite à autora fazer tal afirmação não diz respeito somente à fala imediata de um dos sujeitos da pesquisa – que, em dado momento, enuncia “eu escuto a cor dos pássaros” (p. 56) –, mas sim o fato de que, apesar de a criança surda não ouvir, a partir do seu olhar, bem como do corpo que sente a vibração de alguns sons, ela interpreta esses sons por meio do visual, construindo sentidos a partir, sim, do próprio som e da imagem. Assim, a criança surda vai estruturando os sons a partir do olhar, transformando-os em imagens, cores, formatos, com vistas a compreender aquilo que vê. Na frase “eu escuto a cor dos pássaros”, portanto, a evidência do ato de escutar como “condição extremamente natural à pessoa surda, que em tudo procura escutar com o olhar. (...) Produzindo e concebendo o conhecimento por meio do olhar, transformando som em imagem” (p. 56).
A última pesquisa que exploramos neste texto é aquela desenvolvida por Silveira (2015), intitulada Literatura surda: análise da circulação de piadas clássicas em língua de sinais. Tendo por objetivo compreender quais as representações sobre os surdos e suas características culturais estão presentes em piadas que circulam na comunidade surda, podemos encontrar vestígios sobre a constituição do olhar da criança surda, principalmente ancorados na aprendizagem da cultura que lhe é transmitida por meio da língua de sinais.
A autora mostra que a maioria das piadas analisadas são antigas e persistem durante o tempo, passando de geração em geração, com o objetivo de continuarem ensinando sobre a cultura surda, a história de lutas, sofrimentos e conquistas do povo surdo – inclusive às crianças surdas. As piadas, segundo a autora, mostram-se ricas nas expressões faciais, especialmente ao satirizar os percalços pelos quais os surdos passam. Um dos exemplos trazidos na pesquisa é a história expressa em sequência de configurações de mãos (facilmente acessíveis hoje em vídeos do YouTube) que se utilizam do alfabeto manual ou dos números, bem como do nome próprio das pessoas para uma contação visual. Reproduzimos, como demonstração, a história construída a partir da palavra “onça”, tal como contada pela pesquisadora surda:
Através de uma palavra, ONÇA [como a sequência de mãos sugere]: “era uma onça pintada, andando com velocidade, parada, solta fumaça pelas ventas, grita”. No entanto, [na imagem] não aparece o sinal ONÇA, mas cada sinal corresponde a uma letra dessas palavras, por exemplo, com a letra O é produzido o sinal “onça”. Assim, juntando as configurações de mão, presentes em cada sinal produzido, podemos perceber a soletração ONÇA. (Silveira, 2015, p. 48)10
A língua de sinais, em toda a sua complexidade gramatical e visual, dá sentido ao que é expresso durante a contação da piada, fazendo movimentos que, juntamente com um corpo que se constitui visualmente, permitem a contextualização de tal situação. A autora afirma que, nessas piadas e histórias contadas, é “o uso da língua de sinais, da experiência visual está em destaque” (p. 177) – o que se diferencia da forma como outras culturas aprendem sobre o sentido mesmo do que é humor.
Em suma, como buscamos mostrar, a experiência do olhar da criança surda configura-se como um potente artefato de construção de mundo – de ideias, pensamentos, emoções, ações –, bem como de si mesma; configura-se como um artefato por meio do qual ela se produz como sujeito do olhar e, com isso, como sujeito de determinada experiência visual; como aquilo que marca seu corpo, que é e está atrelado a uma forma específica de linguagem. Trata-se de uma experiência que, por sua vez, não é assumida, aprendida de maneira estática e passiva, mas antes produzida por um corpo que vive e dá sentidos a suas experiências das mais diversas, sejam elas corporais, linguísticas, artísticas, sensíveis etc.
5 Conclusões
Neste texto, nosso objetivo foi debater sobre os temas da infância e da criança surda, delineando as formas pelas quais eles vêm se apresentando como focos de pesquisa no campo da Educação. Mais do que isso, assumimos, para esse debate, um atravessamento específico: a problematização da criança surda como sujeito do olhar. A partir do levantamento bibliográfico realizado (especialmente das 23 pesquisas em que essa discussão se efetivava como proeminente), construímos um percurso analítico que, entendemos, nos dizem sobre movimentos, tendências e, acima de tudo, daquilo que pode emergir como uma agenda de pesquisa para o campo da infância surda e da criança surda.
Assim, tal como nos sugere a imagem que elegemos como porta de entrada deste texto, colocar a criança surda e sua infância como central no quadro (investigativo, pictórico) implica perspectivá-la de determinadas formas (e não de outras); implica escolhas (teórico-metodológicas, estéticas); e, especialmente, implica construir e dar sentido ao que, como adultos (pesquisadores/as ou não), elegemos narrar sobre elas (investigativa e visualmente). Valendonos das potencialidades que a leitura tanto da imagem quanto das pesquisas nos permite, nosso interesse não foi o encerrar os sentidos sobre aquilo que vemos/lemos (isso seria limitar e reduzir tais materiais), mas, antes, fazer, a um só tempo, da imagem e dos trabalhos matéria para a construção de novas perguntas.
Debater sobre as três recorrências – a criança surda e/ou a infância surda trazidas como conceitos abrangente, a experiência visual da criança surda assumida sob o prisma da aquisição de outras linguagens e o conceito da experiência visual da criança surda vinculada ao uso da imagem como recurso didático –, foi o que nos permitiu sistematizar argumentos em torno de outras perspectivas que o campo vêm também nos oferecendo. Assumidas como “escapes” e “fraturas”, tais perspectivas nos levaram a percorrer outras dimensões e nuances envolvidas na relação da criança surda com a imagem, reconhecendo ali o terreno potente para a produção de conhecimento sobre a infância surda em suas singularidades. O percurso que estabelecemos talvez indique apenas um caminho possível dessa agenda, construída a partir daquilo que – valendo-nos dos termos utilizados por Marchi (2010, p. 183) a partir da Sociologia da Infância –, cria espaços para uma certa “autonomia conceitual”, em nosso caso, da infância surda, ou, ainda, para a “cidadania epistemológica” da criança surda.
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Entendida, a partir de Strobel (2008, p. 66), como artefato cultural surdo; como aquilo que permite ao surdo apresentar uma forma específica de ver e de interpretar o mundo; que carrega possibilidades de, como linguagem, explorar outras formas de olhar e, ainda, aquilo por meio do qual os próprios surdos também constituem um tipo de experiência visual.
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Optamos por restringir a pesquisa a teses de doutorado, pois entendemos que as pesquisas desenvolvidas nesse nível de formação, dada também a possiblidade de um maior aprofundamento teórico e metodológico, acabam por oferecer elementos mais substantivos a nossos propósitos.
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As pesquisas das quais este artigo é resultado contaram com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Bolsa de Produtividade em Pesquisa – e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Bolsa de Estágio de Doutorado no Exterior.
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Tal como sugere Karnopp (2019), uma hipótese possível para a ocorrência tão menor de pesquisas com o descritor “surdez” pode estar relacionada à prevalência do termo em algumas áreas (sobretudo médicas e/ou clínicas), enquanto, em outras áreas (como a Educação e a Linguística, por exemplo), o uso do termo “surdo(a)” se faz mais efetivo – remetendo, pois, a debates travados no âmbito da construção de uma identidade e/ou de uma cultura. Por essa razão, reafirmamos a importância da realização da pesquisa com outros indicadores e, ainda, de seu cruzamento, tal como tentamos evidenciar.
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Assumimos o portal da ANPEd como um de nossos campos de busca, primeiro, graças à importância e atuação da Associação no que tange ao compartilhamento das pesquisas realizadas em nosso campo em suas reuniões anuais e, mais recentemente, bianuais e, ainda, uma vez que ele se configura como importante espaço de divulgação de trabalhos (inclusive daqueles que, eventualmente, podem não ter sido lançados/capturados no mapeamento no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes).
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Nossa análise não se voltou para as concepções teóricas específicas assumidas em cada pesquisa, nem mesmo, consequentemente, às formas pelas quais cada pesquisa conceituava criança e/ou infância a partir deste ou daquele quadro teórico. Interessou-nos, isso sim, debater em que medida criança e/ou infância eram assumidos, efetivamente, como conceitos – e, a partir daí, o tratamento que recebiam em termos de desenvolvimento e argumentação quando tomados a partir da experiência visual surda.
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Para acesso à sequência referida pela autora, ver: https://www.youtube.com/watch?v=M9Fp8IsEuG0
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
31 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
26 Ago 2022 -
Revisado
18 Jan 2023 -
Aceito
02 Fev 2023