RESUMO.
O acolhimento noturno configura-se como um dos recursos oferecidos pelos Centros de Atenção Psicossociais de tipo III no cuidado aos sujeitos em sofrimento psíquico grave. Este estudo teve como objetivo identificar as percepções de profissionais de um Centro de Atenção Psicossocial tipo III sobre os critérios para inserção e alta de usuários em acolhimento noturno. Trata-se de uma pesquisa qualitativa da qual participaram nove profissionais respondendo a um roteiro semiestruturado de entrevista sobre dados sociodemográficos e questões sobre o funcionamento e os critérios para o acolhimento noturno no referido serviço e realizada análise de conteúdo temática com os dados obtidos. A análise de conteúdo temática apontou que a estabilização da crise e a proteção à vida configuram-se como critérios centrais para a inserção no acolhimento noturno, o qual pode assumir tanto o sentido de vigilância sobre o comportamento do usuário quanto de oportunidade para desenvolver vínculo com a equipe. Diante disso, conclui-se que o acolhimento noturno tem função estratégica no manejo às situações de crise em saúde mental e que muitos são os desafios enfrentados pela equipe na interlocução dos diversos pontos da rede de atenção psicossocial no cuidado aos seus usuários.
Palavras-chave: Serviços de saúde pública; intervenção na crise; saúde mental
RESUMEN.
La recepción nocturna está configurada como uno de los recursos ofrecidos por los Centros de Atención Psicosocial Tipo III en la atención de sujetos con angustia psicológica severa. Este estudio tuvo como objetivo identificar las percepciones de los profesionales en un Centro de Atención Psicosocial tipo III sobre los criterios de inserción y alta de los usuarios en la atención nocturna. Es una investigación cualitativa en la que participaron nueve profesionales, que respondieron a un guión de entrevista semiestructurada sobre datos socidemográficos y preguntas sobre el funcionamiento y los criterios para la recepción nocturna en el servicio referido. El análisis del contenido temático se realizó con los datos obtenidos. El análisis de contenido temático de que la estabilización de la crisis y la protección de la vida son criterios centrales para la inserción en la recepción nocturna, que puede asumir tanto un sentido de vigilancia sobre el comportamiento del usuario como una oportunidad para desarrollar un vínculo con el paciente. equipo En vista de esto, se concluye que la atención nocturna tiene un papel estratégico en el manejo de situaciones de crisis en salud mental y que el equipo enfrenta muchos desafíos al hablar sobre los diferentes puntos de la red de atención psicosocial en el cuidado de sus usuarios.
Palabras clave: Servicios de salud publica; intervención en la crisis; salud mental
ABSTRACT.
Night care is one of the resources offered by Type III Psychosocial Care Centers in the care of subjects in severe psychological distress. This study aimed to identify the perceptions of professionals in a Psychosocial Care Center type III on the criteria for insertion and discharge of users in night care. It is a qualitative research in which nine professionals participated, responding to a semi-structured interview script about socidemographic data and questions about the functioning and criteria for night reception at the referred service. Thematic content analysis was performed with the data obtained. Thematic content analysis that the stabilization of the crisis and the protection of life are central criteria for insertion in the night reception, which can assume both a sense of vigilance about the user's behavior and an opportunity to develop a bond with the patient. team. In view of this, it is concluded that night care has a strategic role in managing crisis situations in mental health and that there are many challenges faced by the team when talking about the different points of the psychosocial care network in caring for its users.
Keywords: Publica health services; crisis intervention; mental health
Introdução
Esta pesquisa tem como tema o acolhimento noturno oferecido em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de tipo III. Os CAPS são equipamentos que surgiram para o cuidado à pessoa em sofrimento psíquico em substituição do modelo de assistência psiquiátrica fundamentado na internação em longo prazo, na hipermedicalização do sujeito e em práticas violentas existentes no hospital psiquiátrico por ações que buscavam garantir ao sujeito em sofrimento psíquico o cuidado humanizado. As estratégias de atenção psicossocial, em contraposição às práticas manicomiais, buscam preservar a permanência dos sujeitos no contexto familiar e comunitário, e operam a partir das perspectivas de estabelecimento de vínculo, de cuidado às necessidades de cada sujeito em busca de (re)construir seu campo relacional, a fim de promover, deste modo, a sua autonomia (Portaria nº 366, 2002; Dimenstein & Silva, 2014). Com o respaldo das portarias MS 224/1992 e, posteriormente, 336/2002, os CAPS firmaram-se como ponto de acesso aos cuidados em saúde mental e, a partir de 2011, passaram a integrar a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), formada por pontos de atenção destinados às pessoas em sofrimento psíquico e/ou com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, tais como Unidades Básicas de Saúde, as Equipes de Consultórios de Rua, os Centros de Convivência e Cultura, além de residências terapêuticas, os CAPS e as unidades hospitalares com leitos para internação (Portaria nº 366, 2002; Ministério da Saúde, 2017b).
Nos CAPS de tipo III, que funcionam em municípios com população superior a 200 mil habitantes, o acolhimento noturno é uma das funções para o atendimento de sujeitos em sofrimento psíquico que demandam cuidado emergencial e integral em saúde mental (Dimenstein et al., 2012), como alternativa de atenção e manejo da crise. Para as autoras, os CAPS III, juntamente com os hospitais gerais, seriam dispositivos imprescindíveis na constituição da rede de atenção à crise, já que disponibilizam o serviço de acolhimento noturno aos usuários. Dentro do contexto da RAPS, a atenção e o manejo às situações de crise despontam como algumas das maiores dificuldades para os profissionais de saúde que nela atuam (Dimenstein & Silva, 2014). Campos et al. (2009), em um de seus estudos qualitativos com diferentes grupos vinculados a um CAPS III, tais como trabalhadores, usuários e familiares de usuários, indicam o aparecimento, nos relatos, de duas concepções antagônicas sobre a crise: (1) a que se relaciona com a emergência de sintomas a serem contidos pela equipe e (2) outra ligada à percepção da situação como sendo de enorme fragilidade, mas também de oportunidade de reconstruções.
Em outro estudo (Zandoná, 2016), a noção de crise é discutida com base na definição do Caderno de Atenção Básica n° 34 de Saúde Mental (Ministério da Saúde, 2013) que aborda a situação de crise psíquica como expressão de uma tentativa de reorganização de um sujeito em sofrimento, cujos desarranjos devem ser acolhidos e suportados. Requer pensá-la em sua dimensão relacional, considerando os vários elementos que constituem as histórias singulares dos sujeitos e os recursos disponíveis no seu contexto social e familiar. É importante que a concepção da crise envolva não apenas a sintomatologia, mas também dimensões relacionais, comunitárias, sociais, políticas, dentre outros aspectos (Louzada & Castro, 2021). Os cuidados à crise na lógica da atenção psicossocial necessitam, segundo Cruz, Guerrero, Scafuto e Vieira (2019) de CAPS de tipo III, que ofereçam suporte diuturno aos usuários; de serviços de urgência que acolham pessoas em sofrimento psíquico e dialoguem com os CAPS; leitos psiquiátricos em hospitais gerais, os quais devem ser acessados quando se esgotem os recursos de base territorial e comunitária, tendo o CAPS papel de destaque na avaliação das demandas e regulação de acesso.
Neste trabalho, adotaremos a concepção de crise proposta por Dell'Acqua e Mezzina (2005). As ‘situações de crise’ nos contextos dos serviços psiquiátricos podem ser reconhecidas quando há prevalência de pelo menos três das seguintes especificações: (a) grave sintomatologia psiquiátrica; (b) grave ruptura no plano familiar e/ou social; (c) recusa do tratamento; (d) recusa obstinada de contato; (e) incapacidade de confrontar situações de alarme em seu contexto de vida. Em complemento a esta definição, concordamos com Ferigato, Campos e Ballarin (2007), autores que defendem que a crise não deve ser vista como uma situação negativa, que deve ser controlada com a máxima rapidez. Pelo contrário, a pessoa em crise deve ter sua situação examinada, explorada e acolhida em todas as suas potencialidades e com todos os recursos disponíveis pelas equipes. Como recursos utilizados no manejo das situações de crise por trabalhadores de CAPS encontram-se: o acolhimento dos usuários, o horário de serviço estendido, a intervenção medicamentosa, a contenção física, o cuidado intensivo, a reinserção e reabilitação psicossocial, a assistência domiciliar, o encaminhamento e a internação psiquiátrica (Dimenstein & Silva, 2014).
Campos et al. (2009) também ressaltam que a falta de CAPS III abre lacunas para a fragmentação dia/noite do serviço, movimento comum nos hospitais psiquiátricos, e que a existência dos leitos de acolhimento noturno é fator diferencial na assistência, pois permite que os usuários estejam com a mesma equipe integralmente nos momentos de crise. O Ministério da Saúde (Portaria nº 854, 2012) define o procedimento de acolhimento noturno como ações de hospitalidade ofertadas como um dos recursos do projeto terapêutico singular de usuários que estão em acompanhamento no CAPS que ocorre a partir do afastamento do usuário de ‘situações conflituosas’ nas quais ele esteja envolvido e “[...] manejo de situações de crise motivadas por sofrimento decorrente de transtornos mentais - incluídos aqueles por uso de álcool e outras drogas”. Podem estar presentes “[...] conflitos relacionais caracterizados por rupturas familiares, comunitárias, limites de comunicação e/ou impossibilidades de convivência [...]” e a inserção em acolhimento noturno visa construir possibilidades para “[...] a retomada, o resgate e o redimensionamento das relações interpessoais, o convívio familiar e/ou comunitário [...]”, sendo a duração máxima do uso deste recurso o período de 14 dias.
O acolhimento noturno é colocado pela literatura especializada (Nilo et al., 2008; Silva, 2014; Gonzaga & Nakamura, 2015; Moura, 2015; Vainer, 2016; Brandão, Breda, Santos & Albuquerque, 2018; Silva et al., 2020) como dispositivo que garante acessibilidade, acolhimento integral, autonomia da equipe e assistência individualizada que não compactua com lógicas manicomiais, sendo necessário que esteja articulado aos demais pontos de cuidado da rede. Esse dispositivo supre, nos municípios onde existe, uma grave lacuna nos cuidados em saúde mental, pois “[...] o sofrimento não se orienta pelo relógio [...]” e a grande parte dos CAPS existentes é de tipo I e II, sendo organizados para cuidados “[...] apenas sob a luz do dia” (Nilo et al., 2008, p. 131). A partir disso, o acolhimento noturno dos usuários seria, para estes autores: “[...] uma forma de lidar e possibilitar saídas para um sujeito em ruptura com seu laço social” (Nilo et al., 2008, p. 118), ou seja, “[...] que se tornou estrangeiro em sua própria casa, que irrompeu de falar outra língua, que não tem documento ou visto”.
No que se refere ao CAPS III, enquanto modalidade de serviço e assistência em saúde mental, é possível identificar uma escassa produção científica a respeito de sua função estratégica de acolhimento noturno, fato que pode ser compreendido como uma reverberação pela sua baixa implantação no país (Vainer, 2016). Segundo o Ministério da Saúde, no ano de 2017 estavam em funcionamento no Brasil 100 CAPS III e 106 CAPS Ad III (Ministério da Saúde, 2017a), num total de 2.462 CAPS cadastrados. O mesmo documento destaca que o número de CAPS com pelo menos 12 registros de atendimento à crise no ano de 2016 foi de 561, o que correspondia a cerca de 23% do total de CAPS no país. O informativo Saúde Mental em Dados, publicado pelo Ministério da Saúde (2015), afirma que em dezembro de 2014 estavam cadastrados apenas 85 CAPS III em todo o território brasileiro e 69 CAPS Ad III, dos quais 12 CAPS III e 10 CAPS Ad III localizavam-se no estado de Minas Gerais, onde esta pesquisa foi realizada. Face às considerações aqui colocadas, é importante compreender de que modo as equipes de CAPS tipo III percebem o acolhimento noturno no cuidado aos usuários, seus limites e suas contribuições. Estabeleceu-se, portanto, como objetivo desta pesquisa identificar os critérios usados por profissionais de um CAPS de tipo III para inserção e alta de usuários em acolhimento noturno.
Método
Foi desenvolvido um estudo de tipo qualitativo, caracterizado pelo interesse do pesquisador em apreender o significado de fenômenos, vivências, eventos, ideias e o que estes representam para o indivíduo. No campo da saúde, particularmente, compreender tais significações torna-se fundamental para o fortalecimento das relações entre profissional, paciente, família e instituição (Turato, 2005). Participaram nove profissionais da equipe de um Centro de Atenção Psicossocial de tipo III do estado de Minas Gerais. O número foi determinado por saturação teórica. Foram convidados profissionais que atuavam tanto no período noturno - em que a hospitalidade efetivamente acontece - quanto diurno por entendermos que ambos estão envolvidos no processo de cuidado. Os critérios de inclusão foram atuar no CAPS há pelo menos três meses no momento da coleta e ter disponibilidade para ceder entrevista gravada em áudio. Já os critérios de exclusão foram: estar em período de férias ou licença no momento da coleta. O CAPS III, cenário da pesquisa, estava em funcionamento há dez anos, possuía 200 usuários ativos no serviço e sua equipe era formada por cerca de 40 profissionais de psicologia, assistência social, enfermagem (graduados e técnicos), médicos (psiquiatra e clínico), recepcionista, serviços gerais e porteiro. A rede municipal também contava, à época, com um CAPS ij, um CAPS Ad tipo II, um CAPS Ad tipo III, dois CAPS tipo II, uma Unidade de Acolhimento Infantil, um Centro de Convivência e Cultura, 25 leitos de saúde mental em um hospital geral universitário, além de Unidades Básicas de Saúde tradicionais e Unidades Básicas de Saúde da Família (sendo 01 equipe de Núcleo de Apoio em Saúde da Família matriciando 02 equipes de atenção primária). A população do município era superior a 500 mil habitantes à época. É importante destacar que o CAPS III, cenário da pesquisa, recebe para acolhimento noturno nos seis leitos disponíveis usuários, cujos projetos terapêuticos singulares são desenvolvidos na própria unidade e também usuários de CAPS II do município, tendo em vista que estes não possuem leitos de retaguarda. Nestes casos, o usuário permanece no CAPS II de origem durante o dia e ao final da tarde é levado para o CAPS III por transporte do município, ali permanecendo até a manhã do dia seguinte, quando é transportado para o CAPS II de origem.
Como instrumento de coleta de dados foi construído um roteiro de entrevista individual e semiestruturado. Segundo Duarte (2004), esse tipo de instrumento é imprescindível quando pretende-se mapear valores, crenças e práticas de determinados universos sociais, permitindo ao pesquisador mergulhar em profundidade no modo como cada um dos participantes percebe e significa o fenômeno investigado. O roteiro englobou, inicialmente, a caracterização geral do entrevistado (idade, profissão, se possui companheiro, tempo de atuação na rede SUS e no CAPS, entre outros) e questões norteadoras sobre a temática em estudo (a finalidade do acolhimento noturno; os critérios para inserção e alta no acolhimento noturno; vantagens do acolhimento noturno).
Após aprovação do projeto de pesquisa por um Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos (CAAE 80394017.5.0000.5152) e emissão de autorização para contato com o gestor efetuada pela Secretaria Municipal de Saúde, foi realizado contato inicial com a gestora da unidade e uma das pesquisadoras compareceu à uma reunião de equipe para expor os objetivos da pesquisa e entregar uma cópia do projeto. Foram anotados os contatos dos profissionais que se disponibilizaram a participar da pesquisa para posterior agendamento da entrevista, que ocorreu em data e horário indicados por cada profissional, após assinatura do TCLE, utilizando-se uma das salas do CAPS reservadas para esta finalidade. A cada entrevista foi atribuído um número, também como forma de preservar a identidade do participante (por exemplo, à primeira entrevista foi atribuída a sigla E1, à segunda E2 e assim por diante). Para auxiliar a preservar a identidade dos entrevistados, não serão divulgadas as especialidades de cada profissional.
A análise do material transcrito foi inspirada nos passos sugeridos por Bardin (1977) para análise temática de conteúdo (pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação). Foram efetuadas leituras sucessivas de cada entrevista, de forma independente por duas diferentes pesquisadoras, e após debate, os subtemas identificados foram aglutinados e são apresentados na seção seguinte na forma de duas categorias e suas subcategorias.
Resultados e discussão
Caracterização de participantes
Dentre os nove entrevistados, sete eram mulheres e dois homens, com idades entre 25 e 41 anos (média de 31 anos). Com relação ao nível de escolaridade, todos são graduados, sendo que cinco completaram uma pós-graduação (02 mestrados e 03 especializações). O tempo mínimo e máximo de atuação na área da saúde dos entrevistados foi de, respectivamente, um ano e três meses e 16 anos (média de 5,3 anos).
Categoria 1 - Critérios de inserção de usuários em acolhimento noturno
Crise aguda: manifestação de sinais e sintomas psicopatológicos
Um dos critérios para a inserção do usuário em acolhimento noturno é a manifestação de sinais e sintomas, caracterizando uma crise nos moldes clássicos dos manuais psiquiátricos: “[...] o critério geral de crise que está ligado a uma exacerbação do sintoma, a uma desorganização psíquica e emocional” (E1); “[...] a pessoa tem uma intensificação dos sintomas que ela não consegue dar conta sozinha” (E2); “[...] quando o paciente está muito agitado, muito acelerado, queixando muito da família, ameaçando a família [...]” (E5); “Um paciente em crise é aquele que está apresentando sintomas, ouvindo vozes, vendo coisas que as outras pessoas não conseguem ver, está mais irritado, agressivo [...]” (E6). A intensificação dos sintomas aparece como indicativo para a inserção em acolhimento noturno, garantindo um período de observação pela equipe: “[...] a crise aguda é aquele estado onde o paciente entra [...] em uma desorganização, e que precisa de uma ajuda, de uma escuta, ou se possível um encaminhamento para um lugar para [...] ter uma observação mais efetiva, mais intensiva” (E3); “[...] uma crise que a gente avalia que, com a medicação normal, ele [usuário] não vai conseguir sair [...] quando está mais aguda, então isso aí já são critérios para entrar na hospitalidade” (E9). As explicações aqui elencadas vão ao encontro da definição de crise nomeada por Ferigato, Campos e Ballarin (2007) como uma ‘agudização da sintomatologia psiquiátrica’, algo destrutivo e que deve ser estabilizado. Essa leitura simplificada sobre o momento de crise, além de desconsiderar a potencialidade para a transformação do sujeito, também desconsidera vários outros aspectos compreendidos por Dell’Acqua e Mezzina (2005) como importantes ao se pensar na concepção de crise, como a complexidade das relações sociais estabelecidas pelo sujeito e o contexto histórico vigente, além da possibilidade de reorganização do sujeito em sofrimento (Zandoná, 2016; Ministério da Saúde,2013).
Acolhimento noturno preventivo
Além da exacerbação de sintomas, aparece a noção de uma ‘hospitalidade preventiva’ que justifica a indicação de uma pessoa para acolhimento noturno e ocorre em três situações. A primeira diz respeito às mudanças de comportamento que indicam à equipe que uma crise pode, em breve, ocorrer, ou seja, quando a equipe identifica pródromos:
Tem alguns casos em que a gente insere na hospitalidade de uma forma mais preventiva. A pessoa não está em crise, ela ainda [ênfase] não está em crise, mas a gente acha que está tendo uma mudança de comportamento que pode evoluir para uma crise ou porque um evento estressor na vida dela, teve alguma mudança muito grande [...] Aí a gente insere na hospitalidade para controlar isso, regular e evitar que a crise apareça e se agrave (E1).
O conceito de pródromo, explicado por McGorry e Edwards (2002 citado por Carvalho & Costa, 2008), descreve situação onde, antes da eclosão de uma crise psicótica, seria possível a quem convive com o sujeito, observar mudanças em seu comportamento como isolamento social, menor higiene corporal, falta de iniciativa, alterações no discurso e no afeto. Segundo os autores, reconhecer tais mudanças - pródromos - poderia auxiliar a pessoa em sofrimento psíquico na medida em que se podem organizar mudanças em seu tratamento, adequando-o às necessidades do momento (Carvalho & Costa, 2008; Freitas & Costa, 2017). O reconhecimento de pródromos pela equipe que participou deste estudo, por um lado, sinaliza profissionais atentos e próximos do usuário e por outro nos lança ao questionamento sobre a necessidade de isolamento do sujeito por meio do acolhimento noturno, em detrimento de outras mudanças possíveis em seu projeto terapêutico singular.
A segunda situação refere-se à necessidade de observar o usuário mais proximamente para fins de esclarecer um diagnóstico, ou seja, “[...] uma forma de entender um quadro... às vezes de fechar um diagnóstico que a equipe está com dúvida, que é nomeado pela família como crise [...] e insere [no acolhimento noturno] de forma preventiva também” (E2). Essa necessidade de inserir em acolhimento noturno para esclarecer um diagnóstico aproxima o serviço mais de uma clínica tradicional do que de uma clínica ampliada, que deveria nortear os cuidados na atenção psicossocial (Campos, 2001). Por fim, a terceira situação ocorre quando a família solicita internação, mas a equipe não avalia esta necessidade: “[A família] não está pensando em hospitalidade, ela quer internação. Então a gente oferece a hospitalidade às vezes até para evitar que [...] uma internação” (E8). Essa terceira situação sinaliza o apoio da equipe do CAPS ao usuário na tentativa de sustentar a própria crise, “[...] transformar o surto em passagem” (Campos, 2001, p. 105), o que coloca o CAPS efetivamente como equipamento substitutivo à internação.
Crise Social: falhas da família em aspectos relacionais com o usuário
Os participantes utilizaram a expressão ‘crise social’ para descrever situações nas quais não há apenas ou prioritariamente uma exacerbação de sinais e sintomas psicopatológicos, desconectados de suas relações: “[...] pode ser uma crise social, que não está bem em casa, com os familiares, com quem a pessoa convive né? E precisa de [...] um tempo [...] fora de casa [...] mas que depois, logo vai voltar” (E7). Nas entrevistas a família aparece como personagem central de cenas de ‘crises sociais’ nas quais três caminhos se desenham. No primeiro caso, segundo os entrevistados, a relação usuário-família é caracterizada por baixo suporte ao usuário, quando a família não consegue oferecer o cuidado ao sujeito que está em crise dentro da própria residência, seja pela gravidade da sintomatologia ou pela dificuldade de manejo da família com o usuário, sendo necessário auxílio com suporte especializado. Nesse caso, os profissionais afirmam que o acolhimento noturno oferece o suporte necessário para evitar internação e para o manejo do caso, o que implica na possibilidade de que o CAPS se coloque como serviço substitutivo (Campos, 2001). O período em acolhimento noturno permite que a família se reorganize e receba o usuário ao final da hospitalidade:
Acaba que a gente vê que fica em hospitalidade muito aqueles casos em que a família não está conseguindo ficar com o paciente em casa [...] porque ele está agressivo ou porque ele está muito deprimido [...], então a família já não tá conseguindo lidar com aquela situação em casa. [...] (E8).
Há também os casos em que muitos conflitos intrafamiliares estão presentes no ambiente residencial, tornando-se bastante estressora a permanência do sujeito nesse local. O acolhimento noturno surgiria como amparo ao sujeito em crise e à sua família neste período de conflitos, oferecendo cuidado especializado a ele e suporte à família para reestruturação do vínculo familiar: “Em outros casos [...] em casa é um foco muito grande de conflito, a família não consegue [...] Então estar aqui no CAPS, né? A gente consegue retirar ela do ambiente estressor por [...] alguns momentos e oferecer o cuidado que ela precisa” (E1). A necessidade de ofertar cuidado às famílias, incluindo-as no tratamento, destaca a relação de parceria com o CAPS, sendo ambos copartícipes nos cuidados ao usuário, com a possibilidade de que a família, seja vista como aliada da equipe, tenha valorizados sua subjetividade e protagonismo (Pinho, Hernández & Kantorski, 2010; Rodovalho & Pegoraro, 2020).
A segunda forma como a ‘crise social’ aparece nos discursos dos participantes aponta o acolhimento noturno apenas para o pernoite de usuários e revela dificuldades nas parcerias com equipamentos fora da área da saúde. São casos em que a família tem dificuldades para receber o usuário no lar em razão do rompimento do vínculo sujeito-família e a equipe não consegue, por exemplo, uma vaga para o sujeito em instituições que ofertam abrigamento temporário: “Não é que ela [pessoa] está em crise, mas ela está em uma crise social se for pensar, porque a família não quer receber. Para onde que ela vai?” (E8) As entrevistas sinalizam que em certos momentos os leitos de hospitalidade noturna têm sido utilizados para suprir demandas que poderiam ser cobertas por outros serviços integrantes da RAPS, mas inexistentes nos cenários pesquisados, como as Unidades de Acolhimento (Ministério da Saúde, 2017b) ou albergues conveniados ao município. São situações percebidas pela equipe como ‘exceções’, mas presentes nas entrevistas:
Por exemplo, uma pessoa que a família não aceita em casa por ‘n’ questões e não tem dispositivos que aceitem a pessoa como ela está, por exemplo, albergues, né? [...] Não tem para onde ir... e às vezes ela aparece aqui com essa demanda.[...] às vezes acontece de aparecer e ser necessário inserir, né? São exceções (E2).
A questão social aqui pega muito, porque às vezes o paciente não tem nenhum suporte familiar lá fora, não tem nada que consiga ajudar [...] e às vezes também não tem outros setores a quem recorrer, e aí somos nós mesmos. O município cobra isso da gente né? [...] Tem os casos também dos pacientes moradores de rua que são trazidos, que não tem ninguém, a gente não consegue localizar ninguém da família e ficam aqui muito tempo (E9).
Por fim, a crise dita social também sugere o acolhimento noturno em função da necessidade de efetuar o reajuste da medicação. Entende-se que a administração medicamentosa deveria ter o acompanhamento ou suporte de algum familiar, o que nem sempre ocorre:
[...] às vezes o paciente não toma direito em casa, fala que toma e a gente percebe que não está tomando, a família não dá, não cuida adequadamente. E aí a gente insere para ver como que ele vai ficar fazendo o tratamento medicamentoso adequado aqui dentro (E2).
Geralmente pacientes que não tem um suporte muito bom familiar [...] para estar ajudando a administrar esses medicamentos em casa, o paciente acaba ciclando, né? [...] cicla e vem a entrar em crise novamente [...] A gente propõe a hospitalidade exatamente para gente ver se a medicação simplesmente não está... [...] ele não está tomando, ou se tiver que fazer um reajuste medicamentoso (E3).
A vinculação da responsabilidade familiar na administração das medicações prescritas coloca o núcleo familiar ora como corresponsável no tratamento do usuário juntamente ao CAPS, servindo o acolhimento noturno como auxílio à família no manejo da situação de crise do sujeito, ora como culpabilizado pelo ambiente estressor que proporciona e pela negligência ao cuidado do usuário, como apontado no estudo de Pinho, Hernández e Kantorski (2010).
Proteção x vigilância
A proteção à vida de usuários que apresentam risco de suicídio ou daqueles que têm dívidas com o tráfico de drogas e encontram-se em perigo no território onde residem é um dos critérios para inserção em acolhimento noturno. Usuários que possuem ideias suicidas persistentes ou que já tentaram o autoextermínio têm indicação para acolhimento noturno em virtude do ambiente protegido e da presença da equipe: “Tem casos também que são pacientes de tentativa de autoextermínio [...] pacientes que mantém a ideação, que querem morrer [...], então a gente mantém aqui para ter um ambiente que tem alguém que esteja sempre olhando ela” (E8).
Esse paciente vai ser observado o tempo inteiro, longe de objetos perfurocortantes, longe de situações de risco como cordas ou tentativa de intoxicação com excesso de medicamentos [...]. Esse serviço a gente faz justamente para não deixar esse paciente [...] provocar essas situações [...] (E3).
A inexistência de objetos/instrumentos que permitam ao usuário realizar a tentativa de suicídio é uma das justificativas para o acolhimento noturno. Heck et al. (2012) apontam que, nos casos de tentativas de suicídio, a tomada de atitude deve ser feita com agilidade e responsabilidade, intervindo de forma humana e empática, já que a construção do vínculo com o usuário neste momento de grande sofrimento psíquico torna-se imprescindível.
De acordo com os entrevistados, muitos usuários do serviço encontram-se em situação de vulnerabilidade e risco no território, principalmente por dívidas decorrentes da compra de substâncias psicoativas para uso pessoal. Os profissionais do CAPS afirmaram que o acolhimento noturno ofereceria proteção à vida também nos casos em que estes usuários se encontram ameaçados de morte em função de dívidas contraídas com o tráfico de drogas no território:
Muitos pacientes [...] principalmente pacientes usuários de substâncias psicoativas [...] tendem a ter conflitos no território justamente pela questão da falta do dinheiro, não conseguir manter o vício [...] alguns problemas com a polícia local do bairro, então a gente tenta proporcionar [...] esse ambiente protegido [...] (E3).
[...] um paciente nosso que talvez é usuário de drogas, [...] comprou a droga e não pagou e está sendo ameaçado [...] E também se não estiver bem, não é só a questão da ameaça, mas ele não está bem psicologicamente e também tá correndo risco no território, é uma outra opção também para gente oferecer a hospitalidade [...] (E6).
O acolhimento noturno, justificado pela necessidade de um olhar mais atento da equipe durante 24 horas e o cuidado com a vida daquele que está ameaçado por dívidas contraídas junto ao tráfico de drogas apontam para uma contradição no acolhimento, que tanto protege quanto vigia: “É um ambiente que a gente fala de protegido, mas também é um ambiente vigiado, que está sempre alguém para que, até o tratamento surtir algum efeito, a pessoa não venha a fazer uma nova tentativa [de suicídio]” (E8). É possível perceber não apenas um compromisso da equipe com a vida, mas nas situações que envolvem tentativas de suicídio e as dívidas com o tráfico, também delineia uma situação de vigilância sobre os corpos que devem ser mantidos vivos, sugerindo a tensão instalada na equipe.
Oportunidade para estabelecer vínculo com o usuário
O acolhimento noturno também se justifica, segundo os participantes, por ser um recurso que favorece a criação de vínculos entre equipe e usuário em duas situações, o que é confirmado pela literatura (Silva et al., 2020; Campos, 2001; Campos et al., 2009). A primeira refere-se à inserção de ‘usuários que não aderem’ às propostas terapêuticas do CAPS e não frequentam a unidade. A segunda situação que, segundo os entrevistados, faz do acolhimento noturno uma possibilidade de construção de vínculos refere-se a um usuário que não é conhecido pela equipe, foi atendido por serviço de urgência e encaminhado para o primeiro atendimento em CAPS. São exemplos destas duas situações:
Por vários motivos não vem ao CAPS: família não traz ou não consegue vir sozinho e não tem quem traga, ou não quer vir, ou se nega a sair de casa para vir [...] Aí a gente faz uma busca [...] em casa, a gente vai de ambulância lá, conversa e tal, e aí a gente traz essa pessoa [...] ou a família conseguiu trazer [...] aí a gente propõe para o paciente ‘Vamos ficar uns dias, que aí você fica, a gente vai se conhecendo melhor’. Depois disso a gente percebe que tem um bom resultado. O paciente passa a vir, passa a frequentar a maioria das vezes (E7)
A gente faz acolhimento e se a gente conhece o paciente já sabe se ele está em crise ou não. Se a gente não conhece, pelo acolhimento a gente também percebe se ele está bem ou não e oferece a hospitalidade, dependendo da gravidade (E6).
Contraindicação do acolhimento noturno
Ao narrarem situações nas quais o acolhimento noturno era uma prática adotada pela equipe do CAPS, os entrevistados também apontaram situações em que o acolhimento seria contraindicado. A primeira situação envolve usuários com complicações clínicas que demandam suporte hospitalar:
Quando o paciente [...] passa a ter questões clínicas, por exemplo, não come nada, não toma nem água [...] e aí vai começando a ter um desequilíbrio clínico também, e aqui a gente não tem nem condição de dar um soro para o paciente. Então quando isso vai se intensificando, a gente avalia a necessidade de uma internação, então aí encerra aqui, mas vai para um outro nível [...] de acompanhamento (E7).
A segunda situação ocorre nos casos em que a família do usuário não é localizada pela equipe para que ele possa retornar à residência e há necessidade de cuidado, atenção e moradia para o tratamento em saúde mental. O usuário permanece em acolhimento noturno e, quando a rede municipal solicita a vaga, a equipe pode negociar a transferência para outro local: “[...] se for questão social, se é caso às vezes de ir para leito transitório na [nome de uma clínica]” (E5).
O terceiro fator que contraindica o acolhimento noturno e, além disso, destaca o encaminhamento para outros serviços é o alto nível de agressividade do usuário em crise para o qual o manejo da equipe é insuficiente, seja pela impossibilidade de aumento da dosagem de medicação no CAPS, seja pelo fato de inexistir aparato hospitalar para lidar com questões clínicas graves decorrentes do uso de grande quantidade de medicamentos. Nestes casos há indicação de ida a serviço de pronto atendimento com vistas, muitas vezes, à internação. Esse último fator expõe a necessidade de articulação entre os CAPS e os serviços de urgência e o papel central que os CAPS devem exercer na avaliação da demanda (Cruz et al., 2019):
[...] quando o manejo da equipe não é suficiente pra dar conta do paciente aqui, em termos de agressividade, ou em termos de resposta ao tratamento, [...] está há muito tempo e não melhora [...] quando já tem uma dosagem de medicação que não dá mais para aumentar no CAPS e necessita de ter suporte hospitalar porque o paciente corre o risco de ter uma parada, um rebaixamento de nível de consciência (E7).
Categoria 2 - Critérios de alta de usuários em acolhimento noturno
Solicitações efetuadas por usuários e familiares
A interrupção do período do usuário em acolhimento noturno nem sempre ocorre por um indicativo da equipe. Foram quatro fatores citados como justificativa para a alta: (1) solicitada pelo próprio usuário, que identifica melhora e estabilização da crise; (2) solicitada pelo usuário em conjunto com a família, após identificarem melhora e estabilização da crise; (3) solicitada pelo usuário, que se recusa a continuar em acolhimento noturno e (4) solicitada pela família, que não aceita que o usuário continue em acolhimento noturno. Se a equipe avalia que o usuário não está apto a receber alta e existe a solicitação por parte do usuário ou de sua família, ocorre ‘alta a pedido’ mediante assinatura de um termo de responsabilidade pelo familiar ou pelo próprio usuário para o encerramento do período de acolhimento noturno: “É muito comum o próprio paciente colocar esse fim para gente. [...] quando ele tiver bem, ele mesmo já vai pedir para sair” (E7); “Se a equipe não concorda que ele esteja bem com alta, a gente solicita que um parente, ou ele, dependendo, assine um termo de responsabilidade” (E6).
Este pedido de alta feito pelo usuário ou por sua família se relaciona à diferenciação que a equipe faz entre acolhimento noturno e internação. Para o acolhimento noturno o usuário deve aceitar/concordar com sua inserção neste procedimento “[...] o paciente precisa aceitar ficar aqui, porque se ele não aceitar a gente não obriga, não é igual a uma internação [...]” (E7). Do mesmo modo, na alta há um contraponto entre acolhimento noturno e internação, sendo necessária a anuência do usuário: “Hospitalidade não é uma internação, então a pessoa tem autonomia, liberdade para dizer ‘Ó, não quero mais, eu quero voltar pra casa’, o que também vale para os familiares ‘Não quero que meu pai/meu filho/meu esposo fique aqui mais, eu quero levar ele para casa, vou levar ele pra outro lugar’, então a gente faz a alta dele” (E1). Essa compreensão desconsidera o caráter voluntário que algumas hospitalizações de curto prazo para casos de saúde mental têm, hoje, no Brasil.
Estabilização da crise
A estabilização ou atenuação de sinais e sintomas que levaram à inclusão do sujeito em acolhimento noturno é outro critério para a alta (Ferigato et al., 2007). A organização do fluxo de pensamentos, a coerência do discurso e a regularização do sono são indicativos de estabilização, com remissão dos sintomas: “Se o paciente dormiu ou não bem, se tem um sono regular, a questão da organização, tanto de fluxo de pensamentos quanto verbalizar [...]” (E3); “A gente observa se aqueles critérios que a gente utilizou para inserir [...] [ou seja] o que estava gerando conflitos, a crise [...] ou seja o que for, se teve já melhoras. A gente vai observando se o paciente já está mais organizado [...]” (E7). “Quando a gente percebe [...] que ele diminuiu a intensidade dos sintomas, está conseguindo falar de si próprio [...] independente do transtorno. Então aí já é quando a gente determina a alta” (E5).
Reestabelecimento de suporte familiar
Segundo os profissionais entrevistados é imprescindível que a família esteja apta a receber o usuário de volta no ambiente familiar para que a alta seja efetuada, sendo assim capaz de oferecer o cuidado e suporte necessários a este sujeito que está retornando ao seio familiar: “[...] a gente dá alta quando a família já se sente mais segura para essa pessoa voltar pra casa, vai ter alguém com ela mais tempo por essa questão das ameaças que podem ter” (E1); “[...] quando dá para articular com a família ou com alguém que possa acolher essa pessoa no seio familiar, onde dá a proteção que ela precisa, de uma forma que ela precisa” (E4).
A retirada do indivíduo de seu meio social seja para ‘fechar um diagnóstico’, seja para regularizar a medicação quando a família falha nesta tarefa ou para protegê-lo de conflitos decorrentes de dívidas com o tráfico nos reporta ao projeto inicial de psiquiatria de Phillipe Pinel e não de cuidados desenvolvidos pelo modo de atenção psicossocial. Nas palavras de Oda e Dalgalarrondo (2004, p. 135), para Pinel, “[...] o confinamento e o isolamento do doente eram fundamentais e visavam, ao mesmo tempo, afastá-lo do seu ambiente costumeiro, oferecer medidas de segurança à sociedade e ao próprio alienado e melhor observá-lo, para melhor tratá-lo”. Os autores apontam que, à época de Pinel, o hospício deveria reconduzir “[...] à razão pela disciplina e por uma justa repressão, num ambiente calmo, regrado e afastado dos tumultos e paixões” (Oda & Dalgalarrondo, 2004, p. 135)
Dimenstein et al. (2012) alertam para o risco de que alguns CAPS III funcionem como estruturas acopladas ao hospital psiquiátrico, por reafirmarem sua necessidade quando não conseguem se firmar como serviços efetivamente substitutivos. No que se refere ao CAPS que serviu de cenário para o presente estudo, tem-se que este oferece suporte com leitos de hospitalidade noturna para outros CAPS da cidade que não possuem esse recurso. Sendo assim, muitos dos usuários que chegam encaminhados à hospitalidade noturna e que tem sido acompanhados regularmente pela equipe de outra unidade, passam a ter assistência de uma nova equipe, havendo, portanto, certa fragmentação do vínculo entre usuário e equipe do CAPS de origem, contrariando a perspectiva de Campos et al. (2009) ao enfatizar que o diferencial da hospitalidade noturna é permitir que os pacientes estejam integralmente com a mesma equipe no serviço nos momentos de crise. Nesse sentido, a vantagem presente na lógica dos autores existiria apenas nos casos de usuários que são acolhidos e acompanhados no próprio CAPS III.
Para além disso, constatando-se a necessidade de cobertura dos demais CAPS do município com relação à hospitalidade noturna pelo CAPS III em questão, confirma-se o dado colocado por Vainer (2016) e pelo Ministério da Saúde (2017a) que afirmam a existência da baixa implantação de CAPS III no país e a consequente escassa produção científica sobre o tema.
Cabe ainda enfatizar a concepção de território em saúde mental, já que esta tem implicações diretas nas práticas dos diferentes serviços da rede. A lacuna que se abre ao considerar o acolhimento noturno como alternativa de medida protetiva ao usuário em risco no território é vasta, pois nos faz refletir sobre a (in)existência de práticas da equipe no cuidado ao usuário em território, considerando suas possibilidades diante dos conflitos vivenciados neste lugar e as relações sociais que estabelecem. Furtado, Oda, Borysow e Kapp (2016) abordam a existência de uma instrumentalização do conceito de território, sendo compreendido na maioria das vezes apenas como organizador administrativo da área de cobertura dos serviços de saúde da rede, desconsiderando-se a inclusão do sujeito em sofrimento mental em seu âmbito relacional. Diante disso, os autores afirmam a necessidade de se distinguir a simples inserção do usuário na RAPS de sua verdadeira inclusão nos espaços físicos, sociais e relacionais que compõem a noção de território.
Considerações finais
Esta pesquisa investigou os critérios para inserção de usuários em acolhimento noturno em um Centro de Atenção Psicossocial com funcionamento 24 horas. Sua relevância encontra-se no baixo número de publicações sobre este tipo de recurso de cuidado dos CAPS e na importância do acolhimento noturno para o cuidado na crise e fora do hospital, dando contornos ao CAPS de serviço realmente substitutivo. Compreensões da equipe que participou da pesquisa sobre o acolhimento noturno apenas como espaço para pernoite, dificuldades de diálogo com equipamentos fora do campo da saúde e o aspecto do acolhimento que o aproxima de um instrumento de vigilância dos corpos, observados neste estudo, não diminuem a relevância do acolhimento noturno. Pelo contrário, apontam para a árdua tarefa da equipe no cuidado em serviço de base territorial e descortinam, a nosso ver, a necessidade de que mecanismos como a supervisão clinico-institucional sejam acionados para permitir espaços de reflexão às equipes de CAPS, especialmente aquelas com mais capacidade de se firmarem como serviços efetivamente substitutivos, o que só é possível com o funcionamento do serviço 24 horas. Outro espaço de reflexão pode ser aberto com a devolutiva sobre a pesquisa. Neste sentido, uma separata do relatório de pesquisa foi entregue à coordenação em saúde mental do município e ao CAPS em questão, mas a reunião com equipe para discussão do material com o serviço ainda não ocorreu.
Por ter sido realizado em um único CAPS III e terem participado apenas profissionais deste serviço, uma das limitações da pesquisa consiste em não ter sido possível investigar a compreensão sobre o funcionamento deste recurso em outros CAPS e pontos da rede, assim como a perspectiva de outros sujeitos envolvidos no processo de acolhimento noturno (como usuários e seus familiares). A partir disso, sinalizamos a importância de se continuar investigando a função estratégica do acolhimento noturno para além do nível municipal, considerando a interlocução dos diversos pontos da rede, bem como proporcionar a escuta de usuários e familiares acerca de sua compreensão sobre este recurso.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
04 Jul 2020 -
Aceito
07 Fev 2022