Open-access ENDEREÇAMENTOS MATERNOS E PRODUÇÕES VOCAIS INFANS: O SUJEITO EM CONSTITUIÇÃO

DIRECCIONAMIENTOS MATERNOS Y PRODUCCIONES VOCALES INFANS: EL SUJETO EN CONSTITUCIÓN

RESUMO:

Este estudo analisa a função dos endereçamentos maternos nos primórdios da constituição psíquica com base nas inscrições primárias que fazem corpo no infanseevidenciam o lugar da voz escandida no psiquismo. Embasado na leitura da obra de Freud e de Lacan, o artigo aborda os tempos diacrônicos das produções vocais dos bebês, vinculando-os aos momentos sincrônicos da constituição do sujeito na psicanálise. A pesquisa realizada foi um estudo de caso exploratório-descritivo, do qual participaram dois bebês e suas mães. Os casos foram acompanhados longitudinalmente durante o período de um a 11 meses de idade dos bebês. Os resultados apontados atestam: a primariedade rítmica incidente no infans; os contornos prosódicos vocais nos bebês; a instauração da voz apelativa e a voz que ressoa articulada. Conclui-se que o sujeito ressoa, em seu corpo, a temporalidade do andamento materno desde os primeiros endereçamentos, o que se evidencia nas manifestações vocais do bebê.

Palavras-chave: Voz; linguagem; psicanálise

RESUMEN:

En este estudio se analiza la función de los direccionamientos maternos en los principios de la constitución psíquica con base en las inscripciones primarias que hacen el cuerpo del infansy evidencian el lugar de la voz escandida en el psiquismo. Basado en la lectura de la obra de Freud y Lacan, el artículo aborda los tiempos diacrónicos de las producciones vocales de los bebés, vinculándolos a los momentos sincrónicos de la constitución del sujeto en el Psicoanálisis. La investigación realizada ha sido un estudio de caso exploratorio-descriptivo, en el que participaron dos bebés y sus madres. Los casos han sido acompañados longitudinalmente durante el período de uno a once meses de edad de los bebés. Los resultados obtenidos señalan: la primariedad rítmica incidente en el infans; los contornos prosódicos vocales en los bebés; la instauración de la voz apelativa y la voz que resuena articulada. Se concluye que el sujeto resuena, en su cuerpo, la temporalidad del andamiento materno desde los primeros direccionamientos, lo que se evidencia en las manifestaciones vocales del bebé.

Palabrasclave: Voz; lenguaje; psicoanálisis

ABSTRACT:

This study aimed to analyze the function of maternal addressing in the psychic constitution, considering the primary inscriptions that act on the infans and evidence the place of the scandid voice on the psychism. Based on Freud’s and Lacan’s studies, the article addresses the diachronic timing of the vocal production of babies, linking them to the synchronic moments of the constitution of the subject in psychoanalysis. This was an exploratory descriptive case study, and the participants were two babies and their mothers. Cases were longitudinally followed up; from the time the babies were one to 11 months old. The results reflect the primary nature of rhythm in the infans; the prosodic features of infant vocalizations; the onset of the voice of appeal and the articulate voice. We conclude that the body of the subject echoes the temporality of maternal speech from the very first addressments, as evidenced by the vocal manifestations of the infant.

Keywords: Voice; language; psychoanalysis

Introdução

Este estudo tem como objetivo desdobrar a função da voz nos primórdios da constituição do sujeito. Em sua origem, o sujeito é suposição daqueles que lhe acolhem neste mundo e lhe ofertam significantes capazes de inscrever-se fazendo corpo. Tais suposições são acessíveis através da percepção dos endereçamentos maternos ao bebê e seus vagidos iniciais.

Pesquisas psicanalíticas relacionam a predileção dos bebês ao ‘mamanhês’dando ênfase à sua prosódia, sua musicalidade específica e atentando à apetência simbólica infansjá ao nascimento (Catão, 2009; Laznik, 2004). Porém, a sustentação deste trabalho é de que, para ser considerado um apetente simbólico, o infans deve ter apetência pela própria voz, como aquela capaz de constituir laço com o outro.

Para tanto, além do enganche à sonoridade da prosódia do mamanhês, a presença-ausência autentificada pela musicalidade específica na qual aparece e desaparece a voz e dá lugar à primariedade rítmica permite a produção da voz enquanto apelo, na qual o infans esforça-se para corporificar as características melodiosas, o que é esboçado nos primeiros balbucios dos bebês deste estudo. Nestes primeiros movimentos de amarração à língua, ela comparece advertida do funcionamento simbólico da estrutura constitutiva do sujeito pela linguagem (Pereira, Vorcaro, &Keske-Soares, 2018).

Este artigo investiga as marcações intervalares e a descontinuidade temporal da fala endereçada ao bebê, nas quais se inscreve a defasagem de encadeamentos que eleva as sonoridades ao valor de escansão, assim as destacando. Nisto, objetiva distinguir o usufruto transmitido pelas características prosódicas do ‘mamanhês’ das escansões temporais que o silenciam, demarcando a função da voz escandida, voz enquanto objeto áfono, propriamente pulsional. A pulsão (Trieb) será escopo teórico a partir da obra freudiana e dos desdobramentos lacanianos.

O percurso metodológico e os resultados das análises das incidências fenomenológicas dos endereçamentos maternos sobre o corpo do bebê abordam os tempos diacrônicos das produções vocais dos mesmos relacionando-os à sincronicidade dos constituintes do psiquismo.

Produções infans e constituição do sujeito

De início, o infans emite sons e está constantemente exposto às produções de som dos que o acolhem, posto que ambos se situam no campo simbólico que os determina. Esse campo é denominado de Outro, por ser o lugar desde o qual a linguagem, em sua estrutura sincrônica, promove, por meio do agenciamento efetuado pelo agente materno, a função diacrônica da cadeia do discurso. Provendo os primeiros endereçamentos vocais aos bebês, ao ofertar os primeiros significantes do sujeito, esse agente da linguagem, por meio de seu lugar Outro, é aquele capaz de transcrever o mundo sobre o corpo infans (Lacan, 1998a).

Tudo que é ofertado no nível do Outro ao infans, lhe é formatado pela linguagem. É por uma relação mais que acidental que a linguagem se liga a uma sonoridade. Entretanto, toda relação a dois, para que assuma valor simbólico, implica uma terceira dimensão com função mediadora. A fala media o que é realizável entre dois sujeitos, fazendo com que a relação do sujeito com o objeto possa ser sustentada a certa distância (Lacan, 2005a).

Desde muito cedo o bebê reconhece a fala como uma via, um desfiladeiro pelo qual as manifestações das necessidades devem rebaixar-se para serem satisfeitas. Isso porque “[...] a criança se dirige a um sujeito que ela sabe ser falante, que ela viu falando, que a penetrou com relatos desde o começo” (Lacan, 2016, p. 21).

O neonato, em seus primeiros dias é um ser desamparado, afetado por estímulos que atingem e excitam sua substância nervosa. Uma primeira diferenciação implica a distinção, de um lado, dos estímulos externos que inicialmente tendem ser afastados por uma ação qualquer e, de outro, a insistência de estímulos internos, pulsionais, por sua vez constantes, cujas características são: advir do interior do próprio organismo e atuar como uma força constante, uma força de caráter inexpugnável. Diante deles, somente uma ação específica pode produzir a modificação no mundo externo capaz de satisfazer a pulsão. A pulsão é um conceito fronteiriço entre o anímico e o somático, é “[...] uma medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal”(Freud, 2015, p. 25).

A descrição do conceito de pulsão exige distinguir seus elementos: impulso (drang), alvo (ziel), objeto (objekt) e fonte (quelle). O impulso é o que dá a medida da exigência de trabalho. Nesse sentido, toda pulsão é ativa. Já o alvo, a meta, é sempre a satisfação que, mesmo sendo parcial, é atingida através do objeto. Em sua origem, o objeto não está ligado à pulsão, ele só se liga a ela pela capacidade de levar à satisfação. Assim sendo, é o termo mais variável dentre os quatro (Freud, 2015).

Enquanto os instintos animais possuem padrões fixos de conduta ligando objeto e objetivo e têm como função a reprodução que denotam a preservação da espécie, na pulsão, o padrão de ligação entre objeto e satisfação é fixado durante a história do sujeito. Isto especifica a variedade objetal da pulsão, de modo que ela é independente de seu objeto. O objeto da pulsão surge como substituto do objeto primordial perdido e reinscreve seu estatuto diferencial para com a satisfação mítica que deu origem à série (Freud, 2016a).

Já a fonte é um processo somático, uma parte do corpo que só se liga à vida anímica pela meta de satisfação, de maneira que as pulsões podem ser inferidas de modo retrospectivo - atingindo-se o alvo. Para Freud (2016a, 2015), é o estímulo dessa parte do corpo, da fonte, que é passível de ser representado pela pulsão. As fontes são orifícios corporais que se abrem para o mundo, lugares de mediação com o outro, como a boca, o ânus e os olhos. Estas zonas erógenas localizadas por Freud estabelecem três objetos da pulsão: seio, excremento e olhar; aos quais Lacan (2016) acrescenta a ‘voz’. Este psicanalista distingue o ‘objeto’ da pulsão como “[...] um objeto externo a qualquer definição possível de objetividade” (Lacan, 2005b, p. 99) esclarecendo que este não está nem no sujeito nem no órgão, mas no entre que os separa e por isso os liga, ele é o sinal da falta e da perda. Ele é amboceptor, não está nem lá, na mãe; nem cá. É o que Lacan nomeia objeto ‘a’, algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão, o que vale como fazendo falta (Lacan, 2005b; 1998a).

Salientando que a pulsão só atinge seu alvo pelo retorno a sua fonte, Lacan (1998a) esclarece que a pulsão apenas contorna seu objeto sem apreendê-lo, refazendo seu circuito. A circularidade pulsional fora remetida por Freud (2016a) às razões gramaticais de inversão do sujeito e do objeto, utilizando o recurso de língua, aos polos ativo e passivo do verbo para situar a reversão fundamental em que o percurso da pulsão circulava. Entre os polos ‘ver/ser visto’ freudianos, Lacan (1998a) discerne o tempo reflexivo, argumentando que Freud abordara um terceiro tempo, ao referir-se ao tempo de ‘um novo sujeito’. Fundamental, o terceiro tempo é aquele em que o sujeito aparece ao fazer-se.

Em relação ao objeto alvo deste estudo, a voz, Vivès (2012) especifica seus tempos. O primeiro tempo, ‘ser ouvido’, corresponde ao grito do neonato, no qual o sujeito ainda não existe. Sua posição ativa será percebida apenas no ‘só depois’ do encontro com o agente do Outro, que pode fazer de seu grito uma demanda. O segundo tempo, ‘ouvir’, corresponde à aparição deste agente, que responde ao grito; e o terceiro, ‘se fazer ouvir’,trata-se do tempo em que o sujeito em-via-de-tornar-se, assume a própria voz em busca do ouvido do outro, para dele obter uma resposta.

O ‘se fazer ouvir’“[...] de que Freud nem mesmo nos fala [...]” e que, por uma razão estrutural, vai para o outro; ao contrário da flecha do ‘se fazer ver’ que retorna para o outro (Lacan, 1998a, p. 184). A entrada no jogo da pulsão implica o terceiro tempo em que o sujeito constitui o outro não surdo, capaz de ouvi-lo. Num ato de invocação há o advento de uma alteridade. Assim, é o tempo em que o sujeito em-via-de-tornar-se assume a própria voz, indo em busca do ouvido do outro (Vivès, 2012).

Conforme Catão (2015), num primeiro momento a mãe fala com o bebê e também por ele. É na resposta a esta invocação que o bebê chama, é chamado e se faz chamar se implicando no gozo do Outro - gozo materno. É com esta implicação que se instaura o circuito da pulsão invocante, primórdio para a estruturação do inconsciente como uma linguagem.

Para Laznik (2004), Catão (2009) e Jerusalinsky (2011), o chamado ao enlace pulsional invocantese dá através da voz materna. Desde que o bebê nasce, a mãe faz uso da prosódia, num momento em que o bebê ainda não entende o que ela diz, pois nele ainda não estão inscritas as leis fonéticas, sintáticas e gramaticais da língua. Em sua musicalidade, a mãe produz uma erotização no ato de escuta, antes que se organize a seleção dos fonemas da língua ou que exista a compreensão de seu sentido. Assim, num primeiro momento o infansvivencia prazer no ritmo.

Dado que um bebê não nasce com a língua inscrita, ele é tomado pelo funcionamento da linguagem, atrelado à modulação prosódica do ‘mamanhês’, forma usual com a qual as mães falam com seus bebês. Esse tipo de fala dirigida aos bebês é uma via privilegiada de engajamento do infans no diálogo e o primeiro veículo da organização das formas fônicas linguísticas (Scarpa & Fernandes-Svartman, 2012).

Logo que um bebê começa a produzir sua própria vocalização, pode articular, em seu balbucio, uma quantidade de sons jamais reunidos em uma língua, ele não tem limites em sua capacidade fônica de balbuciar (Gorenberg, 2016). Esses limites são estabelecidos conforme se instaura o jogo erógeno com o outro. As primeiras produções vocais coincidem com o período em que se vislumbram os primeiros movimentos do terceiro tempo pulsional, no qual o bebê oferece-se ao gozo do outro. Também é o jogo erógeno que faz com que as produções vocais variem quanto à intensidade, ao ritmo e à entoação.

Lacan (1992) distingue, no bebê, uma anterioridade à incorporação da estrutura da linguagem, em que a criança goza com a sonoridade de suas emissões que distorcem o que lhe foi dito. Trata-se do tempo em que a linguagem se reduz ao ‘afeto’ de ‘alíngua’. Servindo-se da equivocidade própria à lalação, sustentada em rimas e aliterações, Lacan (2020) situa o efeito que a ambiguidade de cada palavra produz. Escrevendo a língua com o termo ‘lalíngua’, referida à lalação, assevera: “[...] muito cedo o ser humano faz lalações e para isso não há outra coisa senão ver um bebê, ouvi-lo [...] há uma pessoa, a mãe [...] que lhe transmite lalíngua” (Lacan, 2020, p. 05).

Assim, aquilo que é dito ressoa no organismo do bebê franqueando, no que disso ele ouve, a produção de seus primeiros balbucios. Nisto instaura-se a diferença que localiza a matriz de equivocidade de cada sujeito ao habitar uma língua.

O andamento materno e a voz escandida

Para as primeiras inscrições no corpo infans, o registro do compasso materno imprime, no corpo real da criança, uma temporalidade de cortes, cujo andamento apresenta a marca do afeto corporal de deslocamento, implicando o tempo. Na constituição psíquica, tem-se o movimento temporal que franqueia segmentos a partir do andamento impresso nos cuidados maternantes. Antes que advenha um sujeito, os cuidados maternantes do corpo do bebê articulam uma matriz estruturada num cálculo temporal. É por meio do andamento que se imprimem escansões no organismo, estabelecendo uma regularidade (Vorcaro, 2017).

A matriz simbólica opera instaurando a possibilidade de espera: nos intervalos produzidos pela inscrição do andamento materno, o infans produzirá manifestações vocais que denotam seus primeiros apelos que visam a recuperar a satisfação uma vez obtida. Trata-se do que Freud (2010) nomeou teste de realidade, cujo objetivo é o de reencontrar na percepção atual o objeto de satisfação que existiu, já estando por isso representado na memória, certificando-se de que este ainda existe. Retomemos o percurso do pensamento freudiano.

Freud (1996) aponta que a primeira expressão do infans, acossado por sua insuficiência orgânica, é a descarga da tensão por meio do grito. Diante deste, intervém uma ação específica (capaz de alterar o mundo externo) a fim de eliminar temporariamente essa manifestação: trata-se do auxílio alheio do próximo assegurador (Nebenmensch), que toma o grito como apelo que o intima, compelindo-se a responder.

Na oferta do objeto/coisa apaziguador se consuma o cancelamento da excitação endógena desprazeirosa, instaurando uma experiência de satisfação. O registro mnêmico da ausência e da presença intercalam-se, na articulação entre apelo e resposta, sendo ultrapassado pelas sucessivas experiências diferenciais em que serão transcritas no psiquismo (Freud, 2016b).

Para Freud (2016c), a imagem mnemônica da percepção particular da experiência de satisfação associa-se ao traço de memória da excitação produzida pela necessidade, permitindo que, no ressurgimento da necessidade, o infans reinvista tal imagem. Essa atividade psíquica leva à identidade perceptiva, repetição da percepção e restabelecimento do encontro com o objeto ligado ao corpo do outro, além da inserção de uma lógica em que é possível apelar pelo seu retorno.

Segundo Pereira et al. (2018), a voz-apelo sustenta a reativação de um objeto: o antigo grito infans se associa a uma imagem acústica capaz de reevocar tal objeto. A formatação desta voz como apelo presta-se a significar algo para alguém, formando a identidade perceptiva prosódica, que permite reconhecer os primeiros registros e amarrações que deixam para traz o grito. Estas amarrações serão, aos poucos, domadas pela língua.

O auge dos parâmetros entoativos e temporais das produções sonoras do bebê ocorrem aos oito meses, processo que inicia em torno dos seis meses. Conforme Costa (2015), trata-se de uma adequação à imagem sonora que escuta daqueles que estão a sua volta. Gorenberg (2016) evidencia que, por volta dos sete aos 11 meses de idade, produz-se uma interrupção em que os bebês perdem progressivamente a capacidade de produzir fonemas que não fazem parte da língua materna (língua oficial), entrando na etapa do balbucio linguístico. Nesse momento de perda, os balbucios são mais segmentados, com mais articulação fonética e menos entoação.

Este período coincide com um dos momentos constitutivos do sujeito, o Estágio do Espelho (Lacan, 1998b). Ele ocorre entre os seis e os 18 primeiros meses de vida, quando o bebê reconhece sua imagem no espelho. Esse ato repercute numa série de gestos em que ele experimenta ludicamente a relação dos movimentos assumidos da imagem ao seu reflexo, num trabalho jubilatório. No regozijo em que assume sua totalidade na sua imagem especular, a criança retorna sua cabeça para o agente que a sustenta, que está atrás dela, encarnando o Outro. Demanda-lhe assentimento, homologação do valor dessa imagem, tempo fundamental da relação imaginária na medida em que há um limite: a autentificação do Outro que não aparece na imagem virtual.

O estágio do espelho contempla a incidência primária da escrita no corpo, com o júbilo da unidade imaginária do espelho, que assim “[...] inscreve um antes e um depois [...]”, que produz efeitos na posição subjetiva (Costa, 2019, p. 48-49). Afinal, o estágio do espelho aponta a linha de partilha entre a virtualidade imaginária e a eficácia simbólica, entre a alienação do ‘Eu’ (moi) à imagem ea formação do ‘Eu’ (je), antes que a linguagem lhe restitua sua função de sujeito.

Neste processo, desdobra-se o outro da alteridade, relativo ao semelhante e a dimensão simbólica do Outro, grifado com maiúscula. Ao identificar-se com a imagem de um corpo homologado pelo Outro, a criança encontra a origem e a matriz do seu ‘Eu’ (moi). Acomodando sua própria imagem, o sujeito deve achar oportunidade de uma integração na qual o Outro é testemunho que decanta a confirmação (Lacan, 1998a).

Enquanto a criança se instala na língua para poder falar como Eu (moi), a prosódia exerce um papel cada vez mais restrito na produção de sentido, porque a criança passa da ‘imitação’ dos sons que ouve, para a produção de sua primeira perda vocal, quando tenta adaptar seus vocalizes à fala. Em tal adaptação, ela sacrifica a voz, parte de si mesmo, para que, num funcionamento da linguagem, suas produções adquiram significado (Porge, 2014).

Assim, o apelo infans é o determinante da primeira perda da voz enquanto objeto da pulsão, pois nele está a dimensão emissível da voz, aquela que pode enganchar-se ao funcionamento da linguagem, frente a sua amarração imaginária à língua (Pereira et al., 2018). Esta é a voz escandida que ecoará a interdição simbólica observada em cada tropeço de fala. Pode-se reconhecer esta contingência da voz em algo pelo qual o sujeito se vê ultrapassado, na surpresa, e que se produz numa hiância.

Para Musolino (2015), a contingência da voz surge no imprevisto de uma posição de enunciação, numa dimensão do corte enunciativo, onde o que aparece na fenda está destinado à cicatrização, ao desaparecimento. Lacan (2008) circunscreve isto que se precipita do encontro do infanscom os significantes do discurso, com o termo ‘lalíngua’,modalidade pela qual o sujeito, ao mesmo tempo, se aliena e se inscreve singularmente na linguagem, antes dela restringir sua fala ao discurso estabelecido.

Rastro que reproduz a parte do que subsiste do sujeito alojando o recalcado, ‘Lalíngua’ é o elemento em torno do qual os significantes da linguagem giram, envolvendo-o. Neste um que não se sabe se é fonema, palavra, frase ou mesmo o pensamento, agiria o gozo do não sabido, saber impossível de reunir, furando o ‘Simbólico’. Para estruturar-se como uma linguagem, o inconsciente elucubrará sobre o real de ‘lalíngua’, constituindo um saber que não se sabe (Lacan, 2008).

Percurso metodológico

Participaram do estudo dois bebês, um do sexo masculino (M) e outro do sexo feminino (F), e suas mães (MM e MF, respectivamente), responsáveis pelos cuidados diários com os mesmos. Para inclusão na pesquisa, foram consideradas mães falantes do portuguêsbrasileiro e ouvintes; e bebês ouvintes e a termo. A escolha dos participantes do estudo deu-se por conveniência de acesso aos mesmos.

Foi realizada uma pesquisa empírica, de abordagem qualitativa, fundamentada no método de estudo de caso exploratório-descritivo (Gil, 2009). Os casos foram acompanhados longitudinalmente, através de encontros mensais, no período de um a 11 meses dos bebês. Nos encontros foram registradas interações entre mães e bebês em momentos de brincadeiras livres, por meio de filmagens e de gravações de áudio.

Esta pesquisa seguiu as diretrizes e as normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, conforme expostas na resolução nº 466/12, de 12 de dezembro de 2012. O estudo respeitou o Processo de Consentimento Livre e Esclarecido (PCLE) com os sujeitos envolvidos. As mães formalizaram suas participações e de seus bebês por meio da assinatura dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Esta investigação teve registro no Gabinete de Projetos do Centro de Ciências da Saúde (CCS) e no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), localizada no Rio Grande do Sul, Estado brasileiro, sob o número CAEE 34428014.6.0000.5346.

Resultados e discussão

Os resultados serão discutidos a partir de sua divisão em quatro momentos lógicos: o primeiro é relativo à primariedade rítmica, incidência simbólica observável já no segundo mês de vida nos bebês; o segundo enfatiza a constituição do laço com o outro e a incorporação da língua nos bebês de quatro meses de idade; o terceiro demarca a passagem pela voz apelativa e os objetos que, com ela, quedam, leituras que empreendemos nas cenas do nono mês de vida dos bebês; o último momento, registrado nos materiais em que os sujeitos da pesquisa tinham 11 meses de idade, demarca a passagem pelos significantes e o sujeito constituído pela linguagem, apresentando elementos que destacam que a voz escandida ressoou no sujeito.

A primariedade rítmica incidente no infans

Durante o segundo mês de vida dos bebês participantes, as interpretações do agente do Outro sobre o organismo dos bebês foram empreendidas por ambas as mães. Em suas primeiras ofertas, foram visíveis as leituras das produções vocais infans como apelos endereçados a elas. De início, a condição real a qual está submetido o agente materno diante do bebê é recortada deste lugar Outro, quando sustenta sua fala e seus atos em direção ao infans, ordenados pela linguagem. Nesse tempo, tudo pode existir sem que haja o mínimo de sujeito (Lacan, 1998a).

É na suposição de um sujeito, que diante das manifestações do grito, em um só tempo: (a) o outro assegurador, compelido pelo real do organismo que nasceu e da presença que lhe afeta, oferece o suprimento de sua necessidade; (b) o outro semelhante eleva o grito à condição de apelo, fazendo deste uma demanda a si; e (c) o Outro barrado assegura atributos diferenciais ao grito-apelo, encarnando-o na lógica da linguagem a qual está submetido.

Quando a mãe de F, por exemplo, supõe que ela quer mamar, logo lhe empreende uma pergunta: “Que que a F quer, ãh?”.São nos sucessivos endereçamentos e leituras demandantes sobre oinfans, que opera a perda instintual do infans por meio de sua inserção no campo da linguagem. Em relação à perda instintual, Freud (2016a) é primordial ao perverter as teorias pré-existentes sobre os instintos, por meio do seu conceito da Pulsão (Trieb), que ele concebe como um desvio do instinto. Enquanto os instintos possuem padrões fixos de conduta ligando objeto e objetivo e têm como função a reprodução, denotando a preservação da espécie, na pulsão, o padrão de ligação entre objeto e satisfação é fixado durante a história do sujeito.

Tais histórias vão sendo marcadas pelas narrativas dos outros que lêem o corpo do bebê. Isso também permite que o bebê perceba um sujeito falante, que ele vê falando e que o penetra “com relatos desde o começo” (Lacan, 2016, p. 21). Observa-se, neste estudo, que as leituras empreendidas pelas mães não apenas traduzem os movimentos dos bebês, mas também o situam no diálogo, ofertando palavras como respostas dos mesmos. Quando MM indica que M gosta de ficar ‘peladão’, logo produz a resposta do bebê: “[...] tá muito quente, mãe, eu gosto de ficar assim, tá muito quente, eu gosto de ficar peladão, viu?”. Neste primeiro tempo, ainda é preciso que o outro fale pelo bebê, até que este venha a enunciar-se em nome próprio.

Mas não é uma fala qualquer, os endereçamentos maternos utilizam os recursos prosódicos do ‘mamanhês’. MM faz carinho em M e vocaliza: ‘caarriinhho’ (prolongado, entre 17m20s e 17m35s de gravação). Esse endereçamento é capaz de fazer M interromper o choro que produzia, o que permitiu esboçar a prosódia enquanto isca à qual o infansse deixa muito cedo fisgar. Observa-se que o empuxo vocal que MF utiliza com caracterização melódica em:“Oolha a borboleta”,é usadasomente após o olhar de F ser capturado no objeto, como a mãe desejara. O que denota que as produções maternas também são incentivadas pelas capturas dos bebês.

Também se faz notar que diante dos apelos maternos que não incluem as variações tonais frasais, há retorno, em vocalização, por parte dos bebês, mas em número reduzido em relação aos encontrados perante a melodia do ‘mamanhês’. Nesses casos, com frequência, há a manifestação vocal dos bebês, que parecem realmente apetentes ao objeto sonoro. Há muitos exemplos em que a mãe lhe fala e F não responde, como o que segue: “Tá gostando da máquina?”. Em outro momento, diante da entoação materna, “O queeê? Que tu queeer?” ... “Hein?” (4m48s), M lhe endereça “ã” (4m50s).

Percebe-se que as vocalizações dos bebês são acolhidas pelas vocalizações maternas. Quando M vocaliza com extensão, a mãe repete a produção do filho: “ééé”. A produção vocal da mãe é muito próxima à produção do filho, precipitando assegurar a inscrição dos traços vocais produzidos pelo menino.

Observa-se que as vocalizações dos bebês são realizadas no intervalo da voz da mãe. Instaura-se o apelo à presença-ausência da vocalização materna, ligada ao prazer-desprazer. Diante da ideia de complementariedade desses dois polos, remete-se ao jogo de alternância em que a possibilidade de ausência é segurança da presença. Deste modo, os bebês do primeiro mês da pesquisa encontram-se nas premissas do jogo erógeno pulsional, ao mesmo tempo em que, em suas vocalizações, começam a se instaurar alguns aspectos melódicos que servirão ao jogo no laço com o outro. Tal laço passa pelos polos ativo e passivo em Freud (2016a), numa reversão fundamental, faz circular o percurso da pulsão.

Na primariedade da relação ao objeto voz, nota-se que as evidências rítmicas das vocalizações infans também são imposições à entrada no jogo. Na cena abaixo, encontra-se a suspensão do choro de M após uma fala monotonal e de condição rítmica, a qual ele responde:

− MM: “Tá, já te deixei peladão como tu gosta”.

− M: “ã”.

Diferentemente da musicalidade do ‘mamanhês’, os ritmos musicais extraídos das falas maternas foram monotonais, mas tiveram efeito análogo à melodia musical materna. Percebe-se que o empuxo materno se dá não somente por relação à melodia musical, mas também ao ritmo que demarcou evidentemente alguns intervalos das falas maternas. Aqui está uma das inovações desta pesquisa, a particularidade do andamento que se visualiza neste estudo decorre de um intervalo temporal marcado por uma lógica matemática. Entende-se, dentro da matemática do intervalo, uma ascendência à previsibilidade, onde se situa a ordem simbolizante. Mais do que entender a prosódia materna como canto facilitador da apreensão do infans pelo ‘Simbólico’, este trabalho propõe-se a tocar nos limites, nos vazios e nos interditos dessa voz.

O laço pulsional e os contornos prosódicos vocais

Aos quatro meses de idade dos bebês, observa-se que a demanda da mãe já se instalou sobre o corpo infans e se manifesta numa busca ativa pelo laço com o outro. Buscam, ainda, os objetos que as mães lhe disponibilizam. Os bebês são, agora, imediatamente fisgados pela entonação prosódica própria do ‘mamanhês’, utilizada pelas mães ao ofertarem objetos ao bebê. Há um registro em que MF chama a atenção de F para o microfone do aparelho de gravação de áudio: “Tu viiiu?”(extensivo), e F vira de imediato o rosto para onde a mãe aponta.

Percebe-se que essas falas endereçadas servem prontamente para localizar o corpo infansno espaço. Diante do neonato outrora desamparado, o outro propicia as primeiras diferenciações da atividade perceptiva, cuja pulsão é a medida da exigência de trabalho imposta ao anímico em decorrência de sua relação com o corporal (Freud, 2015). Num enquadramento perceptivo vinculado ao apelo sedutor do endereçamento materno, sobrevém um engajamento de um sujeito a advir por meio do laço com o outro.

Observa-se que os bebês de quatro meses vocalizam como apelo, dentro de uma lógica temporal. F, por exemplo, ao não alcançar um objeto, vocaliza, mas ao alcançá-lo, silencia. Essa atividade psíquica leva à identidade perceptiva e restabelecimento do encontro com o objeto (Freud, 2010). Nisto, os bebês inseridos em uma lógica em que é possível apelar pelo seu retorno, fazem de sua voz apelo. A formatação desta voz que se presta a significar algo para alguém permite reconhecer as primeiras amarrações da voz, deixando para traz o grito (Pereira et al., 2018)

Existem também mais silêncios, faltas de emissões sonoras que são incidência do simbólico. São os vazios intervalares, situados dentro da lógica da antecipação temporal, cujo objeto alternante falta, que se visualiza nesse momento. A lógica antecipatória diz respeito justamente à fundação do sujeito, no Outro, lugar desde onde os significantes são ofertados por um agente cuidador (Lacan, 1998a). A pertinência simbólica da ritmação, marcação de intervalos pelos quais o sujeito se lança na lógica antecipatória é onde pode inscrever seus atos e suas vocalizações.

Isso ocorre porque o próprio funcionamento ritmado da alternância realizada pelos agentes opera uma defasagem que se inscreve entre os termos diferenciais, o desencontro entre termos alternantes exclui um deles diante da precipitação ou do adiamento, uma intervenção temporal que introduz a equivocidade entre a mãe e a criança (Vorcaro, 2003).

Observa-se que o infans manifesta-se diante da espera por um dos termos diferenciais. Em um jogo no qual MM tira e coloca o bico em M, aparecem as vocalizações do menino no lugar do objeto faltoso. Na defasagem temporal, o infans ocupa a posição vazia por meio de um grito, substituindo o termo sustentador da alternância. Esse grito já é corpo que se oferece ao que falta na alternância simbólica, por meio do grito que se faz apelo, que tenta se ligar a uma imagem acústica capaz de reevocar o objeto perdido, primeiros registros e amarrações da voz.

Sugere-se, nesse momento lógico, a inscrição do registro vocal como apelativo e, portanto, da ordem de uma ligação significante radical. Soma-se a esse momento estrutural o enriquecimento das modulações vocais dos bebês nos balbucios proprioceptivos. Quando MM brinca de colocar o bico na boca de M e logo tirá-lo de lá, entoando uma frase com o ‘mamanhês’, MM vocaliza, entoando mais de uma nota. Quando, no entanto, a mãe o faz com a fala típica, M choraminga.

Aos quatro meses, o bebê constitui contornos prosódicos relacionados à captura da sonorização vocal. Essas mudanças prosódicas do ato de vocalização dos bebês se dão quando o jogo erógeno, no laço com o outro, já se instalou (Jerusalinsky, 2011). Desse modo, precipitam-se os traços vocais que podem ser meios de oferta de elementos para que o bebê possa circular entre os significantes, engajado no funcionamento simbólico onde se constitui o sujeito.

A passagem pela voz apelativa

Aos oito meses de idade, os bebês respondem às frases interrogativas de suas mães, mesmo que elas não tenham a prosódia específica do ‘mamanhês’. Suas respostas também comparecem no tempo dialógico:

- MF: “E onde é que o nenê tem que colocar?”.

- F: “Ãmããe”.

- MF: “Aonde que a F tem que colocar?”.

As mães silenciam sustentando uma matriz dialógica. Os bebês, por sua vez, estão engajados numa alteridade (Freud, 2015; Lacan, 1998b). Esses movimentos comparecem junto às perdas vocais da etapa dos balbucios linguísticos, onde há produção das primeiras perdas vocais do sujeito em constituição (Porge, 2014). F e M produzem os balbucios linguísticos. F faz:“Bum, bum, bum” e M, “iéiéiéié”, “abuu, abuu, aaa”.

Trata-se de um tempo de interrupção em que as capacidades fonéticas parecem cambalear, visto que os bebês não têm mais todas as capacidades vocais que se evidenciavam nos balbucios iniciais (Gorenberg, 2016). Na medida em que o sujeito tenta falar para significar, perde a sonoridade da fala. A voz é o suporte da enunciação discursiva e desaparece por trás do sentido, essa é a voz do endereçamento (Vivès, 2012).

Observa-se que, nesse momento de perda, os balbucios são mais segmentados e possuem mais articulação fonética (Jerusalinsky, 2011). Em um momento, MF pergunta o que F quer e segue: “quer o papai?”Ela parece responder por F, mas agora, de maneira bem cadenciada, dividindo as sílabas: “Pa-pai, pa-pai”. Diante da candência materna, F enuncia “atata” e repete “ta-ta”com segmentações. Assumindo a apropriação dos contornos vocais pelas vias identificatórias, adequam-se a imagem sonora que a criança produz e a imagem sonora que escuta das pessoas que estão a sua volta (Costa, 2015).

Neste tempo, a criança passa pela identificação de sua imagem no espelho, a partir da validação simbólica do Outro, processo no qual encontra a origem e a matriz do seu ‘Eu’ (moi) (Lacan, 1998a). Nestes processos identificatórios, a colagem à língua do Outro é evidente. Neste tempo, o empuxo recai sobre o enunciado da língua, de modo que opera sobre a fôrma de sua produção pelos bebês, num imperativo ao correto pronunciar.

Logo que F produz “ta-ta”, MF sobrepõe “Pa-pai”, observa-se um imperativo sobre a língua a ser falada, diante do qual F tenta soar ‘p’ no lugar de ‘t’, tenta contornar seus movimentos labiais para as vocalizações. Os movimentos labiais são relevantes quando a mãe solicita que F olhe para seu rosto: “F, olha aqui!”.F movimenta os seus lábios também, mesmo que não produza som com eles.

Tem-se também aqui um lugar de troca erógena, F bordeia os lábios e sorri. Os lábios que efetuam a função de borda da pulsão são encarnação de um corte do objeto (Lacan, 2005b). A cena relatada denota justamente isso, a função do corte posta em cena. Percebe-se que comparece aqui a voz na condição de objeto da pulsão, voz suposta numa abertura e numa escansão (Porge, 2014). O sujeito que opera, com a voz, seu laço com o outro, implica sua economia psíquica na abertura e no fechamento ao outro. Ele se abre e se fecha porque a matriz simbólica permitiu que se estruturasse pela linguagem.

Assim, a produção do balbucio linguístico manifesta um movimento da linguagem, mesmo que os bebês ainda não possam deslizar com desembaraço pelos significantes. Para esses, a entoação tem peso fundamental no que é dito, o auge dos parâmetros entoativos e temporais das produções sonoras dos bebês ocorrem aos oito meses de idade (Jerusalinsky, 2011). Foi o que este estudo percebeu, a incidência de tipos prosódicos em balbucios extensivos, por exemplo, quando F produz “Ba, ba- da, da, da”(10:31 - 10:34), e M vocaliza de forma cadenciada: “ta-ta-ta-ta-a-a-a-a” (9:56-10:05), na qual se singulariza na experiência infans o resíduo de marcação temporal, contemplado nas escansões do andamento. Isso ocorre após se instaurar o funcionamento da linguagem no corpo que ressoou na vibração do andamento da fala (Vorcaro, 2017).

A voz que ressoa articulada

Neste momento de leitura, atenta-se ao corpo infans que se enformaonde a voz ressoou articulada. Aos 11 meses, observa-se que os traços vocalizados retornam articulados. Os bebês estão agora em posição bastante diferenciada. Quando MF pergunta se a bolacha está boa, F responde um enfático “lá”. Quando M quer pegar o gravador e é proibido pela mãe, ele emite: “sai”.Os sujeitos podem circular, por meio da linguagem, entre os significantes.

As vocalizações já têm seus contornos bem delimitados na língua. Aludido por precipitados de ‘lalíngua’,onde o sujeito evanescente agora co-habita, o primeiro efeito do funcionamento significante foi perdido, recalcado pela constrição que a língua organizada impõe (Lacan, 2008).

Quando MF diz “não mexer”, F diz “nã”; quando MM diz à M que não pode mexer no gravador, com um enfático “não”, ele vocaliza “ão”. Observa-se o ideal incidente nas manifestações, resposta às exigências parentais. Observa-se que é no tempo concomitante ao que as palavras se enunciam coladas à língua, que a mãe começa a oferecer seu filho como objeto de gozo ao outro. MF oferta as produções de F à pesquisadora: “mostra para a tia que tu sabe dar beijo”, ao que F faz um movimento labial. O corpo de F é oferecido ao olhar do outro. MM também quer que M se mostre: “mostra o que tu apronta”; “dança”; “atira beijo”; “diz o ê pra tia”...

Este jogo em que o bebê é situado objeto de desejo e é dado a ver, responde à dinâmica pulsional freudiana - olhar/ser olhado (Freud, 2016a). Neste jogo pulsional, o terceiro tempo permite operar com a separação entre o sujeito e o outro, o que origina o desejo do sujeito. No terceiro tempo invocante, o sujeito pode fazer-se escutar.

Os bebês agora se enunciam endereçados ao interlocutor. Em uma cena, F quer mostrar o “au-au” fora da casa. Tem-se, assim, um sujeito que fala e outro que escuta, mas principalmente a passagem entre um sujeito e ele mesmo, sujeito que fez de sua voz inaudita, como explicita Porge (2014).

Observam-se os significantes em articulação, a remissão de um a outro, lugares de passagem significantes (Lacan, 1998a). Em uma vocalização extensa F “lê” um livrinho, pronunciando “abôpuiéé” (07m58s-08m10s). Ela faz pausas, escande sua vocalização, e busca algo que parece associar com sua leitura. Na dimensão do corte enunciativo, algo aparece na fenda.

Por meio de uma função pulsativa do inconsciente, na passagem entre um sujeito e ele mesmo, manifesta-se alguma coisa que aprofunda o significante. É uma voz que toma consistência na transmissão, que se refere ao lugar que se apagou e que dá vazão para que outro significante seja ali colocado. Ali o sujeito comparece, no intervalo da voz escandida que nele ressoou.

Considerações finais

Antes da estruturação da linguagem no inconsciente, o zumbido da linguagem falada corta o corpo vivo, como ajuntamentos de marcas do que ressoa no corpo. Esse primeiro efeito de um funcionamento significante será perdido, recalcado pela constrição que a língua organizada impõe. Doravante, será apenas aludido por precipitados de ‘lalíngua’, onde o sujeito evanescente co-habita.

Esta pesquisa atentou à primariedade das evidências rítmicas dos endereçamentos maternos e produções vocais dos bebês, nos quais o andamento apresenta a marca do afeto corporal de deslocamento, implicando o tempo, pelo qual é reduzida a entonação. Na ordenação temporal, o sujeito se lança à lógica antecipatória, inicialmente como corpo que se oferece ao que falta na alternância simbólica.

Ao passar pelos tempos pulsionais em que a voz é objeto da circularidade na relação com o outro, o trabalho demarca o sujeito implicado no movimento de abertura e fechamento ao outro, no que singulariza sua experiência de linguagem, a partir dos seus resíduos de marcação temporal. Deste modo, a voz fica referida ao lugar apagado, que dá vazão para que outro significante se coloque em seu lugar. É ali que o sujeito comparece, no intervalo da voz escandida que nele ressoou.

Vale também notar os limites da investigação aqui realizada, em relação à perspectiva teórica adotada. A observação direta de casos, tão cara à pesquisa científica, não ocupa aqui o lugar de evidência e confirmação de universalidades. Ao contrário, ela apenas situa o modo singular de cada sujeito entrar na língua, puxando as cordas do simbólico de lugares imprevisíveis, onde algumas regularidades estruturais do sujeito podem ser apontadas, sem, entretanto, precipitar generalizações. Além disso, aquilo que se observa apenas toca em elementos que demarcamos, na condução de teorizações que não se confirmam pela hipótese de visibilidade, exigindo construções lógicas que, mesmo provisórias, não se pretendem exemplares.

Referências

  • Catão, I. (2009). O bebê nasce pela boca:voz, sujeito e clínica do autismo São Paulo, SP: Instituto Langage.
  • Catão, I. (2015). O corpo como resposta à invocação da mãe. Revista Psicologia, Diversidade e Saúde, (1), 4. Recuperado de: file:///C:/Users/HP/Downloads/665-2783-1-PB.pdf
  • Costa, A. M. M. (2019). Luz e tempo: ato e repetição São Paulo, SP: Escuta.
  • Costa, A. O. (2015). De palavras e inconsciente: a função da linguagem na origem da psicanálise. Tempo Psicanalítico, (2), 47. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v47n2/v47n2a05.pdf
    » http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v47n2/v47n2a05.pdf
  • Freud, S. (2016b). Carta 112 [52], de 6 de dezembro de 1896. In S. Freud Obras inacabadas de Sigmund Freud (P. H. Tavares, trad.,Vol 5, p. 35-45). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. Original publicado em 1896.
  • Freud, S. (2010) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In Freud, S. (P. C. Souza Trad.) Obras completas (Vol. 10, pp. 108-121). São Paulo: Companhia das (Original publicado em 1911).
  • Freud, S. (2016c). A interpretação dos sonhos (R. Zwick, trad.). Porto Alegre, RS: L&PM Editores. Original publicado em 1900.
  • Freud, S. (1996). Projeto para uma psicologia científica.In S. Freud. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol 1, p. 341-466). Rio de Janeiro. RJ: Imago. Original publicado em 1895.
  • Freud, S. (2015). As pulsões e seus destinos. In S. Freud. (). Obras inacabadas de Sigmund Freud(P. H. Tavares, trad., p. 13-69). Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora . Original em 1915.
  • Freud, S. (2016a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud. Obras completas (P. C. Souza, trad., Vol. 6, p 13-172). São Paulo, SP: Companhia das Letras. Original publicado em 1905.
  • Gil, A. C. (2009). Estudo de caso:fundamentação científica, subsídios para coleta e análise dos dados e como redigir o relatório São Paulo, SP: Atlas.
  • Gorenberg, R. (2016). La música de la lengua: incidencia del objeto voz em la clinica psicoanalíticaOlivos, AR: Grama Ediciones.
  • Jerusalinsky, J. (2011). A criação da criança: brincar, gozo e fala entre a mãe e o bebê Salvador, BA: Ágalma.
  • Lacan, J. (2020). Alla Scuola Freudiana, conferência de 30 de março de 1974 Recuperadode:www.ecolelacannienne.net/fr/p/lacanen/nouvelles/paris-7/pas-toutlacan 1970-1979
  • Lacan, J. (1998b). O estádio do espelho como formador da função do Eu. In J. Lacan. Escritos (T. Vera Ribeiro, trad., p. 96-103). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. Original publicadoem 1949.
  • Lacan, J. (2005a). Introdução aos Nomes-do-Pai. In J. Lacan. Nomes-do-Pai (T. André, trad., p. 55-87). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . Original publicado em 1963.
  • Lacan, J. (2016). O Seminário (Livro 6. O desejo e sua interpretação,C. Berliner Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . Original publicado em 1958-59.
  • Lacan, J. (2005b). O Seminário (Livro 10. A angústia, V. Ribeiro Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . Original publicado em 1962-63.
  • Lacan, J. (1998a). O Seminário (Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,2a ed., M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . Original publicado em 1964.
  • Lacan, J. (1992). O Seminário (Livro 17. O avesso da psicanálise, A. Roitman, trad.). Rio deJaneiro, RJ: Jorge Zahar Ed. Original publicado em 1969/1970.
  • Lacan, J. (2008) O Seminário (Livro 20. Mais, Ainda, M. D. Magno, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . Original publicado em 1972/1973.
  • Laznik, M. C. (2004). A voz da sereia: o autismo e os impasses na constituição do sujeito Salvador, BA: Agalma.
  • Musolino, M. B. (2015). A voz toma palavra. In M. E. Maliska (Org.), A voz na psicanálise.suas incidências na constituição do sujeito, na clínica e na cultura (p151-165).Curitiba, PR: Juruá.
  • Pereira, A. S; Vorcaro, A. M. R; & Keske-Soares, M. (2018). Do discurso do agente doOutro à voz-apelo do sujeito. Linguagem em (Dis)curso, 2(18). Recuperado de: https://www.scielo.br/pdf/ld/v18n2/1518-7632-ld-18-02-00431.pdf
    » https://www.scielo.br/pdf/ld/v18n2/1518-7632-ld-18-02-00431.pdf
  • Porge, E.(2014). Voz do eco (V. Veras, trad.). Campinas, SP: Mercado das Letras. Original publicado em 2012.
  • Scarpa, E. M., & Fernandes-Svartman, F. (2012). Entoação e léxico inicial. Veredas Online Especial, (Edição especial). Recuperado de: http://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2012/10/Entoação-e-léxico-inicial1.pdf
    » http://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2012/10/Entoação-e-léxico-inicial1.pdf
  • Vivès, J. M.(2012). A voz na clínica psicanalítica (V. A. Ribeiro, trad.) Rio de Janeiro, RJ: Contracapa.
  • Vorcaro, A. M. R.(2003). Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação. In N. V. A. Leite (Org.), Corpolinguagem:gestos e afetos (p. 215-231). Campinas, SP: Mercado das Letras .
  • Vorcaro, A. M. R.(2017). Um refrão surdo ressoa no corpo.In C. G. Burgareli; & M. Nova (Orgs.),Padecer do significante: a questão do sujeito (p 115-147).Goiânia, GO: Editora UFG.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2018
  • Aceito
    02 Nov 2020
location_on
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro