RESUMO
Este artigo teve o objetivo de criar um ensaio teórico a respeito da biopolítica diante da expansão do contágio pelo novo coronavírus. Por meio de trabalhos analíticos sobre o aumento das tecnologias de biovigilância face à pandemia por Covid-19, buscou-se neste texto alcançar uma perspectiva dos processos acontecimentais em curso na sociedade contemporânea em nome da defesa social e da gestão da vida. Estudos de Michel Foucault, de Han e Bauman auxiliaram nesta proposta de problematização das práticas de controle e segurança implantadas em nome do fazer viver e do deixar morrer em andamento, no neoliberalismo atual. Portanto, abordou-se um plano psicopolítico e filosófico social da pandemia e de seus efeitos na medida em que se configurou um processo minucioso da expansão da doença, do contágio e dos modos de lidar com estes acontecimentos complexos. Assim, o artigo apresentou um ensaio teórico sobre os usos autoritários de biovigilância durante a pandemia e a descrição de alguns dos seus efeitos e modos de materialidade.
Palavras-chave: Psicopolítica; biovigilância; Covid-19
RESUMEN
Este artículo tuvo como objetivo crear un ensayo teórico sobre biopolítica en vista de la propagación del contagio por el nuevo coronavirus. A través del trabajo analítico sobre el aumento de las tecnologías de biovigilancia ante la pandemia de Covid-19, este texto buscó alcanzar una perspectiva de los procesos que suceden en la sociedad contemporánea en nombre de la defensa social y la gestión de la vida. Los estudios de Michel Foucault, Han y Bauman ayudaron en esta propuesta a problematizar las prácticas de control y seguridad implementadas en nombre de hacer la vida y dejar morir en progreso, en el neoliberalismo actual. Por lo tanto, un plan social psicopolítico y filosófico de la pandemia y sus efectos se abordaron como un proceso detallado de propagación de la enfermedad, el contagio y las formas de lidiar con estos eventos complejos. Así, el artículo presentó un ensayo teórico sobre los usos autoritarios de la biovigilancia durante la pandemia y la descripción de algunos de sus efectos y modos de materialidad.
Palabras clave: Psicopolítica; biovigilancia; COVID-19
ABSTRACT
This article aimed to create a theoretical essay about biopolitics in view of the spread of contagion by the new coronavirus. Through analytical work on the increase in biovigilance technologies in the face of the pandemic by Covid-19, this text sought to achieve a perspective of the happening processes in contemporary society in the name of social defense and life management. Studies by Michel Foucault, Han and Bauman helped in this proposal to problematize the control and security practices implemented in the name of making life and letting die in progress, in the current neoliberalism. Therefore, a social psychopolitical and philosophical plan for the pandemic and its effects was approached, as a detailed process of spreading the disease, contagion and ways of dealing with these complex events took shape. Thus, the article presented a theoretical essay on the authoritarian uses of biovigilance during the pandemic and the description of some of its effects and modes of materiality.
Keywords: Psychopolitics; biovigilance; Covid-19
Introdução
Este artigo foi organizado em formato de um ensaio teórico com o objetivo de problematizar as práticas sociais denominadas de biovigilância. Para tanto, aborda-se a pandemia do novo coronavírus, em uma perspectiva crítica a partir de uma análise da psicopolítica de Byung-Chul Han e da biopolítica de Michel Foucault. Em especial, busca-se interrogar as implicações dos efeitos desta avassaladora pandemia do novo coronavírus, iniciada ao final de 2019, a qual se alastrou e foi intensificada ao longo do ano de 2020.
A transmissão do vírus ocorreu e ainda tem ocorrido rapidamente, aumentando drasticamente em função da circulação da população pelos diversos países, regiões e continentes. Esta expansão do contágio se tornou exponencial e passou a configurar uma pandemia. Os estados retardaram as medidas de precaução, tais como isolamento, quarentenas, distribuição de máscaras, compra de testes para testagem mássica, formação de profissionais para lidarem com o vírus, financiamento de pesquisas para que fossem criadas vacinas e medicações específicas. Também houve demora na criação de leitos de UTI em hospitais, de divulgação das informações básicas de educação em saúde para a população com atenção e sem as denominadas fake news.
Outro ponto difícil foi o aspecto econômico, na medida em que as estratégias de lockdown foram polemizadas por uma politização intensiva da pandemia e, deste modo, ocorreram bastante atrasadas e com momentos de suspensão e novo decreto sem a devida seriedade diante dos quadros vividos em cada realidade. Tanto o fechamento do comércio quanto dos serviços gerou muitas tensões. As questões vinculadas à transferência do trabalho e do ensino para modalidade remota foram e têm sido complicadas e resultado em conflitos os mais diversos entre os diferentes setores da sociedade. A suspensão de shows, festas e eventos os mais variados etc. também impactou na política cultural e no plano da oferta e participação dos denominados dispositivos de entretenimento e lazer.
Acontecimentos diversos pressionaram os atores institucionais, tais como a interferência do setor empresarial e o receio por retaliações políticas e econômicas atrasou e também sustentou tomadas de decisões em relação às táticas utilizadas para a proteção da população, em especial, no que tange ao socorro denominado assistencial aos pobres que perderam seus empregos, aos microempresários que tiveram prejuízos com o fechamento do comércio, destinação orçamentária específica para a expansão e organização da rede de políticas de atenção à pandemia. Moradores de bairros com pouco saneamento básico, maior densidade populacional e falta de acesso aos serviços de saúde foram os mais impactados com o contágio por Covid-19, sofrendo com o agravamento da doença e sendo vetores de contaminação dos familiares e comunidade por ausência e manipulação das informações por lideranças políticas que visaram ganhar algum tipo de benefício com a politização da pandemia.
Idosos e pessoas negras, moradores de cidades e regiões com falta de respiradores e leitos de UTI nos hospitais, mulheres e crianças pobres e trabalhadores desprotegidos também se tornaram vítimas em potencial da infecção pelo novo coronavírus e se tornaram vulneráveis aos efeitos da doença em muitos âmbitos de suas vidas. Muitos tiveram os sintomas agravados pela omissão dos estados e governantes, pela fragilidade das políticas públicas de seus países, municípios e regiões em função da diminuição dos investimentos nas últimas décadas em políticas sociais, em uma sociedade neoliberal.
Todavia, em alguns países, especialmente, os que se consideram mais desenvolvidos em uma concepção econômica e política neoliberais, aproveitaram a pandemia para implantarem medidas mais autoritárias e planejaram a implementação de estratégias de grande controle social e intensa biovigilância. Ou seja, reforçaram medidas extremas com a materialização dos dispositivos de segurança baseados em gestão de informações, vigilância dos dados, acompanhamento e monitoramento dos deslocamentos das pessoas, impedimento de circulação por leis de exceção, instalação de mecanismos de informática como câmeras e drones entre outras práticas sociais de governo das condutas em nome da vida, da saúde e da defesa social. Ora, o racismo de sociedade e de estado entrou na agenda pública mundial intensivamente e em uma rede micro e macropolítica simultaneamente.
Byung-Chul Han (2018), em um de seus ensaios mais famosos - Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Se Han seria um apocalíptico da internet e das mídias digitais, essa talvez não seja uma questão de efetiva relevância e validade para o momento em que vivemos, bem como para a nossa discussão. A internet nos circunscreve. Ela está por aí sempre presente, seja para facilitar nossas vidas, ou mesmo para complicá-la (se bem que, na verdade, complicado, hoje, fica quem não se adapta aos novos meios digitais, infelizmente). Esta subjetividade modulada pela gestão dos dados e aumento da conectividade objetivada pelo controle dos corpos e da população em sistemas panópticos das redes sociais têm gerado falsa sensação de proteção e liberdade. No caso da pandemia, os efeitos nefastos desta racionalidade aparecem na maximização das desigualdades sociais e econômicas de forma brutal.
A questão suscitada por Han (2020), no pequeno ensaio, entre tantas outras questões, configura um novo e específico paradigma da subjetividade contemporânea, imersa sob o status da Web 2.0, em uma vigilância virtual, consentida e ininterrupta, fator que no mínimo sugere o questionamento da noção de ‘liberdade’ nos meios digitais. Deste modo, paralelamente, a noção de liberdade, na contemporaneidade - muito mais do que um conceito abstrato -, chega a ser artificializada e substancializada; assim, compondo o ethos social e subjetivo. Esta presença ‘artificial’ é da ordem exponencial, a ponto de provocar sua naturalização e banalidade do mal na medida em que produz um entorpecimento generalizado (Cañada, 2016).
O problema não seria, no geral, apenas a mencionada naturalização. Afinal, como relatou certa vez um filósofo genebrino: nasceríamos livres. A questão seria, talvez, muito mais a de se indagar que tipo de liberdade é esta de nosso tempo e quais são os limites e pressões na luta permanente pela vida livre. Para Foucault (2008a), a liberdade é aquilo pelo qual se batalha cotidianamente. Ou seja, ela não é uma essência e nem decretada pelos princípios jurídicos que postulam o lugar institucional de que nascemos livres. Assim, a liberdade não é uma teleologia nem uma metafísica como gostaria de estabelecer certa tradição filosófica.
O liberalismo coloca o Estado de Direito e a economia política capitalista como balanças e termômetros da liberdade na relação com a segurança. No capitalismo neoliberal, é possível questionar como a construção da liberdade se dá em meio ao nosso amplo jogo de dispositivos diversos de controle, instituições, leis, valores, normas e costumes (Foucault, 2008a). Tais práticas securitárias estão enraizadas em nosso dia a dia, forjando subjetividades contemporâneas, especialmente, pelo controle em meio aberto, segundo destacou Deleuze (1992).
Han explica a noção de liberdade manifestando que a mesma é um entreato. Diríamos, um propulsor de conexões entre os indivíduos, um sentimento que se instaura, passando de uma vida à outra, até se tornar um modo de coerção que tem por máxima obrigue-se à liberdade! Mas, recolocamos qual é esta noção de liberdade que é a de nossos dias? E Han continua desenvolvendo a libertação seria um suposto destino do sujeito. Frisando sua etimologia, ‘sujeito’, significa estar submetido (Han, 2018). Estaríamos, então, submetidos à liberdade regulada pela segurança em redes tecnológicas, sobretudo as das plataformas da internet e das grandes corporações internacionais, até mesmo face à pandemia e como parte do enfrentamento à mesma? Como fica tal questionamento quando aplicado ao âmbito da internet e da pandemia no plano da materialidade das práticas sociais?
Com a expansão da internet, algo que ocorre há pelo menos três décadas (se considerado for o momento em que a mesma emergiu para o uso doméstico), as premissas às quais Han levanta em seu ensaio vem, cada vez mais, se intensificando. A ideia de liberdade, aliada à facilidade e velocidade de acesso que hoje temos no mundo virtual, se potencializou e continua seguindo pelo mesmo caminho de intensificação. A liberdade presente no mundo virtual, sem dúvida, é uma ideia produtiva e em tempos de neoliberalismo, diriam os seus adeptos, isso é o que importa, já que o indivíduo livre, na internet - e se este for compelido às ideias de autoprodução, autogestão, empresariamento de si, ou, como nos diria Foucault, de busca por capital humano -, encontrará nela um amplo espaço de e para produção (Han, 2018).
Todavia, partindo para um ponto mais geral, atentando aos limiares históricos da noção de avanço presente na temática da tecnologia, sublinhemos que muito se pensou (e ainda se pensa) desta última, quando se colocam em discussão as diversas aparições da mesma no mundo social, particularmente o contemporâneo. Para clarificar melhor temos, por exemplo, a crítica de que a integração e a disseminação comunicativa que muitas das diversas tecnologias prometeram em seus projetos sempre foram muito ovacionadas; e aí residiria um problema.
Como nos aponta Evgeny Morozov (2011), notório crítico da internet e da tecnologia, ‘a crítica à tecnologia é tão antiga quanto sua adoração’, argumento que acaba confundindo os olhares dos formuladores de políticas (policymakers) os quais, segundo ele, não deveriam, por conta de tal antiguidade, de maneira leviana assumir que as tentativas adversas de redução dos efeitos da tecnologia na sociedade são práticas em vão. Devem, todavia, se familiarizar com a própria história da tecnologia, a fim de pautar maior escrutínio sobre as eventuais exacerbações que se emitem a respeito dela, quando for necessário.
Morozov (2011), para tal, nos mostra, em uma breve genealogia da comunicação social, exemplos como os do telégrafo - criado por volta de meados do século XIX, aclamado como algo que elevaria a integração entre nações -, onde muito se acreditara ser unicamente um transmissor de conhecimento, um redutor de mal-entendidos, e, destaque-se, um promotor da paz e harmonia através do mundo. Ora, não tardou, segundo o autor, para que viesse a desilusão, tendo em vista que o telégrafo fora uma via de mão dupla: enquanto ajudava a localizar um fugitivo, igualmente o servia, na medida em que poderia ser manipulado também a espalhar alarmes falsos (Brigs & Burke, 2006).
Morozov (2011) comenta, sem otimismos, que as tentativas de apontar uma benignidade da tecnologia foram somente tentativas mal veladas de reduzir seus impactos. Assim, por exemplo, apesar de o rádio ter intensificado e aberto o debate político no meio público, e de ter exigido dos candidatos maior preparo quanto aos seus discursos, o bielorrusso permanece crítico. Esta condição hostil - que impele os sujeitos não à crítica, mas à aceitação; mesmo quando se tem em mente, de forma quase determinada, a falibilidade de certa inovação - presente nos limites tecnológicos, demonstra o quão aterradores podem ser seus impactos na contemporaneidade. É claro, levamos em conta os ganhos e os benefícios dos avanços tecnológicos, assim como os efeitos positivos da democratização da internet. Negá-los seria leviano, tanto quanto ignorar suas mazelas. Com efeito, nossas questões giram em torno daquilo que denominaremos de redução de danos. Ou seja, a diminuição, subtração ou preservação dos sujeitos expostos - em nível individual ou populacional - aos eventuais danos que podem sofrer com o avanço descabido da internet e da tecnologia: tanto em nível social (quando a mesma facilita a ascensão de regimes políticos não desejados); quanto em nível psicológico (tendo em vista a facilidade que os sujeitos têm de, hoje, estarem propensos às diversas síndromes de ansiedade, à depressão etc.), bem como de dependência fisiológica, das mais variadas tecnologias disponíveis em nossa realidade mais recente.
Lembrando-nos do início deste artigo, quando começamos nosso debate sobre a liberdade no âmbito digital, entreguemos agora destaque a outro sentido presente no excerto extraído do texto de Han (2020), qual seja, o do monitoramento, isto é, o do controle total. Ora, a priori, uma eventual premissa que teríamos a respeito disso, ao discorrer sobre esta questão, viria à tona no formato de outra indagação dicotômica: como seria possível a liberdade na internet se somos, ao mesmo tempo, sujeitos vigiados virtualmente, segundo aponta Han?
Em um âmbito específico e prático, uma questão também oportuna emerge: em Wuhan, na China, o uso da internet conjugada à biovigilância, ou, vigilância digital, acabou sendo positivo para o controle da crise pandêmica que vem assolando o mundo hoje, isto é, a da Covid-19 (Sars-Cov-2), que no momento da redação deste texto já ceifou mais de 200 mil vidas e contaminou cerca de 2,97 milhões de pessoas. Seria este um uso positivo da vigilância digital? Assim, daremos início à nossa discussão, almejando a problematização de tal fato.
A biovigilância
Começaremos nosso debate por meio de uma incursão: é notória a passagem a qual Michel Foucault (2008a) discorre sobre a mudança de uma sociedade disciplinar para uma sociedade da segurança em um de seus cursos de maior destaque, que inaugura e trata a temática do governo da população, qual seja, Sécurité, territoire, population, ou, simplesmente, o curso de 1978. Como nosso argumento percorre o signo da segurança, presente em nossa sociedade contemporânea manifestadamente por meio de diversos artifícios tecnológicos, torna-se importante a incursão pelos textos de Foucault (2008a).
Foucault (2008b), ao pensar a biopolítica como gestão da vida traça o roteiro genealógico da emergência dos mecanismos de segurança e da seguridade social, os concebendo como paradoxalmente racismo de estado e de sociedade. Em um primeiro momento, o filósofo retrocede alguns séculos ao XVIII (momento este em que acusa o aparecimento dos mecanismos de segurança). Por exemplo, para traçar demarcações exatas, tem-se que o modelo de exclusão dos leprosos na Idade Média tinha como pano de fundo, segundo o filósofo francês, todo um jogo, um enlaçamento de questões jurídicas e religiosas as quais precaviam pela separação binária entre o leproso e o não leproso, assim, ocorreu a exclusão dos doentes à periferia das cidades, em um afastamento que caracteriza o poder soberano sobre o corpo dos indivíduos a ele submetidos.
Em um segundo momento, diferentemente do modelo da exclusão ou modelo da lepra há a análise de Foucault (1999a) a respeito do modelo da peste, isto é, o governo da quarentena, lançado sobre a Europa que padecia com o alastramento da peste bubônica, delimitou-se o esquadrinhamento social de tal maneira a não mais excluir, todavia a confinar os indivíduos em suas casas; e não somente confiná-los, mas controlá-los a respeito do que deveriam comer, quando deveriam sair, quando deveriam abrir suas portas aos inspetores; ações estas que, por meio de uma série de proibições, garantiam a obtenção do controle total de uma cidade.
Em um terceiro momento, finalmente, aquele o qual desejamos estabelecer este oportuno debate, a implementação de modelos de segurança, segundo Foucault demarca, pode ser averiguada a partir das práticas de inoculação, isto é, práticas administradas no tratamento da varíola. Para Michel Foucault (1999b, 2008a), o que está em jogo na mudança a este modelo, no século XVIII - em relação aos dois anteriores -, seria, justamente, o controle epidêmico ou endêmico, por meio da notação de idade, contágio, efeitos, mortalidade, lesões e sequelas, ou, no mais alto grau de análise, buscando saber quais são os efeitos ‘estatísticos’ sobre a população em geral; ficando evidente que o problema em questão seria não mais, necessariamente, a tentativa de erradicação total de uma crise, mas a redução, nivelamento e controle, de seus abruptos níveis de ocorrência (Foucault, 2008a, 2008b).
Mesmo com as cisões históricas citadas acima, Foucault deixa muito claro em algumas passagens do curso de 1978 que os três modelos (lepra, peste e varíola, ou, soberania, disciplina e segurança) coexistem; e, na verdade, concordamos com esta coexistência, na medida em que, ainda hoje, podemos averiguar tanto a ampla exclusão social de certos indivíduos, ou, tão bem quanto, o amplo controle disciplinar dos corpos presentes nas mais variadas instituições, e, do mesmo modo, a biopolítica gestionária da espécie humana. O problema comum e central dos três casos, nos diz Foucault, é o das multiplicidades: no caso da soberania, o povo; no exemplo da disciplina, a individualização dos corpos; e, por fim, na questão da segurança, a gestão da população (Foucault, 2008a). A partir desta exposição vale à pena a retomada ao nosso objeto, qual seja, o da problemática da vigilância digital, ou, biovigilância.
Um aspecto importante da analítica de Foucault (1999a) foi a problematização do panóptico como tecnologia de governo dos corpos por máxima visibilidade e vigilância mútua. Com efeito, passamos a viver em uma complexa rede de olhares, vigilâncias e exames permanentes. Bauman comentou, a respeito da atualização do panóptico de Bentham, o qual Foucault (1999a) abordou em Surveiller et punir para os dias atuais, que o mesmo está vivo e bem de saúde, na verdade, armado de músculos (eletronicamente reforçados). David Lyon (2006), um sociólogo que há muito tempo pesquisa a vigilância eletrônica, comentou também de forma muito oportuna que problemas atualíssimos, como a exigência de mais privacidade em nossas vidas, conflita bruscamente com a estranha aceitação de novos mecanismos de vigilância no cotidiano. E essa segurança informatizada, ou ‘2.0’, ganha elevado destaque por meio dos mais diversos bancos de dados existentes no mundo virtual. Tais tecnologias fazem, efetivamente, a vigilância ‘funcionar’.
Prosseguindo, o registro específico o qual Bauman (2013) enquadra sua análise é, novamente, aquele que sobrepõe aos sujeitos os avanços tecnológicos, dentre tais, a intensa manipulação de artifícios virtuais com funções diversas; o panóptico físico, então, antes aplicado a todo lugar onde se tinha a intenção de se vigiar, dera espaço à outra coisa, o ‘sinóptico’. Esta última palavra é uma atualização, ou, se levarmos ao pé da letra o que Bauman comenta, um elemento que substitui o panóptico, algo que já não mais exige a construção de grandes ambientes e muralhas, bem como, o confinamento dos sujeitos para que a vigilância se dê de forma lisa. Em seguida, também, a ideia de uma autovigilância é o ponto de partida para todas estas reflexões. Na medida em que os sujeitos contemporâneos são constituídos de forma a serem consumidores e empresários de si, a ideia de uma autovigilância vai de carona em tal constituição. Autovigilância que ganha destaque como algo que faz parte do dia a dia dos sujeitos (Bauman, 2013).
É uma ideia de vigilância, segundo Bauman, do tipo faça você mesmo (Bauman, 1999), facilmente pensada e esclarecida, se posta ao lado do modelo neoliberal do capitalismo que nos impele à hiperprodutividade. Logo, ainda com a produção em larga escala de diversos minipanópticos (celulares e tablets, por exemplo) que, espraiados mundo à fora geram o efeito sinóptico, a ideia de uma participação dos indivíduos na vigilância torna-se evidente. O sinóptico é, por sua natureza, global; o ato de vigiar desprende os vigilantes de sua localidade, transporta-os pelo menos espiritualmente ao ciberespaço, no qual não mais importa a distância, ainda que fisicamente permaneçam no lugar (Bauman, 1999).
O alcance técnico-virtual disponibilizado por tais novidades modulou de maneira nunca antes vista a forma de se vigiar presente no mundo contemporâneo: GPS’s, redes sociais, aplicativos diversos, sinais de satélite, dronnes de alto desempenho; estes e outros artifícios põem em efetivo exercício a ideia de um princípio (Foucault, 1999a) de vigilância ininterrupta. A biovigilância, então, não estranhamente, advém de uma noção complexa de exercício de poder sobre a população (como vemos na citação acima), principalmente pelo fato de os diversos mecanismos de controle e segurança sociais, na contemporaneidade, terem se modificado, no bojo dos avanços tecnológicos (Maciel & Machado, 2004).
Tais técnicas, obviamente, são utilizadas sobre populações pré-determinadas, ou, como Maciel e Machado indicam, suspeitas; produzindo impactos na governamentalidade dos corpos das populações elencadas, bem como gerando processos culturais identitários. A lógica do uso de tais artifícios tecnológicos tem como principal finalidade, na investigação criminal, fornecer provas científicas para o tribunal. A coleta de dados, vestígios e informações biogenéticas favorecem a criação de perfis dos condenados e suspeitos, tendo por finalidade a criação de bancos de dados (databases) com o objetivo de identificar autores de crimes. Um paradigma biopolítico-vigilante sondado pelo espectro do direito (Maciel & Machado, 2004).
Segundo os autores do texto, em 2004, havia cerca de 56 países no mundo que faziam uso de tais inovações (24 deles concentrados na União Europeia, o restante de forma dispersa pelo globo). O sucesso de tal modelo se deve - e, faça-se, aqui, jus às lições foucaultianas a respeito da intrínseca relação entre saber e poder - à busca por um discurso que vise o bem coletivo, decodificado em uma potente ideia de seguridade a qual obterá a verdade que permitirá identificar criminosos e ilibar inocentes, uma verdadeira mostra da união entre ciência e direito, ou, da cientifização do sistema de justiça. Esses avanços marcam presença, principalmente, em finais do século XX e começo do subsequente, podendo ser caracterizados, segundo Maciel e Machado (2004), por interconexões de redes em compartilhamento de informação; o poder de processamento de dados; a modificação e transformação dos computadores em aparelhos supostamente adequados a tais processamentos; e o surgimento de tecnologias de localização em tempo real (o GPS é um caso).
De forma geral, a ideia é enraizar digitalmente o conhecimento adquirido sobre populações inteiras (impressões digitais, perfis sociais gerais e mesmo o DNA, onde se almeja o controle e a segurança) em máquinas, para que se obtenha a fácil manipulação de tais dados. Manipulação esta operada pelos agentes de controle social ou instituições de investigação criminal (Maciel & Machado, 2004).
A biovigilância e o novo coronavírus
Tendo em vista o caminho que traçamos até aqui, gostaríamos de destacar algumas das principais discussões que percorrem o escopo teórico da biovigilância, ou do uso da internet/tecnologias, como forma de auxílio no enfrentamento da pandemia. Deste modo, almejamos esboçar uma crítica reflexiva. O governo chinês, por meio do controle de dados dos cidadãos e do uso massivo de câmeras de vigilância espalhadas pelas cidades (estima-se que na China existam cerca de 200 milhões de câmeras), consegue, por exemplo, saber quem atravessa na faixa de pedestres, quem compra e consome alimentos saudáveis, quem lê os jornais ligados ao governo, e tantas outras intervenções na vida cotidiana que, nós ocidentais, diríamos ser uma invasão da ‘esfera privada’, diga-se de passagem, um vocabulário que não existe no idioma chinês, segundo Han (2020).
Muitas das questões elencadas têm como alvo específico o atual modelo de produção e consumo exacerbados, isto é, o modelo ‘neoliberal’; ou ainda, o modo como certos governos e governantes lidam com o alastramento da pandemia (Agamben et al., 2020). A tecnologia das câmeras de vigilância é tão avançada que sua inteligência artificial é capaz da captação de imagens mínimas, como pintas nos rostos dos cidadãos, até a temperatura corporal de cada pessoa. Deste modo, se alguém está em condições térmicas preocupantes, rapidamente os sistemas de coleta de dados identificam tanto a pessoa doente quanto as que estão próximas, assim, avisando-as para que se protejam.
Han (2020) explica que é quase inexistente a crítica a tal controle dentre os países asiáticos, e problematiza: aparentemente, o uso de tais tecnologias se tornou eficaz e situa-se muito à frente das medidas tomadas pelos europeus como, por exemplo, a do fechamento de fronteiras. Na China, muitas câmeras foram espalhadas na frente e dentro das casas das pessoas, passou-se a monitorar celulares por dispositivos de localização do fluxo de controle da circulação dos corpos, iniciaram-se coletas de dados minuciosos de cada chinês de forma nunca vista outrora, resolveu-se usar softwares de reconhecimento facial massivamente, criaram-se dispositivos de vigilância de todas as viagens recentes dos cidadãos chineses e de procura de familiares e amigos próximos destas pessoas monitoradas. Ainda capturaram-se dados de passageiros de trens, metrôs e ônibus, de pedestres e pessoas atendidas em todas os equipamentos de saúde e vigilância sanitária.
Também foi desenvolvida uma tecnologia para identificar todas as pessoas contagiadas por uma etiqueta colorida com QR code no celular de cada uma delas. Pessoas que mentiram sobre o histórico de viagens foram presas, quem violou quarentenas e o isolamento foi multado com altas taxas, os carros dos cidadãos passaram a ser rastreados onde realizou trânsito por locais com pessoas contaminadas e detectores de temperatura corporal foram amplamente utilizados obrigatoriamente para assegurarem a entrada de pessoas em locais como transportes, farmácias e supermercados. Diante das informações descritas acima vê-se que há aumento significativo dos usos de tecnologias de controle baseados em uma racionalidade de biovigilância em nome da saúde e da segurança, extrapolando as políticas de proteção e tornando-se dispositivos racistas, autoritários e segregativos.
Em nome da vida e da seguridade da população, uma biopolítica securitária é instalada e ultrapassa em muito a lógica do cuidado democrático, ganhando matizes próximos às características de sociedades ditatoriais. Lembrando os trabalhos de Butler (2018, 2019), é importante salientar o quando estas práticas realizadas em função da pandemia do novo coronavírus são enquadramentos de guerra, pois criam modos de enxergar e delimitar os quadros da política focada no controle da doença a partir de perspectivas específicas, as quais materializam maneiras de interpretar e fotografar os contágios, os tratamentos da doença, a segurança diante de riscos e vulnerabilidades variadas de vidas precárias face os efeitos da rápida e grave manifestação da infecção por Covid-19. Aproveitou-se de uma pandemia para criar, comercializar e implantar uma maquinaria politizadora da doença e da prevenção a esta com uma escala securitária indescritível e limitadora das liberdades.
A biovigilância na pandemia tem conduzido a uma ampliação ímpar de controle da saúde, de regulação do deslocamento das pessoas, de um exercício constante de isolamentos e quarentenas em nome da seguridade social e da gestão da saúde bem como da vida. Concomitantemente ao aumento da biovigilância, como estratégia biopolítica, há a omissão e o deixar morrer como política da vida pelo paradoxo racista do fazer viver e do deixar morrer. As decisões políticas para tanto operam em uma classificação de um suposto valor das vidas, o que de fato conduz aos racismos de considerar que vidas mereceriam viver e quais não teriam valor e poderiam ser descartadas, deixadas ao descaso e negligenciadas quanto aos cuidados de saúde.
O panoptismo da biovigilância ganhou materialidade de um controle centrípeto e empresarial, altamente persecutório e desproporcional em nome da saúde e da preservação de vidas. Existiram resistências e protestos, contudo, frustrados por medidas mais restritivas e punitivistas. O esquadro biopolítico mira a vida pela régua da valoração preconceituosa, estigmatizante, estereotipada e marcada pela discriminação negativa, em uma espécie de disputa e concorrência do mercado neoliberal pela via de escalas de valor que assinalariam superioridade e inferioridade, ou seja, práticas racistas na gestão da proteção e da defesa social.
Considerações finais
O presente artigo delineou alguns esboços iniciais a respeito da expansão da sociedade biopolítica por meio da utilização intensa dos mecanismos de segurança e das tecnologias de controle em meio aberto de forma exaustiva, criando efeitos autoritários e modulando ideários de lei e ordem que chegaram a ganhar nuances morais além de amplamente regulatórias e punitivas. Em nome da saúde e da gestão da vida, foram implantadas redes de levantamento e armazenamento de informações detalhadas, criaram-se bancos de dados e sistemas punitivos de exceção, instalaram-se tecnologias de rastreamento e dispositivos de vigilância no tempo e no espaço de meticuloso efeito do olhar hierarquizado na governamentalidade da população chinesa, passando a ser apresentados como solução para o controle e extinção da pandemia por Covid-19.
Deste modo, práticas sociais e políticas autoritárias foram alardeadas e implementadas com decretos, regulamentos, criação de leis e materialização de toda uma biovigilância rápida e marcada por um vetor de exceção e urgência, medidas estas de cunho racista, em nome da defesa social, expandindo um fino e intenso dispositivo disciplinar dos corpos e altamente regulatório da população. A segurança foi a promessa oferecida e vendida como remédio e tomada de decisão na administração do que se tornou um caos mundial, o veloz e dramático contágio pelo vírus da Covid-19 e seus diversos efeitos nefastos. Viver em tempos de pandemia é um desafio de acompanhar o contágio na mesma velocidade para matar em que estados ancorados no livre mercado desprezam as vidas que saem dos seus escopos de valor.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Jul 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
17 Maio 2020 -
Aceito
12 Jun 2021