Open-access A RELAÇÃO INTRÍNSECA ENTRE A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E A EPISTEMOLOGIA MARXIANA

LA RELACIÓN INTRÍNSECA ENTRE LA PSICOLOGÍA HISTÓRICO-CULTURAL Y LA EPISTEMOLOGÍA MARXIANA

RESUMO.

Considerando as investidas ideológicas que tencionam mascarar as bases epistemológicas marxistas da psicologia histórico-cultural, o artigo em tela visa contribuir para evidenciar o modo como o materialismo histórico e dialético edificou os pressupostos essenciais desta teoria psicológica. Para tanto, estabeleceu-se a proposição de que os três pilares metodológicos que fundamentam a crítica marxiana à sociedade burguesa - quais sejam, a unidade mínima de análise, a historicização categorial e a essência contraditória do fenômeno estudado - amparam, analogamente, a análise histórica do psiquismo humano como sistema interfuncional. Deste modo, objetivou-se demonstrar que a arquitetônica epistemológica marxiana serviu de sustentáculo para a edificação de uma psicologia legitimamente marxista a qual superou os limites atomísticos da lógica formal burguesa. Concluiu-se que a especificidade metodológica da psicologia histórico-cultural apreendeu o desenvolvimento dos processos psicológicos no movimento de suas tendências antagônicas essenciais - representadas pelo núcleo contraditório que contrapõe e articula os processos funcionais elementares e superiores - alcançando a compreensão da concretude histórica que conforma a subjetividade humana.

Palavras-chave: Vygotsky, Lev Semenovich; marxismo; materialismo dialético

RESUMEN.

En cuanto a las investiduras ideológicas que pretenden enmascarar las bases epistemológicas marxistas de la psicología histórico-cultural, en el artículo en pantalla se pretende contribuir a evidenciar el modo en que el materialismo histórico y dialéctico ha edificado los supuestos esenciales de esta teoría psicológica. Para ello, se estableció la proposición de que los tres pilares metodológicos que fundamentan la crítica marxiana a la sociedad burguesa - que sean, la unidad mínima de análisis, la historicidad categorial y la esencia contradictoria del fenómeno estudiado - amparan, análogamente, el análisis histórico del psiquismo humano como sistema inter-funcional. De este modo, se pretendió demostrar que la arquitectónica epistemológica marxiana sirvió de sostenimiento para la edificación de una psicología legítimamente marxista la cual superó los límites atomísticos de la lógica formal burguesa. Se concluyó que la especificidad metodológica de la psicología histórico-cultural aprehendió el desarrollo de los procesos psicológicos en el movimiento de sus tendencias antagónicas esenciales - representadas por el núcleo contradictorio que contrapone y articula los procesos funcionales elementales y superiores - alcanzando la comprensión de la concreción histórica que conforma la subjetividad humana.

Palabras-clave: Vygotsky, Lev Semenovich; marxismo; materialismo dialéctico

ABSTRACT.

Considering the ideological assumptions that intend to mask the marxist epistemological foundations of historical-cultural psychology, this article aims to contribute to evidence the way in which historical and dialectical materialism has built the essential presuppositions of this psychological theory. In order to do so, the proposition was established that the three methodological pillars that underpin marxian criticism of bourgeois society - namely, the minimum unit of analysis, the categorical historicization and the contradictory essence of the studied phenomenon - support, in the same way, the historical analysis of the human psyche as a cross-functional system. In this way, it was tried to demonstrate that the marxian epistemological architectonic served as support for the construction of a legitimately marxist psychology that surpassed the atomistic limits of the formal bourgeois logic. It was concluded that the methodological specificity of historical-cultural psychology seized the development of psychological processes in the movement of their essential antagonistic tendencies - represented by the contradictory nucleus that contrasts and articulates the elementary and higher functional processes - reaching an understanding of historical concreteness which conforms to human subjectivity.

Keywords: Vygotsky, Lev Semenovich; marxism; dialectical materialism

Introdução

São recorrentes os esforços ideológicos em desvincular a psicologia histórico-cultural de seus pressupostos metodológicos marxistas, de modo a afastá-la de suas raízes epistemológicas e mascarar o caráter revolucionário de suas premissas sobre o desenvolvimento humano (Duarte, 2011). Tendo isso em vista, significativos estudos vêm apontando a articulação essencial entre esta teoria e o materialismo histórico e dialético em interface com a educação (Duarte, 2011, 2015b; Saviani, 2015; Tuleski & Franco, 2013), bem como as repercussões desta conexão para a organização do ensino (Duarte, 2015a; Martins, 2013; Pasqualini & Abrantes, 2013).

O presente artigo visa contribuir para este movimento revelador das bases marxianas que amparam a teoria psicológica em tela. Para tanto, nos aprofundaremos na arquitetônica categorial erigida por Marx (1867/2017a, 1894/2017b, 1885/2014, 1941/2011) no estudo da sociedade capitalista, demonstrando o modo como ela alicerça a concepção de desenvolvimento psíquico postulada pela psicologia histórico-cultural. A tônica desta apresentação terá como premissa a hipótese de que os três pilares metodológicos fundamentais, os quais delineiam a investigação marxiana da sociedade burguesa à luz da teoria do valor - quais sejam, o conceito de unidade mínima de análise; a apreensão histórica das categorias de estudo; e a definição dos antagonismos essenciais que pautam a concretude histórica dos fenômenos; - se configuram também nos pressupostos os quais respaldam epistemologicamente a trajetória analítica vigotskiana, e que, por conseguinte, sustentam a compreensão cultural e interfuncional do psiquismo humano.

Tendo em vista o objetivo do estudo ora apresentado, a seguir sintetizaremos a confluência destes pressupostos essenciais os quais alicerçaram a construção do método marxiano. Posteriormente, demonstraremos a articulação intrínseca destas mesmas premissas com as bases teórico-metodológicas da psicologia histórico-cultural.

Os fundamentos metodológicos da crítica marxiana à sociedade burguesa

A teoria marxiana estrutura-se a partir da constatação de que a análise econômica clássica, limitada à face empírica dos fenômenos, impediu a compreensão da especificidade histórica das formas burguesas de produção (Marx, 1867/2017a, 1894/2017b, 1885/2014, 1941/2011). Destarte, as manifestações fragmentadas e unilaterais das relações econômicas foram apreendidas como premissas naturais e imutáveis e, portanto - no equívoco de limitar-se direta e mecanicamente aos fenômenos que ocorrem na superfície da vida econômica -, suprimiram-se as categorias mediadoras que levariam à apreensão das correlações internas do modo de produção capitalista.

Por conseguinte, Marx (1885/2014) afirma que a economia política clássica derrubou em um só golpe “a base que se deve partir para compreender o movimento real da produção capitalista” (p. 309). Ou seja, os estudos destas correntes econômicas não acessam as leis gerais que norteiam os verdadeiros propósitos da circulação do capital, e permanecem submissos aos ditames desses fundamentos precisamente por ignorá-los. Como resultados, as restrições de classe da ciência burguesa redundam em conclusões meramente descritivas, pontuais, fracionadas e imprecisas, que contribuem para o ocultamento do movimento contraditório que delineia simultaneamente os determinantes da manutenção e da superação do modo de produção capitalista.

Tendo esses limites em vista, Marx (1867/2017a, 1894/2017b, 1885/2014) edificou sua análise da sociedade burguesa por meio da reorganização e transformação do significado das suas categorias tradicionais, desvendando e expondo as contradições fundamentais que as interligam. Para tanto, valeu-se de um método crítico o qual revolucionou o trato científico da realidade, rompendo com a concepção identitária das categorias aparência e essência. Neste sentido, o método marxiano inicia o processo de deslegitimação da análise econômica burguesa ao demonstrar a fragilidade de seu ponto de partida, qual seja, o concreto em sua apresentação imediata. Segundo Marx (1941/2011), este cenário nos dá acesso apenas a uma representação caótica da realidade a qual oculta, propositadamente, suas determinações essenciais. Portanto, o autor elege o movimento de apreensão dos fenômenos do abstrato ao concreto como estofo do método científico adequado para a compreensão da realidade em suas múltiplas determinações.

Por conseguinte, os fundamentos metodológicos do materialismo histórico e dialético preconizam que a análise das leis gerais que regem o funcionamento da realidade não pode ser alcançada na superfície da manifestação imediata dos fenômenos em tela. O real em sua concretude é multideterminado, de modo que sua apreensão essencial está condicionada à progressiva reconstrução do movimento interno contraditório o qual edifica os elos categoriais que o constituem e que o negam simultaneamente (Marx, 1941/2011). O desvelamento teórico, as descobertas das tensões internas que coabitam os fenômenos tornam-se, assim, condição para que a prática humana opere a favor de dados vetores e, consequentemente, contra outros. Trata-se, pois, de uma condição requerida à atividade dos indivíduos como seres sujeitos da história, e não sujeitados a ela.

O capital em geral e a mercadoria como unidade elementar de análise

Apoiado nas premissas delineadas acima, no intuito de justificar o ponto de partida adotado em sua exposição, Marx (1867/2017a) afirma, no prefácio à primeira edição d’O Capital, que nas ciências econômicas não é possível utilizar-se de “microscópio nem de reagentes químicos. A força da abstração [Abstraktionskraft] deve substituir-se a ambos” (p. 78). Portanto, o autor anuncia a abstração como ferramenta essencial para o desvelamento da realidade econômica burguesa, a qual deve ter como objeto de estudo inicial as categorias mais simples em sua expressão mais nítida, “em condições que asseguram o transcurso puro do processo” (Marx, 1867/2017a, p. 78).

Esta busca pela manifestação pura das leis gerais que delineiam o funcionamento do modo de produção capitalista redundou em um momentâneo desmembramento do objeto investigado; ou seja, para que fosse possível identificar o núcleo contraditório do capital, a trajetória expositiva de Marx (1941/2011, 1867/2017a) partiu do isolamento das mais elementares determinações abstratas que fundamentam a ordem social vigente - no que o autor denominou de capital em geral - e enriqueceu-as progressivamente em direção ao concreto pensado. Neste movimento, as conceituações do capital transmutaram-se à medida que o processo de dedução categorial revelou os meios continuamente mais complexos de apresentação e realização das leis que regem a sociedade burguesa.

Destarte, a partir das premissas metodológicas apresentadas, a análise do capital em geral tem início com o anúncio da mercadoria como célula germinativa da sociedade burguesa, justificado pelo fato de que “a riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece [erscheint] como uma enorme coleção de mercadorias e a mercadoria individual, por sua vez, aparece como sua forma elementar” (Marx, 1867/2017a, p. 113). Neste anúncio demarcam-se dois fundamentos essenciais do método marxiano: a delimitação do caráter historicamente datado da investigação em tela, a qual não se reporta a um conceito universal de riqueza, mas a uma riqueza produzida a partir de relações sociais de produção específicas, subjugadas às leis do capital; e o conceito de unidade mínima de análise - representado pela categoria mercadoria - no qual devem estar contidas todas as tendências que embasam o funcionamento da sociedade burguesa e o qual representa a síntese das contradições lógico-históricas que delinearão as demais determinações da arquitetônica categorial marxiana.

A seguir, discorreremos sobre as repercussões destes dois fundamentos essenciais para a análise marxiana da sociedade burguesa, bem como para a concepção materialista histórico-dialética de método investigativo.

A delimitação histórica das categorias econômicas burguesas

Demarcando o salto metodológico que delineou sua análise da sociedade capitalista, Marx (1941/2011) assevera a necessidade de apreendermos as categorias econômicas que edificam a ordem social burguesa em seu trânsito histórico, ou seja, submetidas à especificidade das relações sociais de produção em que se inserem. Nas palavras do autor,

Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas relações. É uma iluminação universal em que todas as demais cores estão imersas e que as modifica em sua particularidade. (Marx, 1941/2011, p. 59).

Esta constatação superou a perspectiva da economia clássica a qual atribuía às categorias de análise da sociedade burguesa características eternas e invariáveis, sob o argumento de que sua existência antecedia a ordem social capitalista. Neste sentido, Marx (1941/2011) esclarecerá que a existência dessas categorias nas organizações sociais antecedentes se dava de forma embrionária, em um concreto ainda não desenvolvido. Valendo-se das categorias dinheiro e trabalho como exemplos, o autor demonstra que ambas só encontraram meios de se desenvolverem plenamente na configuração burguesa de produção, posto que nela o seu funcionamento encontra-se submetido às leis do valor. Nesta esfera, estas categorias alçam novas definições: o dinheiro transcende sua condição de simples equivalente geral e passa a se configurar em um momento necessário da expressão universal do capital no movimento contínuo de acúmulo de valor; o trabalho, por sua vez, ganha centralidade na ordem social burguesa e sua expressão abstrata destaca-se em detrimento de suas várias formas de expressão objetivas, dado que sua apropriação privada pelos donos dos meios de produção é o elemento fundamental para a geração de mais valor e para a manutenção da lógica capitalista de acumulação (Marx, 1941/2011).

Neste contexto, Marx (1941/2011) afirma que “a anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco” (p. 58) - analogia a qual assevera que as categorias econômicas burguesas auxiliam na compreensão das organizações sociais que a precedem, pois na conformação do capital elas alcançam níveis mais complexos e completos de expressão. Portanto, essa assertiva marca a superação da perspectiva teleológica adotada pelos economistas clássicos, a qual apreende as relações sociais de produção precedentes como etapas previamente destinadas a redundar na conformação burguesa de ordem social, contendo aprioristicamente os gérmens de suas expressões subsequentes. Para o materialismo histórico e dialético a compreensão histórica dos fenômenos sociais deve imperar, de modo que “em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas relações” (Marx, 1941/2011, p. 59).

Portanto, ainda que na ordem social burguesa estejam contidas categorias econômicas que conformavam as organizações sociais anteriores, isso não deve se configurar em uma apreensão eterna e invariável desses elementos analíticos. A partir do imperativo representado pelo modo de produção burguês, estas categorias alcançam novos patamares de realização, que se submetem ao funcionamento particular do capital. Este funcionamento particular, por sua vez, é regido pelas leis da teoria do valor, de modo que é esta teoria que irá nortear a arquitetônica analítica da sociedade burguesa na perspectiva do materialismo histórico e dialético.

A constatação em tela é de suma importância para compreendermos o ponto de partida escolhido por Marx (1941/2011, 1867/2017a) em sua exposição crítica sobre a sociedade burguesa. A partir dela, o autor conclui que as categorias econômicas do capital não poderiam ser desenvolvidas tendo como referência sua determinação histórica, mas deveriam se apoiar na “relação que tem entre si na moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua ordem natural ou da ordem que corresponde ao desenvolvimento histórico” (Marx, 1941/2011, p. 60).

Ou seja, Marx (1867/2017a) delimita o início de sua trajetória investigativa na esfera da circulação simples das mercadorias - a qual se configura na referência fundante das assertivas da economia política clássica - exatamente para demonstrar que a submissão das prerrogativas dessa esfera à lei do valor inverte e corrompe seus pressupostos. Destarte, revela-se que a realização das relações de troca na sociedade burguesa apoia-se em um dado movimento categorial interno historicamente determinado, o qual obedece a finalidades camufladas nas definições exteriores da circulação mercantil. Veremos a seguir o modo como essa revelação se fundamenta metodologicamente.

A superação da esfera mercantil simples

Conforme apontamos anteriormente, Marx (1867/2017a) elegeu a mercadoria como unidade mínima de análise da sociedade capitalista. Esta designação fundamenta-se no fato de ela se configurar na categoria mais elementar a qual sintetiza em si as contradições lógico-históricas inerentes ao modo de produção burguesa - as quais, portanto, delinearão o desenvolvimento da estrutura categorial marxiana.

Contudo, na superfície da circulação mercantil simples, essas contradições encontram-se diluídas e camufladas, servindo ao intuito de edificar a aparência necessária de que as relações de intercâmbio pautam-se nas premissas burguesas da liberdade e da igualdade entre os agentes sociais. Neste processo, Marx (1941/2011) afirma o papel crucial da categoria dinheiro como responsável pela dissolução superficial das relações sociais de produção, dado que ela dissipa o caráter concreto do trabalho contido na mercadoria e mascara as disparidades socioeconômicas entre os contratantes - redundando na falsa premissa, sustentada pela economia clássica, de que a produção de riqueza advém da esfera da circulação. Tal premissa leva ao entendimento equivocado de que o motor das relações de troca se configura na satisfação das diferentes necessidades humanas e de que a acumulação de capital é resultado do êxito pessoal, alcançado pela maior astúcia dos sujeitos e pelas oportunidades de escolhas individuais, tidas como livres e igualitárias.

Ao submeter a circulação mercantil simples às leis da teoria do valor, Marx (1867/2017a) revela a real finalidade desta esfera - qual seja a de acumular capital - suplantando o objetivo aparente de satisfazer as necessidades humanas por meio da troca. Nesse ínterim, as contradições lógico-históricas intrínsecas à mercadoria singular se exteriorizam nas relações de intercâmbio, de modo que as categorias mercadoria e dinheiro tornam-se variações da expressão particular e universal do capital, as quais se intercalam para manter o movimento contínuo de multiplicação do valor.

Portanto, o autor alemão inicia sua trajetória analítica explicitando a importância de se apreender as categorias econômicas à luz das leis gerais que condicionam seu funcionamento em um dado trânsito histórico. Ou seja, seu método de análise revela que, diferentemente dos modos de produção antecedentes, na ordem social burguesa o capital se vale da alternância entre as categorias econômicas como diferentes momentos de sua realização, de modo a ocultar provisoriamente a contradição inerente aos determinantes internos da mercadoria em sua forma singular - e, por conseguinte, concretizar o acúmulo de valor como fundamento essencial das relações de intercâmbio. É imprescindível salientar que esta dissimulação provisória não supera a contradição interna originária, mas apenas a desloca para outros níveis com categoriais de expressão do modo de produção capitalista. Destarte, a análise materialista histórico-dialética da sociedade burguesa, ao submeter a circulação mercantil aos fundamentos da lei do valor, revelou a essência antagônica que delineia o movimento de sua realização, cuja máxima expressão situa-se na contraposição entre capital e trabalho, conforme veremos a seguir.

As contradições que realizam o movimento elíptico do capital

De acordo com o discorrido no item acima, Marx (1867/2017a) investiga a mercadoria no contexto da circulação mercantil simples de modo a demonstrar que a consciência dos indivíduos sobre a realidade é parcial justamente pelo caráter invertido e caótico com que as relações sociais burguesas se apresentam na superfície imediata. Na continuidade da análise do capital como valor que se valoriza continuamente, o autor dedica-se a investigar a formação desta grandeza excedente dentro da premissa de equivalência entre os sujeitos da troca, preconizada pela ideologia burguesa. A obediência a esta premissa redunda na conclusão de que a formação deste excedente deve advir do consumo de “uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a característica peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse, portanto, objetivação de trabalho e, por conseguinte, criação de valor” (Marx, 1867/2017a, p. 242). A única mercadoria cujo consumo redunda em produção de mais valor é a força de trabalho a qual, para a realização contínua das finalidades do capital, deve estar acessível na esfera da circulação. Essa disponibilidade da força de trabalho à venda, por sua vez, tem como condicionante a destituição do trabalhador de seus meios de vida, ou seja, a apropriação privada dos meios de produção - a qual delineará as relações sociais de produção do mundo burguês (Marx, 1941/2011, 1867/2017a).

Destarte, o ápice da expressão das premissas de igualdade e liberdade burguesas culmina em seu exato oposto: nas profundas desigualdades econômicas entre usurpadores dos meios de produção e trabalhadores, os quais vendem sua essência viva em troca de condições de sobrevivência, tornando-se escravos dos ditames do capital. O caráter reificado das relações na superfície da circulação simples, a qual assevera o bem comum como objetivo maior das relações de troca, oculta a escravidão assalariada que promove a máxima expressão da usurpação do trabalho alheio - qual seja, a finalidade última do capital em acumular valor à custa da classe trabalhadora.

Nesse ínterim, o domínio efetivo do capital se impõe por meio da condição de submissão do trabalhador aos imperativos do processo produtivo, a qual o destitui de qualquer possibilidade de controle da atividade e do produto do trabalho que realiza. Na busca de afirmar-se como totalidade, o capital domina o gerenciamento de toda a lógica da produção, subjugando o trabalho a seus desígnios e internalizando-o como momento de sua realização - de modo a alcançar, ainda que apenas externamente, o status de protagonista da produção da riqueza (Grespan, 2012).

Por conseguinte, o capital necessita ocultar o fato de que depende plenamente da força de trabalho para se valorizar; para tanto, posiciona-se como o sujeito do processo de sua produção e valorização, usurpando da categoria trabalho seus atributos reais e apartando-a da riqueza humano-genérica por ela produzida. Esforça-se, portanto, para transmutá-la em seu exato oposto, ou seja, na “pobreza absoluta: a pobreza não como falta, mas como completa exclusão da riqueza objetiva” (Marx, 1941/2011, p. 230, grifos do autor). Tais condições se impõem como bases condicionantes concretas da vida dos indivíduos.

Apoiado numa falsa premissa, o capital edifica-se provisória e aparentemente como totalidade ao reduzir o trabalho à expressão transitória de sua constituição, mascarando o papel vital desta categoria no processo de produção e valorização do valor. Nesta trama, vale-se de falsas assertivas para anunciar-se como autossuficiente no processo de sua constituição e multiplicação. Contudo, a sua necessidade de despojar e negar a categoria que origina toda a produção da riqueza - e que, portanto, garante a contínua consolidação de sua finalidade de autovalorização -, revela sua sujeição plena à força de trabalho, a qual segue atuando como a verdadeira fonte de mais valia e, portanto, como o único parâmetro real de mensuração do capital.

Fundamenta-se, desta forma, a contradição inerente à categoria trabalho, a qual se encontra despojada dos meios para se realizar e, portanto, para afirmar sua condição de totalidade no processo de produção das objetivações humano-genéricas - o que pressuporia submeter o capital aos ditames de sua realização. Neste sentido, conforme já apontado, por estar excluída da riqueza objetiva que ela própria produz, esta categoria representa, segundo Marx (1941/2011), a pobreza absoluta. Por outro lado, ela se configura no princípio vivo do valor, do qual se origina toda a objetivação das capacidades humanas, sintetizando em sua constituição a concretização de toda a riqueza do capital. Nas palavras do autor, “essas proposições inteiramente contraditórias condicionam-se mutuamente e resultam da essência do trabalho, pois é pressuposto pelo capital como antítese, como existência antitética do capital e, de outro lado, por sua vez, pressupõe o capital” (Marx, 1941/2011 p. 230).

Em concordância com a disposição categorial desenvolvida por Marx (1867/2017a, 1894/2017b, 1885/2014), do mesmo modo como as contradições internas da mercadoria se exteriorizam nas relações de intercâmbio capitalistas, os ditames mutuamente excludentes intrínsecos à categoria trabalho na lógica burguesa se exteriorizam em sua oposição ao capital. A síntese deste antagonismo, o qual se configura no núcleo contraditório do modo de produção burguês, consiste em que a finalidade última do capital de se autovalorizar ininterruptamente depende de forma plena da produção da riqueza advinda da categoria trabalho. Contudo, o capital precisa, simultaneamente, camuflar o potencial desta categoria em se afirmar como totalidade, - e, por conseguinte, em submetê-lo a suas premissas - apossando-se de suas características e negando-a como a verdadeira fonte de valor.

Objetivamente, esta contraposição se expressa na lógica produtiva, na qual o capital, na tentativa forjar sua falsa autossuficiência, aumenta a proporção do capital constante - maquinaria - em relação ao capital variável - força de trabalho. Neste sentido, o capital restringe a participação da própria origem substancial do valor no processo produtivo, a qual sustenta sua existência como valor que se valoriza (Marx, 1885/2014, 1867/2017a). Ampliam-se os parâmetros de valorização e, simultaneamente, reduzem-se as bases que a edificam, redundando em um antagonismo o qual põe em risco a própria sobrevivência do capital (Grespan, 2012). Destarte, por este motivo a análise marxiana assevera que as contradições essenciais inerentes ao modo de produção capitalista tendem a suplantá-lo, dado que suas finalidades se revelam limitadas demais frente ao potencial das articulações categoriais que o sustentam.

Nesta tendência intrínseca à superação de sua própria lógica de existência, reside a revelação da interioridade do capital como totalidade a qual se move a partir da coexistência de realidades diametralmente opostas - premissa a qual se constrói desde a investigação da mercadoria como unidade mínima de análise na esfera do capital em geral. Portanto, a trajetória analítica delimitada pelo materialismo histórico e dialético revela que a sustentação do modo de produção burguês apoia-se na concomitância de forças mutuamente excludentes desde suas categorias mais abstratas e fundamentais, corroborando o pressuposto metodológico o qual preconiza que dentro do conceito elementar do capital “devem estar contidas em si suas tendências civilizatórias etc.; não podem aparecer, tal qual nas teorias econômicas até aqui, como meras consequências externas” (Marx, 1941/2011, p. 338, grifo do autor).

Nesse contexto, Marx (1867/2017a) assevera que esta essência antagônica do capital - a qual desde suas configurações primárias se realiza na concomitância de tendências que se contradizem - não alcança resolução dentro da configuração socioeconômica burguesa; pelo contrário, sua intransponibilidade é a condição essencial para a contínua reprodução das relações sociais de produção capitalistas. Por essa razão, o autor a compara ao movimento elíptico, o qual se concretiza na dependência da atuação coexistente de forças contrárias.

O desenvolvimento da mercadoria não elimina essas contradições, porém cria a forma em que elas podem se mover. Esse é, em geral, o método com que se solucionam contradições reais. Por exemplo, há uma contradição no fato de que um corpo seja atraído por outro e, ao mesmo tempo, afaste-se dele constantemente. A elipse é uma das formas de movimento em que essa contradição tanto se realiza como se resolve (Marx, 1867/2017a, p. 178).

É na fragilidade destas contradições que o capital sustenta as bases de sua realização, de modo que no interior de seus próprios pressupostos são forjadas as forças potenciais para sua superação. Por conseguinte, no intuito de refutar sua historicidade e finitude, o capital perde de vista a real fonte substancial de valor, abstendo-se, portanto, dos reais critérios que referenciam a medida da sua autovalorização. À vista disso, “é sua tendência distribuir-se em proporções corretas, mas é igualmente sua tendência necessária ultrapassar a proporção - posto que ele persiga de maneira desmedida o trabalho excedente, a produtividade excedente, o consumo excedente etc.” (Marx, 1941/2011 p. 338). Assim, em consonância com o movimento de exposição das contradições inerentes às categorias econômicas burguesas, o método marxiano revela que da mesma forma que o ápice da igualdade mercantil simples culmina na plena desigualdade - conforme exposto anteriormente -, o ápice da proporção desdobra-se em desproporção e redunda, por conseguinte, na máxima expressão da negação do capital (Grespan, 2012).

O caráter científico-revolucionário do materialismo histórico e dialético

A exposição em tela leva à constatação de que o descompasso entre a lógica burguesa e a realidade objetiva consiste em sua incapacidade para prever os desdobramentos da própria dinâmica do capital, dada a árdua tarefa em que se empenha de adulterar as premissas que evidenciam a efemeridade de sua suposta autossuficiência. A lógica-formal positivista coloca-se a serviço desta adulteração, de modo que forja, na inexatidão da superfície imediatamente aparente, artifícios ilusórios para dissimular as contradições viscerais que edificam e que, ao mesmo tempo, fragilizam o sistema capitalista. Porém, este esforço em mascarar a natureza transitória do capital como valor que se valoriza redunda no exato oposto do que pretendia - na desmedida do valor. Temos, por conseguinte, que a exposição da face dialética da sociedade burguesa revela o caráter transgressor inerente aos antagonismos que a sustentam; ou seja, as presunções empobrecidas do capital se mostram demasiadamente limitadas frente ao potencial de desenvolvimento a ser alcançado pelas categorias gestadas em seu interior, de forma que elas tendem continuamente a corromper suas leis gerais de funcionamento e reprodução (Marx, 1941/2011).

Portanto, o caráter científico do método marxiano é indissociável de seu viés revolucionário, dado que revela uma importante fissura na lógica capitalista de expropriação - qual seja, os critérios equivocados de automensuração advindos da tentativa do capital em posicionar-se como totalidade. Esta revelação redunda em duas importantes assertivas. Por um lado, desvenda que o colapso, o qual o modo de produção burguês tenta a todo custo evitar, é engendrado em suas próprias premissas, nas forças por ele mesmas gestadas as quais tendem a revolucioná-lo e subvertê-lo. E, por outro lado, denuncia o restrito alcance dos pressupostos científicos burgueses, os quais se mostram incapazes de acompanhar os parâmetros do movimento de valorização quando este tendencialmente viola os próprios limites da lei do valor - levando o ápice da lógica do modo de produção burguês a converter-se em seu contrário, na desvalorização (Marx, 1885/2014).

Em suma, a investigação marxiana tem a abstração como principal ferramenta analítica, a qual redunda nos pressupostos da unidade mínima de análise da sociedade burguesa, na delimitação histórica de suas contradições, e na expressão das leis gerais de seu funcionamento desde suas categorias mais elementares. Estas premissas analíticas alicerçam a edificação da arquitetônica categorial reveladora do movimento engendrado pelos antagonismos viscerais do modo de produção burguês - os quais se requalificam até expressarem-se na violação das próprias finalidades do capital.

Delineadas as principais premissas do materialismo histórico e dialético que embasaram a crítica radical marxiana à sociedade capitalista, apresentaremos a seguir o caminho análogo trilhado pela psicologia marxista na investigação do psiquismo humano.

O movimento categorial marxiano e a compreensão histórica do psiquismo humano

Na empreitada de construir uma psicologia científica à luz dos pressupostos marxianos, Vygotski (1982/1991) identificou que a psicologia tradicional havia abordado seu objeto de estudo a partir de um viés atomístico e desarticulado, de forma análoga ao modo como a economia clássica havia feito com as categorias centrais da sociedade burguesa. Por conseguinte, em sua análise acerca da crise da psicologia, Vygotski (1982/1991) denunciou a insuficiência das dicotomias e fragmentações oriundas dos pressupostos da psicologia tradicional, os quais redundavam em assertivas unilaterais e isentas de historicidade sobre os fenômenos psicológicos. A exposição destes limites metodológicos redundou na requalificação de articulações teórico-conceituais as quais, apoiadas nos pressupostos metodológicos marxianos, estabeleceram um novo marco para a compreensão do psiquismo ao anunciá-lo como um sistema interfuncional a ser apreendido em sua totalidade.

Destarte, na elaboração desta nova proposta, Vygotski (1982/1991) recupera as premissas do materialismo histórico e dialético, as quais passam a nortear sua busca por caminhos metodológicos que legitimassem o desenvolvimento de uma ciência psicológica marxista. No artigo em tela, conforme assinalado na introdução, teremos como foco a sustentação fornecida pelos três pressupostos metodológicos que alicerçaram a crítica marxiana à sociedade burguesa - quais sejam, a unidade mínima de análise; a historicização categorial; e as tendências contraditórias essenciais do fenômeno estudado - na edificação da análise vigotskiana a qual revolucionou o estudo dos processos psicológicos. Veremos a seguir o modo como cada um desses pilares fundamentou a compreensão histórica do psiquismo humano.

Apreensão essencial da realidade e unidade mínima de análise do psiquismo

Em consonância com a afiliação metodológica às premissas marxianas, a psicologia marxista corrobora a abstração como ferramenta teórica a qual atua como mediadora da análise essencial da realidade objetiva e supera conclusões sustentadas nas definições imediatas da superfície aparente (Vygotski, 1982/1991). Desta forma, traduz-se para a esfera psicológica a relação entre a essência e aparência da realidade proposta pelo método marxiano nos pressupostos de apreensão do mundo objetivo e da formação conceitual. Ou seja, as bases da psicologia marxista partem da premissa de que a realidade objetiva não pode ser apreendida pela consciência humana de forma imediata, como uma cópia mecânica exata e fidedigna do mundo exterior (Martins, 2013). A captação e o domínio das relações essenciais que delineiam os determinantes da realidade advêm da complexificação dos processos mentais, conquistada por meio da atividade vital humana - o trabalho social - a qual se interpõe nas relações dialéticas de apropriação dos signos da cultura e objetivação das características essencialmente humanas (Vygotski, 1983/1995, 1934/2012).

Por conseguinte, a análise marxista do psiquismo humano segue a premissa metodológica a qual preconiza a busca pela abstração da unidade elementar de análise - categoria a qual deve sintetizar em si as tendências gerais de desenvolvimento do fenômeno estudado. Conforme já exposto, o início da trajetória analítica marxiana sobre o capital é marcado pela definição da mercadoria como forma elementar e fundamental de representação da sociedade capitalista. Analogamente, a consonância com esse pressuposto metodológico levou a psicologia marxista a subordinar seu delineamento investigativo a uma dada forma histórica e social de psiquismo; este processo redundou na identificação da categoria a qual sintetiza a expressão elementar dos processos psicológicos que constituem a subjetividade humana. Dentro dessas premissas, Vygotski (1934/2012) anunciou o signo, manifesto especialmente no significado da palavra, como o elemento representativo da unidade mínima de análise do psiquismo humano, dado que esta categoria contém em si as tendências contraditórias elementares as quais delineiam os pressupostos de desenvolvimento da consciência. Nas palavras do autor, “ tal unidade pode ser encontrada no aspecto interno da palavra, isto é, em seu significado” (Vygotski, 1934/2012, p. 17, grifo do autor).

Destarte, estabelece-se que o preceito o qual delimita o salto qualitativo humanizador do psiquismo consiste na unidade entre pensamento e linguagem - representativa das decisivas transformações psíquicas advindas da mediação dos signos da cultura - cujas propriedades elementares indivisíveis sintetizam-se no significado da palavra. Esta categoria é parte inalienável do pensamento verbalizado, no qual cada palavra sintetiza uma generalização “que reflete a realidade de um modo completamente diferente de como o fazem as sensações e percepções imediatas” (Vygotski, 1934/2012, p. 18). Por conseguinte, da mesma forma como se estabeleceu na análise marxiana do capital, o anúncio dos condicionantes que demarcam a definição da unidade mínima de análise instaura os parâmetros para a delimitação dos dois outros pilares de sustentação metodológica do estudo do psiquismo humano à luz das premissas marxianas - quais sejam, os pressupostos históricos das categorias estudadas e a essência contraditória que as movimenta.

A historicização das categorias de estudo do psiquismo humano

Conforme colocamos anteriormente, a partir das contradições essenciais inerentes à categoria mercadoria, Marx (1941/2011) assinala a organização social burguesa como forma superior de modo de produção em comparação com as organizações sociais precedentes, dado que somente nela as categorias econômicas encontram meios objetivos de se realizarem de forma plena. O delineamento destes pressupostos conduz a psicologia histórico-cultural ao reconhecimento análogo da consciência humana como expressão superior de psiquismo, a qual tem seu funcionamento geral regido por novas leis cujas premissas revolucionam seu potencial de desenvolvimento. Ou seja, apesar de guardar em si categorias correspondentes a outras formas de psiquismo animal, pela sua especificidade de alçar saltos qualitativos os quais são regidos por leis não apenas biológicas, mas, sobretudo, histórico-sociais, a consciência humana oferece a estas categorias condições de desenvolvimento em níveis nunca atingidos em formas anteriores de psique (Vygotski, 1983/1995, 1934/2012).

Destarte, na esfera socioeconômica a teoria marxiana revelou os pressupostos gerais de funcionamento da organização social burguesa - as quais subordinam as categorias econômicas à lei do valor e transmutam seu potencial de desenvolvimento, redundando em uma configuração mais avançada de modo de produção. Da mesma forma, a psicologia marxista comprometeu-se a superar as análises hegemonicamente lineares e anistóricas do psiquismo, identificando as especificidades e particularidades de sua expressão mais desenvolvida - a consciência humana - à luz de leis gerais de desenvolvimento as quais desbravam novos patamares de alcance dos processos psicológicos.

Portanto, em obediência à lógica de exposição categorial marxiana, Vygotski (1982/1991, 1934/2012) desenvolveu as categorias psicológicas nas suas interdependências e contradições fundamentais à luz das leis histórico-culturais que as reconfiguram e requalificam. Esta trajetória metodológica permitiu a identificação do núcleo contraditório edificador da composição singular da consciência. Neste sentido, a psicologia marxista encontra no salto qualitativo do desenvolvimento cultural dos processos funcionais a prerrogativa fundante do psiquismo humano, distinguindo-o essencialmente do psiquismo animal e revelando os princípios gerais de seu funcionamento, os quais o capacitam a apreender os multideterminantes da realidade objetiva e, por conseguinte, a transformá-la (Vygotski, 1983/1995, 1934/2012).

O movimento elíptico de realização do psiquismo interfuncional

A afirmação do signo objetivado no significado da palavra como unidade elementar de análise do psiquismo humano - cuja configuração subordina-se às leis histórico-culturais - delineou os pressupostos para a identificação das tendências contraditórias inerentes ao funcionamento do objeto de estudo em tela. Desta prerrogativa, asseveram-se as bases sociais do desenvolvimento psíquico, cujas formas naturais são sobrepostas pelos comportamentos complexos culturalmente formados, norteando a especificidade da conduta humana (Martins 2013).

Estes pressupostos preconizam o desvelamento da natureza antagônica e interfuncional do psiquismo alçada pela psicologia histórico-cultural, da qual se desdobra a correlação intrínseca desta teoria com o materialismo histórico e dialético. No estudo das categorias econômicas da sociedade burguesa, Marx (1941/2011) demonstrou que as contradições inerentes à unidade mínima de análise - qual seja, a mercadoria - não se resolvem, mas se exteriorizam nas demais relações categoriais, de modo que cada elemento que constitui a progressiva complexificação da conceituação do capital redunda das contradições irresolúveis contidas no elemento anterior. Portanto, o antagonismo nuclear entre capital e trabalho - o qual se constitui na essência do modo de produção burguês - só pode ser compreendido a partir do movimento gerado pelas tensões que articulam e negam as categorias mercadoria, dinheiro e capital.

Nesse ínterim, o pressuposto do núcleo contraditório delineado pela análise marxiana configura-se na terceira premissa metodológica em foco no artigo em tela, a qual sustenta a compreensão dialética do psiquismo consciente. Ou seja, a partir deste fundamento compreende-se a realização das contradições entre o componente biológico e cultural e, igualmente, entre instituintes individual e social da conduta humana, expressas na articulação visceral entre os processos funcionais elementares e superiores. Esta articulação reproduz o movimento do desenvolvimento psíquico dentro da configuração elíptica delineada pelo materialismo histórico e dialético, ou seja, dependente da existência de contradições fundamentais para se realizar e se transpor continuamente. Portanto, a vinculação entre as funções psicológicas sustenta-se na contraposição dialética entre a esfera biológica e a esfera cultural como unidade de contrários; este antagonismo intrínseco se expressa nas articulações entre os processos funcionais os quais se movimentam e se realizam por meio da tensão sintetizada nessas dimensões mutuamente excludentes. Em outras palavras, a não resolução deste antagonismo se configura na própria requalificação a qual torna possível a especificidade da trajetória do desenvolvimento psíquico humano.

Em consonância com as premissas metodológicas marxianas, essa contradição nuclear irresoluta exterioriza-se na tensão entre as esferas interpessoal e intrapessoal, redundando na lei genética geral do desenvolvimento cultural do psiquismo (Vygotski, 1983/1995) - a qual preconiza que os processos funcionais despontam primeiramente no plano interpsíquico, para posteriormente serem internalizados como propriedade intrapsíquica. Portanto, a configuração essencialmente humana de psiquismo se forma a partir das exigências da cultura; neste processo, as relações sociais demandam especificações progressivamente mais acuradas, as quais redundam na conformação interfuncional dos processos psicológicos estruturantes do psiquismo consciente - cuja articulação, por sua vez, realiza-se na codependência dessas dimensões antagônicas.

Neste sentido, as contradições essenciais contidas na unidade mínima de análise da consciência humana - signos - sintetizam a interfuncionalidade com que a psicologia histórico-cultural enfoca os processos psíquicos os quais, nesta perspectiva, não podem ser compreendidos apartados uns dos outros ou a partir de vinculações secundárias. Assim sendo, as transformações alçadas ao longo do desenvolvimento do psiquismo não se dão em cada função psicológica isoladamente, mas nas relações e nexos interfuncionais os quais articulam novas composições à medida que alcançam patamares mais complexos de desenvolvimento (Martins, 2013). Esses novos patamares concretizam-se por meio da elipse que movimenta a sobreposição entre os processos elementares e superiores - delineada, por sua vez, pelas demandas da esfera interpessoal. Tais demandas são orientadas especialmente pela socialização do acervo simbólico sistematizado culturalmente e transmitido pela via dos processos educativos, os quais requalificam a esfera intrapessoal.

Neste processo de requalificação, os domínios simbólicos são continuamente transmutados, redundando em mudanças nas estruturas de generalização e nos significados das palavras delas resultantes, as quais promovem apreensões da realidade objetiva progressivamente mais acuradas e multideterminadas. Por conseguinte, do mesmo modo como ocorre com a compreensão da categoria mercadoria no processo de enriquecimento analítico desbravado por Marx (1867/2017a), a evolução dos significados das palavras se edifica nas tensões do núcleo contraditório balizador do desenvolvimento psíquico, cuja dinâmica antagônica enriquece progressivamente a visão de mundo dos indivíduos, conferindo aos seres humanos a potencialidade de compreenderem e conduzirem os rumos de sua própria história.

Considerações finais

A partir desta breve exposição, objetivou-se demonstrar que a análise marxiana da sociedade burguesa e a análise vigotskiana do psiquismo humano sustentam-se sobre os mesmos eixos metodológicos, os quais preconizam a apreensão materialista histórico-dialética dos fenômenos em tela. Corrobora-se, por conseguinte, a base epistemológica marxiana da psicologia histórico-cultural, a qual fundamenta a compreensão das tensões dialéticas edificadoras da natureza social do psiquismo humano.

Conforme pudemos demonstrar, a teoria do valor de Marx (1941/2011) - na qual se realiza o método científico delineador da crítica à economia política enveredada pelo autor - asseverou que a compreensão do real circunscrita às delimitações postas pela ciência burguesa exerce papel fundamental no processo de dominação. As origens da lógica formal burguesa demarcam sua função histórica para reproduzir as finalidades do capital, atribuindo caráter supostamente científico a interpretações enviesadas e distorcidas da realidade objetiva. Assim sendo, ancorar a compreensão do psiquismo em pressupostos que legitimam as relações sociais de exploração vigentes resulta necessariamente em apreensões fragmentadas, superficiais e incompletas, as quais naturalizam processos sociais e historicamente construídos e ignoram as contradições fundamentais que mobilizam e requalificam o desenvolvimento integral do ser humano.

Destarte, o artigo em tela visou contribuir para a demarcação da psicologia histórico-cultural como teoria cujas bases metodológicas distinguem historicamente as premissas formadoras da consciência humana em uma dada organização social. Para tanto, entendemos ser imprescindível o resgate dos pressupostos do materialismo histórico e dialético na obra marxiana em articulação com o movimento de compreensão do psiquismo como sistema interfuncional, os quais anunciam as prerrogativas antagônicas edificadoras da complexidade histórica da subjetividade humana.

Referências

  • 1 Duarte, N. (2011). Vigotski e o “Aprender a Aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados.
  • 2 Duarte, N. (2015a). A importância da concepção de mundo para a educação escolar: porque a pedagogia histórico-crítica não endossa o silêncio de Wittgeinstein. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, 1(7), 8-25.
  • 3 Duarte, N. (2015b). A Individualidade Para Si (Edição comemorativa). Campinas: Autores Associados .
  • 4 Grespan, J. (2012). O negativo do capital: o conceito de crise na crítica de Marx à economia política. São Paulo: Expressão Popular.
  • 5 Martins, L. M. (2013). O Desenvolvimento do Psiquismo e a Educação escolar: contribuições à luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores Associados .
  • 6 Marx, K. (2011). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1941).
  • 7 Marx, K. (2014). O capital: crítica da economia política: livro II: o processo de circulação do capital (R. Enderle, Trad.). São Paulo: Boitempo . (Trabalho original publicado em 1885).
  • 8 Marx, K. (2017a). O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital (R. Enderle, Trad.). São Paulo: Boitempo . (Trabalho original publicado em 1867).
  • 9 Marx, K. (2017b). O capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da produção capitalista (R. Enderle, Trad.). São Paulo: Boitempo . (Trabalho original publicado em 1894).
  • 10 Pasqualini, J. C., & Abrantes, A. A. (2013). Forma e conteúdo do ensino na educação infantil: o papel do jogo protagonizado e as contribuições da literatura infantil. Germinal: Marxismo e Educação em Debate , 2(5), 13-24.
  • 11 Saviani, D. (2015). O conceito dialético de mediação na pedagogia histórico-crítica em intermediação com a psicologia histórico-cultural. Germinal: Marxismo e Educação em Debate , 1(7), 26-43.
  • 12 Tuleski, S. C., & Franco, A. de F. (2013). Da (re)produção de uma consciência alienada para a produção de uma consciência revolucionária: o dilema posto para o marxismo na atualidade. Germinal: Marxismo e Educação em Debate , 1(5), 63-76.
  • 13 Vygotski, L. S. (1991). El significado histórico de la crisis de la Psicología. In: Obras escogidas (Tomo I). Madrid: Visor. (Original publicado em 1982).
  • 14 Vygotski, L. S. (1995). Obras escogidas (Tomo III). Madrid: Visor . (Trabalho original publicado em 1983).
  • 15 Vygotski, L. S. (2012). Pensamiento y habla (A. González, Trad.). Buenos Aires: Colihue. (Trabalho original publicado em 1934).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2017
  • Aceito
    20 Dez 2017
location_on
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro